ENTREVISTA COM O DESCOBRIDOR DO VIRUS DA AIDS LUC MONTAGNIER
O inimigo radical
O descobridor do vrus da aids pe o peso de seu prestgio no
combate sem trgua raiz dos males crnicos: o efeito oxidante dos
radicais livres
Flvia Varella
O virologista francs Luc Montagnier um homem gentil, do tipo
conciliador. Na carreira, porm, pula de polmica em polmica. Nos
anos 80, protagonizou com o americano Robert Gallo uma das disputas
mais renhidas da histria da cincia moderna: a paternidade da
descoberta do HIV, o vrus causador da aids. A batalha jurdica
terminou com um acordo em que os dois pesquisadores aceitaram a
co-autoria e suas instituies dividiram os royalties. Nos anos 90,
Montagnier de novo sacudiu a Frana ao recusar a aposentadoria
obrigatria aos 65 anos de idade, sair do Instituto Pasteur e ir
trabalhar justo nos Estados Unidos, para indignado pasmo nacional.
Recentemente, voltou arena: publicou artigo no jornal Le Monde em
que afirma estar convencido, apesar da falta de evidncias
cientficas definitivas, de que a poluio, os alimentos
industrializados e os produtos qumicos so, sim, provveis causadores
de doenas crnicas, como o cncer. Mais ainda, endossa com entusiasmo
o efeito supostamente benfico dos suplementos antioxidantes.
Montagnier, 72 anos, recebeu VEJA em seu escritrio de presidente da
Fundao Mundial de Pesquisa e Preveno da aids, no prdio da Unesco,
em Paris.
Veja Os casos da doena de Alzheimer aumentaram cinco vezes em
cinqenta anos. Tambm tem crescido o nmero de pacientes de alguns
tipos de cncer, como os infantis, do crebro, da mama e da prstata.
Por que isso ocorre, quando a medicina registra tantos
avanos?Montagnier H vrias causas conhecidas, como a gentica, a
alimentao e o modo de vida, a includos o fumo, o lcool e a
obesidade. Os prprios diagnsticos ficaram muito mais precisos. Mas
devemos nos perguntar se as mudanas ambientais tambm no seriam uma
causa.
Veja Quais so esses fatores ambientais?Montagnier H a poluio
atmosfrica, a queima de combustveis fsseis, a utilizao macia de
inseticidas na agricultura, os dejetos que liberam toxinas, o
empobrecimento da comida. Nossa alimentao hoje talvez menos rica em
elementos protetores, como vitaminas a conservao de legumes e
frutas em cmara fria faz com que uma parte das vitaminas se perca.
E o nosso sistema imunolgico menos eficiente, justamente por
estarmos expostos a todos esses novos fatores ambientais. Portanto,
a incidncia de cncer pode resultar de uma combinao da ao direta do
ambiente e da maior debilidade do sistema imunolgico.
Veja Como esses fatores ambientais agem no organismo e qual a
relao deles com doenas como o cncer?Montagnier Todos esses fatores
que citei provocam em nossas clulas o mesmo efeito bioqumico: a
formao de radicais livres, molculas super-reativas derivadas do
oxignio que atacam o DNA, as protenas, os lipdios. Normalmente
essas molculas so neutralizadas por nossa defesa antioxidante. Mas
essa defesa tende a se enfraquecer com a idade ou, s vezes, no
vence a quantidade de radicais livres. Quando isso acontece, h um
stress oxidativo, que danifica os tecidos e induz a inflamaes
crnicas, cncer e doenas neurodegenerativas.
Veja Especialistas franceses que preparam o Plano Nacional de
Sade Ambiental afirmam que at 20% dos cnceres seriam provocados por
fatores ambientais e cerca de 70% por condutas pessoais, como o
tabagismo, o alcoolismo e a m nutrio. Esses nmeros so
cientificamente provados?Montagnier muito difcil provar, porque o
cncer e outras doenas crnicas tm mltiplas causas. Quando existe um
fator principal, possvel determin-lo com um estudo epidemiolgico.
Estabelece-se uma correlao entre, por exemplo, o aumento do cncer
em Chernobyl e o acidente nuclear que aconteceu l. Mas, se o que
existe uma pequena zona de radiao atmica, no d para determinar seu
papel. A ela podem se juntar a poluio qumica, uma alimentao menos
rica em antioxidantes e pronto: a doena se desenvolve. Neste caso,
um estudo no consegue determinar a parcela de cada um dos fatores,
s a soma final. E h ainda o aspecto gentico: cada pessoa pode ser
mais ou menos resistente a todos os fatores mencionados.
Veja O senhor no tem medo de colocar em risco sua reputao
profissional ao fazer afirmaes que no podem ser cientificamente
comprovadas?Montagnier O papel dos fatores ambientais em doenas
humanas no comprovado por estudos toxicolgicos ou epidemiolgicos.
Mas eles causam o mesmo efeito bioqumico, a formao de radicais
livres. Isso sim est provado; h uma quantidade enorme, uns 250
trabalhos, mostrando o papel do stress oxidativo na doena de
Parkinson, e mais 1.000 que comprovam os efeitos do stress
oxidativo em outras doenas. O dado ainda controvertido qual a
origem do stress oxidativo e como lutar contra ele. Contra o
princpio da negao, eu proponho o princpio da precauo.
Veja A cincia vai conseguir provar a relao entre produtos
qumicos e cncer?Montagnier H resultados estatsticos preocupantes,
mas que no chegam ao ponto de provocar um alerta geral. Outra
abordagem para provar que um elemento cancergeno so as experincias
em laboratrio, em que testamos um produto em clulas e vemos os
efeitos. Mas os efeitos s aparecem quando as doses so muito mais
fortes do que as encontradas em seres humanos. Por exemplo, h
elementos cancergenos nos plsticos, mas a indstria afirma que
nossos testes no se aplicam em escala humana, porque as doses que
entram em contato conosco so muito mais fracas. O problema que se
trata de diversos fatores que se juntam no dia-a-dia e ns estamos
cada vez mais expostos a eles.
Veja O senhor recomenda desconfiar at dos estudos que dizem que
a exposio a ondas eletromagnticas, como as da televiso e do
telefone celular, no faz mal?Montagnier Erramos em fazer pouco
desse assunto. Eu repito: mesmo que o fator de risco seja fraco,
ele se soma a outros. necessrio realizar mais pesquisas sobre os
efeitos oxidativos das fontes de ondas eletromagnticas. possvel
comparar, por exemplo, o stress oxidativo mdio de um grupo que vive
prximo de uma antena e o de outro que mora mais longe. Ainda que os
efeitos do stress oxidativo ocorram a longo prazo, a oxidao quase
imediata, e assim se poderia avaliar se h risco. Alis, acho que
todos os fatores que potencialmente podem provocar doenas deveriam
ser controlados, em nome da precauo, mesmo que o malefcio no esteja
cientificamente comprovado.
Veja Reduzir o uso de celular e televiso por causa do efeito
apenas presumido das ondas eletromagnticas no uma atitude
paranica?Montagnier Viver, por definio, correr riscos. No vamos nos
esquecer de que temos um sistema de defesa contra a oxidao
molecular. Fomos biologicamente selecionados para escapar dela. Eu
recomendo uma viso moderada, sem ser paralisante. Pegar um avio
arriscado. Mesmo assim viajamos, mas evitamos a companhia area que
teve quatro ou cinco acidentes no ano. Na vida igual. Temos de
viver tentando correr menos riscos.
Veja Como prevenir o stress oxidativo?Montagnier Os
antioxidantes agem sobre uma cascata de reaes qumicas e devem ser
combinados. Vitaminas no conseguem compensar todos os efeitos
oxidantes. Precisamos utilizar melhor os antioxidantes naturais,
que ns mesmos fabricamos, como a glutationa, uma substncia que tem
papel fundamental na neutralizao dos radicais livres, mas deixa de
ser fabricada em quantidade suficiente a partir de 45, 50 anos. A
glutationa que se vende hoje nas farmcias pouco ativa, por ser
modificada, e oferecida apenas de forma injetvel. Produzir
glutationa estvel e ingervel pela boca pode revolucionar o
tratamento antioxidante.
Veja H outras solues sendo estudadas?Montagnier Existe toda uma
gama de antioxidantes ainda por ser testada. A natureza nos oferece
uma enorme variedade. A ginkgo biloba, uma rvore asitica, produz
notvel quantidade de antioxidantes. H muitas plantas amaznicas com
a mesma propriedade. Temos de fazer testes clnicos com os extratos
de plantas para ver como eles corrigem as carncias antioxidantes do
organismo. Uma orientao nutricional para que a pessoa coma mais
desta fruta ou daquele legume tambm importante. Se no for
suficiente, recomenda-se a ingesto dos suplementos alimentares.
Veja O senhor realmente acredita que esses suplementos
alimentares, vitaminas e minerais em cpsulas ou comprimidos, cujos
efeitos foram contestados por especialistas, ajudam a combater
males recorrentes da oxidao?Montagnier Ajudam. Errada, muitas
vezes, a forma como as pessoas os utilizam. H doses excessivamente
fortes, e sabemos que um antioxidante pode ser oxidante em doses
muito altas. No adianta tomar mais do que o necessrio. Tambm
existiu muito marketing. E como houve muito fracasso, com pesquisas
mostrando sua ineficcia, toda a medicina ortomolecular caiu em
descrdito e ganhou m reputao.
Veja O senhor toma vitaminas?Montagnier No, mas eu tomo
antioxidantes. Tomo glutationa.
Veja Como esto as pesquisas nesse campo?Montagnier H algumas,
mas no o suficiente. Hoje em dia esse ramo menos gratificante para
os pesquisadores do que a biologia molecular. Estamos assistindo a
uma explorao intensa das descobertas da biologia molecular, da
gentica. A corrida agora por fazer um inventrio das funes dos genes
que seriam 100 000, mas hoje se fala em pouco mais de 20 000 e
conhecer a relao entre um gene e determinada doena. Eu no digo que
no se deva estudar isso. interessante e importante para as doenas
de origem gentica. Mas esses estudos no traro soluo para as doenas
crnicas de que estamos falando, porque elas tm mltiplas causas,
entre elas os fatores ambientais.
Veja A indstria farmacutica direciona a pesquisa
cientfica?Montagnier Com certeza. Para comear, a indstria
farmacutica pouco criativa neste momento. Cada empresa quer ficar
maior engolindo a outra e no h diversificao. E o que todas querem
principalmente criar um remdio novo que venda mais de 1 bilho de
dlares por ano. Elas produzem alguns, o que bom, e h medicamentos
excelentes. Mas h tambm fracassos, como o Vioxx. Alm disso, os
supermedicamentos custam muito caro. Outro perigo o marketing que
cerca o lanamento de novos remdios. Muitos antidepressivos e
antiinflamatrios foram impostos pelo marketing.
Veja Mas todos esses medicamentos foram lanados com o respaldo
de estudos cientficos.Montagnier Os laboratrios farmacuticos so de
tal forma poderosos que podem comprar os mdicos que fazem os
estudos clnicos e as autoridades que liberam a comercializao dos
medicamentos. Existe uma perverso da pesquisa cientfica que
preocupante. preciso um mecanismo de compensao, organismos
independentes e gente como eu, com idias diferentes do conformismo
reinante. No se devem pesquisar apenas os princpios que resultaro
em remdios caros. E a medicina tambm tem de aprender a prevenir. No
s tratar os pacientes graves preciso trat-los, claro , mas procurar
chegar ao menor nmero possvel de pessoas doentes.
Veja Desenvolver uma nova fronteira de pesquisa, de testes, de
check-ups em nvel molecular no seria encarecer ainda mais a
medicina?Montagnier H toda uma nova bateria de exames de alto
custo, mas que acabam saindo menos caro do que tratar milhes de
pessoas nos hospitais com dezenas de medicamentos. No se trata de
aumentar a durao da vida, mas de fazer com que as pessoas cheguem
ao fim com o menor nmero possvel de doenas. Todo mundo morre,
claro. Mas eu acho que passar quinze anos num asilo com Alzheimer
no vale a pena.
Veja Graas, em boa parte, a suas descobertas, a aids teve um
desenvolvimento menos assustador do que se previa. Ainda assim, a
situao continua trgica, com 40 milhes de adultos e crianas
infectados. O senhor est satisfeito com o que a cincia fez contra a
aids? Montagnier No. A cincia fez muito, mas no o suficiente. Houve
a identificao do vrus, o teste de soropositividade, os remdios.
Tudo isso permitiu a preveno, o tratamento. Mas, apesar dos
esforos, a epidemia continua. Ns ainda no sabemos de tudo o que
precisamos nem sobre o vrus nem sobre a doena.
Veja Chegaremos a uma vacina contra a aids?Montagnier Espero que
sim, mas sou pessimista quanto vacina que est em desenvolvimento.
Ela no vai ser 100% eficiente, pois h formas de vrus ainda no
caracterizadas que vo escapar imunizao. Mas nesse caso eu no tenho
sido ouvido e no tenho recursos para pr em prtica minhas idias.
Veja Uma descoberta como a do vrus responsvel pela aids no
merece o Nobel de Medicina?Montagnier No sou a pessoa indicada para
responder. A descoberta de um vrus, em si, no merece um Prmio
Nobel, mas, como esta salvou milhares de vidas, talvez merecesse.
Como descoberta cientfica, no foi das maiores, uma vez que no
trouxe nenhum conceito novo. Mas teve um impacto
importantssimo.
copiado dia 24/09/2014 do site
http://veja.abril.com.br/230205/entrevista.html
