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Entrevista Clínica Infantil A entrevista clínica situa-se no contexto de uma relação de cuidados, na medida em que o psicólogo clínico está ao serviço do outro. De facto, não são apenas os conhecimentos provenientes da sua formação que o psicólogo coloca à disposição do cliente, mas sim o seu aparelho psíquico e a sua capacidade de sentir, compreender e empatizar. A assimetria está sempre presente, na medida em que o cliente chega com um pedido, dirigindo-se a uma pessoa que tem uma função que pressupõe uma formação específica. A entrevista clínica infantil depende muito da criança e da sua forma de entrar em contacto, o que depende, por sua vez, das suas características de funcionamento. Assim, muitos aspectos são importantes na entrevista para o estabelecimento da relação: características da criança (idade, personalidade, modo de entrar em contacto) circunstâncias que levaram à consulta forma de estar e personalidade do psicólogo quadro de referência teórico técnicas (que muitas vezes são introduzidas como defesa contra a ansiedade do psicólogo pouco experiente) Geralmente, a criança aparece-nos como o sintoma familiar, portadora das disfunções e patologias familiares. No entanto, a criança tem um papel importante a desempenhar, logo, para que o trabalho decorra de forma desejável, convém definirmos o nosso papel enquanto psicólogos face à criança, desdramatizando a situação. É, por isso, importante perceber a visão da criança em relação às razões que a levaram ali. Rapidamente, a criança se apercebe que o adulto está disponível para ela e que a relação é diferente daquela que tem com qualquer outro adulto (quando ela fala, não a mandamos calar; quando ela está calada, não queremos que ela fale; não vamos contar aos pais o que ela nos conta e faz nas sessões). Isto faz com que a criança se sinta bem num ambiente que lhe é favorável, mostrando-se interessada e cooperante. É neste clima que deve ser feita a avaliação psicológica, porque apenas assim a criança se mostrará interessada nas actividades que lhe vamos propondo. Deste modo, o terapeuta está perante a criança de um modo diferente daquele que está com o adulto, não apenas porque a criança não tem um pedido, mas também porque se exprime de formas diferentes e não pode ser isolada do seu ambiente. Apesar disso, mais importante que os dados que os pais nos fornecem, é aquilo que a criança nos consegue comunicar acerca da sua vida. Os Instrumentos A entrevista clínica não obedece a um plano pré-estabelecido, na medida em que o objectivo principal é conhecer a criança e o seu funcionamento, inserido no contexto familiar. Não há uma entrevista-tipo e a forma de conduzir a entrevista varia imenso com a idade, o tipo de funcionamento, as circunstâncias que levam a pessoa à consulta, as pessoas que a acompanham (no caso da criança, é preferível que venham ambos os pais). Assim, implica uma atitude de escuta, compreensão e sensibilidade, que se traduz na capacidade empática. Numa primeira entrevista não se utilizam instrumentos, aliás, a entrevista é um instrumento em si mesmo, e um dos mais ricos, sendo essencial para a prática clínica.

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Entrevista Clínica Infantil

A entrevista clínica situa-se no contexto de uma relação de cuidados, na medida em que opsicólogo clínico está ao serviço do outro. De facto, não são apenas os conhecimentosprovenientes da sua formação que o psicólogo coloca à disposição do cliente, mas sim o seuaparelho psíquico e a sua capacidade de sentir, compreender e empatizar. A assimetria estásempre presente, na medida em que o cliente chega com um pedido, dirigindo-se a umapessoa que tem uma função que pressupõe uma formação específica.

A entrevista clínica infantil depende muito da criança e da sua forma de entrar em contacto,o que depende, por sua vez, das suas características de funcionamento. Assim, muitosaspectos são importantes na entrevista para o estabelecimento da relação:

• características da criança (idade, personalidade, modo de entrar em contacto)• circunstâncias que levaram à consulta• forma de estar e personalidade do psicólogo• quadro de referência teórico• técnicas (que muitas vezes são introduzidas como defesa contra a ansiedade

do psicólogo pouco experiente)Geralmente, a criança aparece-nos como o sintoma familiar, portadora das disfunções e

patologias familiares. No entanto, a criança tem um papel importante a desempenhar, logo,para que o trabalho decorra de forma desejável, convém definirmos o nosso papel enquantopsicólogos face à criança, desdramatizando a situação. É, por isso, importante perceber avisão da criança em relação às razões que a levaram ali. Rapidamente, a criança se apercebeque o adulto está disponível para ela e que a relação é diferente daquela que tem comqualquer outro adulto (quando ela fala, não a mandamos calar; quando ela está calada, nãoqueremos que ela fale; não vamos contar aos pais o que ela nos conta e faz nas sessões). Istofaz com que a criança se sinta bem num ambiente que lhe é favorável, mostrando-seinteressada e cooperante. É neste clima que deve ser feita a avaliação psicológica, porqueapenas assim a criança se mostrará interessada nas actividades que lhe vamos propondo.

Deste modo, o terapeuta está perante a criança de um modo diferente daquele que estácom o adulto, não apenas porque a criança não tem um pedido, mas também porque seexprime de formas diferentes e não pode ser isolada do seu ambiente. Apesar disso, maisimportante que os dados que os pais nos fornecem, é aquilo que a criança nos conseguecomunicar acerca da sua vida.

Os Instrumentos

A entrevista clínica não obedece a um plano pré-estabelecido, na medida em que oobjectivo principal é conhecer a criança e o seu funcionamento, inserido no contexto familiar.Não há uma entrevista-tipo e a forma de conduzir a entrevista varia imenso com a idade, otipo de funcionamento, as circunstâncias que levam a pessoa à consulta, as pessoas que aacompanham (no caso da criança, é preferível que venham ambos os pais). Assim, implicauma atitude de escuta, compreensão e sensibilidade, que se traduz na capacidade empática.Numa primeira entrevista não se utilizam instrumentos, aliás, a entrevista é um instrumento emsi mesmo, e um dos mais ricos, sendo essencial para a prática clínica.

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Contudo, a palavra não é o meio mais adequado para compreender o funcionamento deuma criança. Neste sentido, o que medeia o discurso é o jogar e o brincar, os quais dãosentido às palavras da criança. O diálogo deve, então, passar pelos assuntos de que a criançagosta de falar, mas é sobretudo pelas actividades que a criança revela o seu mundo interno,ao mesmo tempo que as actividades em conjunto permitem diminuir a assimetria semprepresente na relação (técnica dos «squiggles»). Mais do que as técnicas utilizadas, é o prazersentido no jogo que a facilita a comunicação. Deste modo, estas actividades têm comofunções:

⇒ diminuir da assimetria⇒ facilitar a relação⇒ ultrapassar da barreira do desconhecido⇒ compreender a criança e o seu sofrimento

O Jogo

Jogar e brincar são actividades diferentes; enquanto que o brincar permite a imaginação, acriatividade, a atribuição de papéis, a criação de histórias, o sonho, enfim, a fantasia, o jogarimplica regras, sendo, por isso, menos livre e menos útil no acesso à vida fantasmática dacriança. Juntamente com o desenho, ambos são modos de expressão. Se, por um lado, acriança sente necessidade de falar e dizer o que sente e pensa da forma que sabe, por outrolado, a escuta na entrevista infantil deve passar não só pelas palavras, mas também pelasmensagens transmitidas nas actividades, mostrando à criança que essas mensagens estão a serrecebidas, compreendidas e valorizadas.

Deste modo, a criança não fala do seu sofrimento e dos seus conflitos intrapsíquicos, masexpressa-os através do jogo, do desenho e dos testes. No setting, tem que haver espaçospara que a criança se exprima livremente. Neste sentido, a organização do espaço émuitíssimo importante, na medida em que é disso que depende um fluir natural do processo.

A maior parte dos autores defende que o material da caixa lúdica deve ser o mais simplespossível e essa simplicidade deve passar pelo acto de construir algo nas sessõespsicoterapêuticas propriamente ditas. Assim, em relação à caixa lúdica, é importante:

f haver estabilidade nos jogos oferecidos à criança ( a permanência da criança namente do psicólogo passa para a criança por essa estabilidade)

f os personagens serem pouco definidos, de forma a permitir a projecçãof haver elementos estranhos e perturbadores, assim como elementos familiares

O jogo deve ser encarado como uma forma de relação - o jogo é, de certa forma, oequivalente ao sonho, porque permite a elaboração de conteúdos mentais, permite o criar-se,o ser uma pessoa autónoma, o existir. Sendo uma actividade dinâmica, o jogo é flexível epermite projecções muito diferentes: o real, o ideal, o imaginário, os conflitos, etc. O jogoparticipa de uma crença e de uma realidade, transmitindo fantasmas e desejos que podemsuscitar culpabilidades.

Há crianças que têm dificuldade ou não conseguem mesmo jogar, porque o jogo asdesorganiza. A inibição da capacidade de jogo está ligada a dificuldades de elaboraçãopsíquica dos conflitos e à vivência corporal dos conflitos psíquicos.

O Desenho

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O desenho é um elemento essencial na entrevista psicológica com a criança, sendo um dosmodos através dos quais a criança exprime e projecta o seu mundo interno e relacional.Assim, a folha branca é um espelho onde a criança projecta sua conflitualidade interna.Mesmo quando uma criança não desenha ou não gosta de desenhar, mesmo quando osdesenhos são pobres, isto diz-nos muito acerca do funcionamento mental da criança. Odesenho entra numa dinâmica relacional - a criança desenha o mundo dos seus desejos edos seus obstáculos, mundo que quer dar a conhecer ao outro. A representação mental talcomo aparece no desenho é vivida num quadro relacional e a qualidade da relação é matizadapela harmonia ou desarmonia do desenho.

Alguns autores defendem que a maioria dos desenhos da criança até aos dez anosrepresenta a figura humana - é a projecção do eu corporal, da imagem corporal, que não éum espelho fiel da realidade, mas o corpo tal como ele é vivido, habitado por desejos emedos. Neste sentido, a criança não desenha a realidade tal como ela é, mas habitada pelassuas fantasias. Mesmo que não desenhe uma figura humana, a criança representa o seu corponoutros elementos, como as árvores ou as casas, que se constituem em metamorfoses daimagem corporal, saturada das suas experiências. Assim, o desenho revela a possibilidade deexistir ou não enquanto subjectividade, estando muito próximo da vida interna ou, pelocontrário, servindo-se das aprendizagens escolares para impedir os movimentos projectivos.

A interpretação assenta essencialmente naquilo que a criança nos diz do desenho.Quando há dificuldades de projecção do corpo como organizador do espaço, como no

caso de crianças organizadas em falso self, a projecção através do desenho complica-se. Porexemplo, na psicose, a imagem corporal surge deteriorada, fragmentada e desintegrada - ocorpo está em constante transformação e o rosto não tem possibilidade de existência oupermanência.

A Palavra e o Silêncio

As perguntas que as crianças nos fazem devem ser respondidas sempre com a verdade,mesmo que a verdade seja apenas um “não sei responder a isso”, tendo obviamente atenção àidade. Por outro lado, as questões colocadas pelo terapeuta à criança devem cingir-se àquiloque a criança está preparada para responder e que não sentirá como intrusivo.

Na situação de entrevista, existem dois aspectos fundamentais - a palavra e a observação,isto é, o dito e o não-dito, o manifesto e o latente. Chega-se ao conteúdo latente do discursoatravés da observação da forma como a pessoa está e se comporta, da comunicação nãoverbal, do silêncio.

Se, por um lado, o silêncio é um fenómeno de grande importância clínica, por outro lado, éa derradeira manifestação da vida psíquica. «Se o silêncio se exprime na estrutura densa ecompacta, sem ruído nem palavra, do nosso próprio inconsciente, exprime também a formade comunicação original no plano da identificação fusional» (Mª José Vidigal).

No pensamento primitivo, o silêncio e a imobilidade do dormir eram equacionados com amorte; enquanto protector do mistério e do sagrado, o silêncio define uma condiçãonecessária para a adoração. O taoísmo encoraja a rejeição do mundo exterior a favor daprocura do silêncio dentro de si próprio, como meio de encontrar as respostas para o enigmada existência.

O silêncio na relação terapêutica aparece como um mística integrativa, respondendo ànecessidade de reencontrar um estado de união fusional, que protege do terror e da solidão.

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Ser demasiado falador é uma forma de ser surdo-mudo a qualquer intervenção do terapeuta,preenchendo o vazio com palavras e evitando a relação simbiótica temida, porque desejada.O silêncio pode conter a ameaça de perigos internos e externos, mas também pode ser ummétodo de domínio das emoções violentas ou penosas. Por seu lado, o silêncio do terapeutacorresponde a uma escuta calorosa dos processos internos em formação do cliente,exprimindo um sentimento consistente de compreensão, calor e neutralidade benevolente.

O silêncio pode encerrar em si sentimentos feridos, masoquismo, retirada do contacto comos outros, depressão. «A relação dialéctica que põe em jogo a transferência / contra-transferência e o diálogo verbal e infra-verbal entre analista e analisando é possível ser vista nabase das primeiras relações de objecto da criança com partes do seu corpo e do corpo damãe. De igual modo, as primeiras trocas verbais inscrevem-se nas trocas originárias dassensações corporais e dos cuidados maternos» (Mª José Vidigal). Quando predomina osilêncio na comunicação terapêutica, a finalidade é tentar tornar significativas as razões dessaincapacidade para falar, permitindo a elaboração interpretativa (working-through). «Éfundamental que o analisando sinta que o silêncio do analista lhe dá o direito de estar tambémem silêncio.» (Mª José Vidigal)

Assim o silêncio pode ser criativo, com a participação tranquila do terapeuta: através domecanismo de identificação projectiva, o terapeuta conserva face ao silêncio do analisando acapacidade de rêverie que poderá ser posta ao serviço do cliente. Mas também pode ser umsilêncio vazio, provocado pelas projecções do paciente que atacam a capacidade de pensardo terapeuta.