Entrevista Paulo Arantes Discutindo Filosofia

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Entrevista Paulo Arantes Discutindo Filosofia 2008-07-01 - Revista Discutindo Filosofia

Luciano Pereira

Excessiva exceo

Paulo Arantes doutor em filosofia pela Universidade de Paris X. Sua tese, intituladaHegel: A Ordem do Tempo, foi publicada no Brasil e na Frana. Lecionou filosofia na Universidade de So Paulo entre 1968 e 1998, quando se aposentou. Publicou, entre outros livros,Zero Esquerda(Conrad, 2004),Ressentimento da Dialtica(Paz e Terra, 1996), e, com Otlia Fiori Arantes,Um Ponto Cego no Projeto Moderno de ]rgen Habermas(Brasiliense, 1992). Recentemente, tem escrito artigos de interveno poltica, nos quais aponta o esgotamento dos partidos e a atuao dos movimentos sociais: os insurretos de Oaxaca, os ndios bolivianos, o MST, etc. Muito do que foi tratado na entrevista tema de seu livroExtino, publicado pela editora Boitempo em 2007, na coleo Estado de Stio - coleo esta organizada tambm por nosso entrevistado.

Discutindo Filosofia- O capitalismo alcanou um nvel de produtividade capaz de resolver os problemas materiais da populao do planeta, porm, esse mesmo sistema decretou o fim do emprego e transformou uma massa de homens e mulheres em "excludos". Essa contradio a matriz de nossa poca?Paulo Arantes- De fato, as bases tcnicas para a superao da pr-histria da humanidade esto finalmente dadas, e no entanto esse limiar emancipatrio brilha sob a luz negra de um atoleiro sem-fim, o vasto aterro sanitrio de homens e mulheres h um tempo descartados e "recapturados" por motivo de irrelevncia econmica. Esse buraco de agulha para elefantes a contradio terminal do nosso tempo: o reino da liberdade est enfim vista e todavia iremos todos morrer na praia da mais crassa necessidade material, como se ainda engatinhssemos nos tempos da pedra lascada. A contradio deste ltimo captulo que no acaba de acabar - a liberao possvel do fardo da explorao como condio do progresso tornou-se a rigor uma verdadeira expulso, por assim dizer, na boca do guich - foi no entanto identificada por Marx desde a origem: a compulso do capital a eliminar do processo de valorizao econmica a fonte mesma de todo o valor, o trabalho vivo. Por paradoxal que possa parecer, o capital foge do trabalho (como relembrou recentemente John Holloway), que por seu turno tambm fugiria do capital se tivesse para onde ir, o que no mais o caso, por motivo de expropriao originria e continuada. Como o seu fim ele mesmo, acrescido de um mais valor, a produo material lhe parece um desvio dispensvel, um estorvo a ser eliminado. Sendo, no entanto, um mecanismo cego e inconsciente (estamos na pr-histria) de suco e rejeio simultneas, precisa condicionar o acesso riqueza criada posse de um bilhete de ingresso cujo valor de face tende a zero, em virtude daquela mesma contradio em processo.Hoje essa fuga assimtrica est assumindo propores destrutivas inditas. A sociedade do trabalho se decompe sob o comando do capital, quando poderia estar sendo superada com os meios que este mesmo capital agenciou ao longo de sua histria cruenta.

DF- Concretamente, como se d essa fuga?PA- Em primeiro lugar, a dominncia financeira no regime de acumulao, por meio da qual o capital tende a autonomizar-se em seu processo de valorizao interminvel, porm fictcia, pois de fato est escorada numa monstruosa redistribuio da renda, em favor de uma variada clientela entrincheirada num aparato de procedimentos garantido em ltima instncia pelo emissor geopoltico do dinheiro mundial. Uma segunda dimenso desta mesma estratgia de fuga visando a valorizar-se e descartando o trabalho se encontra nos mecanismos renovados de acumulao primitiva, a apropriao direta por espoliao, como David Harvey denominou os novos surtos privatizantes amparados pela alienao financeira consentida do Estado. Terceira dimenso enfim deste processo de autonomizao do capital em fuga da sua fonte de valorizao - na qual alis seria preciso incluir as deslocalizaes selvagens e a fragmentao planetria das cadeias produtivas -, os mesmos "cercamentos" expropriadores agora no mbito da assim chamada economia do conhecimento. Conhecimento socialmente produzido porm encerrado na camisa-de-fora da sua apropriao monopolista.Assim, ao fetiche da forma capital-portador-de-juros, que se comporta como uma fora autnoma e devastadora de valorizao, veio juntar-se uma outra configurao fetichista, no juzo de um estudioso dessa grande miragem de nossa poca, o economista Rodrigo Teixeira: j que existem fbricas sem trabalhadores ou mesmo empresas sem fbricas, torna-se ainda mais forte a cega convico do nosso tempo, segundo a qual s capital gera valor ou ainda de que o conhecimento-informao se tornou enfim a fonte do valor, e isso num grau superlativo a ponto de mimetizar as velhas aspiraes de superao imanente, j que o capitalismo, ao fazer do conhecimento sua fonte de valorizao e produo de riqueza, finalmente alcanou sua etapa superior - e com ela, no por acaso, arrematou seu giro imperialista.

DF- esquerda e direita, h vrias verses disso: trabalho imaterial, economia do conhecimento, sociedade em rede...PA- Isso quase uma alucinao. No que a substncia do valor tenha mudado, mas, tal como na acumulao primitiva, estamos diante de um tipo de apropriao que permite aos proprietrios das mercadorias-conhecimento aambarcarem os sobrelucros que suas mercadorias ajudam a gerar ao atuarem como capital-mercadoria. Nem por isso o autor deixa de reconhecer que estamos de fato diante da matriz histrica da contradio-limiar de nosso tempo: embora no tenha substitudo o trabalho na produo do valor, como a produo de riqueza efetiva (valores de uso) depende cada vez menos do tempo de trabalho e cada vez mais do conhecimento como criao coletiva da sociedade, o aprisionamento deste ltimo pelas relaes capitalistas de produo expulsa parcelas crescentes dessa mesma sociedade dos circuitos civilizados de produo e consumo, no momento mesmo em que liberar a espcie humana da servido do trabalho se tornou possvel, como alis anunciou Marx ao encarar a eventualidade lgica daquela "desproporo qualitativa" que subverteria a relao de valor como mediao social dominante.

DF- Quando o estado de exceo passa a ser um modo predominante de governo?PA- As denominaes variam conforme as respectivas tradies jurdicas nacionais e a hora poltica: estado de stio, de exceo, de urgncia, de emergncia, lei marcial, etc. Para o diagnstico de poca que nos interessa, no preciso recuar at a instituio romana da ditadura - carta branca para um governantead hocsalvar a repblica em perdio -, basta remontar reinveno liberal da razo de Estado absolutista, em nome da qual as novas soberanias que se constituam na Europa estavam autorizadas a cometer todo tipo de transgresso do direito, da moral, etc. Em meados do sculo 19, a violao da constituio tornara-se a razo de ser da prpria constituio garantidora da ordem mercantil emergente, volta e meia ameaada pela desordem sediciosa das novas classes perigosas porque laboriosas. Produo interrompida j era sinnimo de insurreio.Segundo o historiador do direito constitucional Gilberto Bercovici, quando a luta de classes finalmente arrancou do capital as constituies sociais de compromisso, deixava de ser uma evidncia que a ordem constitucional era a melhor garantia do mercado, passando o estado de exceo a ser decretado quase em permanncia, culminando no abismo fascista: tratava-se agora da salvaguarda do prprio capitalismo. A derrota militar do fascismo no cancelou esse estado de emergncia, cuja trajetria ascendente passou por uma nova calibragem, como atesta o consenso subseqente em torno das polticas keynesianas de ajuste e conteno. De resto, os poderes excepcionais acionados durante a longa guerra civil imperialista de 1914-1945 no foram a rigor desativados: preciso no esquecer que a trgua social transcorria sob um guarda-chuva nuclear. Tampouco o fim da Guerra Fria desarmou aquela fuso emergencial entre afluncia consumista e complexo industrial-militar. O que se viu foi o capitalismo enfim mundializado dar uma derradeira volta no parafuso do estado de urgncia latente: segundo o alarmismo apologtico corrente, vivemos desde ento numa sociedade securitria de risco, cujo governo a somatria de um sem-nmero de estratgias preventivas.

DF- Ento, passamos a esfregar a vista, pois no acreditamos no que vemos: encarceramento em massa, rotinizao da tortura, guerras preventivas, governos baseados em medidas provisrias, etc. Do ponto de vista das mudanas polticas efetivas, a democracia representativa se tornou irrelevante, j que todos os governos adotam uma poltica econmica subordinada ao cassino financeiro. Isso tambm segue o princpio do estado de exceo como forma de governo?PA- E como! A mesma lgica rege algo como uma situao de perene emergncia econmica, uma vez que no h mais a menor "segurana cognitiva" quanto conduta anmica dos fluxos de capitais. Da o novo tipo de salvaguarda jurdico: os dispositivos constitucionais se assemelham cada vez mais ao modelo europeu de uma conveno econmica cuja elaborao no emana de qualquer poder constituinte popular, tampouco requer a existncia de um Estado, basta moeda e banco central, pois se trata apenas de assegurar a vida bruta do capital. No mais necessrio que o estado de direito saia de cena, basta que no vasto espao funcional em que se transformou o mundo do capital globalizado no seja mais possvel distinguir o regime da lei e o regime da regra (para lembrar da distino clssica de Foucault), porm de tal modo indistintos que o infrator potencial do segundo apenas confirme sua condio prvia de fora-da-lei, do direito ou do contrato. Ditaduras hoje so relquias da violncia liberal do tempo das chamins.

DF- Seria o estado de exceo permanente a forma poltica correspondente s novas formas de explorao econmica?PA- A reinveno liberal do estado de stio como figura constitucional da irrupo do poder soberano de exceo rigorosamente contempornea do processo no menos coercitivo de converso da fora de trabalho em mercadoria. A assemblia constituinte da Segunda Repblica Francesa votou os artigos que consagravam a nova exceo no exato momento em que Paris estava de fato sob estado de stio por motivo de sublevao dos bairros operrios em 1848. Contra o inimigo interno era preciso defender a sociedade, sancionando a violao da norma por ela mesma, judicializando a violncia extra-legal do Estado: contra uma inteira classe social fora do direito, uma lei fora-da-lei. Assim, aquele entrecruzamento histrico pode muito bem sugerir algo como uma evoluo paralela e congnita entre os ciclos polticos da exceo e suas metamorfoses jurdicas correlatas, de um lado, e a seqncia das formas de subordinao do trabalho pelo capital, de outro. O marco zero seria portanto o estgio manufatureiro correspondente subsuno formal da fora de trabalho ainda no integralmente expropriada em seu saber-fazer. Cuja marcha recalcitrante rumo ao anulamento como apndice do sistema de mquinas seria tangida a golpes de "exceo" disciplinadora, sem falar no acesso barrado de uma classe-mercadoria esfera pblica de direitos censitrios. Do mesmo modo, o isomorfismo entre a fbrica e a priso aparece configurado igualmente pelo vnculo da exceo penal e da proliferao dos ilegalismos proletrios. Como ficamos quando as constituies sociais mal ou bem facilitaro a simtrica fuga da fora de trabalho encarcerada pela grande indstria fordista? Novamente os caminhos da explorao econmica - no caso, a subsuno material do trabalho ao capital e do vcuo jurdico acionado em defesa agora de um capitalismo confrontado por direitos voltam a se cruzar numa simetria reveladora. Como observou o filsofo Malcolm Buli, greve e exceo tambm tm afinidades estruturais e no apenas histricas, pois quando operrios param as mquinas esto denunciando um contrato para retom-la expandido noutro patamar. Assim, como no decorrer de uma violao de garantias constitucionais, estamos ao mesmo tempo dentro e fora da lei. A rigor estamos diante de duas emergncias correndo pelo mesmo trilho porm em direes antagnicas. No limite dessa desobedincia civil original, se uma exceo ao trabalho se alastra a ponto de multiplicar exponencialmente o nmero de fora-da-Iei, a prpria lei da mercadoria arrisca desaparecer: e, se assim, devemos concluir que o estado de exceo decretado menos para abrir um vazio na lei do que para fechar um espao entreaberto por uma irrupo intempestiva, como uma greve selvagem, por exemplo.

DF- Se a correspondncia entre estado de sitio e controle da fora de trabalho j est presente desde o nascimento da modernidade, o que h de especfico nessa relao, atualmente?PA- Um dirigente sindical brasileiro compreendeu perfeio como se d o novo controle: "Antes o capital s queria mo-de-obra, hoje ele quer o cara inteiro". Seria ento o caso de dizer que se passa com a lei do valor o mesmo que se passa hoje com a lei num regime de urgncia permanente: assim como o ordenamento jurdico vigora porm suspenso num limbo jurdico de redefinies inconclusivas ead hoc, a fora de trabalho continua atrelada produo de valor e mais valia ainda que no se possa mais medir a integralidade do resultado produzido em tempo de trabalho socialmente necessrio. Numa palavra, a lei do valor continua vigorando embora tenha perdido sua base objetiva, desajuste no qual se exprime por outro lado e no menos contraditoriamente algo como o fracasso da tentativa capitalista de eliminar o trabalho vivo do processo de produo. Por esse novo trilho da subsuno total de uma fora de trabalho qualitativamente insubsumvel, "o cara inteiro", a vida inteira transformada em trabalho, as reviravoltas entre a exceo e a norma no tm fim.

DF- Creio que a mais importante dessas reviravoltas seja a diluio da fronteira entre tempo livre e trabalho.PA- Quando a ciso entre produo material e produo de valor se instaura de vez, sem no entanto abolir a relao de capital - o capital em fuga precisa perder o lastro do trabalho ao mesmo tempo que rifa a sobrevida dos sujeitos monetrios sem trabalho -, pode se dizer que a subsuno assumiu a forma mesma da exceo. Creio ser este o horizonte poltico - pois no fundo esbarramos na matriz histrica da violncia inaudita da dominao contempornea - do argumento bsico de Rodnei Nascimento ao estudar a gravitao conjunta das trs formas de subsuno do trabalho ao capital: a seu ver, por esse caminho possvel mostrar que o potencial de crise inaudito que a incomensurabilidade das novas foras produtivas arrasta consigo exige uma nova forma de dominao em que a explorao econmica tornou-se diretamente poltica - a gaiola de ferro da exceo, enfim.

DF- Essa a base material da biopoltica de Michel Foucault, ou, em outros termos, da sociedade de controle de Gilles Deleuze?PA- O desajuste intrnseco da relao de valor converteu-a numa priso: eis a base material de todo o edifcio securitrio da sociedade de controle. No se trata de simples metfora: tal como o ordenamento constitucional sem poder constituinte e socialmente inefetivo para melhor blindar a norma capitalista, o direito penal que rege o atual encarceramento em massa e por categorias sociais inteiras tambm visa a salvaguardar preventivamente a norma jurdica no seu todo atravs da mera gesto do risco criminal. Tanto assim que vai na mesma direo, embora por outro raciocnio crtico acerca da sustentabilidade real da dominncia financeira hoje, as observaes de Emmanuel Nakamura sobre a indistino entre anomia e normalidade da relao salarial capitalista, que por isso mesmo perde seu carter originrio de conveno-lei. Mas ateno: a fuga dessa priso ampliada no insurgncia nos moldes clssicos, mas o paroxismo da convulso social por falta de ponto de fuga. Da o cu de chumbo do estado de stio que pesa sobre o planeta.