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de 13 a 19 de dezembro de 2012 4 brasil 5 Fernanda Becker Os impasses do lulismo ENTREVISTA O cientista político André Singer, autor de Os sentidos do lulismo, debate o fenômeno social encabeçado pelo ex- presidente da República Antônio David e Fernanda Becker de São Paulo (SP) OS SENTIDOS do lulismo, de André Singer, é um empenho na direção de compreender o signicado do lulismo e o atual momento histórico do Bra- sil. Seu foco é lançar luz sobre as con- tradições que permeiam tanto um co- mo o outro. Para tanto, André Singer parte de uma constatação estarrecedo- ra: no ano da chegada do PT ao poder, o Brasil era o país mais desigual do mun- do. Por razões que remontam ao passa- do colonial, havia no Brasil uma “sobre- população trabalhadora superempo- brecida permanente”, que estaria abai- xo da condição proletária – seria o sub- proletariado. Responsável pela derrota de Lula em 1989, o subproletariado, se- gundo André Singer, teria se convertido em base do lulismo. Ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, a classe média se afastaria do PT. Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político debate esses conceitos do lulismo e seus impactos eleitorais e sociais no país. Brasil de Fato – Desde Esquerda e direita no eleitorado brasileiro (2000), você situa o subproletariado à direita no espectro ideológico e o caracteriza como predominantemente conservador, no sentido de rejeitar a radicalização política. Quais são as razões desse comportamento? André Singer – Eu não diria que o subproletariado é predominantemente conservador, porque há um intenso de- sejo de mudança. Há uma consciência muito nítida de que é preciso mudar a distribuição da renda, algo fundamen- tal no Brasil, e de que é preciso mudar por meio de uma intervenção do Esta- do, que é algo que vai na direção contrá- ria da ideologia liberal. Esses elementos nada têm de conservador. O que aconte- ce é que eles se associam a um elemento conservador e essa associação é estra- nha. Este é um elemento que eu carac- terizaria como conservador, que é a ex- pectativa de que essa mudança ocorra dentro da ordem, e não com uma ruptu- ra da ordem. Essa associação entre de- sejo de mudança e expectativa de mu- dança dentro da ordem é algo inespe- rado. Querer mudar dentro da ordem é algo que me parece característico desse setor. Então eu não diria que esse setor é tipicamente conservador nem que é predominantemente conservador, mas que tem um elemento conservador. A minha interpretação – uma hipótese, também sujeita a vericação – é que es- se elemento conservador existe porque é o setor mais vulnerável da sociedade. O proletariado está na condição domi- nada, mas ele já tem condição de resis- tência, condições de organização social e política que lhe permitem resistir, en- quanto que esse setor não tem essa con- dição, está desprovido dessa possibili- dade. Minha hipótese é que isso explica o porquê do temor à desordem, e eu di- ria até de uma certa hostilidade aos mo- vimentos que propõem uma ruptura da ordem. Uma das críticas à estratégia lulista consiste em dizer que a ascensão social do subproletariado e do proletariado dá-se na base do consumo, e não da ampliação de direitos. Como você encara essa crítica? Essa também é uma questão extrema- mente interessante e muito oportuna. É preciso entender melhor o que está con- tido nessa crítica. A questão é que todo processo de ascensão social no capita- lismo se dá por via do consumo. As pes- soas precisam comprar uma casa, com- prar roupas, remédios, alimentos etc. Ou seja, todas as necessidades da vida no capitalismo passam de alguma ma- neira pela relação com a mercadoria. Então não há como você pensar num processo de mudança dentro do capi- talismo que não passe pelo consumo. O que talvez essa crítica contenha são du- as outras coisas que não estão bem ex- plicitadas, mas que eu vou tentar inter- pretar. Talvez se esteja aludindo ao fa- to de que o processo de ascensão so- cial que ocorreu sob o lulismo não foi um processo de mobilização, não hou- ve uma luta para a conquista dessas me- lhorias. Claro que houve lutas no pas- sado, que em certa medida inuencia- ram os resultados no presente, mas es- tes não foram consequência direta de uma luta atual. Então, de alguma ma- neira, o que se poderia dizer é que essas melhorias vieram de cima para baixo, vieram como decisões do governo, que as pessoas receberam passivamente. E isso é importante porque altera as con- dições de consciência política. As pes- soas podem não reconhecer nem sequer saber que as mudanças das suas condi- ções de vida vieram de uma política de governo que tem a ver com outras lutas que ocorreram no passado. Essa cone- xão não está dada, e as pessoas podem entender que elas estão melhorando as suas condições de consumo por esfor- ço próprio. A segunda ideia que talvez esteja contida nessa crítica é que talvez esteja havendo nesse momento no Bra- sil a exacerbação do consumismo – não do consumo, porque o aumento do con- sumo é inevitável nesse tipo de mudan- ça social dentro do capitalismo e que faz parte do programa da esquerda. Por exemplo: será que as pessoas de renda mais baixa não estão comprando obje- tos eletrônicos que elas talvez não pre- cisem, ao invés de outras coisas das quais elas precisam, e que poderiam ser mais benécas para um projeto de emancipação social? Isso é um outro te- ma para ser discutido. Mas, num pri- meiro momento, posto dessa maneira, eu tendo a não concordar com a crítica, embora admita que esses outros temas que eu próprio levantei sejam passíveis de discussão. Você arma que a “nova classe média” seria muito pequena, e que o grosso da ascensão social fruto das políticas do lulismo corresponderia na verdade ao surgimento de um “novo proletariado”. Você chega a dizer que “o subproletariado tende a desaparecer” na medida em que a agenda lulista for realizada. Que critérios sociológicos você utiliza para o estabelecimento do “novo proletariado”? O que eu estou pensando é na absor- ção dessa força de trabalho que não encontra remuneração normal, pas- sando a encontrar remuneração nor- mal – estou incluindo na remunera- ção também o acesso aos direitos tra- balhistas. O que eu estou imaginando é que, no longo prazo, o lulismo pos- sa produzir a incorporação dessa mas- sa, que historicamente sempre cou à margem. A minha hipótese é que o Bra- sil se caracteriza e se singulariza por ter uma massa excessivamente gran- de que nunca foi incorporada plena- mente à luta de classes. Há todo um se- tor da classe trabalhadora brasileira – e é importante dizer que é classe tra- balhadora, ou seja, não é lúmpen, não são marginais, são trabalhadores – que é muito extenso e que nunca foi plena- mente incorporado à condição prole- tária. Marx diz que há um exército in- dustrial de reserva que vai se renovan- do e que sempre é o setor que, no ca- pitalismo, está nessa condição. Ocor- re que no Brasil ele é excessivamen- te grande e permanente. Na visão de Marx, esse exército industrial de reser- va era meio sanfonado: às vezes crescia um pouco, às vezes diminuía, depen- dia da conjuntura econômica. O que eu acho que caracteriza a história do Bra- sil é essa massa permanente e grande. O que o lulismo começou a aplicar pa- rece ser a incorporação desse setor, e quando eu falo de “novo proletaria- do” eu estou falando desse grande con- tingente começar a ser incorporado às condições da luta de classes. Há várias questões que emergem sobre como es- se setor vai emergir. Existe toda essa discussão sobre o empreendedorismo. Há alguns indícios de que uma parte – eu não acho que seja a parte majoritá- ria, mas é uma parte que merece consi- deração – dedica-se a pequenos negó- cios. Esse movimento que existe hoje no Brasil de formalização de pequenos negócios, da pequena e microempresa, que dá a esse setor uma condição de in- serção, é algo que nós temos que veri- car. A condição proletária é classica- mente a condição do assalariamento, mas pode ser que, como dizem alguns, num novo tipo de capitalismo, haja for- mações diferentes. Quando eu digo “in- corporação”, eu não estou dizendo que tipo de incorporação. Que identidades e valores esse “novo proletariado” tende a assumir? Eu já entrei um pouco nisso na per- gunta anterior. Vamos pensar em ter- mos de duas formas de inserção que po- dem estar ocorrendo nos últimos anos. Uma é via o assalariamento em empre- gos de baixa remuneração e alta rota- tividade. As estatísticas mostram que 90% dos empregos são de baixa remu- neração, e a CUT tem notado uma al- ta rotatividade na força de trabalho no Brasil, que não mudou sob o lulis- mo. Embora se trate de um assalaria- mento precário, nós estamos falando de assalariamento, com carteira assina- da. Por outro lado, existe a possibilida- de de que haja um movimento em dire- ção a negócios muito pequenos, como a pessoa que abre um pequeno salão de beleza num bairro da periferia na pró- pria casa, mas que passa a ser formali- zado e tem uma regularização que não tinha antes: microcrédito, bancariza- ção, um certo apoio de programas es- tatais etc. O primeiro grupo tenderia a entrar propriamente na luta de classes, como a gente está vendo nas greves que estão ocorrendo nas hidrelétricas, e que ocorreram também nas grandes obras dos estádios e no próprio setor de tele- marketing, que o professor Ruy Braga estudou. Esses setores são tipicamente setores de baixa remuneração e alta ro- tatividade. Para essa parcela desse no- vo proletariado, podemos ter a expecta- tiva de valores compatíveis aos do velho proletariado. Já esse setor que pode es- tar enveredando para a área do empre- endimento, sociologicamente a tendên- cia é bastante conservadora, porque se trata de uma pessoa que trabalha por conta própria, talvez depois de algum tempo com pouquíssimos empregados, é uma pessoa que opera num regime de altíssima competição, não tem nenhu- ma forma de organização coletiva, de tal maneira que essas pessoas tendem a ser na verdade ultracapitalistas. Mas tudo isso são hipóteses, e têm que ser vericadas pelos fatos e pelos trabalhos empíricos de pesquisa. Em Os sentidos do lulismo, você arma: “(...) a classe média se unica em torno do PSDB, na procura de restaurar o status quo anterior, mesmo que isso não possa ser dito com todas as letras”. Por que isso “não pode ser dito”? É possível ver nessa atitude um certo traço da formação histórica do Brasil? O que eu quis dizer é que o PSDB pre- cisa ser um partido competitivo, ou se- ja, um partido que tenha chances de compor maioria. Não se compõe maio- ria, com a formação de classes do Bra- sil, com um discurso antipopular. Por isso o PSDB tem de fugir disso como o diabo foge da cruz. O PSDB não pode eleitoralmente assumir a sua verdadei- ra posição. Há uma situação nesse mo- mento de esquizofrenia, porque o PS- DB tem uma base social muito forte na classe média, é o partido da classe mé- dia, mas não pode vocalizar plenamen- te os pontos de vista da classe média. Ele precisa encontrar a quadratura do círculo, que é ser um partido de classe média com um discurso popular, por- que do contrário não faz maioria. Esse é um grande problema que está posto ho- je para o PSDB e, até certo ponto, para a democracia brasileira, porque o PSDB é o maior partido da oposição e a demo- cracia precisa de competição. Isso tor- na todo o jogo político que há no Brasil hoje difícil de entender, porque quando eu falo, por exemplo, que existe polari- zação no Brasil, as pessoas olham para o discurso e não veem essa polarização. Mas a polarização não está mesmo no discurso, porque o PSDB não pode fa- zer esse discurso, que está na socieda- de. Você vai conversar com pessoas de classe média e você vê o que é o discur- so contra a política social, contra a dis- tribuição de renda, contra tudo o que é o lulismo. Você vê a carga de tensão que existe nesse discurso, mas ele não se expressa e não pode se expressar, so- bretudo eleitoralmente. Esse é um jo- go político que não é fácil de entender, e quem olha para a aparência se perde, chega a uma conclusão errada. Em seu livro, você fala do surgimento de uma “direita popular”, referindo-se aos partidos de direita que se aproximaram do governo. Por um lado, o PT depende destas forças políticas para ganhar a eleição e governar. Por outro lado, em seu livro você sustenta que o lulismo abre uma janela histórica para a eliminação da pobreza e a redução da desigualdade. É possível aproveitar essa janela histórica com a atual coalizão? Qual é o risco que essa “direita popular” coloca para uma agenda de transformações estruturais? Eu penso que são duas coisas bem di- ferentes. A direita popular é uma carac- terística social que está dada pelo me- nos desde 1989. Em certa medida o ma- lusmo se sustentou nessa direita po- pular, assim como o janismo lá atrás. Há certa recorrência de expressões de direita populista ou de populismo de direita. Essa é a questão, que tem tu- do a ver com essa dualidade de mudan- ça dentro da ordem. O Jânio, com sua ênfase na ordem, na autoridade, mas ao mesmo tempo no “tostão contra o milhão”, fazia essa simbiose. Isso tem a ver com a formação de classe e com a formação social e ideológica do Bra- sil. Outra questão é que se formou uma coalizão com partidos de direita, que não necessariamente são partidos de direita popular. Portanto, são duas coi- sas diferentes. Acho que as duas ques- tões abrem para perguntas importan- tes. Uma, que tem a ver com a forma- ção social e ideológica, é a seguinte: se o horizonte das mudanças está limita- do pela aceitação da ordem, então até onde dá pra ir? Dentro dessa congu- ração, dá pra ir até onde a ordem per- mitir. A pergunta teria de ser: quais são os limites da mudança dentro da or- dem? Essa é uma pergunta que nos le- varia a uma série de vertentes. A outra pergunta é: o que é possível fazer den- tro de uma coalizão partidária que en- volve partidos mais à direita? Eu pen- so que esses partidos à direita nitida- mente brecam o movimento de mudan- ça, ou seja, fazem uma espécie de len- ticação do movimento. Veja o que foi o papel do PMDB na campanha elei- toral de 2010: foi de brecar as medi- das mais radicais que o PT tinha pro- posto em seu IV Congresso, como, por exemplo, a redução da jornada de tra- balho e a taxação das grandes fortunas. O PMDB brecou essas duas coisas, que no nal não entraram no programa da presidente Dilma. Esses partidos estão cumprindo um papel político determi- nado. O que acontece é que essa lenti- cação tem tudo a ver com o reformismo fraco, e de certa maneira é uma compo- sição que atende e está dentro do pró- prio projeto. A segunda questão deveria então ser: qual é o horizonte que o re- formismo fraco abre? Você arma que o lulismo teria imposto uma “rearticulação ideológica” que jogou a luta de classes para o fundo do palco na medida em que tirou centralidade do conito entre direita e esquerda e, em seu lugar, pôs o conito entre ricos e pobres. Gostaríamos que você explicasse melhor este ponto. Isso tem a ver com a avaliação que eu faço do que foi o período de vigência da- quilo que no livro eu chamo de “primei- ra alma do PT”. Enquanto o PT se apre- sentou como um partido nitidamente de esquerda e com uma proposta de ruptu- ra, o PT estruturou o sistema partidá- rio em torno do conito entre esquerda e direita. Ao fazer isso, expressou a lu- ta de classes de uma maneira como ela ainda não tinha acontecido no Brasil, porque o período populista é o período em que o conito é justamente esse que nós voltamos a viver, entre ricos e po- bres, o que não é exatamente um con- ito de classes, embora tenha conexões com as classes. É uma situação ambígua que não é fácil de analisar. É novamente a questão da contradição, pois ela não é completamente uma coisa nem comple- tamente outra. E para tentar caracteri- zar essa mudança eu propus essa ima- gem, inspirado também no 18 Brumá- rio, quando Marx fala que, derrotado nas jornadas de junho, o proletariado vai para o fundo da cena, mas ele não deixa de existir. É o tal do fantasma: ele está sempre ali, porque ele é o elemen- to fundamental, por onde pode se dar a ruptura, onde as questões mais impor- tantes estão se dando, mas ele não es- tá mais à frente da cena. Eu quis então trazer essa ideia de que a luta de classes continua funcionando, continua exis- tindo, mas é como que se estivesse sub- mersa, e o que aparece é o conito en- tre ricos e pobres, que tem outras reper- cussões ideológicas diferentes do que é o conito entre esquerda e direita. Em Os sentidos do lulismo, você propõe a tese de que o lulismo teria imposto um novo “marco regulatório” da política, uma agenda da qual a oposição não poderia sair, que consiste na redução da pobreza. Em entrevista à Revista da Adusp (Janeiro/2011), você chega a dizer que a oposição estaria “completamente subordinada” a essa agenda, pois caso contrário não ganha eleição. Contudo, você mostra que o lulismo foi até aqui bem sucedido em reduzir a pobreza monetária. Não haveria o risco de, uma vez chegando ao poder, a oposição cumprir uma agenda restrita, de combate à pobreza monetária, mantendo o Bolsa Família e a recuperação do salário mínimo, mas deixando de avançar para a redução da pobreza e a redução da desigualdade? Num determinado momento do livro, você próprio fala que “o reformismo fraco, por ser fraco, implica ritmo tão lento que, por vezes, parece apenas eternizar a desigualdade”. Qual é, anal, a agenda xada? O risco existe sim, de a oposição vir a ganhar e lenticar ainda mais. Eu tra- duziria a pergunta nestes termos: tor- nar o que é lento ainda mais lento, ou seja, continuar, mas com maiores limi- tações e num ritmo mais lento. Qual é o horizonte? O que o lulismo desenha é essa grande transformação estrutural do Brasil acontecer no prazo de uma ge- ração: transcorreram cerca de 10 anos, e a gente precisaria de alguma coisa co- mo mais 15 ou 20 anos para que a gen- te, neste ritmo, venha a dizer que o Bra- sil realmente mudou e deixou para trás aquilo que havia sido a marca do mo- mento anterior, que é a exclusão de uma grande parte da classe trabalhado- ra. O problema é que em 15 ou 20 anos muita coisa vai acontecer. Dentre essas coisas estão as naturais e quase inevitá- veis oscilações das conjunturas capita- listas, que ninguém sabe como e quan- do vão se dar. A delimitação desse ho- rizonte depende de uma compreensão mais na das condições econômicas, porque o projeto do lulismo depende, por exemplo, de que haja um ritmo de crescimento que não é extraordinário, mas também não é tão pequeno quan- to esse que ocorreu nos dois primeiros anos do governo Dilma. Esse primei- ro biênio do governo Dilma é algo que, de alguma maneira, coloca em ques- tão o projeto. Por razões que até ago- ra os economistas ainda não consegui- ram compreender bem, não houve di- minuição do emprego e nós estamos em situação de pleno emprego, o que é es- tranhíssimo diante do baixo crescimen- to. Portanto, a mera continuidade não é algo simples do ponto de vista econômi- co. Do ponto de vista político, vão sur- gir novas contradições, gerando condi- ções políticas mais agudas. Como essas condições políticas serão operadas é al- go que também vai determinar a conti- nuidade do processo. Em Os sentidos do lulismo, você argumenta que o lulismo busca “delimitar, a cada nova conjuntura, o ponto de equilíbrio que, sem provocar rupturas, permita ao Estado (atender) o subproletariado e, ao mesmo tempo, o capital”. Quais seriam, na sua opinião, as prováveis consequências da ruptura do “ponto de equilíbrio”? Radicalização política. Se o siste- ma de arbitragem se defronta com um ponto em que ele não consiga encon- trar equilíbrio, teremos um processo de radicalização. O que está em curso é um processo de ir encontrando sem- pre novos pontos de equilíbrio. Não são os mesmos. É uma ilusão achar que es- tá tudo parado e essa é uma das coisas que eu tento mostrar no livro. As coisas estão acontecendo e há muitas mudan- ças no país. A própria luta de classes es- tá funcionando e há decisões importan- tes sendo tomadas. As coisas não estão paradas. É que como esse processo não se dá por um processo de mobilização, muitas vezes ca obscurecido e não é percebido do ponto de vista da análise. A consequência é um pouco a análise do [Francisco] Weffort sobre 1964. Há um momento em que o sistema de arbitra- gem não consegue mais operar porque o confronto de posições ca mais extre- mado: quando um ganha o outro perde, sem meio termo. A consequência mais provável de uma ruptura dos pontos de equilíbrio seria uma radicalização cujo desfecho desconhecemos, pois depen- deria da correlação de forças. Você chega a armar no livro não saber se a correlação de forças permitia arriscar outra via. Dez anos depois da eleição de Lula, como você avalia a correlação de forças na sociedade hoje? Eu acho que os sinais são bastan- te contraditórios. Por um lado, temos dois processos que favorecem o deslo- camento dos pontos de equilíbrio para a esquerda. Esses dois processos são o próprio surgimento deste novo proleta- riado, que passa a ser um contingente da classe trabalhadora em condições de luta – um deslocamento importante. O outro são esses processos, por exemplo, de autonomização das mulheres que re- cebem o Bolsa Família. Há uma série de micromovimentos sociais em que as mulheres se organizam, às vezes sob a forma de cooperativas, às vezes sob ou- tras formas, mas se organizam numa perspectiva coletiva de melhoria nas condições de vida. São indicadores de emancipação e, portanto, sinais de um movimento em direção a uma correla- ção de forças mais favorável à trans- formação social. Por outro lado, como o PT deixou de ser um polo organiza- dor, falta a expressão partidária dessas transformações, que existia no período anterior. Isso é um décit nesse lugar. A pergunta que se coloca é quem é que vai organizar e expressar, do ponto de vista partidário, político propriamente, essas transformações moleculares que poderiam estar ajudando no sentido de uma correlação de forças mais favorável à transformação. Um segundo elemen- to desfavorável é que estamos vivendo um movimento ascendente de conser- vadorismo cultural no Brasil. Eu tomei a liberdade de propor uma extensão da- quela ideia do Roberto Schwarz, que di- zia que depois do golpe de 1964, para- doxalmente, houve uma consolidação da hegemonia cultural da esquerda. Eu pensei na seguinte projeção: talvez es- sa hegemonia cultural da esquerda no Brasil tenha sobrevivido até o nal dos anos de 1980, e a partir daí ela começa a declinar e começam a surgir manifes- tações culturais propriamente de valo- res capitalistas, de perspectiva neolibe- ral. Ainda estamos vivendo uma onda ascendente nesta direção. Estou falan- do do plano cultural – não é a mesma coisa do que o plano político – embo- ra, evidentemente, muitas dessas coisas se conectem. Eu tendo a acreditar que também nesse plano cultural a esquer- da está em reuxo, e isso não favorece a correlação de forças. Para resumir, pas- sados 10 anos, ainda não é possível di- zer com clareza se houve uma mudan- ça favorável à esquerda na correlação de forças. Quem é André Singer é jornalista e cientista político. Fez mestrado, doutorado e livre-docência no Departamento de Ciência Política da Universi- dade de São Paulo, onde é professor. Foi porta- voz e secretário de Imprensa da Presidência da República entre 2003-2007. Autor de Esquerda e direita no eleitorado brasileiro (2000) e O PT (2001). “Eu não diria que esse setor [subproletariado] é tipicamente conservador nem que é predominantemente conservador, mas que tem um elemento conservador” “Há uma situação nesse momento de esquizofrenia, porque o PSDB é o partido da classe média, mas não pode vocalizar plenamente os pontos de vista da classe média” “Eu penso que esses partidos à direita nitidamente brecam o movimento de mudança, ou seja, fazem uma espécie de lenticação do movimento” “Eu quis trazer essa ideia de que a luta de classes continua funcionando, mas é como se estivesse submersa, e o que aparece é o conito entre ricos e pobres” “Passados 10 anos, ainda não é possível dizer com clareza se houve uma mudança favorável à esquerda na correlação de forças” “Como o PT deixou de ser um polo organizador, falta a expressão partidária dessas transformações, que existia no período anterior” Para Singer, “não há como pensar num processo de mudança dentro do capitalismo que não passe pelo consumo” Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

Entrevista com André Singer

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Os impasses do lulismo

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de 13 a 19 de dezembro de 20124 brasil 5

Fernanda Becker

Os impasses do lulismoENTREVISTA O cientista político André Singer, autor de Os sentidos do lulismo, debate o fenômeno social encabeçado pelo ex-presidente da República

Antônio David e Fernanda Becker de São Paulo (SP)

OS SENTIDOS do lulismo, de André Singer, é um empenho na direção de compreender o signifi cado do lulismo e o atual momento histórico do Bra-sil. Seu foco é lançar luz sobre as con-tradições que permeiam tanto um co-mo o outro. Para tanto, André Singer parte de uma constatação estarrecedo-ra: no ano da chegada do PT ao poder, o Brasil era o país mais desigual do mun-do. Por razões que remontam ao passa-do colonial, havia no Brasil uma “sobre-população trabalhadora superempo-brecida permanente”, que estaria abai-xo da condição proletária – seria o sub-proletariado. Responsável pela derrota de Lula em 1989, o subproletariado, se-gundo André Singer, teria se convertido em base do lulismo. Ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, a classe média se afastaria do PT.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político debate esses conceitos do lulismo e seus impactos eleitorais e sociais no país.

Brasil de Fato – Desde Esquerda e direita no eleitorado brasileiro (2000), você situa o subproletariado à direita no espectro ideológico e o caracteriza como predominantemente conservador, no sentido de rejeitar a radicalização política. Quais são as razões desse comportamento?André Singer – Eu não diria que o subproletariado é predominantemente conservador, porque há um intenso de-sejo de mudança. Há uma consciência muito nítida de que é preciso mudar a distribuição da renda, algo fundamen-tal no Brasil, e de que é preciso mudar por meio de uma intervenção do Esta-do, que é algo que vai na direção contrá-ria da ideologia liberal. Esses elementos nada têm de conservador. O que aconte-ce é que eles se associam a um elemento conservador e essa associação é estra-nha. Este é um elemento que eu carac-terizaria como conservador, que é a ex-pectativa de que essa mudança ocorra dentro da ordem, e não com uma ruptu-ra da ordem. Essa associação entre de-sejo de mudança e expectativa de mu-dança dentro da ordem é algo inespe-rado. Querer mudar dentro da ordem é algo que me parece característico desse setor. Então eu não diria que esse setor é tipicamente conservador nem que é predominantemente conservador, mas que tem um elemento conservador. A minha interpretação – uma hipótese, também sujeita a verifi cação – é que es-se elemento conservador existe porque é o setor mais vulnerável da sociedade. O proletariado está na condição domi-nada, mas ele já tem condição de resis-tência, condições de organização social e política que lhe permitem resistir, en-quanto que esse setor não tem essa con-dição, está desprovido dessa possibili-dade. Minha hipótese é que isso explica o porquê do temor à desordem, e eu di-ria até de uma certa hostilidade aos mo-vimentos que propõem uma ruptura da ordem.

Uma das críticas à estratégia lulista consiste em dizer que a ascensão social do subproletariado e do proletariado dá-se na base do consumo, e não da ampliação de direitos. Como você encara essa crítica?

Essa também é uma questão extrema-mente interessante e muito oportuna. É preciso entender melhor o que está con-tido nessa crítica. A questão é que todo processo de ascensão social no capita-lismo se dá por via do consumo. As pes-soas precisam comprar uma casa, com-prar roupas, remédios, alimentos etc. Ou seja, todas as necessidades da vida no capitalismo passam de alguma ma-neira pela relação com a mercadoria.

Então não há como você pensar num processo de mudança dentro do capi-talismo que não passe pelo consumo. O que talvez essa crítica contenha são du-as outras coisas que não estão bem ex-plicitadas, mas que eu vou tentar inter-pretar. Talvez se esteja aludindo ao fa-to de que o processo de ascensão so-cial que ocorreu sob o lulismo não foi um processo de mobilização, não hou-ve uma luta para a conquista dessas me-lhorias. Claro que houve lutas no pas-sado, que em certa medida infl uencia-ram os resultados no presente, mas es-tes não foram consequência direta de uma luta atual. Então, de alguma ma-neira, o que se poderia dizer é que essas melhorias vieram de cima para baixo, vieram como decisões do governo, que as pessoas receberam passivamente. E isso é importante porque altera as con-dições de consciência política. As pes-soas podem não reconhecer nem sequer saber que as mudanças das suas condi-ções de vida vieram de uma política de governo que tem a ver com outras lutas que ocorreram no passado. Essa cone-xão não está dada, e as pessoas podem entender que elas estão melhorando as suas condições de consumo por esfor-ço próprio. A segunda ideia que talvez esteja contida nessa crítica é que talvez esteja havendo nesse momento no Bra-sil a exacerbação do consumismo – não do consumo, porque o aumento do con-sumo é inevitável nesse tipo de mudan-ça social dentro do capitalismo e que faz parte do programa da esquerda. Por exemplo: será que as pessoas de renda mais baixa não estão comprando obje-tos eletrônicos que elas talvez não pre-cisem, ao invés de outras coisas das quais elas precisam, e que poderiam ser mais benéfi cas para um projeto de emancipação social? Isso é um outro te-ma para ser discutido. Mas, num pri-meiro momento, posto dessa maneira, eu tendo a não concordar com a crítica, embora admita que esses outros temas que eu próprio levantei sejam passíveis de discussão.

Você afi rma que a “nova classe média” seria muito pequena, e que o grosso da ascensão social fruto das políticas do lulismo corresponderia na verdade ao surgimento de um “novo proletariado”. Você chega a dizer que “o subproletariado tende a desaparecer” na medida em que a agenda lulista for realizada. Que critérios sociológicos você utiliza para o estabelecimento do “novo proletariado”?

O que eu estou pensando é na absor-ção dessa força de trabalho que não encontra remuneração normal, pas-sando a encontrar remuneração nor-mal – estou incluindo na remunera-ção também o acesso aos direitos tra-balhistas. O que eu estou imaginando é que, no longo prazo, o lulismo pos-sa produzir a incorporação dessa mas-sa, que historicamente sempre fi cou à margem. A minha hipótese é que o Bra-sil se caracteriza e se singulariza por ter uma massa excessivamente gran-de que nunca foi incorporada plena-mente à luta de classes. Há todo um se-tor da classe trabalhadora brasileira – e é importante dizer que é classe tra-balhadora, ou seja, não é lúmpen, não são marginais, são trabalhadores – que é muito extenso e que nunca foi plena-mente incorporado à condição prole-tária. Marx diz que há um exército in-dustrial de reserva que vai se renovan-do e que sempre é o setor que, no ca-pitalismo, está nessa condição. Ocor-re que no Brasil ele é excessivamen-te grande e permanente. Na visão de Marx, esse exército industrial de reser-va era meio sanfonado: às vezes crescia um pouco, às vezes diminuía, depen-dia da conjuntura econômica. O que eu acho que caracteriza a história do Bra-sil é essa massa permanente e grande.

O que o lulismo começou a aplicar pa-rece ser a incorporação desse setor, e quando eu falo de “novo proletaria-do” eu estou falando desse grande con-tingente começar a ser incorporado às condições da luta de classes. Há várias questões que emergem sobre como es-se setor vai emergir. Existe toda essa discussão sobre o empreendedorismo. Há alguns indícios de que uma parte – eu não acho que seja a parte majoritá-ria, mas é uma parte que merece consi-deração – dedica-se a pequenos negó-cios. Esse movimento que existe hoje no Brasil de formalização de pequenos

negócios, da pequena e microempresa, que dá a esse setor uma condição de in-serção, é algo que nós temos que veri-fi car. A condição proletária é classica-mente a condição do assalariamento, mas pode ser que, como dizem alguns, num novo tipo de capitalismo, haja for-mações diferentes. Quando eu digo “in-corporação”, eu não estou dizendo que tipo de incorporação.

Que identidades e valores esse “novo proletariado” tende a assumir?

Eu já entrei um pouco nisso na per-gunta anterior. Vamos pensar em ter-mos de duas formas de inserção que po-dem estar ocorrendo nos últimos anos. Uma é via o assalariamento em empre-gos de baixa remuneração e alta rota-tividade. As estatísticas mostram que 90% dos empregos são de baixa remu-neração, e a CUT tem notado uma al-ta rotatividade na força de trabalho no Brasil, que não mudou sob o lulis-mo. Embora se trate de um assalaria-mento precário, nós estamos falando de assalariamento, com carteira assina-da. Por outro lado, existe a possibilida-de de que haja um movimento em dire-ção a negócios muito pequenos, como a pessoa que abre um pequeno salão de beleza num bairro da periferia na pró-pria casa, mas que passa a ser formali-zado e tem uma regularização que não tinha antes: microcrédito, bancariza-ção, um certo apoio de programas es-tatais etc. O primeiro grupo tenderia a entrar propriamente na luta de classes, como a gente está vendo nas greves que estão ocorrendo nas hidrelétricas, e que ocorreram também nas grandes obras dos estádios e no próprio setor de tele-marketing, que o professor Ruy Braga estudou. Esses setores são tipicamente setores de baixa remuneração e alta ro-tatividade. Para essa parcela desse no-vo proletariado, podemos ter a expecta-tiva de valores compatíveis aos do velho proletariado. Já esse setor que pode es-tar enveredando para a área do empre-endimento, sociologicamente a tendên-cia é bastante conservadora, porque se trata de uma pessoa que trabalha por conta própria, talvez depois de algum tempo com pouquíssimos empregados, é uma pessoa que opera num regime de altíssima competição, não tem nenhu-ma forma de organização coletiva, de tal maneira que essas pessoas tendem a ser na verdade ultracapitalistas. Mas tudo isso são hipóteses, e têm que ser verifi cadas pelos fatos e pelos trabalhos empíricos de pesquisa.

Em Os sentidos do lulismo, você afi rma: “(...) a classe média se unifi ca em torno do PSDB, na procura de restaurar o status quo anterior, mesmo que isso não possa ser dito com todas as letras”. Por que isso “não pode ser dito”? É possível ver nessa atitude um certo traço da formação histórica do Brasil?

O que eu quis dizer é que o PSDB pre-cisa ser um partido competitivo, ou se-ja, um partido que tenha chances de compor maioria. Não se compõe maio-ria, com a formação de classes do Bra-sil, com um discurso antipopular. Por isso o PSDB tem de fugir disso como o diabo foge da cruz. O PSDB não pode eleitoralmente assumir a sua verdadei-ra posição. Há uma situação nesse mo-mento de esquizofrenia, porque o PS-DB tem uma base social muito forte na classe média, é o partido da classe mé-dia, mas não pode vocalizar plenamen-te os pontos de vista da classe média.

Ele precisa encontrar a quadratura do círculo, que é ser um partido de classe média com um discurso popular, por-que do contrário não faz maioria. Esse é um grande problema que está posto ho-je para o PSDB e, até certo ponto, para a democracia brasileira, porque o PSDB é o maior partido da oposição e a demo-cracia precisa de competição. Isso tor-na todo o jogo político que há no Brasil hoje difícil de entender, porque quando eu falo, por exemplo, que existe polari-zação no Brasil, as pessoas olham para o discurso e não veem essa polarização. Mas a polarização não está mesmo no discurso, porque o PSDB não pode fa-zer esse discurso, que está na socieda-de. Você vai conversar com pessoas de classe média e você vê o que é o discur-so contra a política social, contra a dis-tribuição de renda, contra tudo o que é o lulismo. Você vê a carga de tensão que existe nesse discurso, mas ele não se expressa e não pode se expressar, so-bretudo eleitoralmente. Esse é um jo-go político que não é fácil de entender, e quem olha para a aparência se perde, chega a uma conclusão errada.

Em seu livro, você fala do surgimento de uma “direita popular”, referindo-se aos partidos de direita que se aproximaram do governo. Por um lado, o PT depende destas forças políticas para ganhar a eleição e governar. Por outro lado, em seu livro você sustenta que o lulismo abre uma janela histórica para a eliminação da pobreza e a redução da desigualdade. É possível aproveitar essa janela histórica com a atual coalizão? Qual é o risco que essa “direita popular” coloca para uma agenda de transformações estruturais?

Eu penso que são duas coisas bem di-ferentes. A direita popular é uma carac-terística social que está dada pelo me-nos desde 1989. Em certa medida o ma-lufi smo se sustentou nessa direita po-pular, assim como o janismo lá atrás. Há certa recorrência de expressões de direita populista ou de populismo de direita. Essa é a questão, que tem tu-do a ver com essa dualidade de mudan-ça dentro da ordem. O Jânio, com sua ênfase na ordem, na autoridade, mas ao mesmo tempo no “tostão contra o milhão”, fazia essa simbiose. Isso tem a ver com a formação de classe e com a formação social e ideológica do Bra-sil. Outra questão é que se formou uma coalizão com partidos de direita, que não necessariamente são partidos de direita popular. Portanto, são duas coi-sas diferentes. Acho que as duas ques-tões abrem para perguntas importan-tes. Uma, que tem a ver com a forma-ção social e ideológica, é a seguinte: se o horizonte das mudanças está limita-do pela aceitação da ordem, então até onde dá pra ir? Dentro dessa confi gu-ração, dá pra ir até onde a ordem per-mitir. A pergunta teria de ser: quais são os limites da mudança dentro da or-dem? Essa é uma pergunta que nos le-varia a uma série de vertentes. A outra pergunta é: o que é possível fazer den-tro de uma coalizão partidária que en-volve partidos mais à direita? Eu pen-so que esses partidos à direita nitida-mente brecam o movimento de mudan-ça, ou seja, fazem uma espécie de len-tifi cação do movimento. Veja o que foi o papel do PMDB na campanha elei-toral de 2010: foi de brecar as medi-das mais radicais que o PT tinha pro-posto em seu IV Congresso, como, por exemplo, a redução da jornada de tra-balho e a taxação das grandes fortunas. O PMDB brecou essas duas coisas, que no fi nal não entraram no programa da presidente Dilma. Esses partidos estão cumprindo um papel político determi-nado. O que acontece é que essa lentifi -cação tem tudo a ver com o reformismo fraco, e de certa maneira é uma compo-sição que atende e está dentro do pró-prio projeto. A segunda questão deveria então ser: qual é o horizonte que o re-formismo fraco abre?

Você afi rma que o lulismo teria imposto uma “rearticulação ideológica” que jogou a luta de classes para o fundo do palco na medida em que tirou centralidade do confl ito entre direita e esquerda e, em seu lugar, pôs o confl ito entre ricos e pobres. Gostaríamos que você explicasse melhor este ponto.

Isso tem a ver com a avaliação que eu faço do que foi o período de vigência da-quilo que no livro eu chamo de “primei-ra alma do PT”. Enquanto o PT se apre-sentou como um partido nitidamente de esquerda e com uma proposta de ruptu-ra, o PT estruturou o sistema partidá-rio em torno do confl ito entre esquerda e direita. Ao fazer isso, expressou a lu-ta de classes de uma maneira como ela ainda não tinha acontecido no Brasil, porque o período populista é o período em que o confl ito é justamente esse que nós voltamos a viver, entre ricos e po-bres, o que não é exatamente um con-fl ito de classes, embora tenha conexões com as classes. É uma situação ambígua que não é fácil de analisar. É novamente a questão da contradição, pois ela não é completamente uma coisa nem comple-tamente outra. E para tentar caracteri-zar essa mudança eu propus essa ima-gem, inspirado também no 18 Brumá-rio, quando Marx fala que, derrotado nas jornadas de junho, o proletariado vai para o fundo da cena, mas ele não deixa de existir. É o tal do fantasma: ele está sempre ali, porque ele é o elemen-

to fundamental, por onde pode se dar a ruptura, onde as questões mais impor-tantes estão se dando, mas ele não es-tá mais à frente da cena. Eu quis então trazer essa ideia de que a luta de classes continua funcionando, continua exis-tindo, mas é como que se estivesse sub-mersa, e o que aparece é o confl ito en-tre ricos e pobres, que tem outras reper-cussões ideológicas diferentes do que é o confl ito entre esquerda e direita.

Em Os sentidos do lulismo, você propõe a tese de que o lulismo teria imposto um novo “marco regulatório” da política, uma agenda da qual a oposição não poderia sair, que consiste na redução da pobreza. Em entrevista à Revista da Adusp (Janeiro/2011), você chega a dizer que a oposição estaria “completamente subordinada” a essa agenda, pois caso contrário não ganha eleição. Contudo, você mostra que o lulismo foi até aqui bem sucedido em reduzir a pobreza monetária. Não haveria o risco de, uma vez chegando ao poder, a oposição cumprir uma agenda restrita, de combate à pobreza monetária, mantendo o Bolsa Família e a recuperação do salário mínimo, mas deixando de avançar para a redução da pobreza e a redução da desigualdade? Num determinado momento do livro, você próprio fala que “o reformismo fraco, por ser fraco, implica ritmo tão lento que, por vezes, parece apenas eternizar a desigualdade”. Qual é, afi nal, a agenda fi xada?

O risco existe sim, de a oposição vir a ganhar e lentifi car ainda mais. Eu tra-duziria a pergunta nestes termos: tor-nar o que é lento ainda mais lento, ou seja, continuar, mas com maiores limi-tações e num ritmo mais lento. Qual é o horizonte? O que o lulismo desenha é essa grande transformação estrutural do Brasil acontecer no prazo de uma ge-ração: transcorreram cerca de 10 anos, e a gente precisaria de alguma coisa co-mo mais 15 ou 20 anos para que a gen-te, neste ritmo, venha a dizer que o Bra-sil realmente mudou e deixou para trás aquilo que havia sido a marca do mo-mento anterior, que é a exclusão de uma grande parte da classe trabalhado-ra. O problema é que em 15 ou 20 anos muita coisa vai acontecer. Dentre essas coisas estão as naturais e quase inevitá-veis oscilações das conjunturas capita-listas, que ninguém sabe como e quan-do vão se dar. A delimitação desse ho-rizonte depende de uma compreensão mais fi na das condições econômicas, porque o projeto do lulismo depende, por exemplo, de que haja um ritmo de crescimento que não é extraordinário, mas também não é tão pequeno quan-to esse que ocorreu nos dois primeiros anos do governo Dilma. Esse primei-ro biênio do governo Dilma é algo que, de alguma maneira, coloca em ques-tão o projeto. Por razões que até ago-ra os economistas ainda não consegui-ram compreender bem, não houve di-minuição do emprego e nós estamos em situação de pleno emprego, o que é es-tranhíssimo diante do baixo crescimen-to. Portanto, a mera continuidade não é algo simples do ponto de vista econômi-co. Do ponto de vista político, vão sur-gir novas contradições, gerando condi-ções políticas mais agudas. Como essas condições políticas serão operadas é al-go que também vai determinar a conti-nuidade do processo.

Em Os sentidos do lulismo, você argumenta que o lulismo busca “delimitar, a cada nova conjuntura, o ponto de equilíbrio que, sem provocar rupturas, permita ao Estado (atender) o subproletariado e, ao mesmo tempo, o capital”. Quais seriam, na sua opinião, as prováveis consequências da ruptura do “ponto de equilíbrio”?

Radicalização política. Se o siste-ma de arbitragem se defronta com um ponto em que ele não consiga encon-trar equilíbrio, teremos um processo de radicalização. O que está em curso é um processo de ir encontrando sem-pre novos pontos de equilíbrio. Não são os mesmos. É uma ilusão achar que es-tá tudo parado e essa é uma das coisas que eu tento mostrar no livro. As coisas estão acontecendo e há muitas mudan-ças no país. A própria luta de classes es-tá funcionando e há decisões importan-tes sendo tomadas. As coisas não estão

paradas. É que como esse processo nãose dá por um processo de mobilização,muitas vezes fi ca obscurecido e não épercebido do ponto de vista da análise.A consequência é um pouco a análise do[Francisco] Weffort sobre 1964. Há ummomento em que o sistema de arbitra-gem não consegue mais operar porqueo confronto de posições fi ca mais extre-mado: quando um ganha o outro perde,sem meio termo. A consequência maisprovável de uma ruptura dos pontos deequilíbrio seria uma radicalização cujodesfecho desconhecemos, pois depen-deria da correlação de forças.

Você chega a afi rmar no livro não saber se a correlação de forças permitia arriscar outra via. Dez anos depois da eleição de Lula, como você avalia a correlação de forças na sociedade hoje?

Eu acho que os sinais são bastan-te contraditórios. Por um lado, temosdois processos que favorecem o deslo-camento dos pontos de equilíbrio paraa esquerda. Esses dois processos são opróprio surgimento deste novo proleta-riado, que passa a ser um contingenteda classe trabalhadora em condições deluta – um deslocamento importante. Ooutro são esses processos, por exemplo,de autonomização das mulheres que re-cebem o Bolsa Família. Há uma sériede micromovimentos sociais em que asmulheres se organizam, às vezes sob aforma de cooperativas, às vezes sob ou-tras formas, mas se organizam numaperspectiva coletiva de melhoria nascondições de vida. São indicadores deemancipação e, portanto, sinais de ummovimento em direção a uma correla-ção de forças mais favorável à trans-formação social. Por outro lado, comoo PT deixou de ser um polo organiza-dor, falta a expressão partidária dessastransformações, que existia no períodoanterior. Isso é um défi cit nesse lugar.

A pergunta que se coloca é quem é quevai organizar e expressar, do ponto devista partidário, político propriamente,essas transformações moleculares quepoderiam estar ajudando no sentido deuma correlação de forças mais favorávelà transformação. Um segundo elemen-to desfavorável é que estamos vivendoum movimento ascendente de conser-vadorismo cultural no Brasil. Eu tomeia liberdade de propor uma extensão da-quela ideia do Roberto Schwarz, que di-zia que depois do golpe de 1964, para-doxalmente, houve uma consolidaçãoda hegemonia cultural da esquerda. Eupensei na seguinte projeção: talvez es-sa hegemonia cultural da esquerda noBrasil tenha sobrevivido até o fi nal dosanos de 1980, e a partir daí ela começaa declinar e começam a surgir manifes-tações culturais propriamente de valo-res capitalistas, de perspectiva neolibe-ral. Ainda estamos vivendo uma ondaascendente nesta direção. Estou falan-do do plano cultural – não é a mesmacoisa do que o plano político – embo-ra, evidentemente, muitas dessas coisasse conectem. Eu tendo a acreditar quetambém nesse plano cultural a esquer-da está em refl uxo, e isso não favorece acorrelação de forças. Para resumir, pas-sados 10 anos, ainda não é possível di-zer com clareza se houve uma mudan-ça favorável à esquerda na correlaçãode forças.

Quem éAndré Singer é jornalista e cientista político. Fez mestrado, doutorado e livre-docência no Departamento de Ciência Política da Universi-dade de São Paulo, onde é professor. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência da República entre 2003-2007. Autor de Esquerda e direita no eleitorado brasileiro (2000) e O PT (2001).

“Eu não diria que esse setor [subproletariado] é tipicamente conservador nem que é predominantemente conservador, mas que tem um elemento conservador”

“Há uma situação nesse momento de esquizofrenia, porque o PSDB é o partido da classe média, mas não pode vocalizar plenamente os pontos de vista da classe média”

“Eu penso que esses partidos à direita nitidamente brecam o movimento de mudança, ou seja, fazem uma espécie de lentifi cação do movimento”

“Eu quis trazer essa ideia de que a luta de classes continua funcionando, mas é como se estivesse submersa, e o que aparece é o confl ito entre ricos e pobres”

“Passados 10 anos, ainda não é possível dizer com clareza se houve uma mudança favorável à esquerda na correlação de forças”

“Como o PT deixou de ser um polo organizador, falta a expressão partidária dessas transformações, que existia no período anterior”

Para Singer, “não há como pensar num processo de mudança dentro do capitalismo que não passe pelo consumo”

Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr