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ENTREVISTA: JOSÉ ANTÔNIO PAGANELLA BOSCHI * Apresentação O Programa de História Oral do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul está formando um Banco de Memória Oral, cujo acervo vem sendo publicado na revista Justiça & História e na série Histórias de Vida, que reúne coletâneas de entrevistas. A formação da rede de depoentes e a formulação dos questionamentos aos entrevistados coincidem com as demandas animadas pelas pesquisas desenvolvidas no Memorial. Todas as entrevistas, depois de degravadas pelo departamento de Taquigrafia e Estenotipia do Tribunal, são, ainda, textualizadas pela equipe do Memorial, para, então, serem novamente submetidas ao depoente para eventuais ajustes e aprovação final. Uma vez aprovadas, as entrevistas são indexadas, de forma a facilitar o acesso aos consulentes, e arquivadas. José Antônio Paganella Boschi, cujo depoimento acha-se reproduzido neste volume da revista, iniciou sua carreira como Promotor, tendo ingressado no Ministério Público, por meio de concurso, em 1973. Foi promovido a Procurador de Justiça em 1988. Em duas oportunidades, integrou a lista tríplice para o cargo de Procurador-Geral de Justiça e, mesmo alcançando a melhor votação da classe numa oportunidade, não chegou a ser nomeado pelo Governador. Boschi presidiu a Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul, de 1987 a 1988. Foi nomeado Juiz de Alçada, em 1994, e promovido ao Desembargo em 1998. Em seu depoimento, Paganella Boschi refere uma multiplicidade de temas. Destacam-se a referência à ação das entidades de classe – a Associação do Ministério Público e a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul –, especialmente em momentos estratégicos, como o da Constituinte de 1988; a reflexão em torno do papel renovador desempenhado pelo Tribunal de Alçada para a atividade judicante de segundo grau, bem como uma avaliação do impacto da extinção desta Corte em 1997; considerações sobre a evolução da legislação penal brasileira nos últimos anos; interpretações sobre a evolução do Código de Processo Penal, do Estado Novo ao período da Constituição de 1988. São * Depoimento Concedido às historiadoras, Juliana Ramanzini e Mara C. Rodrigues, na sede do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, no dia 10/02/2003. Degravação do Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do Tribunal de Justiça do RS. Roteiro do historiador Gunter Axt. Textualização de Mara C. Rodrigues.

ENTREVISTA: JOSÉ ANTÔNIO PAGANELLA BOSCHI3 contrapartida do meu trabalho, o colégio, a cama e a comida. Junto com Dr. Jarbas Lima, estava o Dr. Eloar Guazelli, já falecido, grande

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ENTREVISTA: JOSÉ ANTÔNIO PAGANELLA BOSCHI*

Apresentação

O Programa de História Oral do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul

está formando um Banco de Memória Oral, cujo acervo vem sendo publicado na revista

Justiça & História e na série Histórias de Vida, que reúne coletâneas de entrevistas. A

formação da rede de depoentes e a formulação dos questionamentos aos entrevistados

coincidem com as demandas animadas pelas pesquisas desenvolvidas no Memorial. Todas

as entrevistas, depois de degravadas pelo departamento de Taquigrafia e Estenotipia do

Tribunal, são, ainda, textualizadas pela equipe do Memorial, para, então, serem novamente

submetidas ao depoente para eventuais ajustes e aprovação final. Uma vez aprovadas, as

entrevistas são indexadas, de forma a facilitar o acesso aos consulentes, e arquivadas.

José Antônio Paganella Boschi, cujo depoimento acha-se reproduzido neste

volume da revista, iniciou sua carreira como Promotor, tendo ingressado no Ministério

Público, por meio de concurso, em 1973. Foi promovido a Procurador de Justiça em

1988. Em duas oportunidades, integrou a lista tríplice para o cargo de Procurador-Geral

de Justiça e, mesmo alcançando a melhor votação da classe numa oportunidade, não

chegou a ser nomeado pelo Governador. Boschi presidiu a Associação do Ministério

Público do Rio Grande do Sul, de 1987 a 1988. Foi nomeado Juiz de Alçada, em 1994, e

promovido ao Desembargo em 1998.

Em seu depoimento, Paganella Boschi refere uma multiplicidade de temas.

Destacam-se a referência à ação das entidades de classe – a Associação do Ministério

Público e a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul –, especialmente em momentos

estratégicos, como o da Constituinte de 1988; a reflexão em torno do papel renovador

desempenhado pelo Tribunal de Alçada para a atividade judicante de segundo grau, bem

como uma avaliação do impacto da extinção desta Corte em 1997; considerações sobre a

evolução da legislação penal brasileira nos últimos anos; interpretações sobre a evolução

do Código de Processo Penal, do Estado Novo ao período da Constituição de 1988. São

* Depoimento Concedido às historiadoras, Juliana Ramanzini e Mara C. Rodrigues, na sede doMemorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, no dia 10/02/2003. Degravação do Departamento deTaquigrafia e Estenotipia do Tribunal de Justiça do RS. Roteiro do historiador Gunter Axt. Textualização deMara C. Rodrigues.

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ainda referidos na entrevista os Juizados Especiais Criminais, o sistema carcerário, a

Escola da Magistratura e a atividade associativa contemporânea da AJURIS e da AMB

junto a Comissão Especial do Congresso Nacional que trata da Reforma do Judiciário.

Memorial - Para iniciar esta entrevista, gostaríamos de saber um pouco sobre o

seu nascimento, sua família e sua formação, antes de entrar na carreira profissional.

Des. José Antônio Paganella Boschi - Eu nasci no dia 12 de maio de 1949, no

Hospital Nossa Senhora da Oliveira, em Vacaria. Sou filho de um casal ainda vivo, Alcides

Luiz Boschi e Sra. Diná Paganella Boschi, que vivem até hoje em Esmeralda, terra onde

passei a minha infância até os onze para doze anos. Depois fui para Vacaria estudar, após

para Bom Jesus e dali para lá.Tenho dois irmãos, um reside com os pais em Esmeralda, e

o outro, aqui em Guaíba. Este é funcionário, do Banco do Brasil e também advogado. A

minha infância, como eu disse, passei em Esmeralda até os onze, doze anos. Depois de ter

terminado o antigo Primário no Grupo Escolar, fui cursar o Ginásio em Bom Jesus. Isso

foi em 1959, 1960 até 1964. De Bom Jesus fui para Vacaria, onde fiz o meu curso de

Contabilidade no Colégio São Francisco. De Vacaria, mudei-me para Porto Alegre, onde

fiz a Faculdade na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Basicamente é isso.

Memorial - Qual foi o período em que o senhor estudou na UFRGS?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Para a UFRGS, eu vim em 1967.

Terminei a minha faculdade em 1972 e, em seguida, fiz concurso para o Ministério

Público. Claro que resumi tudo numa fração de segundos, porque, nesse período,

aconteceram muitas coisas: trabalhei em vários lugares e conheci muitas pessoas. Em

1973, assumi a Promotoria.

Memorial - O senhor chegou a trabalhar com o ex-Deputado Jarbas Lima. Isso

foi antes ou depois do Ministério Público?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Eu conheci o Dr. Jarbas Lima numa

situação muito engraçada. Devo muito a ele. Penso que este depoimento também me

oportunizará fazer o reconhecimento a algumas pessoas que me ajudaram muito. Conheci

Jarbas Lima, que foi quem, na realidade, me orientou e me colocou no caminho certo,

quando eu estava em Bom Jesus. Estava já terminando o meu Ginásio, quando o conheci

em um restaurante em que eu trabalhava como assador de carnes. Eu recebia, como

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contrapartida do meu trabalho, o colégio, a cama e a comida. Junto com Dr. Jarbas Lima,

estava o Dr. Eloar Guazelli, já falecido, grande advogado criminalista, no início de uma

madrugada do mês de julho, quando eles haviam ido lá fazer um Júri. Eu não sabia quem

eram aquelas pessoas que queriam jantar, quando o restaurante já estava fechando.

Lembro-me de que era uma noite muito fria, nevava em Bom Jesus. Aí, eu me prontifiquei

e rapidamente fiz o churrasco para eles. O Dr. Jarbas Lima, depois de alguma conversa,

identificou-se, apresentou o Dr. Eloar Guazelli e me disse que, se eu precisasse dele em

Vacaria, poderia procurá-lo. Terminei o meu Secundário e fui embora para Vacaria. Com a

mala, bati no escritório do Jarbas Lima. Naturalmente, ele não lembrava quem eu era.

Abriu a porta, imaginando, quem sabe, que fosse mais um cliente. Então, eu disse: “Olha,

eu sou aquele rapaz do restaurante de Bom Jesus”. Ele se lembrou de mim e perguntou o

que eu queria, ao que respondi: “Eu quero uma ajuda sua. O senhor me disse que eu

poderia procurá-lo aqui se precisasse. Preciso de um lugar para estudar, uma bolsa de

estudos, quero fazer o meu Curso de Contabilidade aqui e não tenho como pagar”. Ele me

mandou entrar, e eu sentei. Depois de algumas gestões com o Prefeito da cidade, ele

conseguiu que a Prefeitura pagasse os meus estudos. Conseguiu uma bolsa em Vacaria,

porque ele era Vereador na época.Aí, eu disse que precisava de mais uma coisa. “O que tu

queres?” “Eu precisava de algum lugar para trabalhar, porque eu não conheço ninguém

aqui em Vacaria.” Eu tinha parentes lá, mas preferi não procurá-los por uma série de

razões. Depois de muito pensar, telefonar, e passar algum tempo, acabei empregado no

próprio escritório e já comecei a trabalhar ali. Naquela mesma tarde, eu ficaria no

escritório, com uma mala na ante-sala. “Mas tem mais um problema”, eu disse para ele.

“Qual é o problema?” “Olha, eu precisaria ver se conseguia um lugar para morar, porque

estou aqui de mala, não tenho onde ficar, não conheço ninguém.” Ele, depois de pensar,

ligou para a sua casa e falou com a D. Jane, esposa dele, que foi a minha segunda mãe. Ele

disse: “Olha, tem um quarto assim, assim, que está desocupado, arruma uma cama que um

rapaz vai dormir aí”. Em síntese, em questão de uma hora, resolvi três grandes problemas:

trabalho, estudo e um lugar para morar. Fiquei com ele três anos, e foi um grande

aprendizado. Nas horas vagas em que eu ficava no escritório, lia os livros que me caíam às

mãos. E eu tinha, por função, datilografar todos os processos dos Júris que ele fazia.

Naquela época, não havia xerox, tudo era na base da máquina de escrever. E sempre fui

muito veloz na máquina. Então, passei a ser conhecido como um bom datilógrafo.

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Copiava os processos, preparava aqueles expedientes, levava para a casa dele e, quando

havia julgamento pelo Júri, eu ia assistir. Foi ali que comecei a gostar do Direito e, em

função disso, acabei direcionando-me para a atividade jurídica. Então, para mim, foi muito

importante ter conhecido o Jarbas, graças a um momento efêmero: ele fora fazer um Júri,

alguém tinha cometido um crime, ele foi jantar, casualmente me encontrou ali fechando o

restaurante, surgiu a oportunidade. Agarrei aquela oportunidade, porque sempre digo que

a vida oferece para as pessoas mil oportunidades; a diferença é que alguns a agarram, e

outros não. Eu a peguei e me dei bem. Sou muito amigo dele, devo muito a ele, lamento

que não possa encontrá-lo com mais freqüência, porque, afinal, a vida acaba separando as

pessoas. O curioso é que, algum tempo depois, ele é eleito Deputado e vem embora para

Porto Alegre. Volto a encontrá-lo aqui, agora como Promotor de Justiça de 4ª entrância, e

passo, naturalmente, a freqüentar a sua casa. Acabei comprando o apartamento que era

dele na época. Eu dizia para ele: “Tu tens que fazer um concurso para alguma coisa,

porque, daqui a pouco, não te eleges como Deputado, fica complicada a tua vida”. Ele me

respondia que não tinha vontade de fazer, sentia-se inseguro, porque tinha deixado o

Direito já há algum tempo. Havia mudado o Código Penal, assim como o Código de

Processo Penal, ele não sabia mais como estavam e não ia mais ter tempo para se preparar

para o concurso. Eu disse: “Isso tem um jeito de resolver”. Certo dia, abriu concurso para

Promotor, instiguei o Jarbas, e ele acabou-se inscrevendo. Revisei o programa do

concurso com ele todas as noites e acredito que a minha ajuda, de algum modo, contribuiu

para que ele se motivasse para o concurso de Promotor.

Memorial - Como foi o seu concurso e o seu ingresso no Ministério Público?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Às vezes, dizemos que a vida está

“escrita nas estrelas”, de uma forma bem determinista. Claro que não acreditamos nisso,

porque nem mais a velocidade da luz, que era uma coisa tida como que inequivocamente

certa, trezentos mil quilômetros por segundo, hoje é aceita como tal. Então, a grande

certeza é de que nada é certo. É complicado dizer que a vida está escrita nos astros. Na

época, estava trabalhando no Palácio Piratini, como chefe da secretaria particular do

Governador Triches. Fui para lá graças às indicações de um outro grande amigo meu, que

é hoje Conselheiro do Tribunal de Contas, Victor Faccioni, que foi Deputado Estadual,

com quem acabei indo trabalhar na Assembléia no tempo em que eu estava aqui como

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estudante.Com a ida do então deputado Triches para o Governo do Estado, o Dr Victor

Faccioni foi junto como Chefe da Casa Civil, e eu acabei indicado e exerci essa função de

Chefe da Secretária particular do Governador. Eu era muito amigo do então Procurador-

Geral, Dr. Lauro Guimarães, − toda vez que ele ia falar com o Governador, me telefonava

antes, para que eu marcasse a audiência na agenda. Ele dizia: “Tu tens que ser Promotor”.

Eu estava concluindo o curso e dizia que queria mesmo era ser Juiz, queria a

Magistratura. Ele insistia para que eu fosse Promotor. Não dei muita importância a isso

até que um dia ele, o dr. Lauro Guimarães, apareceu no Palácio com a minha inscrição.

Vejam que coisa engraçada. Eu agradeci, reiterei que o meu objetivo era a Magistratura e

disse que ia pensar. Fui pra casa. Eu estava casado há uns seis ou sete meses, e a minha

mulher – as mulheres têm uma visão muito mais aguda do que os homens – disse que eu

tinha que fazer o concurso, que eu estava muito bem lá, mas que aquele Governo ia

acabar, e havia apenas muitas promessas. Eu acabei cedendo à pressão da minha mulher,

com quem estou casado até hoje, e fiz o concurso. E fiz em circunstâncias adversas,

porque a prova estava marcada para as duas horas da tarde, no prédio da Faculdade de

Direito da UFRGS, e eu tinha que voltar ao Palácio Piratini as quatro, quatro e meia ,

porque haveria naquele dia reunião do Secretariado. Eu estava sempre presente nessas

reuniões junto com o Governador. Ele podia precisar de alguma coisa, então eu tinha que

estar lá, arrumar a mesa, preparar documentos,etc... concurso começou a atrasar! Já

passava das três horas, e não tinha começado, e eu olhando no relógio! Peguei a prova - a

primeira do concurso foi a de Português - e a fiz assim como quem não está nem um

pouquinho preocupado com o resultado, apenas “cumprindo o calendário”.

Surpreendentemente, fui aprovado na prova de Português e também nas provas escritas

.A prova oral teve muita publicidade, porque quem veio entrevistar os candidatos foi o

Prof. Frederico Marques, grande processualista do Brasil, ainda hoje citado em todos os

tribunais! Fui sendo aprovado até que chegou a última fase, que era a da tribuna. Aí, sim,

fiquei preocupado, porque eu achava que quem tinha chegado até aquele ponto tinha que

ser aprovado. Então, estudei mesmo para valer. Fiquei trinta dias, dia e noite, fechado no

sótão de uma fazenda no interior do Município de Vacaria, estudando! Fui aprovado e

acabei indo embora para Espumoso, onde assumi, foi a minha primeira Comarca. Foi

assim o início. Mas o curioso é que apesar de ter passado no concurso para Promotor, eu

não ia assumir, porque o Governador me disse: “Olha, se você não assumir, nós vamos

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juntos para Caxias, porque há advogados lá na empresa” (nas empresas Triches) “e tem

vaga para ti lá. Tu podes ficar tranqüilo, vamos todos embora para lá”. Então, eu saí do

Palácio Piratini para avisar o Procurador-Geral, numa deferência a ele, que não ia assumir

isto, depois de ter conversado com a minha mulher em casa. Quando cheguei lá, o Dr.

Lauro Guimarães disse que, em hipótese alguma, aceitaria isso. Mandou eu sentar num

canto do seu gabinete e chamou o então secretário e futuro Desembargador Marco

Aurélio Moreira de Oliveira para que viesse assistir à conversa que ele ia ter comigo. Para

encurtar a história, o Dr. Marco Aurélio e o Dr. Lauro Guimarães ficaram de pé na minha

frente, num cantinho do gabinete, eu sentado numa poltrona vermelha, e literalmente me

obrigaram a assumir! Veio, em seguida, uma funcionária , eu acabei assinando um livro de

posse e saí dali empossado Promotor de Justiça!. Acho que fiz a coisa certa, porque, ao

longo de vinte e dois anos, fui Promotor de Justiça e me dei muito bem nessa atividade

profissional, tive uma ótima relação com os colegas e com a Instituição. Relacionei-me

bem com todos os Juízes com quem trabalhei. Tive que denunciar alguns Prefeitos em

cidades onde atuei como Promotor e nunca tive nenhum problema pessoal com eles.

Enfim, consegui passar esses vinte e dois anos incólume, chegar ao final da carreira com

um bom saldo de realização pessoal.Ao chegar em Porto Alegre fui eleito Presidente da

Associação dos Promotores e tive a oportunidade de acompanhar todo o processo

constituinte Depois, concorri a Procurador-Geral da Justiça em duas oportunidades. Fui

eleito, nas duas vezes, para a lista tríplice – numa delas, fui o mais votado -, mas não fui

nomeado pelo Governador, o que gerou uma quebra na expectativa geral da classe.Enfim,

foram coisas que aconteceram ao longo da vida no Ministério Público, mas que as vejo

como muito importantes e positivas, até mesmo o fato de não ter sido nomeado pelo

Governador, porque hoje reconheço que talvez sequer estivesse preparado para exercer a

função de Procurador-Geral naquela época.

Memorial - O senhor entrou num assunto que nós tínhamos pensado para lhe

perguntar. Como foi essa atuação, esse processo durante a Constituinte, quando o senhor

estava na Presidência da Associação?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Foi uma experiência extraordinária, que

estou revivendo na AJURIS, na condição de Diretor do Departamento [?] Constitucionais

e também de integrante da Associação de Juízes Brasileiros. O projeto estratégico que

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desenvolvemos anteriormente junto aos os Promotores foi semelhante ao que foi

idealizado está sendo aplicado pela AJURIS, e pela AMB em face do projeto de reforma

do Judiciário. No que consistiu isso? Na época, queríamos construir o Ministério Público.

Eu diria que, até 1988, nós tínhamos Promotores de Justiça, mas não tínhamos o

Ministério Público. O MP, como Instituição, veio depois dos Promotores, mais ou menos

como a mãe nascendo depois dos filhos! A Constituição era muito geral sobre o

Ministério Público. Não dispunha sobre prerrogativas, não havia garantias, não havia um

perfil estrutural do Ministério Público. Não havia nada. Nós queríamos organizar a

Instituição, queríamos que ela tivesse uma feição constitucional. Imaginávamos que

ninguém conseguiria obter êxito num projeto desses se não houvesse organização nos

Estados. Então, formamos um grupo na Confederação Nacional do Ministério Público,

composto por uns dez ou doze Promotores, que representariam os Estados. Esse grupo

tinha poderes em Brasília para negociar com os parlamentares, elaborar os projetos, as

emendas, as justificativas, enfim, acompanhar de perto o processo constituinte. E, sempre

que fosse preciso algum tipo de negociação, esse grupo consultaria a base. Por exemplo,

nós, do Rio Grande do Sul, com dez telefonemas, tínhamos condições de, em uma hora,

saber o pensamento da classe no Estado, porque o nosso estado, como os demais

Estados, foram zoneados. Nós dividimos o Estado em dez grandes núcleos e cada núcleo

era coordenado por um colega. Então, se fosse preciso uma consulta da classe, nós

ligávamos para esses dez coordenadores, que reproduziam os telefonemas para os colegas

de base e, em seguida davam um retorno. Isso se dava de tal maneira que nós, numa nova

reunião da Comissão Executiva, tínhamos como saber qual era o pensamento da classe

naquele exato momento. Foi um trabalho de baixo para cima. Por que de baixo para cima?

Porque esses colegas, nos Estados, faziam uma coisa importantíssima para quem deseja

levar avante o processo de organização de uma instituição em nível constitucional: faziam,

na base, o contato com os parlamentares. Não adianta ir a Brasília - eu digo isso todos os

dias aqui na AJURIS e também lá na AMB - toda semana falar com os Deputados no

Congresso ou com os Senadores no Plenário. Eles nos ouvem muito bem, são muito

cordiais, muito educados, mas, ao mesmo tempo em que conversam conosco, eles abanam

para quem passa, atendem ao telefone. Às vezes, eles conversam com pessoas que não são

do seu Estado, não têm compromisso nenhum com essas pessoas porque elas não votam

neles. Enfim, o contato com o parlamentar em Brasília é de pouca utilidade prática. O

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parlamentar tem que ser consultado e ser entrevistado pelos colegas na base. Tem que

debater os assuntos da classe na base e tem que assumir compromissos na base, porque,

então, sim, quando se vai a Brasília num dia de votação e se faz o contato com o

parlamentar, ele já sabe quem são as pessoas, já sabe qual foi o assunto discutido, já sabe

que compromissos assumiu. Nós montamos um projeto estratégico na época da

Constituinte que deu excelentes resultados. Nós conseguimos, graças também ao trabalho

de muitos parlamentares , organizar o capítulo do MP. Hoje, o que há na nossa

Constituição Federal não tem precedente no País nem no mundo. Examinei mais de

cinqüenta Constituições Federais estrangeiras, e, em nenhuma delas, há um perfil do MP

como o da Constituição Brasileira.

Memorial - Então, houve todo um trabalho prévio de organização, centralizado

na Associação para se poder, na Constituinte, colher esses frutos.

Des. José Antônio Paganella Boschi - Cada associação de cada Estado do Brasil

fazia os contatos com os parlamentares e seguia as orientações de um Conselho

Executivo, que era composto por dez ou doze Promotores que representavam os Estados.

Esse Conselho mobilizava-se lá em Brasília, estava permanentemente lá. Eu fiquei

praticamente morando em Brasília por dois anos, vinha só eventualmente para casa. Esse

grupo de dez ou doze é que fazia a linha de frente, preparava os textos, fazia contatos com

os parlamentares, mas a Classe continuava trabalhando na base sob a orientação desse

Conselho Executivo. Era tão organizado o movimento que nós sabíamos o que cada

parlamentar pensava sobre cada assunto, tudo registrado em planilha. Quando havia

votação de um tema, nós tínhamos condições de saber já, antecipadamente, quais seriam

os votos. E, se fosse preciso convencer alguém, acionávamos o Promotor local, que

mantinha ligação com aquele parlamentar, telefonava para ele. Assim, nós íamos direto

àquele que tinha a força suficiente para eventualmente mudar o voto do parlamentar.

Memorial - Para isso tudo acontecer, já havia, então, uma discussão anterior.

Quem é que encabeçava, como é que foi pensada essa articulação toda para que, no

momento da Constituição, as coisas acontecessem dessa forma?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Perfeito. A pergunta é ótima, inteligente.

Realmente, isso aconteceu com uma certa antecedência. Nós nos preparamos para a

Constituinte. Eu diria que, quando se começou a falar em Constituinte, nós começamos a

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nos mobilizar. E, por meio da Confederação Nacional do Ministério Público, nós fomos

montando uma estratégia nacional de ação. A Confederação era um órgão nacional do

Ministério Público, e, portanto, todo o movimento das bases acabava desembocando,

fluindo para lá. Nós montamos, realmente, um plano estratégico antes mesmo da

convocação da Constituinte, de modo que, quando ela veio, nós sabíamos o que

queríamos.

Memorial - Mas a iniciativa, então, foi da Confederação?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Eu não diria que foi da Confederação; ela

foi de toda a classe brasileira. Talvez eu possa explicar melhor isso da seguinte maneira. O

MP, ao contrário da Magistratura naquela época, tinha uma visão muito clara de suas

necessidades. Porque o Poder Judiciário, como um Poder de Estado, delineado pelo

Montesquieu na Revolução Francesa, era um poder pronto. Os Juízes nunca se

preocuparam com movimento político, de construção de sua instituição, porque ela

sempre esteve pronta. Foi delineada depois da Revolução Francesa, quando surgiu o

constitucionalismo. Os Juízes sempre se sentiram muito tranqüilos, por integrarem um

Poder de Estado, sedimentado pelo tempo, que não depende de conquistas, com garantias

clássicas de inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, aquela coisa toda. Já os

Promotores, como expliquei há pouco, eram agentes de uma Instituição que não existia e

sempre exerceram e desenvolveram uma luta de classe muito mais intensa e sofrida.

Como não pertenciam a uma instituição formal do Estado, sempre que precisavam

advogar algum interesse em nível de Governo, tinham que fazer um esforço enorme.

Então, sentiam que era preciso uma formalização constitucional para, a partir dali, então,

se vincular a uma Instituição do Estado. Essa percepção da própria efemeridade, da

própria fragilidade, digamos assim, foi o combustível que sempre alimentou os

Promotores, só faltava o momento propício, que foi a convocação da Constituinte,

porque a classe já estava politicamente preparada.

Memorial - Existia uma demanda muito forte nesse sentido.

Des. José Antônio Paganella Boschi - É, e agora os Juízes estão percebendo

que têm que fazer a mesma coisa, porque aquela ilusão. de que pertenciam a um Poder-

Estado pronto, acabado, imodificável, indestrutível, acabou-se desfazendo. Há todo um

movimento internacional, a partir do Banco Mundial, no sentido de uma desestabilização

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do Poder Judiciário. Há um documento público, que é o Documento Técnico nº 319

desse banco, que propôs justamente a quebra do monopólio do Poder Judiciário na

distribuição da justiça, com criação de organismos privados de solução de litígios em

nome da conveniência, para o grande capital, de fazer investimentos seguros nos países

periféricos. A reforma do Judiciário que se processa atualmente no Congresso Nacional

reflete essa tendência. A reforma está sendo feita não para melhorar e fortalecer o

Judiciário; pelo contrário, é uma reforma contra o Judiciário e contra os Juízes, dentro de

uma linha muito nítida de redução do poder e da influência nesses países periféricos.

Então, a ilusão que os Juízes tinham de que nada havia a modificar está-se desvanecendo

agora, porque estão percebendo que eles têm que se articular como classe para poder fazer

a advocacia de um projeto social de permanência de um Poder forte, capaz de compor

litígios, capaz de, enfim, cumprir melhor a sua função social. Se não se articularem, como

estão começando a fazer agora, se não forem eficientes na condução do seu movimento

no Congresso, o Judiciário vai perder, vai acabar enfraquecendo, exatamente porque há

um interesse internacional muito forte, que está, digamos, determinando os rumos dessa

política do Brasil.

Memorial - Na época da Constituinte, havia uma sintonia entre os interesses

desses vários grupos, da Justiça brasileira como um todo, das associações, como a do

MP, da AMB, da OAB do Brasil, dos Defensores Públicos? Como era?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Não havia sintonia. Era mais ou menos

como uma família de irmãos desunidos, e alguns até com interesses antagônicos. Por

exemplo, as relações entre a Magistratura e o MP não eram boas. Hoje, as relações entre

essas Instituições são ótimas, elas têm muita proximidade, o trabalho institucional tem

sido feito, em conjunto. Mas, na época, não era assim! O Ministério Público tinha o seu

projeto e desenvolvia a sua estratégia, e a Magistratura tinha o seu projeto, muito tímido, e

desenvolvia a sua estratégia, que não era vista de forma positiva. Os Juízes queriam evitar

os avanços das outras instituições para assegurar a manutenção das suas próprias garantias,

ao passo que o Ministério Público avançou, porque o projeto que advogava era de

construção de uma instituição social. Na Constituinte, por exemplo, enquanto os Juízes se

preocupavam em preservar queriam manter as garantias da Magistratura, os Promotores

diziam: “Nós queremos não um projeto de caráter corporativo, queremos construir uma

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instituição social, queremos construir o Ministério Público”. Ou seja, os Promotores

advogavam uma proposta política e social altamente receptiva. E diziam: “Nós queremos

que seja uma instituição do Estado para proteção da sociedade sem ser um órgão do

Governo. Queremos desempenhar um papel de patrocínio do interesse social”. Os Juízes

equivocadamente tinham receio que o MP, tendo as garantias próprias da Magistratura,

como acabou acontecendo, viesse a enfraquecer o Judiciário. Mas entre os Promotores

também havia problemas. Por exemplo, os Promotores Federais tinham uma visão muito

particular quanto ao modo como deveria ser nomeado o Procurador-Geral da República.

Eles entendiam que o Procurador-Geral da República deveria ser nomeado no sistema

atual, pelo Presidente da República, sem a eleição prévia. Os Promotores Estaduais

queriam que o Procurador-Geral do Estado fosse nomeado a partir de uma lista tríplice,

eleita pela classe, como é hoje. Enfim, não havia homogeneidade absoluta dentro do

próprio Ministério Público. Nós tínhamos também uma dificuldade enorme em

compatibilizar interesses com a Polícia Judiciária. A Polícia, em hipótese alguma, admitia

que o Ministério Público pudesse vir a exercer sobre ela o chamado controle externo. E

veja que, apesar de escrito no art. 129 da Constituição Federal, que uma das atribuições do

MP é exercer controle externo sobre a Polícia Judiciária, essa atribuição está longe de ser

efetiva!Na época, era muito mais complicado. A Polícia solicitava que não se escrevesse

isto − que o MP exerceria controle externo. Também não admitia a hipótese de perder a

prerrogativa de elaborar o inquérito policial. A Polícia achava que, na medida em que o

Promotor pudesse exercer controle externo, requisitar a abertura de investigações, e

exercer ação penal pública em caráter privativo, como está escrito hoje, ela perderia

poderes, porque ficaria sem o inquérito. Essa visão, a meu sentir, é equivocada, porque a

Polícia Judiciária, em verdade, só vai sofrer prejuízos, digamos assim, se não conseguir

exercer a sua atividade com eficiência. Eu diria até que, se a Polícia Judiciária abandonasse

a idéia de fazer inquéritos policiais como faz hoje, se libertaria de uma atividade

burocrática enorme, teria mais disponibilidade para trabalhar na rua, fazer investigação e,

digamos, “alimentar” o Judiciário rapidamente com expedientes muito mais simplificados,

crescendo aos olhos da sociedade. Ou seja, libertando-se do inquérito policial, sim, é que a

Polícia ganha, e não ficando com um expediente burocrático que pouco vale em termos de

Justiça. A prova do inquérito é sempre relativa e perde no confronto com a prova judicial,

porque só esta é colhida com ampla defesa, contraditório e assim por diante. Mas esse era

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um problema muito sério na época, o fato de a Polícia querer, com unhas e dentes,

preservar aquele espaço que ocupava na época, fazendo inquéritos, não tendo controles.

Com isso, acho que sintetizo, as posições mais importantes. De um lado, o MP; de outro

lado, o Judiciário; e, num ponto um pouco mais distante, a Polícia Judiciária, cada um

puxando a brasa para o seu assado.

Memorial - E a OAB?

Des. José Antônio Paganella Boschi - A OAB, de um modo geral, apoiou a

iniciativa do Ministério Público. Ela tinha também as suas reivindicações próprias, mas

não ofereceu resistência ao projeto do Ministério Público, não fez uma advocacia, a meu

sentir, tão aberta, e intensa em favor do Judiciário, salvo no que se refere à preservação de

garantias constitucionais.

Memorial - Durante a sua trajetória no Ministério Público, discutiu-se longamente

a reforma do Direito Penal e Processual Penal. Como o senhor vê a evolução dessa

matéria nas últimas décadas no Brasil, considerando a crise da segurança que o País

enfrenta?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Vejo com muita tristeza. Fiz um estudo

algum tempo atrás sobre a característica da evolução das leis penais no Brasil desde o

Império até a Constituição de 1988 e constatei que, desde as Ordenações Filipinas, na

época do Império, passando pelo Código de Processo Penal de 1932, pelo Código Penal

de 1830, pelo Código Penal de 1942, que é o Código que vige hoje, com as modificações,

pelas reformas penais que aconteceram até 1988, neste arco, em cujas extremidades estão

as Ordenações Filipinas e a Constituição Federal de 1988, toda a evolução do Direito

Penal foi positiva. As leis foram sempre elaboradas para o melhor no sentido de proteção

de garantias individuais, de respeito às liberdades fundamentais, inclusive durante as

ditaduras.O Código Penal que vige atualmente foi feito em 1940 durante a ditadura de

Getúlio Vargas, e representou um grande avanço em relação ao Código Penal de 1830

(Código do Império). Era moderno, apesar de ser criticado como sendo fascista, porque

inspirado no Código Penal da Itália, elaborado por Rocco durante a ditadura de Mussolini.

A verdade é que esse nosso Código foi um extraordinário avanço porque veio a permitir,

por exemplo, que o Juiz estabelecesse uma pena que representasse a proporção entre o

fato cometido e o resultado, entre o fato e a reação. Pelo Código anterior, do Império, as

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penas eram preestabelecidas, e o Juiz não podia, então, fazer aquilo que hoje se chama de

individualização da pena. Bastava constatar qual o fato e tinha que aplicar a pena. Com o

Código de 1940, o Juiz passou a levar em consideração o fato, o agente, a culpabilidade, de

tal maneira que cada autor tem a sua reprimenda, e não todos os autores, por um fato

idêntico, a mesma reprimenda, como acontecia no passado. Então, foi um grande salto.

De 1940 em diante, houve várias mudanças na legislação penal, e foram todas positivas,

inclusive durante a ditadura militar, que começou em 1964. Vou exemplificar rapidamente.

Foi no Governo dos militares, com a Lei n.° 6416, que se introduziu no Brasil, pela

primeira vez, o princípio da progressividade nos regimes carcerários: fechado, semi-aberto

e depois aberto. Nós não tínhamos isso. Os condenados cumpriam a pena na penitenciária

e depois obtinham a liberdade condicional. Foram os militares também – que não fique

aqui nenhuma impressão de elogio às ditaduras - que vieram a estabelecer a regra de que

o indivíduo que vier a ser preso em flagrante delito, se não tiver praticado um fato que,

por si só, autorize o decreto de prisão preventiva, tem que ser posto em liberdade. Foi

com os militares que se introduziu o parágrafo único do art. 310 do Código de Processo

Penal, que diz que quem for preso em flagrante, se o caso não autorizar a preventiva, ou

seja, a necessidade absoluta de prisão – garantia da ordem pública, aplicação da lei penal,

conveniência do processo -, tem que ficar em liberdade. Ou seja, o flagrante não prende

por si só. Quem for preso em flagrante vai permanecer preso cautelarmente apenas se

houver um motivo relevante estranho àquele fato. Eles quebraram a regra de que o

flagrante prendia por si mesmo! Os militares também vieram a estabelecer que todo

indivíduo que viesse a ser condenado em processo criminal que fosse primário e de bons

antecedentes poderia aguardar em liberdade o julgamento do seu recurso. Essa é uma

regra extraordinária, é uma regra humanista, porque toda pessoa, enquanto não for

julgada definitivamente, há de ser tida como presumivelmente inocente. Ou seja, vieram a

conceder por uma lei, de 1971, parece-me, o chamado efeito suspensivo à apelação

quando o réu é primário e de bons antecedentes.Seguindo as modificações positivas das

leis penais nessa evolução nós tivemos, em 1984, a primeira grande modificação do

Código Penal Brasileiro, que foi aquela que produziu a substituição de toda a parte geral.

Nesse momento, alinhamo-nos a toda a ciência penal moderna da Europa, especialmente

a dos alemães, trazendo para o nosso Código toda a moderna construção de Direito Penal.

A nova parte geral, que começou a viger em 1984 no Brasil, é reflexo dessa visão moderna

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dos alemães, especialmente a partir da recepção da teoria finalista da ação.Então, em 1984,

estamos na ditadura ainda, o nosso Código mudou e mudou para melhor. O Governo da

ditadura militar entregou ainda ao País uma Lei de Execuções Penais, desejada a anos, que

é o código disciplinador da atividade de execução, das relações entre o Estado e o

condenado, que estabelece a linha divisória entre aquilo que o Estado pode e o que não

pode fazer. Pois bem, aí veio 1988, uma Constituição Federal progressista, libertária,

humanista, extremamente desenvolvida, que nos levou a supor, evidentemente, que o

Direito Penal, a partir dali, iria acompanhar esses valores novos. E o que se percebeu foi

que, de 1988 para cá, boa parte da produção legislativa brasileira, no campo penal foi,

retrógrada, involutiva, contrária àquela que se processara durante os tempos da ditadura.

Revelou-se, portanto, esse grande paradoxo, o de um País que avançou no campo do

Direito Penal durante as ditaduras e regrediu nesse campo durante a redemocratização.!

Quais os exemplos que posso citar? Primeiro: surge a Lei dos Crimes Hediondos, que vem

tirar aquilo que a Revolução havia dado aos condenados brasileiros, que era o direito de

progredir nos regimes por crimes hediondos. Segundo, veio a lei da prisão temporária,

que permite que um Juiz decrete a prisão de alguém para ser realizada uma investigação.

Ou seja, inverteu-se o princípio de que a prisão de alguém deva acontecer quando,

realizada a investigação, há um processo e comprova-se a culpa, porque a regra é a

liberdade. Antes temos uma lei, em vigor até hoje, que permite que se prenda para

investigar, e não que se investigue para prender! Portanto, é uma lei que vai de encontro à

visão garantista que o Direito deve exercer. Nós tivemos também, nesta linha de leis

penais severas, a denominada Lei de Combate ao Crime Organizado. Essa lei foi

recentemente julgada pelo Supremo Tribunal Federal como inconstitucional. Por que isso?

Porque ela veio a declarar, em vários artigos, que nos crimes organizados o Juiz teria a

atribuição de realizar investigações, ele próprio, em procedimentos secretos. E as provas

desses procedimentos secretos só poderiam ser examinadas no dia do julgamento pelos

tribunais, quando houvesse recurso, “numa salinha” sem ninguém por perto. Ou seja, essa

lei colocou-nos de volta na Idade Média, quando, ao tempo da Inquisição, se ensopou de

sangue o chão de muitos países da Europa. Eram os inquisidores que investigavam, que

faziam o processo, que sentenciavam, porque obtinham a confissão das pessoas mediante

tortura, só não acendiam a fogueira porque a Igreja não punha a mão na sujeira. Então, ela

entregava o condenado para o chamado braço secular da Inquisição, que era o Estado,

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para ele realizar a execução. A lei de Combate ao Crime Organizado colocou-nos de volta

a esse tempo, porque o Juiz passou a inquirir, virou um juiz inquisidor, que investiga em

procedimentos secretos, como fazia a Inquisição, e não um juiz garantidor de direitos. Por

isso, foi julgada inconstitucional pelo Supremo. Há outras leis que são extremamente

punitivas. O Código de Trânsito Brasileiro é um texto que expressa, digamos assim, algo

inimaginável, ou seja, a transformação do Direito Penal em fonte de arrecadação. Nesse

código tudo é punido, tudo é sancionado com pena privativa de liberdade e com penas

pecuniárias muito elevadas como forma de o Estado fazer caixa, portanto, extremamente

punitivo. Há outras leis que caminham nessa direção. Verifica-se a tendência de retornar a

chamada prisão obrigatória por efeito de sentença. Aquilo que se deu em 1971 – o direito

da pessoa aguardar em liberdade o seu recurso - está para cair no Brasil hoje, porque

tramita no Congresso uma reforma do Processo Penal visando a restabelecer a prisão

obrigatória por efeito de sentença condenatória. Ou seja, um movimento que nos coloca

de volta àquele período que precedeu as grandes mudanças que se processaram antes de

1988. Então, vejo isso de forma negativa, porque o combate ao crime e à violência, no

meu modo de ver, não passa só pelo Direito Penal. O Direito Penal é o último

instrumento a ser usado nesse tipo de coisa. Mais: o Juiz tem que ser um agente de

garantia dos direitos, e não alguém que tenha por função fazer a política criminal dos

governos, aplicando leis penais severas. Quem tem que fazer a política criminal de

segurança pública é o Poder Executivo, e não o Poder Judiciário. Quando eu vejo uma

decisão não muito bem construída, porque há preocupação com a violência acima de

tudo, fico muito preocupado com a visão que esse Juiz tem do seu próprio papel. O Juiz

independente não é o que prende; o Juiz independente e corajoso é o que não prende.

Prender é a coisa mais fácil do mundo, é só escrever decreto a preventiva, assinar e mandar

expedir o mandado de prisão. Está preso o indivíduo! O Juiz independente, é o que

protege as liberdades fundamentais é o que não faz o do Direito Penal o instrumento para

solução dos problemas eminentemente sociais! Ou seja, o combate ao crime e à violência

passa por uma política de maximização do Estado social. No Brasil, nós temos um

modelo em que o Estado é penalmente máximo e socialmente mínimo, e deveria ser um

Estado socialmente máximo para poder ser, então, penalmente mínimo. Nessa lógica que

é moderna, que é garantista, que reflete as políticas dos países desenvolvidos, o Direito

Penal é o último soldado, é a última ratio. Quando todas as políticas sociais falharem - as

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crianças têm colégio, há uma política de empregos, as pessoas têm o mínimo de assistência

à saúde -, e surge a criminalidade, então, aí, sim, chama-se o Direito Penal. Agora, o que

não se pode é deixar de pôr em prática políticas sociais e chamar o Direito Penal como a

primeira solução, como a prima ratio, que é o que se vem fazendo hoje em nosso meio.

Para sintetizar, toda a produção legislativa brasileira no campo penal, de 1988 para cá,

segue essa diretiva: Direito Penal máximo e Estado social mínimo. Por isso que eu sou

muito cético com relação ao que possa acontecer daqui para a frente.

Memorial - Vou fazer umas perguntas que têm mais a ver com o tema que o

senhor está tratando agora para, depois, retomar a sua trajetória e outras questões.

Podemos entrar na questão do papel dos Juizados Especiais Criminais, para depois, então,

falar das penas alternativas, que eu acho que está ligada ao mesmo assunto.

Des. José Antônio Paganella Boschi - Pois é, então se poderia dizer assim:

“Bem, mas o Boschi disse há pouco que a produção legislativa brasileira foi negativa, foi

involutiva, que foi numa linha de Direito Penal máximo. Mas os Juizados Especiais

Criminais não foram assim o exemplo de uma lei penal extremamente importante para o

Brasil, moderna, libertária?” Eu diria que este é o discurso, o Juizado Especial Criminal

teria sido a grande revolução, alguns até disseram a revolução Copérnica do Direito Penal.

Eu tenho uma visão um pouco crítica dos Juizados Especiais Criminais e vou explicar por

quê. Até o advento da Lei dos Juizados Especiais Criminais, os tribunais brasileiros

vinham-se orientando pela tese de que infrações de pouca significação, não deveriam

interessar ao Direito Penal. E, em nome dessa política de crimes de bagatela, de condutas

com certa adequação social, de condutas aceitas pela comunidade, embora tidas como

criminosas, eles as vinham então descriminalizando e as afastando do aparelho repressivo.

Quer dizer, a teoria da bagatela, que era invocada para não punir pessoas por infrações de

baixa lesividade, vinha, portanto, alforriando do sistema judicial uma grande quantidade de

brasileiros que freqüentava as Varas Criminais. Aí veio a Lei dos Juizados Especiais

Criminais e concentrou toda a sua preocupação justamente em cima dos fatos que vinham

sendo definidos como de bagatela, como fatos de pouca importância social, como fatos

que estavam merecendo a aceitação social. Ou seja, as pessoas que cometiam esses delitos

como a discussão com o vizinho, a lesão corporal levíssima, o porte de uma bagana de

maconha, o furto de um objeto de valor praticamente insignificante, vinham-se libertando

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do Direito Penal, mas, com a lei do juizados, foram chamadas de volta para dentro do

aparelho repressivo. Hoje, nós temos nos foros brasileiros milhares de pessoas de um

estrato social bem definido, que é essa população mais pobre, que está à margem do

consumo dos bens da civilização. Ela foi chamada de volta para dentro do Judiciário, e os

Juízes brasileiros, que poderiam estar-se envolvendo hoje com processos de maior

impactação, de maior lesividade, estão abarrotados de processo por fatos de menor

potencial ofensivo. Então, a Lei dos Juizados Especiais Criminais veio com um discurso

positivo, mas gerou efeitos perversos. Trouxe de volta ao sistema milhares de pessoas que

se estavam libertando dele. Por isso que ela é, no meu modo de ver, uma lei que, se tem lá

o seu mérito,pode ser muito bem criticada por este viés. Ou seja, é uma lei com alta dose

de opressão sobre a população mais marginalizada .

Memorial - E as penas alternativas, como o senhor encara essa proposta e como

tem acontecido a aplicação dessas penas, e a sua discussão no Rio Grande?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Encaro as penas alternativas como uma

grande solução. Já deu para perceber que a minha concepção do Direito Penal é uma

concepção do Direito Penal mínimo, não que isso implique ausência de punição. Entendo

que o Direito Penal deve preocupar-se com as coisas importantes, com os fatos de

significação social, e que a única prisão não é a solução para a contenção de crime de

violência. Primeiro, porque a chamada função da pena tem que ser revista. A idéia de que

se pune o indivíduo para que ele não pratique mais a conduta criminosa é falsa. Um

delinqüente não lê o Código Penal antes para saber se tem vantagem praticando um crime;

pelo contrário, ele aposta que não vai ser pego pelo sistema. Então, tenho dúvidas a

respeito da tese de que a pena previne. Se prevenisse, não haveria crimes. Penso que a

pena privativa de liberdade só deve ser reservada para os casos extremamente graves, em

caráter muito excepcional. Por que isso? Pelo indiscutível e inequívoco fator criminógeno

do cárcere. Como é que nós vamos pensar em ressocializar uma pessoa - outra função da

pena ! Num ambiente de instituição total? Uma instituição total (o conceito é de um autor

americano) é totalitária, não há democracia lá dentro. Como é que vou recuperar alguém

sem que eu tenha, primeiro, a adesão dessa pessoa. Para que se possa ressocializar alguém

é preciso que haja a adesão do indivíduo e que dentro da instituição haja democracia.

Chego a me perguntar: será que o Estado teria o poder de ressocializar uma pessoa? Ainda

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que eu admitisse, por hipótese, que a pena de prisão cumprisse esse papel, que eu pudesse

assim, hipocritamente, admitir que há projetos para recuperação, que há programas e

acompanhamento para isso, que os condenados aceitam cumprir esses projetos, alguém

perguntaria assim: pode o Estado ressocializar uma pessoa? Pergunto se o Estado estaria

autorizado a mudar a cabeça de alguém ou se não teria que reconhecer em todos o direito

à diferença. Eu não teria o direito de ser o que sou, de ser diferente, mesmo tendo que

suportar as conseqüências! Se eu admitir que o Estado pode mudar a cabeça de alguém, se

eu aceitar que o Estado, com esse aparato burocrático, com ideologia bem definida, pode

mudar a cabeça de alguém, condenado ou não, eu não vou ter mais limites para isso. E o

Estado que pode mudar a cabeça de alguém é o Estado totalitário, porque é invasivo, faz

do homem um objeto. Então, além de não acreditar que a pena ressocialize, eu questiono

o poder estatal de ressocializar, pelo que, portanto, a mim, parece que a pena de prisão

tem que ser aplicada em último lugar, como última solução para casos muito graves,com

um caráter bem específico: punitivo, retributivo. A pena de prisão tem que ser punitiva,

mas, atenção, não é uma punição como Immanuel Kant queria. Repito, a pena de prisão

não deve ser aplicada como primeira ratio, primeira alternativa, e sim para os casos mais

graves, para que ela cumpra uma função retributiva - dado que eu nego a função

preventiva e recuperadora das penas privativas de liberdade -, mas uma retribuição não

como propunha Immanuel Kant. Ele dizia, por exemplo, que, se todas as pessoas

tivessem que um dia ir embora de uma ilha, todas menos a que tivesse praticado algum

crime, essa pessoa que ali haveria de permanecer, a criminosa, assim mesmo, teria que ser

castigada. Immanuel Kant propunha, portanto, o castigo pelo castigo. Era uma função de

pena com caráter vingativo, retributivo: o castigo pelo castigo. E ele exemplificava dessa

maneira, com essa parábola. Eu não proponho isso. Proponho uma punição impregnada

de finalidade. Mas que finalidade é essa? Consigo explicar teoricamente isso apoiado nas

lições de um jurista italiano, Luigi Ferrajoli, que escreveu um livro interessante cujo título

é Direito e Razão.Ele explica de uma forma genial por que a pena privativa de liberdade tem

de ser retributiva, para não ser hipócrita e precisar sustentar o seu caráter recuperador. Diz

que o Direito Penal tem que ser chamado a agir com uma pena qualquer, inclusive a pena

privativa de liberdade, porque a pena tem que cumprir uma função de castigo. A pena tem

que castigar o criminoso para evitar que as demais pessoas não-criminosas venham a

impor o castigo. Daí a “sua” finalidade. Até o advento da modernidade, com a Revolução

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Francesa, toda a história do Direito Penal estava calcada em cima do abuso, do excesso.

Até a Revolução Francesa, a história das penas é mais horrorosa do que a história dos

crimes pelo seu aspecto desmedido e desumano. Com a modernidade, o Direito Penal

encontrou certos limites. Em função do pacto social, optamos pela civilização em

detrimento da barbárie. Então, o Direito Penal moderno preocupa-se em assegurar a

vantagem do pacto civilizatório sobre a barbárie. Pune o autor do crime, porque, punindo-

o, evita a barbárie, evita que as pessoas punam de forma excessiva, como no passado. Por

isso que a idéia de um direito penal de garantias repousa na seguinte afirmação: pune-se o

criminoso para que ele seja vingado, seja então castigado, mas é uma punição que tem que

ser feita com muito cuidado. É uma punição que visa – vou utilizar as palavras do

Ferrajoli – seguir a seguinte lógica a punição que cause ao réu o menor sofrimento

possível para poder atender à expectativa dos não-criminosos. Quer dizer, punir com o

menor sofrimento possível para a maior felicidade possível dos não-criminosos. Se for

possível conciliar as duas coisas, a satisfação dos outros, vendo que alguém está sendo

punido, com pena, não sendo maior do que a necessária, teremos um Direito Penal de

garantias. Um Direito Penal humano, impregnado de finalidade retributiva, voltado para a

modernidade, e não para essa teoria de recuperar, de prevenir, que são construções que

não têm nenhuma correspondência com a realidade prática. É uma justificativa. Estou, de

certo modo, fazendo uma justificação ética para o Direito Penal, preservando a idéia de

proporção também em Direito Penal

Memorial - Mas dentro de uma visão específica.

Des. José Antônio Paganella Boschi - Uma visão específica do modo como ele

atua. Justifico eticamente o Direito Penal assim: um instrumento que vise a assegurar a

vantagem do pacto sobre a barbárie. E aí podemos avançar e chegar a uma outra

conclusão: se o Direito Penal é isto, um instrumento que visa a assegurar pelo castigo a

vantagem do pacto social, o Código Penal tem que funcionar não como um instrumento

colocado à disposição do Estado para punir os outros como bem entender; o Código

Penal tem que funcionar exatamente, como disse um autor alemão chamado Von Litz, em

1835 isto é, como a carta magna do criminoso. Parece um absurdo eu dizer que o Código

Penal é a carta magna do criminoso. Mas não é. Se me perguntassem assim: você prefere

viver num país que não tenha código penal ou prefere viver num país que tenha um

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código penal péssimo? Eu diria: prefiro viver num país que tenha um código penal

péssimo, porque, se eu fosse viver num país sem código penal, eu não teria como

controlar os excessos do Estado na punição. Mas, vivendo num país que tem um código

penal péssimo, eu tenho, no mínimo, alguns escudos de proteção, porque o Estado não

pode ir além daquilo que está escrito no código, ainda que péssimo! Portanto, o sistema

penal tem que estar voltado para o quê? Para a defesa das liberdades fundamentais. Ele

tem que ser acionado sempre de forma mínima. E o castigo não pode ser mais intenso do

que a necessidade. Por quê? Porque esses sistemas penais são criados para assegurar a

vantagem à civilização, e não para que o Estado puna do jeito que bem entender. E é

nessa perspectiva que o Von Litz dizia, numa frase que custou a ser entendida, que o

código penal é a carta magna do criminoso, porque defende o criminosos contra os

excessos de punição do Estado.

Memorial - De acordo com essa visão, a tendência do Estado é ser pior do que

um péssimo código penal seria na hora de punir os criminosos?

Des. José Antônio Paganella Boschi - A tendência do Estado é ser aquilo que o

Hobbes dizia, ou seja, assumir o papel de Leviatã. Se pudesse não ter o código, ele não

teria. Toda a práxis brasileira evidencia isso. Não é por nada que o Judiciário tem sido

muito chamado nas relações sociais hoje. O Estado está cada dia mais presente. A ação do

Estado na sociedade hoje é tão intensa que o Judiciário está a toda hora sendo chamado

para conter os excessos. Se não houvesse limites, ninguém conseguiria suportar a vida no

País.

Memorial - O senhor traz exemplos da teoria política, a escola do Hobbes agora,

e, antes, falava de todo o processo constituinte. A que o senhor atribui a sua preocupação

tão forte com as questões políticas? À sua experiência, na juventude, trabalhando com o

Governador e próximo a políticos? Pergunto-lhe isso porque, muitas vezes, no seu

discurso, o senhor estabelece relações do Judiciário, com a sociedade e com outras

organizações.

Des. José Antônio Paganella Boschi - Acredito que todas as experiências que

tive na vida foram contribuindo para essa visão social do sistema de justiça, da própria

ação do Ministério Público. Sim, eu me envolvi muito com atividades na área político-

partidária quando era moço, e isso me ajudou muito a saber como me comportar na

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minha atividade como Promotor, que foi a atividade pública que exerci logo em seguida,

deu-me muita consciência do meu papel e dos meus próprios limites, aprendendo que o

poder tem que ser exercido com moderação e não com imoderação. A minha atividade

classista na Associação dos Promotores ensinou-me também a exercer a política classista;

depois, a minha atividade na Magistratura, fato de eu ter dirigido a Escola da Magistratura,

enfim, essas experiências todas que se foram acumulando, sem dúvida nenhuma,

propiciaram a construção de uma visão social do papel dos agentes políticos. Mas talvez a

minha idade seja a principal responsável pela minha percepção desse papel social do Juiz e

do Promotor. Aos cinqüenta e cinco anos de idade pude tirar algumas conclusões que

nem sei se estão corretas, mas que pelo menos estão bem demarcadas!

Memorial - Realmente, o senhor demarca muito bem, parece que tem uma visão

muito clara de qual é a sua posição como magistrado, como agente do Judiciário frente à

sociedade, frente às outras forças políticas.

Des. José Antônio Paganella Boschi - Para mim, esse período da minha vida –

ter sido Promotor e depois ter sido Juiz – foi uma experiência extraordinária. Agora, como

advogado, estou ocupando outra posição dessa tríade, e o faço pelo inverso, deveria ter

sido advogado antes, para depois ser Promotor e depois ser Juiz. Então, quem se envolve

na atividade de Ministério Público, de magistrado e de advogado, enfim, quem atua na

área social, e o Juiz atua na área social, o Promotor atua na área social, o advogado atua na

área social, acaba-se familiarizando, de algum modo, com esses temas e, por obrigação,

tem de se posicionar. Basicamente isso. Agora, debati muito - e foi também um momento

muito feliz da minha vida - essas questões sociais e o papel do Ministério Público, do Juiz,

do advogado na sociedade quando fiz o meu mestrado. Toda a temática que desenvolvi

nessa época foi em cima da função social do magistrado, do Promotor. Penso que isso, de

algum modo, também ajudou a demarcar, a delimitar bem esses meus horizontes.

Memorial - Em que época foi?

Des. José Antônio Paganella Boschi - O mestrado eu fiz há três anos aqui em

Porto Alegre, na PUC. Foi uma experiência que recomendo! A academia ajuda muito a

pessoa a revisar seus pensamentos. Eu tinha até então uma visão talvez muito dogmática

das coisas e na Academia pude fazer incursões que no cotidiano talvez não tivesse feito.

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Memorial - O senhor foi nomeado para o Alçada, não é?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Fui nomeado em 1994.

Memorial - Como foi?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Eu havia concorrido pela segunda vez a

Procurador-Geral da Justiça e havia sido o mais votado entre todos os candidatos. E havia

uma expectativa muito grande na classe de que eu fosse nomeado Procurador-Geral. A

lista foi encaminhada para o Governador, e ele acabou nomeando o terceiro colega da

lista, contra quem eu não tenho nada, evidentemente. O colega fez um ótimo trabalho,

ganhou muito o MP com ele. Aconteceu, então, que, em seguida, o Tribunal de Justiça

comunicou ao Ministério Público que havia aberto vaga na classe de magistrado do quinto

constitucional do MP. Acredito que o Conselho Superior do Ministério Público, talvez

imaginando que isso representasse uma forma de desagravo, por não ter sido nomeado

Procurador-Geral, e colocou-me na lista sêxtupla.Confesso que não movimentei nenhuma

peça para que isso acontecesse, porque eu estava na condição de Procurador de Justiça na

3ª Câmara Criminal no Tribunal de Justiça e dava-me muito bem com os Colegas da

Câmara, com os Desembargadores, gostava muito do que fazia. Não havia pensado em

seguir a carreira da Magistratura; pelo contrário, eu pretendia concorrer outra vez a

Procurador-Geral, ficar no MP e aposentar-me lá. Por essas coisas do destino - por isso

que eu dizia: não sei se não está nas estrelas -, o Conselho incluiu o meu nome na lista

sêxtupla. Ela veio para o Tribunal, e também aqui não fiz nenhum contato, não pedi voto

para nenhum dos Desembargadores, mas o Órgão Especial do Tribunal de Justiça incluiu-

me na lista tríplice com uma votação muito significativa: de vinte e quatro dos

Desembargadores presentes, fiz vinte e três votos. Quando fiquei sabendo disso, percebi

que aquilo representava, de certa forma, uma demonstração de apreço do Tribunal, o que

me deixou muito gratificado. Mas eu não tinha essa expectativa de ser nomeado, porque o

Governador era o mesmo que não me tinha nomeado Procurador-Geral. Qual não foi a

minha surpresa quando, no dia seguinte ao envio da lista para o Palácio Piratini, o próprio

Governador telefonou para a minha casa, dizendo que me tinha nomeado Juiz de Alçada.

Então, tomei posse em dezembro de 1994 como Juiz de Alçada. Com a unificação dos

Tribunais, vim para o Tribunal de Justiça.

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Memorial - E a que se atribui a extinção do Alçada? Essa é uma questão que

também é instigante. Como o senhor interpreta isso?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Acho que foi uma coisa boa para todos.

A Administração Pública ganhou, porque houve uma centralização de orçamento, uma

unificação de administração. Para os advogados também ficou bom. Eles não têm mais

que correr de um Tribunal para o outro, está tudo no mesmo prédio, há uma única

distribuição. Acho que os Colegas também ganharam, porque eles se distribuíram por

Câmaras especializadas, e o Tribunal ficou muito mais ágil. Acho que o Estado também

ganhou, porque não há mais conflitos de atribuição, de competência.

Memorial - Existia muito isso?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Muito. Iniciava um processo numa

Câmara do Alçada, que dizia que não era de sua competência e mandava para o Tribunal

de Justiça. Era um passeio de processos o tempo todo. Acabou isso também.

Penso também que a juvenilização que aconteceu no 2º Grau foi boa para o

Judiciário. Não que eu tenha algo contra os mais antigos. Absolutamente, não. Mas acho

que foram positivas para o Judiciário As correntes novas de pensamento jurídico, que hoje

permitem dizer que o nosso Judiciário é plural. Na Magistratura em geral, há uma

pluralidade enorme de pensamento. A Magistratura do Rio Grande do Sul, que é muito

elogiada, muito reconhecida em todo o Brasil, é assim devido ao respeito a pluralidade,

pela possibilidade de cada um poder articular o seu pensamento, ter a sua tese. Ninguém

quer ensinar ninguém. Cada um é livre para pensar, para fazer o que bem entende dentro

da moral e do direito. Então, penso que foi muito bom para todos. E ainda há avanços

por acontecer. Imagino que, em breve, se possa ter aqui aquilo que é uma aspiração dos

Juízes – que é tema recorrente na AJURIS –, que é a maior democratização interna, com

eleições dentro do Poder Judiciário. Não só para Presidente do Tribunal pela classe – isso

um pouco mais distante -, mas, agora, mais urgente, para o Órgão Especial, que é formado

pelos vinte e cinco Desembargadores mais antigos. Parece-me que a unificação dos

Tribunais está ainda para acontecer definitivamente,que essa providência. Eu diria que a

unificação foi um primeiro passo. É preciso dar um segundo passo, que virá com a

eleição. Por que isso? Porque a unificação apenas transformou Juízes de Alçada em

Desembargadores. A administração do Tribunal ainda continua com os vinte e cinco mais

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antigos, que pertenciam ao antigo Tribunal de Justiça, porque são eles que ocupam as

posições no Órgão Especial, e toda a política do Judiciário é feita ali. É o Presidente e o

seu Órgão Especial. A parte orçamentária, enfim, as demandas do Judiciário, a parte de

infra-estrutura, toda ela acontece ali. Nada contra os vinte e cinco do ponto de vista

pessoal, mas eles ainda expressam o pensamento político-ideológico do Tribunal antes da

unificação. A mim parece que, se conseguirmos instituir a eleição, o acesso de todo e

qualquer Desembargador, pela eleição, ao Órgão Especial, realizaremos aquilo que é a

condição para a efetiva unificação, que é o segundo passo.

Memorial - Sobre esse tempo, desde seu ingresso no Tribunal de Alçada, em

1994, o que o senhor pode-nos falar a respeito de sua atuação profissional no dia-a-dia?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Foi um tempo que me permitiu fazer

uma comparação entre o que eu fazia antes e o que eu passei a fazer depois. Então,

cheguei à seguinte conclusão: a atividade do Ministério Público, de Promotor, é muito

gratificante no 1º Grau. O Promotor tem uma consciência social muito intensa e faz um

trabalho maravilhoso com as crianças, com a comunidade local, com o presídio, enfim, faz

um trabalho no processo e na sociedade. Depois, ele vem sendo promovido e chega a

Porto Alegre. E o último degrau da carreira é Procurador de Justiça. O papel dele é muito

pobre, porque fica fazendo pareceres para as Câmaras e, quando o parecer não é acolhido,

nem sempre pode recorrer. Então, ele vira um assessor jurídico do Tribunal. No fundo, é

isto: no 1° Grau, a atividade é muito mais gratificante do que no 2° Grau. Na

Magistratura, é o contrário. O Juiz inicia a sua carreira e o faz de forma muito reservada,

de certo modo muito distante da comunidade, e esse é um erro dos juízes: não se

aproximar do povo, ficar muito confinado no seu gabinete, na sua casa, não dar

entrevistas. Aliás, sempre se dizia, que Juiz não fala, a não ser nos autos, só fala no

processo. Isso é errado. Ele tem que se comunicar com a sociedade, tem que se aproximar

dela. No Interior, talvez como forma de se preservar, ele fica muito distante do povo, não

debate nem troca idéias com ninguém, a não ser, às vezes, com o Promotor, de quem é

amigo, como aconteceu muito comigo. Fiz boas amizades com os Juízes e trocávamos

idéias. Posteriormente vem a promoção para comarca intermediária, e depois para Porto

Alegre, quando vem para o Tribunal. Aí, dá-se a grande realização do Juiz, ao contrário do

Promotor, porque o trabalho de Câmara, o trabalho de discussão pública de uma tese com

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os colegas na sessão é fantástico. A idéia de você poder debater, respeitar a posição

contrária e aprender com os colegas é extraordinária. É muito fecunda a atuação no 2º

Grau nos Tribunais desde que se tenha uma visão democrática das coisas, desde que se

aceite a posição do outro e que se tenha humildade para reconhecer que se está errado e

até voltar atrás, se for o caso. Quem não tem uma visão fica mal posicionado no

colegiado; quem tem um pensamento democrático se dá muito bem. No meu caso, pude,

então, comparar as funções. Eu fazia uma coisa e passei a fazer outra. Percebi que cada

Instituição tem a sua singularidade, e todas são importantes, mas a mim, particularmente,

agradou muito a função da Magistratura. Encantou-me essa participação na Câmara, a

discussão pública, a aceitação da idéia do outro e a mudança do próprio pensamento. Isso

foi positivo do ponto de vista pessoal. Por outro lado, foi uma atividade extremamente

tensionante pela angústia de decidir. O Juiz não se pode eximir do dever de julgar porque

o processo é muito difícil ou porque não se sente preparado. Se o processo é de sua

competência, ele tem de julgar. Em muitíssimas oportunidades, perdi sono para saber o

que fazer com determinado processo. E por que isso? Pela consciência de que o

julgamento tem de ser sério. Há dois modos de julgar. Não faria isso com os Colegas, mas,

se um dia eu tivesse que classificar os Juízes em duas categorias, eu as distinguiria assim:a

dos Juízes formalistas e a dos Juízes realistas. Como é que eu me organizaria, e trabalharia,

como é que eu julgaria se fosse um Juiz formalista? Eu diria simplesmente o seguinte: este

fato que chegou aqui encontra subsunção no artigo tal da lei tal e, num juízo lógico, tenho

que julgar deste modo. Vou contar um caso que julguei: um indivíduo com sessenta e

poucos anos de idade, do Interior do Estado, agricultor, de passado absolutamente limpo,

nunca tinha praticado nenhum crime, um dia foi tomar uns tragos com um amigo num

bar perto da sua casa - não era dado ao hábito da bebida alcoólica -, bebeu além da conta,

voltou para casa no entardecer e encontrou, na frente da casa, várias crianças – de oito a

doze anos - que estavam brincando. Como tinha bebido demais, pegou uma dessas

meninas no colo, ergueu e, quando a estava colocando de volta no chão, deu um beijo

rápido na sua boca. O pai, que estava perto, junto com outros vizinhos que testemunham

a cena, naturalmente, manifestou a maior inconformidade, foi à Delegacia de Polícia e

registrou uma ocorrência. Abriu-se o inquérito policial contra esse cidadão. Ele foi

chamado para depor e confessou que tinha realmente feito aquilo, admitiu, pediu

desculpas, disse que estava bêbado. Os vizinhos depuseram, confirmaram o fato, e ele foi

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indiciado pelo crime de atentado violento ao pudor, porque o beijo lascivo é tido pela

doutrina e pela jurisprudência como atentado ao pudor, o que, pela Lei dos Crimes

Hediondos, é definido como crime hediondo. Pois bem, esse cidadão foi denunciado e

condenado num processo que não tinha mais de quarenta páginas. As alegações

preliminares não tinham rol de testemunhas, os depoimentos foram todos curtinhos, de

três ou quatro linhas cada um, a sentença foi de uma lauda, e ele foi condenado à pena de

seis anos de reclusão em regime semi-aberto. A defesa foi intimada e não apelou. Só o

Promotor recorreu, querendo que o Tribunal fixasse o regime fechado, porque o beijo

lascivo é crime hediondo, e o crime hediondo leva ao regime fechado. O Procurador da

Câmara deu um parecer dizendo: “Tem razão o Promotor, tem que dar provimento à

apelação e impor ao réu o regime fechado”. Os autos vieram para mim, e eu, como

Relator, tinha que levar aos Colegas uma proposta, uma decisão. Eu tinha a primeira

alternativa: Juiz formalista: o fato é beijo lascivo. Pela doutrina, beijo lascivo é crime de

atentado ao pudor. A jurisprudência diz que isso é assim. É crime hediondo? Sim, está na

lei, portanto a pena tem que ser de seis anos mesmo e o regime tem que ser inteiramente

fechado. Ou seja, é um raciocínio lógico. Estou constatando os fatos, fazendo subsunção

deles aos textos legais e aplicando a conseqüência. Pergunta: é justa a decisão? É justo

condenar esse homem pelo que fez a seis anos de reclusão em regime inteiramente

fechado num presídio, em contato com bandidos da pior espécie? Está adequada a

resposta penal? É proporcional a resposta estatal? Então, vem a segunda alternativa de

Juiz. A de examinar o caso não como um Juiz formalista, mas como um Juiz realista. Mas,

para examinar como Juiz realista, tenho que encontrar a solução justa e legal ! Tenho que

fazer uma construção jurídica plausível, razoável – até porque eu não posso me expor –

que concilie dois extremos: de um lado, a lei e o interesse social na punição; de outro, a

idéia de justa proporção. Nesse caso concreto, num esforço enorme, conseguiu-se na

Câmara desclassificar o fato para contravenção penal. Fez-se uma reinterpretação para

que ele fosse punido com uma pena de multa e não tivesse que ficar na penitenciária. Isto,

de ter que decidir com justiça, é uma coisa extremamente tormentosa, extremamente

angustiante, mas posso dizer que consegui atravessar bem essa turbulência, porque sempre

me preocupei em agir como um Juiz realista, com instinto de justiça. Nunca quis ser um

Juiz formalista. Sempre estive voltado para a idéia de justiça, porque acho que, se alguma

coisa justifica que eu esteja ali julgando, integrando um sistema judiciário para poder

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resolver a vida das pessoas, é o fato de, afinal de contas, fazer a coisa bem feita, com senso

de proporção, justiça e eqüidade. Então, foi a atividade judiciária um momento fecundo da

minha vida, porque também pude enxergar essas coisas. Talvez não enxergasse bem se

tivesse sido só Promotor. Como Promotor, eu tinha um compromisso, eu era o defensor

da sociedade, eu tinha que articular uma pretensão, eu queria tal coisa, e o Juiz que

resolvesse. Se ele resolvia de um jeito que me satisfazia, eu não recorria; se ele resolvia de

um jeito que não me satisfazia, eu recorria e deixava que um outro órgão do Judiciário

resolvesse do jeito que entendesse ser o melhor. A minha função, a minha tarefa estava

pronta. Como Juiz, vivi o outro lado, o lado de quem tinha que dar a solução. Então, não

me satisfazia a idéia de que bastava fazer uma adequação formal dos fatos à lei, num

silogismo lógico, porque eu percebia que, se fosse agir desse modo, eu poderia

sacramentar a injustiça. Então, preferi fazer aquilo que eu acho que todo Juiz tem de fazer:

antes de ser juiz das leis, ser juiz da Constituição. O Juiz, antes de ser juiz dos fatos, tem

por função assegurar a supremacia dos direitos fundamentais. A função do Juiz, encarada

como juiz da Constituição, é a de fazer com que, em nome dos direitos fundamentais das

pessoas, as leis se ajustem à Constituição, e não o contrário, como se vê em muitos

julgados. Em muitas decisões, vê-se toda uma preocupação de validar textos

inconstitucionais em nome de certas políticas, com desprezo à Constituição. Admiro

muito os Juízes que trabalham muito menos com a dogmática e muito mais com os

princípios gerais. Hoje, o Direito moderno é muito menos dogmático e mais

principiológico. E quem trabalha assim faz justiça com muito mais facilidade, porque os

princípios jurídicos, ao contrário do que se afirmava há alguns anos, não são só critérios

para se interpretar as leis; os princípios hoje são normas jurídicas, que atuam com essa

força normativa. Assim, eu posso, com base num princípio que pode sequer estar

positivado em lei, resolver uma questão concreta, afastando a vigência de uma lei. Por

exemplo, hoje, no mundo todo, fala-se no princípio da proporcionalidade. Não há um

jurista que não conheça esse princípio e que não recomende que a solução a ser

encontrada seja adequada, proporcional. Se, ao aplicar uma lei, chego a uma solução

desproporcional, posso, com base no princípio, não aplicar a lei. Esse princípio não está

escrito em nenhuma lei no Brasil. Ele é um princípio base, um princípio reitor que

disciplina todo o sistema jurídico, sem embargo disto. Alguns dias atrás, tive um caso

concreto que me permitiu usar esse princípio. Trata-se da questão que envolve as

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queimadas de campo aqui no Rio Grande do Sul. Os fazendeiros estão sendo multados

pela Polícia Militar, obrigados a pagar a quantia de um mil reais por hectare de capim

nativo queimado. Então, quem ateou fogo em dez hectares para queimar pastagem seca a

fim de que venha o pasto novo terá que pagar dez mil reais. No atual contexto brasileiro,

em que não há políticas agrícolas bem definidas, em que a produtividade do campo é

baixa, em que a renda do produtor é muito pequena, obrigar alguém que ateou fogo no

campo nativo para renovar a pastagem a pagar uma multa de um mil por hectare de

campo é algo absolutamente inimaginável. As pessoas que vivem no campo hoje não têm

condições de pagar esse valor, não têm rentabilidade para isso. Então, sustentei que o

decreto federal que estabelece essa multa é inconstitucional porque agride o princípio da

proporcionalidade. Isso está para ser julgado aqui no Tribunal do Rio Grande do Sul. Ou

seja, um princípio não escrito, não positivado, tendo a força, quem sabe, de arredar texto

da lei ordinária. O que indica, então, que o Direito, hoje, não é só texto escrito, ele é muito

mais principiológico. Quem trabalha com os princípios encontra mais facilidade para ser o

Juiz realista, e não o Juiz formalista!

Memorial - Queremos agora abordar um ponto, que é a sua experiência na Escola

Superior de Magistratura. O senhor pode falar um pouco sobre isso?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Também vivi na Magistratura uma

experiência classista semelhante a vivida no Ministério Público. Comecei quando fui

convidado para dirigir a Revista da Ajuris. Fui Diretor da Revista da Ajuris durante dois

mandatos, do colega Cláudio Baldino Maciel e do colega Antônio Guilherme Tanger

Jardim. Devem ter gostado do meu trabalho, e acabei sendo convidado então pelo hoje

Des. Difini para concorrer com ele na chapa que substituiria o Des. Jardim. Eu disse para

ele: “Olha, Difini, tenho um problema: sou oriundo do Ministério Público e sei que você

não ignora que ainda há algumas resistências na Classe aos que vem do quinto

constitucional, essa coisa corporativista, porque o pessoal do quinto, segundo dizem

alguns não fez concurso para a Magistratura e está ocupando o lugar dos Juízes nos

tribunais. Então, acho que é um pouco perigoso que você leve avante essa sua idéia”. Ele

insistiu, dizendo que o seu grupo queria que eu fosse o diretor. Então, aceitei a indicação.

Quando a chapa foi divulgada, a oposição, que estava até então quieta, resolveu articular-

se e lançar um candidato próprio, com o argumento de que assim agia porque se estava

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tentando levar para a Escola da Magistratura um Promotor de Justiça. E aquilo que eu

imaginava que pudesse acontecer acabou acontecendo: houve um movimento de certo

segmento da classe, reagindo corporativamente contra a presença na Escola de alguém

que tinha sido Promotor, embora fosse um Juiz. Só que esse fato acabou gerando uma

conseqüência às avessas, porque a imensa maioria dos Juízes do Estado do Rio Grande do

Sul acabou não aceitando esse tipo de coisa. Com isso, o Difini foi eleito com votação

extraordinária. Muitos Juízes ligavam para a minha casa e diziam que estavam votando

conosco como forma de me desagravar. Aí fui dirigir a Escola. Foi um trabalho muito

cansativo. Fiquei lá dois anos praticamente sem fim-de-semana, sem férias, atividade

intensa o tempo todo. Nós fizemos algumas coisas importantes. Por exemplo, foi na

minha gestão que a Escola fez dois concursos públicos para a Magistratura fora do

Estado. Um no Acre e outro no Estado do Piauí, os quais dirigi à distância, aqui de Porto

Alegre. Formamos uma equipe que ia para lá, preparava as provas, preparava os recursos,

as notas, examinava documentos, entrevistava candidatos. Foi um trabalho extremamente

extenuante, cansativo, mas que valorizou e projetou muito a Escola em termos nacionais.

Daí que ela vem sendo convidada para fazer concursos em outros Estados, o que foi bom

para a Magistratura. Havia lá muitas pendências com funcionários, dívidas antigas a pagar,

e fomos liquidando as pendências e conseguimos fazer uma gestão muito boa.

Terminamos o trabalho com bom saldo em caixa, aumentamos o número de alunos, de

cursos, fizemos um trabalho de reposicionamento da Escola na comunidade via

divulgação em outdoors, rádio, televisão, enfim, tornando sua presença mais ativa na

comunidade.Foi uma gestão assim marcada de algum modo por uma certa dose de

ousadia com muitos cursos para magistrados, inclusive no Interior, e para funcionários.

Foi muito bom ter estado lá, aprendi muito e acho que a minha passagem serviu para, de

algum modo, também consolidar a minha presença na Magistratura, de modo que hoje

sou muito bem aceito por todos, dou-me bem com todos os colegas, graças a Deus.

Memorial - Qual foi o período em que o senhor atuou na Escola?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Isso foi nos anos de 2000 e 2001. Em

dezembro de 2001, transmiti o cargo.

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Memorial - Os Juízes atuam em áreas como a eleitoral, por exemplo, para as quais

não há uma formação específica nas universidades. Como a Escola enfrenta esse tipo de

questão?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Ela tenta suprir essas deficiências, daí

porque a Escola exerce um papel extraordinário. Na verdade, ela supre a omissão do

Estado. Rigorosamente, o Estado, que é a instituição a que se acham vinculados os Juízes

- quando falo Estado, falo Poder Judiciário -, deveria ministrar aos seus agentes todas as

informações para que se pudesse então bem operacionalizar a sua atividade, o seu

quotidiano na área eleitoral, na área penal, na área civil etc. Portanto, o Judiciário deveria

ser órgão aparelhado para manter o seu corpo de agentes devidamente informados,

devidamente preparado para cumprir o seu papel no dia-a-dia. Como não o faz

diretamente, é a Escola da Magistratura, claro, apoiada pelo Judiciário, que substitui o

Estado, que planeja e os executa. A Escola é quem atua, em nome do Judiciário,

municiando a Magistratura, quer dizer, fornecendo para ela os conteúdos técnicos nas

diversas disciplinas para que cada Juiz possa cumprir o seu papel.Nós fazemos cursos nas

áreas de Direito Civil Constitucional, Penal, Eleitoral etc...Claro que não é só porque a

Escola ministra os cursos que se pode dizer que os Juízes são preparados. Evidentemente

que cada um tem que fazer a sua preparação diária. A atividade nossa não dispensa o

contato diário com textos, livros, enfim, não dispensa a troca de experiências com outros

colegas, inclusive de outros Estados. Cada um, portanto, tem que ter iniciativas próprias.

A Escola acaba completando de algum modo a formação, capacitando os Juízes para

atividades bem específicas. Nessa medida, ela se justifica como um importante órgão

estatal de justiça.

Memorial - Quais são, na sua opinião, as principais lacunas que a Escola procura

preencher na falta dessa ação do Estado? Eu falei da área eleitoral, o senhor citaria mais

alguma questão importante?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Acredito que à Escola está reservado, no

momento, um outro grande papel, que tem a ver com o formato que penso que deva ser

dado para o Judiciário daqui para a frente. Tem a ver com a formação e treinamento que

os Juízes precisam para um trabalho voltado menos para o litígio e mais para o consenso.

Vejo a Magistratura do futuro bem diferente do que ela é hoje, e as escolas têm que

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participar intensamente nisso. Como é que vejo o Judiciário no futuro? Não consigo vê-lo

operando da mesma forma que hoje. Alguém tem um problema qualquer, tem que

contratar um advogado, ingressar com uma ação, tem que ser feito um processo, que vai

ter o parecer de um Promotor, que vai para um Juiz dar uma sentença, dela vai caber um

recurso, que vai para um tribunal, que tem que ter um Procurador para dar parecer, que

tem uma Câmara formada por três que vão examinar e dar uma decisão, de que pode

caber um recurso, que pode ir para o STJ, que tem mais um Procurador, que tem mais três

Ministros... Não pode continuar assim! A quantidade de demandas sociais é tão grande, há

uma judicialização das relações sociais tão intensa que o Judiciário não pode mais

continuar assim com no modelo romano: para cada lesão um processo, para cada processo

uma sentença imposta de cima para baixo, antidemocrática, que não vai satisfazer nem o

autor, que achou que ganhou pouco, nem o réu, que achou que não devia ser condenado.

Assim não se vai satisfazer ninguém. O Judiciário tem que trabalhar voltado menos para o

litígio e mais para o consenso. Proponho um Judiciário assim: primeiro, que julgue um

processo e que, ao julgá-lo, resolva a situação de centenas de pessoas. Eu proponho um

novo tipo de ação, a chamada ação coletiva, que o MP pode propor, que entidades de

classe podem propor, vários legitimados podem propor. Uma ação coletiva. Se a

companhia telefônica não está cumprindo com o seu compromisso de instalar, como

prometeu, o ADSL turbo no bairro tal, que tem milhares de clientes com problemas, uma

única ação proposta contra ela tem que cumprir esse papel de resolver ao mesmo tempo a

situação de todos. Portanto, com um único processo, o Judiciário resolveria aquilo que

hoje tem que resolver com quinhentos ou seiscentos processos. Essa é a primeira

questão.Segunda questão, desejo que o Juiz do futuro seja alguém muito mais preocupado

com o consenso e menos com o litígio. Quero que o Juiz seja alguém que, quando as

partes chegam ao gabinete para uma primeira audiência, seja um negociador, um

conciliador, que ele se preocupe muito menos em fazer uma audiência rápida − em dois

minutos, porque há mais processos − e mais em gastar, quem sabe, uma ou duas horas

para evitar o processo. Se ele perceber que pode gastar duas horas e ficar dispensado de

toda a burocracia com esse futuro processo e com os outros futuros processos e dar mais

efetividade para a sua decisão, porque ela vai ser logo cumprida, ele será mais um

negociador e menos um conflituador. Será mais democrata, porque o Juiz que conversar

com as partes ao longo de uma hora, vai aparar arestas, resolver o problema. Será o Juiz

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que aceita o outro, que aceita a parte contrária, aceita a adversidade e a supera, e dá

efetividade àquilo que faz. O Juiz que aposta no litígio é aquele que leva para casa o

processo, demora dois anos e, sem ouvir ninguém, baixa uma sentença, bate o martelo e

manda cumprir, sem nenhuma preocupação sobre como vão ver a sua decisão, como vão

ver o papel do Poder Judiciário. Ora, hoje, a gente fala assim: “O povo não gosta do

Judiciário”. Tem razão de não gostar! Vai ser muito difícil os Juízes terem do seu lado o

povo agora na reforma do Poder Judiciário ou na reforma da previdência. O povo não

virá ajudar o Judiciário, e ele poderá perder essas duas guerras. Mas não virá ajudar o

Judiciário por quê? Porque o Juiz vai pouco ao encontro do povo. Ele, ao longo de toda a

sua história, julgou batendo o martelo, de cima pra baixo. Não satisfez inteiramente nem

aquele que perdeu, porque achou que não devia perder, nem o que ganhou, porque achou

que ganhou pouco. Então, o Juiz voltado para o consenso, e não para o litígio, o Juiz

negociador, que seja efetivo naquilo que faz, passa a ter o apoio do jurisdicionado e não é

visto como inimigo, como acontece atualmente.

Memorial - Essas são as principais lacunas de que o senhor falava?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Essas são as lacunas que têm a ver com o

destino do Poder Judiciário, ou seja, nós pertencemos a uma instituição que foi delineada

e organizada por Montesquieu no Espírito das Leis, que entrou para a História junto com

a Revolução Francesa e que continua exatamente como naquela época. Do lá para cá no

Judiciário houve mudança significativa. Em nível de Estado continuamos com o

Executivo, o Legislativo e o Judiciário, exatamente como idealizado por Montesquieu.

Modificação decisiva ocorreu com o MP, que deixou de ser o advogado do rei daquela

época e passou a ser advogado da sociedade, mas, em termos de Judiciário não mudou

quase nada. Nós continuamos trabalhando com a cabeça do juiz do século XVIII, e o

mundo hoje é outro. O mundo hoje é virtual. Naquela época, as demandas eram mínimas,

os conflitos eram mínimos, e a complexidade era uma. Hoje, não é possível mais, com a

intensa litigiosidade, com a avalanche de problemas e com o virtualismo da vida continuar

trabalhando no mesmo estilo, com códigos ultrapassados, ou seja, o direito e seus

operadores têm que se amoldar aos novos tempos da modernidade. O direito terá que

ser mais principiológico porque códigos, envelhecem rápido. Há um autor de nome

Alberto Spota que tem uma frase que diz assim: “A lei sempre chega tarde. Quando a lei

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chega, os fatos sociais já estão com uma outra cara, já se metamorfosiaram, estão com um

outro perfil, com outra coloração”. As leis chegam sempre tarde. Os códigos envelhecem

no dia imediato à sua publicação, de modo que o Judiciário, se quiser operar só com os

códigos, vai operar sempre no passado em relação ao futuro. Então, o direito tem que ser

mais principiológico estruturando em grandes linhas gerais a partir da Constituição. Por

isso, penso que o Juiz tem que ser o juiz da Constituição, porque é lá que estão as grandes

linhas. Ele terá que operar com os grandes sistemas e princípios constitucionais, menos

com os códigos, e terá que ser um negociador, um conciliador e menos alguém voltado

para o conflito. Quer dizer, o novo Judiciário terá esse perfil, de um Juiz mais livre, mais

principiológico e mais negociador.

Memorial - Sobre a sua atuação na Associação dos Magistrados do Brasil, frente à

proposta de reforma do Judiciário, o que o senhor tem a nos dizer? Não sei se o senhor

ainda está atuando.

Des. José Antônio Paganella Boschi - Tenho estado lá eventualmente, não com

a freqüência que cumpria quando estava no MP. Mas, basicamente, tenho ajudado a

equipe que atua junto à Comissão de Reforma do Poder Judiciário, equipe essa formada

por uma dezena de colegas que representam várias associações do Brasil. Esta Comissão

prepara as emendas e também as justificativas, faz o acompanhamento junto aos

gabinetes, as entrevistas com os parlamentares, acompanha as votações, municia os

parlamentares. Realiza, enfim, aquele trabalho de suporte técnico que eles precisam no dia

das votações. A questão da reforma do Judiciário está parada neste momento. Chegamos à

votação de um texto na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, que aí foi

aprovado e deveria ter ido ao Plenário. Se tivesse ido para lá, tivesse sido votado e tivesse

sido aprovado, então, o texto seria uma emenda que se incorporaria à Constituição. Tudo

indica que isso não vai acontecer, pelo menos brevemente, porque o novo Governo do

PT estabeleceu outras prioridades. Querem fazer a reforma política e a reforma tributária e

a reforma da Previdência, e, por enquanto, não falam em acelerar a reforma do Poder

Judiciário. É bem possível que essa reforma fique para depois, será talvez a última coisa

que o Governo fará, se ela vier realmente a acontecer. Estou muito satisfeito que as coisas

estejam assim, porque a reforma do Poder Judiciário, como está organizada e estruturada,

é muito ruim para o Judiciário e para o jurisdicionado. É uma reforma que atende a

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interesses internacionais dos grandes conglomerados financeiros, destinada a enfraquecer

o Poder Judiciário e, conseqüentemente a reduzir sua eficiência e importância perante o

jurisdicionado. Quais os aspectos ruins? Vou citar alguns para evidenciar isso. Ela é ruim

porque estabelece, por exemplo, que para o ingresso na carreira da Magistratura o

candidato terá que provar que exerceu a advocacia por cinco anos. Ora, no mundo de

hoje, cinco anos é muito tempo na vida de um advogado. Quem tiver que advogar cinco

anos para depois pensar em concurso, provavelmente, irá fazer outra coisa, não ficará

esperando para seguir a carreira da Magistratura.Em segundo lugar, a reforma prevê que o

concurso público deva ser feito não pelo Judiciário, mas por um órgão público externo ao

Poder Judiciário, o que significa um voto de absoluta desconfiança ao Judiciário, uma

restrição que não se faz aos demais Poderes. O Executivo fará os seus concursos, assim

como o Legislativo e o MP. Só o Judiciário, numa declaração explícita de desconfiança,

não poderá fazer os seus concursos, como se o fato de entregar à autoridade pública

externa fosse garantia de qualidade, de idoneidade, de moralidade, de lisura do concurso, e

assim por diante. Então, esses dois aspectos, por si, já evidenciam que a reforma é ruim.

Por outro lado, a reforma está sendo conduzida no sentido da aprovação, no Brasil, da

chamada súmula de efeitos vinculantes, uma providência extremamente perniciosa ao

Judiciário, aos advogados, aos Juízes e aos jurisdicionados. O que é a súmula vinculante?

A súmula vinculante passa a ser, caso aprovada, um enunciado do Supremo Tribunal

Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Superior Tribunal do Trabalho com força

obrigatória, com conteúdo vinculante para toda a Magistratura. Por exemplo, se o STF

vier a dizer que duas pessoas que não sejam casadas e que vivam juntas durante 10 anos

não terão direitos recíprocos quando se separarem, nenhum Juiz poderá reconhecer

direitos a qualquer deles. Estou dando um exemplo para mostrar o grau de profundidade e

o efeito prático de um enunciado em nível de Magistratura em todo o País. Se o STF vier

a dizer que os juros legais, passíveis de serem cobrados no Brasil, são de, no máximo,

15%, nenhum Juiz que queira afirmar que os juros legais são os que a Constituição Federal

diz, ou seja, 12%, poderá fazê-lo. O Supremo, mediante um enunciado, tornará obrigatória

a decisão do Juiz no sentido que ele propôs. Em outras palavras, a súmula vinculante vai

fazer aquilo que Napoleão Bonaparte queria que os Juízes franceses fizessem. Napoleão

Bonaparte dizia na Ilha de Santa Helena, onde estava exilado, que o maior feito dele não

tinha sido ganhar quarenta batalhas, mas, sim de editar o famoso Código Civil do qual

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nenhum Juiz poderia divergir e que seria eterno de tão perfeito que era. Os Juízes

franceses, naquela época, estavam proibidos de fazer qualquer interpretação. A função

deles era a de aplicar o Código de Napoleão. Dizia-se que os Juízes franceses eram a boca

da lei: la bouche de la loi. Os Juizes franceses eram a boca por meio da qual o Código de

Napoleão se expressava. A função deles era apenas a de esgrimir, de expressar a vontade

da lei, como se a lei tivesse alguma vontade...O que se pretende para o Brasil é que os

Juízes brasileiros sejam a boca do Supremo, porque aquilo que o Supremo vier a dizer

como direito, terá que ser repetido por todos, retirando-se deles toda a possibilidade de

criação, de construção das soluções novas. A questão do concubinato, por exemplo,

começou no Rio Grande do Sul. Foi aqui que, se começou a julgar no sentido de

reconhecer aos concubinos o direito de dividir o patrimônio. Naquela época, as pessoas

não-casadas que viviam juntas durante anos, se compravam uma casa e depois se

separavam, tinham que dividir o patrimônio, porque se passou a entender, aqui no Estado

− sem que houvesse lei, mas por criação da jurisprudência gaúcha que havia uma

sociedade de fato. Pois bem, se o Supremo viesse, por meio de uma súmula, e dissesse que

os concubinos não têm direito algum, de nada adiantaria toda essa construção de baixo

para cima da jurisprudência do País, ela iria para o espaço! Então, a súmula vinculante

engessa o Juiz, o poder criador do Promotor, do advogado e serve muito bem para realçar

e concentrar ainda mais o poder da cúpula do Judiciário. Preocupa-me muito também por

outro particular. Nós sabemos como são nomeados os Ministros do Supremo Tribunal

Federal. São nomeações políticas. O Presidente atual vai poder nomear três ou quatro

Ministros para o Supremo. Se ele contar com a simpatia de um, dois ou três Ministros, dos

onze Ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal, podendo nomear mais três,

quatro ou cinco, ele terá a maioria no Supremo. Vejam que hoje, no Brasil, o Presidente

legisla, porque tudo é feito por medida provisória. O Congresso foi transformado em uma

grande delegacia, só cuidando de comissões parlamentares de inquérito. Quem legisla é o

Presidente da República. O Congresso tem que aprovar as medidas provisórias, porque há

centenas para discutir, e não discutem, e essas vão vencendo por decurso de prazo. Então,

quem legisla é o Presidente. Se nós pensarmos na súmula vinculante, se pensarmos na

eventualidade de um Presidente da República que decida aumentar o número de ministros

da Suprema Corte, ele poderá editar a lei e dar a interpretação que quiser, naquilo que

poderá vir a ser a maior ditadura, pela via do direito, num País civilizado. Todavia há

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algumas coisas positivas. Por exemplo, na reforma, está-se aprovando a idéia de eleição

nos Tribunais para o Órgão Especial. Aquilo que queríamos para o Rio Grande do Sul

está-se aprovando lá, graças ao trabalho aqui do Estado, da AJURIS. As pessoas que

circulam por lá estão vendendo esta idéia que é democrática e que está sendo, portanto,

internalizada em texto da reforma. Ruim é,também,o controle externo que queriam criar.

Esse é outro fato negativo. Só o Judiciário é que terá um órgão de controle externo - não

o Legislativo, nem o Executivo -, composto por pessoas da comunidade que vão ter o

poder de apreciar representações, reclamações contra os Juízes sem aquela filtragem, com

todos os riscos da perseguição política e assim por diante. Há um caso concreto de uma

reclamação contra um magistrado, não vou dizer o nome por razões éticas, que proferiu

uma decisão em Porto Alegre. A parte interessada, insatisfeita com a decisão, entrou com

um pedido de explicações no Superior Tribunal de Justiça. Esse magistrado gaúcho está

tendo que dar explicações no STJ e poderá vir a sofrer uma ação penal. Imagino o que

aconteceria se existisse órgãos de controle externo composto por pessoas indicadas por

partidos políticos para fiscalizar o Judiciário. Certamente, muitos Colegas poderão ser

chamados a dar explicações! Como disse, é um modelo de reforma que não está

direcionando a estrutura do Judiciário, com a sua modernidade, não está buscando dar

maior efetividade às suas decisões, em dar um formato novo ao Judiciário, para que ele

consiga resolver as pendências. Não. É uma reforma que visa controlar o Juiz, reduzir a

sua independência, torná-lo subserviente ao Supremo Tribunal Federal, e que não traz

efeito prático algum em termos de morosidade, de expectativa do público em relação ao

Judiciário. Então, felizmente, o novo Governo está colocando a reforma do Judiciário

como última alternativa, como última prioridade. Das prioridades, ela é a última. Isso é

muito bom, porque quem sabe até lá a razão volte, e as pessoas dêem-se conta de que se

precisa fazer outra coisa que não isso que está aí.

Memorial - Quanto à sua atuação na Universidade, quando lhe perguntei sobre a

sua marca de posicionamento, em relação ao envolvimento social dos operadores do

Direito, não só do magistrado, o senhor falou que isso se devia em parte ao mestrado, que

este havia sido um ponto importante.

Des. José Antônio Paganella Boschi - Um ponto muito importante, que me

ajudou a pensar outras coisas também. Sobre a Universidade, sou muito grato a tudo!

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Todos os dias eu agradeço. Sou muito grato a Deus pela vida que consegui construir. Tive

muitos menos dissabores mas muito mais alegrias na minha vida. Sou grato por ter tido

uma família, sobre a qual não falei ainda, por ter tido uma mulher com quem estou casado

a 31 anos, pelos meus dois filhos, um já advogado, professor universitário, e o outro se

formando este ano, que nunca me incomodaram, nunca se envolveram com drogas, são

extremamente estudiosos. Então, é uma família superorganizada, tranqüila, tive uma

profissão que só me deu alegrias. Sou muito grato a Deus também, por me ter feito um

professor! No magistério, aprendi mais do que ensinei. Penso que o magistério é, para o

professor, mais fonte de aprendizado e menos de ensinamento. Leciono a 25 anos na

PUC. Comecei a lecionar em 1979, quando vim para cá. Aprendi muito dando aulas! Os

alunos são fontes de instigação de permanente desafio. Eles não deixam que o professor

se acomode!

Memorial - O senhor tinha 25 anos?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Eu tinha um pouco mais, tinha uns 26

anos. Fiz o concurso para Promotor com 21 para 22 anos; fiquei na 1ª entrância um ano e

fui promovido para a 2ª entrância ao cabo de um ano e dez meses estando em estágio

probatório ainda; quando fui para a 3ª entrância, estava com dois anos e meio de carreira;

e vim para Porto Alegre com cinco anos e pouco de carreira. Foi super-rápido. Chegando

a Porto Alegre, fui convidado para lecionar na PUC. Dizia que foi muito bom porque,

embora lecione a 25 anos, todos os dias eu aprendo em sala de aula. Por incrível que

pareça, cada vez que muda a turma, sempre há alguém que instiga a pensar sobre alguma

coisa que não se havia pensado em profundidade ou outro que faz uma pergunta que

ninguém perguntou ainda. O magistério também nos obriga a estar sempre lendo, sempre

se informando sobre o novo, comprando livros. Então, foi muito bom ter lecionado por

esta singularidade: por estar sempre envolvido com o novo e também por ter este contato

com a juventude, que é uma coisa extraordinária. A sala de aula é uma coisa fantástica.

Não gosto de corrigir provas, mas gosto muito de dar aulas. Leciono também na Escola

da AJURIS há muitos anos, na Escola do MP, bem como nos cursos que funcionam aqui

e de vez em quando, me chamam para dar uma aula ou fazer uma palestra, e eu vou com

muito prazer.

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Memorial - Como é aprender dentro dessa situação mais formal, que é o

mestrado? O senhor pode falar um pouco mais sobre isso?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Antes de cursá-lo, eu pensava que os

mestrados e os doutorados eram oportunidades para as pessoas ficarem voando lá nas

nuvens, trabalhando com teorias e mais teorias sem nenhuma utilidade prática. Tinha uma

prevenção enorme quanto a isso. Fui fazer o mestrado por uma contingência. A PUC

ofereceu-me o curso, dentro de um programa de qualificação dos professores, até porque

a PUC queria melhorar o seu índice no MEC. Como estava disponível, apenas com a

minha atividade judiciária, acabei matriculado. Quando comecei a freqüentar o mestrado, a

primeira semana foi de um impacto total, porque não entendia nada do que falavam, em

nenhuma disciplina. Todas as abordagens eram eminentemente teóricas. E eu, há 30 anos,

acostumado a mexer em códigos, a ler os textos legais e a raciocinar em cima do

normativo, de repente, caio num curso extremamente crítico, em que nada é definitivo e

tudo é passível de uma crítica. Nada está perfeito, tudo é imperfeito. Comecei a ver que

tinha talvez um outro modo de enxergar as coisas. Quem questiona talvez tenha mais

mérito pelo modo como pensa do que aquele que sabe, porque este acha que não tem

mais nada o que fazer. Aquele que questiona acha que tem sempre uma coisa a alcançar. O

que pude perceber nesses mestrados é que eles nos propiciam outros paradigmas,

trabalha-se com outros referenciais. Quando se consegue associar esses referenciais do

trabalho diário então fica tudo perfeito. No mestrado estudei Psiquiatria, Psicologia,

Antropologia, História do Direito e Direito Penal. Estudei Direito Penal conectado a essas

áreas. Então, foi possível um ótimo casamento. A partir dele, penso que pude internalizar

alguns conceitos novos que são de muita utilidade na articulação do pensamento. Digo

que ficou mais fácil expor uma idéia que tenha conteúdo jurídico − porque posso acoplá-la

a uma variável sociológica, antropológica ou política − do que seria se não tivesse feito o

mestrado. Acho que quem está na área do Direito deve fazer mestrado, doutorado, porque

a discussão acadêmica “nas nuvens” tem depois uma utilidade muito grande no cotidiano.

Sou um fã desses programas porque ajudam muito, libertam das amarras do dogmatismo.

Memorial - A contribuição do mestrado teria sido no sentido de não se rejeitar a

imprecisão ou a instabilidade que causa a dúvida, não é?

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Des. José Antônio Paganella Boschi - Por justiça, quero dizer que, nesse

particular, no Estado do Rio Grande do Sul, o Judiciário está preocupado com essa

informação, tanto é que ele co patrocina, junto com a Escola e a Ajuris, um curso de pós.

Quando eu era Diretor, funcionava esse curso lá, e um bom número de Juízes já fez o

mestrado aqui em Porto Alegre, e um outro bom número faz doutorado. Então, há uma

preocupação aqui com a formação do Juiz, coisa que não é tão intensa assim em outros

Estados. Penso que o Rio Grande do Sul, se continuar com esse programa, talvez em dez

anos, poderá, em termos percentuais absolutos, vir a ser o Estado com maior número de

Juízes com mestrado e doutorado do País.

Memorial - O senhor gostaria de dizer mais alguma coisa?

Des. José Antônio Paganella Boschi - Eu gostaria de agradecer pela gentileza de

me convidarem para este depoimento. Quando Se é convidado para depor para o Projeto

Pró-Memória há a tendência de se imaginar que se está no fim da vida. Não estou no fim

da vida, de modo que a minha vinda aqui é muito prazerosa. Quero agradecer, porque

minha experiência de vida vai ficar registrada, e não são todos que têm esta chance.Então,

é uma alegria e uma honra para mim. Espero que muitos outros venham a tê-la.

Memorial - Agradecemos imensamente a sua disponibilidade. Quem sabe, daqui a

alguns anos, nós lhe convidemos novamente para falar sobre questões atuais e futuras.

Muito obrigada.