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192 Sobre história e ensino: entrevista com Marieta de Moraes Ferreira. Aryana Lima Costa 1 Jocelito Zalla 2 Conhecida pelos seus trabalhos sobre elites políticas, historiografia e história intelectual, além do uso da metodologia da História Oral, Marieta de Moraes Ferreira tem pesquisado, nos últimos anos, a história do ensino superior de história no país, lançando, em 2013, seu livro A história como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Também tem se dedicado ao ensino de história em nível de pós-graduação, coordenando o primeiro mestrado profissional nacional na área, o ProfHISTÓRIA. Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi pesquisadora e diretora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC), presidente da Associação Brasileira de História Oral (ABHO) e da International Oral History Association (IOHA), editora da revista Estudos Históricos e da Revista Brasileira de História. Atualmente, é coordenadora do programa de livros didáticos da FGV, membro do conselho editorial de diversas revistas nacionais e internacionais e Diretora Executiva da Editora FGV. Marieta Ferreira nos recebeu, no dia 15 de setembro de 2014, para uma conversa sobre ensino de história, em que nos fala de suas experiências docentes, novas áreas de atuação do profissional em história, possibilidades de encontro entre a pesquisa histórica e o ensino básico e, claro, sobre a implantação e os desafios do ProfHISTÓRIA. RL: como foi a sua experiência enquanto professora de História, tanto em educação básica quanto no ensino superior? 1 Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Membro do Conselho Consultivo da Revista do LHISTE. 2 Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Conselho Editorial da Revista do LHISTE.

Entrevista com Marieta Ferreira

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Entrevista com a profa. Doutora Marieta de Moraes Ferreira sobre história e ensino.

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    Sobre histria e ensino: entrevista com Marieta de Moraes Ferreira.

    Aryana Lima Costa1

    Jocelito Zalla2

    Conhecida pelos seus trabalhos sobre elites polticas, historiografia e histria

    intelectual, alm do uso da metodologia da Histria Oral, Marieta de Moraes Ferreira tem

    pesquisado, nos ltimos anos, a histria do ensino superior de histria no pas, lanando, em

    2013, seu livro A histria como ofcio: a constituio de um campo disciplinar. Tambm tem

    se dedicado ao ensino de histria em nvel de ps-graduao, coordenando o primeiro

    mestrado profissional nacional na rea, o ProfHISTRIA. Professora da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro, foi pesquisadora e diretora do Centro de Pesquisa e Documentao de

    Histria Contempornea do Brasil, da Fundao Getlio Vargas (CPDOC), presidente da

    Associao Brasileira de Histria Oral (ABHO) e da International Oral History Association

    (IOHA), editora da revista Estudos Histricos e da Revista Brasileira de Histria.

    Atualmente, coordenadora do programa de livros didticos da FGV, membro do conselho

    editorial de diversas revistas nacionais e internacionais e Diretora Executiva da Editora FGV.

    Marieta Ferreira nos recebeu, no dia 15 de setembro de 2014, para uma conversa sobre

    ensino de histria, em que nos fala de suas experincias docentes, novas reas de atuao do

    profissional em histria, possibilidades de encontro entre a pesquisa histrica e o ensino

    bsico e, claro, sobre a implantao e os desafios do ProfHISTRIA.

    RL: como foi a sua experincia enquanto professora de Histria, tanto em educao

    bsica quanto no ensino superior?

    1 Doutoranda em Histria Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de

    Histria da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Membro do Conselho Consultivo da Revista do

    LHISTE. 2 Doutorando em Histria Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Colgio de

    Aplicao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Conselho Editorial da Revista do

    LHISTE.

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    MMF: Na minha gerao, quando a gente optava por estudar Histria, j era uma opo

    direcionada para ser professor. Porque era muito difcil pensar nessa ideia de pesquisa, de

    centros de pesquisa. Mesmo a ps-graduao ainda estava muito embrionria. Eu entrei na

    universidade em 1969, no auge da Ditadura Militar. Comecei a fazer a graduao na UFF, um

    curso em que a represso tinha sido muito menor. Eu morava no Rio, mas achava que estudar

    no IFCS, herdeiro da antiga Faculdade Nacional de Filosofia3, era uma coisa meio descabida,

    porque todo mundo falava muito da represso, do quadro muito dramtico que vigorava l.

    Ento, fui para a UFF e a minha ideia era ser professora, como de fato eu acabei sendo. Assim

    que eu me formei, em 1974, fiz concurso para o Estado da Guanarabara, fui bem classificada

    e comecei a dar aula numa escola em Copacabana e depois numa escola no Leme. Dava aula

    para quinta, sexta, stima, oitava sries. Mas tinha a dimenso de que eu queria continuar

    estudando. Ao mesmo tempo em que fiz concurso para o estado, tambm fiz concurso para o

    mestrado. O mestrado estava comeando na UFF. Acho que a minha turma foi a terceira ou a

    segunda turma. Eu j tinha feito a graduao l, fiz a prova e comecei a fazer o mestrado.

    Dava aula no colgio e tambm comecei a dar aula na Faculdade de Filosofia em Nova

    Friburgo, que era um pouco diferente, era uma faculdade com um nvel de organizao ainda

    muito simples. Quando eu cheguei, a professora que dava aula de Histria, dava aula de tudo:

    Histria Antiga, Moderna, Brasil. Eu cheguei para dar aula de Histria do Brasil e a comecei

    tambm a sugerir outros colegas e a especializar as reas, quem ia dar aula de Antiga, Idade

    Mdia, Brasil. Foi uma experincia para mim muito importante do ponto de vista docente. De

    dar aula na educao bsica e dar aula numa universidade, mas que era uma universidade

    muito pequena, privada e ainda muito pouco estruturada, as cadeiras, as disciplinas; com um

    quadro muito pequeno de professores. Eu sempre gostei de dar aula, era uma atividade que me

    agradava muito. Eu fiquei uns trs ou quatro anos trabalhando dessa maneira. At que, um

    dia, uma colega minha de graduao na UFF me procurou e disse: Tem um concurso para

    pesquisador na Casa de Rui Barbosa. Voc no quer fazer? Acho que seria uma coisa legal, a

    gente tem um grupo legal, um grupo pequeno. Fiz a prova, passei, e a eu fiquei com quatro

    empregos. Tinha o estado, a Casa de Rui Barbosa, tinha a faculdade em Friburgo; quer dizer,

    trs e mais o mestrado. Acabei optando por deixar o estado. Ento, a minha experincia

    docente, nesse momento, na educao bsica, terminou, porque a escola em que eu dava aula

    tinha todas as dificuldades que a gente sabe que existem, que j existiam naquela poca,

    3 Faculdade Nacional de Filosofia, ou FNFi da Universidade do Brasil. Em 1965 a Universidade do Brasil foi

    transformada em Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo que a conhecemos at hoje. O curso de Histria

    pertence atualmente ao Instituto de Histria..

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    mesmo sendo uma escola da Zona Sul. Essa escola em que eu dava aula era em Copacabana,

    depois no Leme, mas tinha muitas dificuldades, a escola no tinha uma boa estrutura. E

    tambm, nesse meio tempo, teve a fuso do estado da Guanabara com o antigo estado do Rio,

    e isso gerou uma certa confuso nas carreiras, e a gente deixou de ser professor do estado da

    Guanabara, que tinha um salrio melhor, para ser professor do novo estado do Rio. E a eu

    deixei a carreira de professor da educao bsica, mas continuei dando aula em Friburgo, que

    era uma coisa que eu adorava, porque eu trabalhava muito com aqueles professores do

    interior, porque Friburgo funcionava como uma faculdade que tinha gente assim, de

    Miracema, de Cantagalo. Vinha gente de vrios municpios que ficavam no entorno de

    Friburgo. Entorno assim, duas horas, duas horas e meia, que as pessoas viajavam para ter

    aula. Foi uma experincia muito interessante para mim. Eu fiquei dando aula l uns seis anos.

    Eu terminei o mestrado, ainda dava aula l e trabalhava na Casa de Rui Barbosa. Nesse meio

    perodo, engravidei, tive a primeira filha, e ficou muito difcil de conciliar, ficar indo para

    Friburgo toda semana, a eu deixei tambm a faculdade em Friburgo e fiquei s como

    pesquisadora na Casa de Rui Barbosa. Mas eu era sempre muito inquieta, j tinha terminado o

    mestrado, a surgiu uma oportunidade de vir trabalhar no CPDOC. Disseram que estavam

    procurando um pesquisador; me candidatei, fiz uma entrevista, e passei a trabalhar no

    CPDOC. Nesse momento, eu deixei para trs a minha experincia docente, esse meu

    interesse, esse meu gosto por dar aula de Histria. Fiquei trabalhando vrios anos s com

    pesquisa. Isso foi, acho, que at 1986. Mas eu sentia muita falta do ensino, porque acho que

    pesquisa uma atividade muito boa, interessante, mas voc fica muito isolada, voc e sua

    pesquisa, mesmo que voc integre um grupo, que voc debata com o seu colega, a interao

    que voc tem, eu acho muito restrita. A eu comecei a fazer o doutorado na UFF. A Brbara

    Levy4, professora da ps da UFF e do curso de Histria do IFCS, sofreu um acidente e me

    chamou para dar aula no lugar dela. Era algo provisrio, um conjunto de palestras no curso da

    ps-graduao. Eu entrei no IFCS para dar aula na ps-graduao. Eu fiquei muito nervosa

    com aquilo, mas ela disse: No, voc tem todas as condies, pode ir sim. De novo eu me

    reencontrei, eu pensei: Eu gosto de dar aula! No quero ficar mais s como pesquisadora.

    No ano seguinte, teve um movimento tambm de renovao muito grande no IFCS, toda

    aquela crise da ditadura, tinha evidentemente a anistia, os professores j tinham voltado, mas

    4 Maria Brbara Levy, professora do Departamento de Economia da UFRJ.Produziu trabalhos especialmente na

    rea de histria econmica. Tambm deu aulas FGV, IBMEC, na graduao e ps em Histria da UFF e na ps

    em Histria da UFRJ. Para mais, conferir:

    http://www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/rec/REC%206/REC_6.2_07_Maria_barbara_levy_historiador

    a_de_empresas_no_brasil.pdf

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    o IFCS ainda era um lugar que sofria muito as consequncias daquele perodo da represso,

    um perodo muito duro. Eles estavam tambm buscando novos professores, primeiramente

    para algumas vagas de professor-visitante. Eu lembro que naquela poca entramos, mais ou

    menos juntos, eu, Manoel Salgado5 e Manolo Florentino

    6, praticamente no mesmo ano, como

    visitantes. E no ano seguinte abriu o concurso. A realmente eu me inscrevi para fazer o

    concurso e fiquei efetiva na universidade. Comecei a dar aula l em 1986 e fiz o concurso em

    1988. Foi muito bom, porque nesse perodo eu explorava diferentes atividades, dava aula de

    Brasil Imprio, Pensamento Social, Histria Econmica, Primeira Repblica. A minha rea de

    preferncia, a j estava fazendo doutorado, era a Primeira Repblica, eu trabalhava com elites

    polticas no estado do Rio. Quando fiz o concurso, ento, fixei meu interesse pelo ensino.

    Mas, nesse perodo em que entrei na universidade, a gente dava aula, o ensino era

    evidentemente a nossa atividade principal, mas eu acho que a consolidao dos programas de

    ps-graduao fez com que as licenciaturas ficassem muito secundarizadas, a gente na

    verdade dava aula, mas a gente estava sempre buscando desenvolver nos alunos a capacidade

    de pesquisa, buscava oferecer bolsas de iniciao cientfica, sempre preocupado no s com

    as nossas pesquisas, mas com as monografias dos nossos alunos. Quer dizer, era uma

    preocupao muito mais direcionada, digamos assim, para o bacharelado do que propriamente

    para a licenciatura. A licenciatura ficava muito num segundo plano. Eu acho que tambm

    embarquei um pouco nessa canoa, nessa tendncia, embora eu sempre achasse que as

    disciplinas obrigatrias tinham que dar uma viso de conjunto para os alunos. Eu tinha muitos

    colegas, professores, que queriam s vezes dar um curso to monogrfico que restringia um

    pouco o aprendizado daquele aluno nosso que depois iria ser professor. Eu sempre achei que a

    gente deveria ter uma preocupao em fazer cursos mais de sntese, mais panormicos, de

    mais discusso historiogrfica, que pudessem passar para os alunos a ideia de que a Histria

    construa diferentes interpretaes. Depois que eu terminei meu doutorado, comecei a dar aula

    na ps-graduao tambm. Eu tive grande nmero de orientandos. Acho que j orientei cerca

    de sessenta teses e dissertaes, fora as monografias. Nesse perodo eu exercia minha

    atividade docente e gostava muito disso. Mas eu no tinha propriamente uma preocupao

    com o ensino de histria, com a licenciatura. Os nossos olhares ficavam muito mais

    direcionados para a pesquisa, para o bacharelado. J passado um bom tempo, eu comecei a me

    5 Manoel Luiz Salgado Guimares, foi presidente da ANPUH e professor da UFRJ e UERJ. Produziu trabalhos

    principalmente na rea de teoria e epistemologia da Histria e historiografia brasileira. Faleceu em 2010. 6 Manolo Garcia Florentino professor da UFRJ e atual presidente da Fundao Casa de Rui Barbosa. Produz

    principalmente na rea de Histria da Amrica e mais especificamente com a escravido nas Amricas, frica e

    Brasil..

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    ligar muito nessa discusso do ensino. Uma experincia que eu tive aqui na Fundao Getlio

    Vargas foi produzir um livro didtico, coordenar a produo de um livro didtico, uma coisa

    difcil. Produzir um material didtico uma coisa de grande complexidade, que nos

    demandava um conhecimento realmente aprofundado e de maturidade para fazer um bom

    trabalho. Outro momento muito importante para a minha percepo do ensino de histria,

    acho que aconteceu em 2008. Nessa poca eu era vice-coordenadora do Programa de Ps-

    Graduao em Histria Social do antigo IFCS, agora Instituto de Histria, da UFRJ. Tinha um

    frum de ps-graduao em Braslia. Na poca, o coordenador do frum era o Manoel

    Salgado, que era professor da UFRJ e uma pessoa com quem eu tinha grande afinidade de

    pensamento, de ponto de vista, e amizade tambm. Nesse frum levantei a questo da

    importncia de que os programas de ps-graduao valorizassem as atividades docentes na

    educao bsica; que no dava mais para as agncias s financiarem pesquisas justamente

    acadmicas e no darem ateno, no valorizassem trabalhos que pudessem ser feitos pelos

    historiadores, como os materiais didticos, como livros didticos, como a prpria atividade

    docente. E isso gerou uma polmica, porque uma parte do pblico, composta por outros

    coordenadores, disse que isso no era uma questo da ps-graduao. A ps-graduao tinha

    que se envolver com pesquisa, a gente no tinha que se preocupar com a educao bsica,

    esse era outro segmento. No nosso prprio programa de Histria Social, sempre que surgia

    essa discusso sobre a importncia do ensino de Histria, isso era visto como uma coisa

    menor. A atividade docente sempre ficava secundarizada. Isso era uma coisa que j existia

    antes, mas que nesse momento se materializou com essas discusses. Quando eu levantei a

    questo no frum, algumas pessoas apoiaram, mas a grande maioria achou que a ps-

    graduao no devia se ocupar disso. Mas a o Manoel Salgado sugeriu que crissemos um

    grupo de trabalho na ANPUH e me convidou para a coordenao. Eu no me lembro mais de

    todas as pessoas que participavam, mas lembro da Keila Grinberg7, da Regina Bustamente

    8,

    da Surama Conde9, e tinha tambm um professor l do Rio Grande do Sul, Jos Rivair

    Macedo10

    . A gente fez algumas reunies e redigiu um documento, que o Manoel passou para

    a CAPES. um documento pequeno, uma pgina, em que a gente sugeria que era uma tarefa

    da ps-graduao se ocupar da educao bsica, com a formao de professores, que deveria

    haver uma melhor avaliao de trabalhos como materiais e livros didticos, que tambm

    deveria se criar cursos que pudessem dar uma formao mais atualizada para os professores 7 Professora do Departamento de Histria da UNIRIO. 8 Professora do Instituto de Histria da UFRJ. 9 Professora do Departamento de Histria da UFRRJ. 10 Professor do Departamento de Histria da UFRGS.

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    de educao bsica, enfim, todos esses itens. Entregamos aquilo para a CAPES, o que no

    gerou maiores consequncias inicialmente. Depois eles colocaram um item na avaliao

    chamado insero social, que era exatamente uma forma de pontuao para aqueles

    programas que tivessem algum tipo de vinculao ou de contribuio para a educao bsica.

    Mas era ainda uma coisa genrica.

    RL - Pensando nesse exemplo da CAPES: a gente tem uma configurao que exige do

    pesquisador certo distanciamento em relao ao objeto de estudo, mas, cada vez mais, as

    demandas sociais tem convocado o historiador a se posicionar, inclusive politicamente,

    frente a problemas atuais e a construir aes e produtos para alm da academia. Como o

    ensino da histria se articula com essas presses da sociedade hoje?

    MMF: Sexta-feira passada, eu fui num seminrio na UFF voltado para discutir a chamada

    Histria Pblica. Agora criaram, trouxeram para o Brasil, essa denominao, que conhecida

    nos Estados Unidos e que envolve justamente, nem tanto a questo do ensino, mas o uso do

    conhecimento histrico em museus, no turismo, em programas de televiso, enfim, vrias

    atividades que a pessoa formada em Histria pode exercer alm do magistrio propriamente

    dito. Eu acho que essa conexo com a demanda social j foi vista com muita desconfiana.

    Fazer uma histria de empresa, ou um projeto sob encomenda, a histria de um municpio,

    montar uma exposio para prefeitura, montar algo que tivesse a ver com um centro de

    memria de uma instituio, isso tudo era sempre visto com muita desconfiana e gerava

    muitas crticas. Eu me lembro, inclusive, que na poca em que eu era diretora do CPDOC, j

    fazia muitos desses trabalhos, e isso era muito criticado. Eu me lembro que a gente tinha um

    projeto com a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro - ALERJ -, fizemos vrios

    livros de Histria Oral, a criao de uma exposio sobre a trajetria do estado do Rio, e isso

    gerava uma desconfiana, como se voc estivesse fazendo um trabalho meio abastardado,

    vamos dizer assim, como se voc estivesse vendendo a alma ao diabo. Hoje, acho que essa

    coisa meio superada. Agora foi criada a Rede Brasileira de Histria Pblica. H uma srie

    de pesquisadores envolvidos nisso e, cada vez mais, h uma legitimidade em se realizar

    diferentes trabalhos que usem o conhecimento histrico, em diferentes reas. No vejo

    nenhum problema nisso. H muito tempo que me envolvo com isso e acho importante, se a

    gente pode ter um conhecimento e transferir, pode levar a um pblico mais amplo. O que acho

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    apenas, em relao s demandas sociais, que a gente no pode ser ingnuo. Porque, muitas

    vezes, as empresas, os partidos, as associaes, buscam o trabalho dos historiadores ou dos

    professores de histria, dos profissionais de histria, um pouco para legitimar os seus pontos

    de vista. Ento tem l uma empresa que quer fazer uma comemorao, e as comemoraes

    so momentos especiais para esse tipo de coisa, ou um partido, ou a histria de um

    determinado grupo, e a voc fica instado a produzir alguma coisa para atender quela

    demanda. Muitas vezes, voc tem restries quanto ao que pode escrever, do que pode falar, e

    a, acho que cabe, ao pesquisador, profissional de histria, fazer essa avaliao, e no

    embarcar em coisas que voc acha que no garantem aquilo que a gente chamaria de

    procedimentos bsicos do nosso ofcio de pesquisador e professor de histria, em projetos

    com uma certa seduo pela memria. De chegar l e escrever uma coisa ou dar uma aula ou

    fazer algum tipo de trabalho e aquelas pessoas estarem preocupadas em exaltar um

    determinado personagem ou destacar uma determinada ideia. Eu me lembro de uma

    experincia muito interessante. Numa poca me chamaram inmeras vezes para dar aula de

    histria para equipes da Globo. Eu fiz vrias aulas, mas uma me chamou a ateno, que foi

    sobre JK. Dei uma aula que eu daria normalmente, buscando ser didtica, com muita imagem

    e texto, sobretudo, mas em que eu inclusive fazia uma discusso importante sobre a memria,

    sobre a preocupao de destacar uma certa faceta do Juscelino, esquecer outras. Efetivamente,

    um dos escritores l da minissrie me disse no, professora, mas isso a o seu papel, que

    de professor de histria, ns somos ficcionistas. Eu fui l e procurei transmitir uma viso de

    um profissional de histria, seguindo aquelas diretrizes que a gente considera que do

    sustentao ao nosso campo, que a confrontao de fontes, que a definio do lugar

    daquela fonte, daquele personagem, de forma que voc possa confrontar aquelas informaes

    para promover uma viso crtica daquele processo, daquele personagem, ou, pelo menos, para

    que aquele evento seja visto por diferentes ngulos e facetas. Mas s vezes muito difcil. E

    as pessoas embarcam nisso. s vezes no nem porque as pessoas querem, mas elas acabam

    absorvidas. um trabalho difcil de ser realizado. Mas eu no acho que a gente deva se afastar

    disso. Acho que devemos enfrentar o desafio e tentar fazer o melhor. No d para se encerrar

    numa torre de marfim, ficar s cuidando de sua pesquisa individual.

    RL: J ouvimos voc falar sobre esses protocolos e regras do campo disciplinar da

    histria como saberes sobre buscar informaes, processar informaes. A tem um

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    caminho para o ensino de Histria? Qual a relao entre o ensino da histria e as regras

    do nosso campo?

    MMF: Acho que o ensino de histria na educao bsica tem discusses enormes, sobre o

    chamado conhecimento escolar da histria, ensino da histria escolar e o que possvel fazer,

    e a histria como um instrumento para desenvolver valores morais e o compromisso com

    valores democrticos, enfim. Eu penso que sim, mas eu no saberia te responder isso, at

    porque eu no tenho essa experincia com crianas muito pequenas. Mas eu acho que com

    adolescentes, talvez seja possvel transmitir essas ideias. Voc que professor de ensino

    bsico pode me contradizer, porque falar fcil, mas sei que fazer difcil, s vezes, com a

    meninada l, de treze, quatorze anos, agitando horrores. No uma tarefa fcil. De qualquer

    forma, eu vejo que a Histria Oral, por exemplo, pode ser muito til na educao bsica e, no

    entanto, ela muito pouco usada. Ela muito usada pelos pesquisadores acadmicos, a pessoa

    que est estudando a ditadura militar, ou o sindicato, ou as elites polticas, enfim, as pessoas

    usam muito o trabalho com as entrevistas, usam os materiais, discutem o problema da

    memria. Agora, acho que na educao bsica voc pode trabalhar mostrando como fazer

    uma entrevista com uma pessoa, preparar o estudante a fazer uma entrevista, pode ser com

    algum da famlia dele, um vizinho, algum das proximidades, e mostrar que existem

    maneiras diferentes de ver o mesmo episdio; discutir a ideia, no de verdade, mas de um

    conhecimento fidedigno, de um conhecimento mais confivel, que se sustenta mais, consegue

    reunir um conjunto de informaes, fazer uma contraprova, vamos dizer assim. Tinha-se, h

    um tempo, uma grande preocupao de passar muitas informaes para os alunos, um volume

    de informaes muito grande, voc tinha que saber tudo. Mas hoje, tudo o que voc fala,

    imediatamente pode ser checado pelo aluno no Google. A informao muito fcil de ser

    conseguida, e a que muito importante a gente fazer uma distino entre informao e

    conhecimento. Informao tem de monto. A gente fala qualquer coisa, Revoluo Francesa,

    por exemplo, o estudante vai entrar l no Google e v o verbete da Wikipedia, a informao

    no sei de onde, o blog no sei de qu, ou voc fala sobre Napoleo Bonaparte,

    Renascimento, imediatamente ele capaz de reunir informaes da internet, mas ter acesso a

    essa informao no vai agregar maior valor. Isso s um ponto de partida. Como que ele

    vai lidar com essa informao que eu acho que pode ser uma preocupao do ensino da

    histria. Eu estava falando da Histria Oral, mas pode ser tambm a prpria pesquisa na

    internet. Hoje tem tantos blogs de histria, uma quantidade de informao, e tem coisas boas e

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    coisas muito ruins, muito erradas, muito mal escritas, muito confusas. Ento, importante

    sempre procurar mostrar que existem pontos de vista e que o conhecimento histrico um

    conhecimento construdo. Inclusive entre os alunos da universidade. Voc pega um aluno do

    primeiro perodo, ele acha que a histria um conhecimento dado, existe e assim. Ele no

    percebe que aquilo ali foi objeto de uma seleo, objeto de alguma escolha, alguns fatos

    foram lembrados, outros no foram, e que por isso voc tem, s vezes, interpretaes

    diferentes. difcil, mas acho que a gente deve tentar. Talvez o professor tenha que lidar com

    um programa grande, e tenha que fazer prova do ENEM, tenha que atender aos sistemas de

    ensino que cobram um cronograma apertado, mas talvez em algumas unidades do curso seja

    possvel fazer algum trabalho nessa direo. Eu vejo um pouco assim, mas no me arvoro em

    achar que eu tenho a chave, que eu tenha a resposta para isso, porque no uma atividade

    fcil, ser professor, e ser professor da educao bsica, uma tarefa extremamente

    desafiadora. E as pessoas, diferentemente do que se pensa, deveriam ter muita competncia

    para poder dar conta desse desafio, de transmitir um tipo de conhecimento, um tipo de

    informao. E muitas vezes as pessoas acham que ensinar uma coisa banal. Outro dia fui a

    uma reunio, com vrios conselheiros da secretaria de educao, e l as pessoas diziam assim:

    no, qualquer pessoa pode dar aula de histria, porque basta contar uma histria, quem nunca

    quis contar uma histria? A ideia de ensino de histria , para o pblico mais amplo, muitas

    vezes, de um simplismo muito grande. As pessoas no se do conta do qu envolve isso.

    Comecei a discutir, disse: olha, depende do que voc entende por ensino de histria. Se voc

    acha que ensino de histria transmitir uma historinha, concordo com voc, qualquer pessoa

    pode fazer isso. E engraado, no toa que at hoje a gente no conseguiu ter a

    regulamentao da profisso do historiador. Voc consegue regulamentar as profisses mais

    diversas, cuidador de idosos, sommelier, turismlogo, mototaxista, todo mundo consegue

    aprovar uma lei para regulamentar uma profisso. O campo da histria no consegue fazer,

    vide o que se passou agora, a direo da ANPUH batalhando para se fazer a regulamentao

    por dois anos, sem conseguir, porque no fundo, a histria um bem e um mal. um campo

    de conhecimento que atrai a ateno de muita gente. Basta ver que hoje tem uma quantidade

    de filmes, de vdeos, de literatura, fico, novela, enfim, tem uma diversidade de produtos que

    falam do passado. Tambm no acho que a gente deve ser dono do passado. O passado pode

    ser acessado por muitos campos do conhecimento. Mas o conhecimento do profissional de

    histria no reconhecido e todas as pessoas acham que sabem de histria, que tem a ltima

    palavra.

  • 201

    RL: Um dos pareceres contrrios ao projeto de lei, se no me engano, dizia que no

    haveria prejuzo ao ofcio do historiador se outras pessoas tambm fizessem histria.

    Esse um dos motivos dele ser contrrio.

    MMF: A gente no pode achar que s quem pode escrever sobre histria so as pessoas que

    tem a formao especfica. Agora, ter o ttulo e a possibilidade de lecionar, de trabalhar num

    arquivo, de trabalhar num museu, de prestar concurso, isso acho sim que deve ser para as

    pessoas que tm formao especfica. Se tiver uma pessoa que quer escrever um livro de

    histria, tudo bem. Voc tem o ficcionista que quer fazer uma fico tomando personagens

    histricos, bacana, legal, eu at gosto muito. Romance histrico um barato.

    RL: Ento, para terminar, a gente queria fazer uma pergunta sobre o ProfHistria, um

    tema quente. A gente queria saber se j houve algum tipo de avaliao. Sabemos que

    est no incio, mas gostaramos de saber se j foi possvel fazer algum tipo de balano, os

    desafios que precisam ser equacionados nos prximos editais. O que esse incio j

    indicou?

    MMF: Antes de falar do futuro, vou falar do passado. Dentro daquela linha de raciocnio que

    eu estava desenvolvendo, da dificuldade da comunidade acadmica de atribuir importncia

    educao bsica, de perceber que o ensino de histria um campo importante, que tem que

    receber contribuies das pessoas que esto na universidade. No que eles tenham a resposta,

    mas eles podem dar algum tipo de contribuio, mas essa ideia encontra resistncias. A

    prpria estruturao do mestrado profissional encontrou resistncia, mesmo dentro dos

    programas dessas universidades que aderiram ao ProfHistria. Em muitas universidades

    disseram: eu no quero entrar no ProfHistria porque vai atrapalhar minha carreira de

    historiador. Eu vou desviar minha ateno. Eu no acho que todo mundo deva participar,

    mas muita gente achava que um programa de ps-graduao no deveria, digamos, estimular,

    apoiar que parte do seu corpo docente fosse se engajar no ProfHistria. Sua concretizao

    uma coisa muito importante nessa direo, de legitimar diante da ps-graduao, diante da

    comunidade acadmica, a questo do ensino. E acho que a CAPES teve um papel muito

  • 202

    importante na criao desse programa de mestrados profissionais, mas tambm de dar o

    recurso pra isso, dar as bolsas para os professores, de estimular a criao de novos programas.

    Aquele modesto documento que a gente fez l em 2008, talvez no tenha surtido esse efeito

    todo, mas, de alguma maneira, aqueles pontos que a gente levantou esto sendo agora

    atendidos, esto sendo objetos dessas novas polticas e desse estmulo para que efetivamente

    se possa dar uma relevncia muito grande ao ensino de histria. uma formao voltada a

    professores da educao bsica, com uma preocupao que no de atualizao, porque

    cursos de atualizao de contedos, isso a gente j teve milhares, h muito tempo j se faz. Eu

    j participei de muitos, aqui no Rio e em outros estados, em que a gente era chamado para

    participar da atualizao do ensino de histria contempornea do Brasil ou da histria

    moderna, ou antiguidade. Isso nunca deixou de existir, e ainda acho importante. Mas o

    interessante desse mestrado profissional que ele est preocupado em discutir com os

    professores e ouvir tambm as questes que os professores tm de como se constri o

    conhecimento histrico; essa questo que voc colocou, como o protocolo do conhecimento

    histrico pode ser levado, pode ser trabalhado na educao bsica. Eu no tenho a resposta.

    Eu dei aqui algumas ideias. Mas acho que no fundo, essa a grande questo do mestrado

    profissional do ensino de histria e que a aproximao desse tema, aproximao no sentido de

    equacionar, buscar respostas pra isso, acho que um trabalho que vai ter resultado. Voc

    perguntou qual a avaliao. O que a gente espera abrir o dilogo entre a experincia dos

    professores que esto na educao bsica, colocando a mo na massa, trabalhando com as

    crianas, com os jovens, e a gente que est propondo outro tipo de reflexo, sobre a

    construo do conhecimento histrico, sobre o uso das fontes, sobre a ideia de como voc lida

    com a demanda social, porque acho que esse ponto afeta o conhecimento na universidade, ele

    afeta o conhecimento desse bacharel que vai trabalhar numa agncia de turismo, num museu,

    mas acho que afeta muito o professor na sala de aula, quando ele vai discutir os 50 anos da

    ditadura, quando ele vai discutir os 60 anos da morte do Vargas, enfim, uma grande

    quantidade de assuntos que aparecem todos os dias e que acho que o professor tem que tratar.

    Nesse sentido, a chamada histria do tempo presente se torna muito importante na educao

    bsica, se torna um tema que o professor lida o tempo todo. Como voc trata a questo do

    tempo? Como trata a questo do conhecimento histrico? Por que, muitas vezes, na ideia de

    se aproximar os contedos criam-se anacronismos absurdos? De voc pegar questes e temas

    de hoje e v-los no passado, como era a reforma agrria em Roma, por exemplo. No acho

    que os professores universitrios tm as respostas, mas um desafio. E do ponto de vista do

  • 203

    futuro, por enquanto o grande desafio que estamos enfrentando operacional, como lidar com

    os recursos, como que a gente define melhor tambm o que vai ser a dissertao desses

    alunos, como que voc articula essa rede e acompanha seu funcionamento, com 12

    universidades, cerca de 95 professores e 140 alunos que entraram na primeira turma, como

    que se opera com isso. Porque uma coisa o projeto inicial, que muito interessante, suas

    linhas de pesquisa, mas em toda reunio que a gente faz, que o Conselho Acadmico Nacional

    faz, ou nas reunies dos coordenadores dos grupos, sempre surge uma quantidade de

    questes, de problemas, de desafios que a gente no tinha previsto. Ento, essa primeira turma

    est trazendo um aprendizado muito grande, e ainda mais para ns, que estamos na condio

    de coordenadores e administradores desse projeto. E, agora, sinto muito um engajamento,

    uma animao muito grande dos professores da educao bsica, nossos alunos. Acho que

    isso um sintoma de que as coisas podem dar certo. Outro desafio o grande nmero de

    novas universidades que querem aderir ao ProfHistria, e a gente tem que pensar sobre como

    administrar isso.

    RL: Em nome da Revista do Lhiste, queremos agradecer muito pela conversa, pela

    oportunidade de discutir questes to importantes, de lhe ouvir e conhecer sua

    experincia.

    MMF: Tambm agradeo a oportunidade de conversar com vocs e trocar essas ideias.