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1 Entrevista Pedro Amaral — «Para se servir um autor é preciso traí- lo» Texto e fotografias: Tânia Pinto Ribeiro Aprendeu a «fazer a mão» com Lopes-Graça, o seu exemplo de ética, trabalhou com Stockhausen, o seu exemplo de músico, e quando teve de gerir pessoas — tarefa central da função de um maestro — teve e continua a ter a seu lado António Mega Ferreira, o seu exemplo de gestor artístico. Muito antes disso, foi a mãe que o despertou, literalmente, para a música: «Vivia sozinho com a minha mãe e tenho a memória, de quando era muito pequenino, de ela me acordar com música clássica. Acordava-me, levava-me nos braços, dançava comigo». A música vem-lhe do berço. Hoje, vive e trabalha à procura de um equilíbrio entre esse «perímetro afetivo» e «a racionalidade» sem a qual não é possível operá-lo. Pedro Amaral é um conceituado maestro e compositor português, e um dos músicos europeus mais destacados da sua geração. É presença habitual nos mais importantes festivais de música e trabalha regularmente com diversas orquestras e ensembles, de Lisboa a Tóquio, de Paris a Freiburg. É também, desde julho 2013, o diretor artístico daquela que é provavelmente a orquestra portuguesa a apresentar mais concertos ao longo da temporada. São cerca de 90 concertos orquestrais e mais outros tantos

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EntrevistaPedroAmaral—«Paraseservirumautoréprecisotraí-lo»

Textoefotografias:TâniaPintoRibeiroAprendeu a «fazer a mão» com Lopes-Graça, o seu exemplo de ética, trabalhou comStockhausen,oseuexemplodemúsico,equandotevedegerirpessoas—tarefacentraldafunçãodeummaestro— teve e continua a ter a seu ladoAntónioMegaFerreira, o seuexemplodegestorartístico.Muitoantesdisso, foiamãequeodespertou, literalmente,paraamúsica:«Viviasozinhocomaminhamãeetenhoamemória,dequandoeramuitopequenino,deelameacordarcommúsicaclássica.Acordava-me, levava-menosbraços,dançava comigo». A música vem-lhe do berço. Hoje, vive e trabalha à procura de umequilíbrio entre esse «perímetro afetivo» e «a racionalidade» sem a qual não é possíveloperá-lo.Pedro Amaral é um conceituado maestro e compositor português, e um dos músicoseuropeus mais destacados da sua geração. É presença habitual nos mais importantesfestivais de música e trabalha regularmente com diversas orquestras e ensembles, deLisboa a Tóquio, de Paris a Freiburg. É também, desde julho 2013, o diretor artísticodaquela que é provavelmente a orquestra portuguesa a apresentar mais concertos aolongo da temporada. São cerca de 90 concertos orquestrais e mais outros tantos

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camarísticos. Com «uma gestão sempre muito criteriosa dos meios» a AMEC |Metropolitana[AssociaçãoMúsica-EducaçãoeCultura]—umaorquestraetrêsescolas—éaúnica instituiçãodopaís e «umadas rarasdomundo»que senta, ladoa lado, alunoeprofessor. E assim, «reunindo uma orquestra académica a uma orquestra profissionalformamumaorquestradedimensão sinfónica».Este é, paraPedroAmaral, omomentoque justifica, de um ponto de vista «quase filosófico», a existência de uma instituiçãoassim.Itinerantepornaturezaeestatutos,mastambémporfaltadeumasala—algoquePedroAmaral espera vir amudar «brevemente»— aOrquestraMetropolitana faz o seuporto de abrigo em três salas de Lisboa: uma no Centro Cultural de Belém, para orepertóriosinfónico;outranoMuseuNacionaldeArteAntiga,paraorepertóriobarroco;eoutranoTeatroThalia,pararepertórioclássico.Ano após ano, temporada após temporada, os solistas da Metropolitana têm tambémancoragemseguranasaladaBibliotecadaImprensaNacional,emLisboa,ondeasportasse abrem, numa base quasemensal, de forma totalmente gratuita, para que o públicopossaassistirauma«pequenatemporadadecâmara».Entre livroseacordesalisetentapromover«nãoapenasmúsicosportuguesescomotambémobrasmusicaisecompositoresportugueses».Porissomesmo,estãojáassentesnomelodiosocalendáriodaBibliotecadaImprensaNacional,paraoanode2018,obrasdeFreitasBranco,FernandoLopes-Graça,Vianna da Motta e do próprio Pedro Amaral — que compõe sem instrumento,«diretamenteentreacabeça,amãoeopapel».Pedro Amaral reconhece, no entanto, as dificuldades que existem em apresentarrepertóriodecompositoresnacionais.Équefazeramúsicadosnossoscompositoresé,aomesmo tempo, «fascinante» mas também «um ato de arqueologia». E «não é fácilencontrar,desde logo,ediçõesmusicais».UmadificuldadequeaMetropolitana,naquiloque lhe é possível, tenta superar: «Muitas vezes, o que fazemos é tocar e gravar osconcertos».ComoaobracompletaparapianoeorquestradeJoãoDomingosBomtempo.Também a produção artística levanta problemas em Portugal. Problemas de escala, demeios e, sobretudo, do Estado: «O Estado em Portugal apoia pouquíssimo a produçãoartística, e nãome refiro só à produçãomusical.»No ensino base damúsica vale-nos asociedade civil que, de certa forma, se mobiliza, com as filarmónicas a assumirem umpapel «incontornável», um papel «absolutamente único», nomeadamente em matériapedagógica.DepoisdasuaóperaOSonho,estreadaemLondresem2010,ecompostaapartirdeumdramainacabadodeFernandoPessoa,perguntámosaPedroAmaralqueoutrosautoressevê adaptar musicalmente. Sem saber quando, Pedro Amaral falou-nos em Tchekhov.Talvez A Gaivota. Dos nacionais, Raul Brandão é «uma possibilidade» e José Saramago«umdesafiointeressante».ÉqueProust,oseuescritorpreferido,nãolhepermitesonhartaldesafio.Porqueotempodamúsicaéumtempodiferentedotempodaliteratura.Foinumintermezzo,entrecompassoseletras,queentrevistámosestecompositor,maestroediretor artístico que sabemuitobemoque faria,musicalmente falando, se tivesse paragerirumorçamentoilimitado…

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PRELO(P)—Esteano,numahistóricaoficinagráfica,emLisboa,emplenoPríncipeReal,foi tocada aSétimaSinfonia deBeethoven pelaOrquestraMetropolitana, sob a batuta,precisamente,domaestroPedroAmaral.Conseguedescreverasensação?PEDRO AMARAL (PA) — É um momento extraordinário quando se quebra um pouco oprotocoloqueexiste,comasuaformalidade,entreopúblicoeaobramusical.Normalmenteopúblicoassisteaumaobramusicaldeumaformafrontalcomoemcasavêtelevisãooucomonocinemavêumfilme.Arelaçãoéespacialmentefixaetemporalmentedefinida.Comonumquadro,quetemasuamoldura,numconcertoháumrito,comaentradaeasaídadomaestro,quedáamolduradoconcertoe,portanto,daobramusical.Colocarumconcertonumespaçoquenãoéumespaçodeconcertoabreuma relação totalmentediferentecomopúblicoeétambém um desafio, com todas as especificidades acústicas inerentes. Uma sala éacusticamente preparada para receber uma orquestra, um concerto orquestral. Neste casoespecíficofuncionouporqueaobrafoiescolhidapara isso.Asensaçãoquetivefoiadeestarmaispertodopúblicoe,portanto,decriarcomopúblicoumaempatiadiferentequeaqueladistânciahabitualnãopermite.P — Fruto da parceria Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM) com a OrquestraMetropolitanadeLisboa(OML),têmlugar,aolongodoano,váriosconcertosnaBibliotecadaImprensaNacional.QueboasrazõesexistemparasevirverumconcertocomsolistasdaOMLnaBibliotecadaImprensaNacional?P—Várias razões.A primeira é poder assistir, numespaço dedicado à escrita e à leitura, aoutraformadearte.Ésempreinteressantequandoconjugamosumespaçodeumaartecomaapresentação de outra arte. Nummuseu, por exemplo, que é um espaço dedicado às artesplásticas,ésempreinteressanterealizarumconcertomusicaloualeituradeumtextoliterário,num cruzamento particularmente rico e fértil de deambulações entre formas de arte. Asegunda razãoprende-se comaquestãodahabituação.Desdeháalgunsanospara cá, estasalaondeconversamosépalcodeumapequenatemporadademúsicadecâmara.Anoapósano,temporadaapóstemporada,opúblicopodeseguiraideiadeumciclo,podeiratravésdasuaexperiênciacomoqueacrescentado livrosàsuabiblioteca.Enfim,nocoraçãodeLisboa,terumespaçocomoesteaoferecergratuitamente,numabasequasemensal,umconcertodemúsica de câmara por alguns dosmelhoresmúsicos que tocam emPortugal é com certezaumarazãomuitoforte.P—Quebalançofazdestaparceria?PA—Positivíssima!Estaparceriatraduz-senestecicloanualdemúsicadecâmara,tocadaaquinesta Biblioteca, e, por outro lado, é a própria Imprensa Nacional que faz o nosso livro datemporada. Para nós este é um documentomuito importante, até na relação com o nossopróprio público. Uma vez por ano, fazemos também um concerto orquestral na ImprensaNacional e editamos conjuntamente um CD com música portuguesa e obras do grande

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repertório internacional. No fundo, são duas instituições que dão as suas mãos para umpropósitovirtuoso.P— A Imprensa Nacional tem comomissão promover e preservar os clássicos,mas hátambémapreocupaçãodeincluircompositoresnacionais.PA—Temosumprincipiomuito interessanteequefoiumdesafioquea ImprensaNacional,atravésdoDr.DuarteAzinheira[diretordaunidadedepublicaçõesdaImprensaNacional],noslançou.Precisamente,oDuarteAzinheiradiz-nos:«a Imprensaénacional, faz sentidoqueorepertórioapresentadotenhaumapartenacional».Enós,semprequepossível-nemsempreépossível, mas em quase todos os programas é possível - temos não apenas músicosportuguesescomotambémtemosobrasdecompositoresportugueses.

P—Nesseâmbitoquerfalar-nosumpoucodorepertóriodaMetropolitanapara2018,aquinabibliotecadaImprensaNacional?PA—Sequisermoselencar quatro concertosque veremosembrevenaBibliotecaNacionalconstataremosquesãoobrasdogranderepertóriointernacionalqueestãopróximasdeobrasque compositores portugueses fizeram no mesmo âmbito estilístico e até cronológico. Porexemplo,brevementeescutaremosaSonataparaViolinodeDebussyetambémaSonataparaViolino de Freitas Branco. São duas peças transversalmente associadas, não apenas nacronologia,queépróxima,massobretudonoestilomusicaleaténaprópriatécnicamusical.

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Haverátambémumconcerto,sobreoqualnãoqueriafalartanto,porincluirumapeçaminha,masque incluiráumapeçadeumgrandeclássico,JosephHaydn,paidoquartetodecordas.Serão, portanto, duas peças para quarteto de cordas.Depois, teremos um concerto de doiscompositores que coexistiram no tempo: Fernando Lopes-Graça e Paul Hindemith, umportuguês e um germânico, ambos com uma relação tensa com os regimes políticos queatravessaram.Afórmula–umcompositorportuguês,outrogermânico–repete-secomViannada Motta/Brahms. Ou seja, teremos sempre um compositor do repertório português e umcompositordogranderepertóriointernacional.

ConcertodaMetropolitananasoficinasgráficasdaImprensaNacional

P—ContinuandonoespaçodaBibliotecaenarelaçãomultidisciplinarentreasartes,quefrisou,qualéparasiarelaçãoprimeiraentreamúsicaeaLiteratura?PA—NaperspetivahegelianadaEstética,amúsicaéaarte suprema,no sentidoemqueécompletamentedesligadadarealidadematerial.Nestaperspetiva,estamosafalardeumaarteque joga com o puramente abstrato. Com a exceção das obras de música concreta, ondeouvimos sonsdanatureza,oudasobras instrumentaisondeporalguma razãoo compositordecide imitarossonsdanatureza (porexemploemSiegfried,Wagner temummomentoemqueimitaocantodeumpássaro),amúsicaérealmenteamaisabstratadasartes.Aliteraturaevocaamaterialidademasnãoamostranocampovisual.DiantededoisSujeitos,aevocaçãodamaterialidade, tornadaObjeto literário,cria forçosamente imagensdiferentesqueecoamnasubjetividadedecadaleitor.Podedizer-sequeaquelarealidadematerial,aliexprimidaporpalavras, é recriada de uma forma totalmente diferente, ou mais ou menos diferente, no

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próprioSujeito.Nãosendoumaartetotalmenteabstrata,aliteraturaétalvezamaispróximadamúsicaporumaoutrarazão:sãoduasartesquesepassamnotempo.P—Podedesenvolveressaideia?PA—ApesardeWassilyKandinskydizerqueháumaTemporalidadenumquadro,eeletinharazão no sentido em que há um desvendar da obra que é progressivo e que tem lugar notempo,àparteessaTemporalidade,averdadeéqueaobrasepassa,antesdemais,noespaço,nanossavisitadoespaço.Emliteraturanão.Aliteratura,comoamúsica,passa-senodecorrerdotempo.Pensoqueestessãoosdoismaioresfatoresdeaproximaçãoentreestasduasartes.Dentro da literatura a poesia é aquilo que permite ao compositor entrar pelo meio daliteratura.Pela suaextensão,uma frase romanescaédificílimacolocaremmúsica.Euadoro[Marcel]Proust.Proust tem frasesgigantescas.Háuma frasenomeiodovolumeSodomaeGomorraqueocupaduaspáginas.Precisariatalvezdequinzeminutosemmúsicaparacantaraquelafrase.Apoesia,pelasuaformulaçãolacónica,torna-semaisacessível.Porexemplo,umpoema de E. E. Cummings pode ter três palavras e isso pode dar aso a um enormedesenvolvimentomusical.Éatravésdapoesia,comoseutempopróprioeoseusegundoplanodelinguagem,queocompositornormalmenteentranograndedomíniodaliteratura.P—Otextoemmúsicatem,então,umtempodiferente?PA—Umtextoditodemoramaisoumenos1/3dotempodomesmotextoasercantado.P — Em 2010 foi estreada em Londres a sua óperaO Sonho, a partir de um dramainacabado de Fernando Pessoa. Foi unanimemente aplaudida pela crítica, tendo sidosucessivamenteapresentadaemLondreseLisboa.AlémdeFernandoPessoaquaissãoosseuspoetasdeeleição?PA—Prefiroresponderdeumaformamaisabrangente.Nãofalaremparticulardepoesiamasdaliteraturacomoumtodo,abrangendotodaaparteromanesca,todaapartedoscontos,daescritaparateatroe,enfim,dapoesia.P—Ecomeçariaporonde?PA—Comodizia,souparticularmentesensívelàescritadeProust. Istoquerdizerqueseeutivesse de eleger um escritor ou uma obra para levar para uma ilha deserta provavelmenteelegeria a Recherche de Proust, que li várias vezes, e que corresponde mais à minhapersonalidade.Proustdizia queum livro é uma chavemasnem todas asportas são abertascomamesmachave.Haverápessoasmaissensíveisàminhaescritadoqueoutras.ComoautorromanescoescolheriaProust,emprimeirolugar.P—Vê-seaadaptarmusicalmenteaRecherchedeProust?

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PA—Pensoquenão.Issoémuitodifícil!Prousttemumadimensãotalquejulgoserimpossívelabarcá-lanumaobracénicomusical.P—Queoutrostextosouautoressevê,então,aadaptarmusicalmente?PA—Imagino-mefacilmenteaadaptar[Anton]Tchekhov.P—Algumaobraemconcreto?PA—Nãosei…HáváriasobrasdeTchekhovquefacilmentemeveriaatrabalhar.NãoqueriadizerAs Três Irmãs porque já existe a ópera extraordinariamente bem conseguida de PeterEötvös.TalvezAGaivotaouOCerejal,ouumdosseusmuitoseextraordinárioscontos.OutroautorquepoderiaporemmúsicaseriaJorgeLuísBorges.Borgestemcontosque,porseremmuitoconcentrados,permitemumtemporalidadepossívelcomopeçadramáticomusical.

PedroAmaraldizserparticularmentesensívelàescritadofrancêsMarcelProust(1871—1922)P—Eadaptaçõesmusicaisdeautoresnacionais?Queautoreselegeria?PA—RaúlBrandãoeraumapossibilidadeeJoséSaramagoumdesafiointeressante.P—Paraquando?

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PA—Issonãosei!(risos)Noplanodapoesia,comojáevocou,jáescreviOSonho,apartirdeum“poemacénico”,sepossodizerassim,deFernandoPessoa.Eéumapeçaque,dealgummodo,esgotaumdeterminadocaminho,nosentidoemquenãomevejoa regressaràquelemundopoético-musical.Quis escrever emmúsica, comaminha linguagemdehoje, e a umséculodedistância,umdramasimbolista.Aotê-lo realizadoháumcapítuloquese fechanaminhaobra.Seregressaràpoesia–e,porexemplo,atrai-memuitoaideiadeescrevermúsicaa partir de um dos poemas de A Máquina Lírica, de Herberto Helder, ou de mergulhar naMargem da Alegria, de Ruy Belo – se o fizer será certamente numa obra lírica mas nãodramática,nãoteatral.P—Comoequandocomeçouasersensibilizadoparaamúsicaerudita?PA—Emcriança.Viviasozinhocomaminhamãeetenhoamemória,dequandoeramuitopequenino, de ela me acordar com música clássica. Acordava-me, levava-me nos braços,dançava comigo ao som da música clássica. Era mesmo muito pequenino, criança de coloainda. A música erudita está para mim associada ao perímetro dos afetos. Toda a minhaaprendizagem foi à procura de um equilíbrio e, ainda hoje, o meu trabalho diário é essemesmo.P—Umequilíbrioentre…PA—...esseperímetroafetivoearacionalidadesemaqualnãoépossíveloperá-lo.P— Durante a sua formação estudou com Lopes-Graça e trabalhou com Stockhausen.Faça-nosumresumodoqueaprendeucomumecomoutro.PA—AaprendizagemcomLopes-Graçaéumaaprendizagemque transcende totalmenteodomíniosimplesepurodamúsica.OmétierdeLopes-Graçaera,efetivamente,amúsica.MasLopes-Graçaeraumhomemdearte,deescritatambém—atéporsobrevivência.Escreveuetraduziu muito. O famoso Beethoven, em três grande volumes, de Romain Rolland foitraduzidoparaportuguêsporele.Alémdemúsico,Lopes-Graçaeraumserhumanocomumavivênciaextraordinária.Asua fépolítica (perdoe-se-meoparadoxoda formulação),autopiaideológicanosentidomaisnobredapalavra,aresistênciaemnomedosseusprincípios,asualeituradahistória,a suaética,a suagenerosidade,o seuprofundohumanismo forammuitomarcantesparamim.Tantoquantoaobramusicalquenosdeixoucomoexemplo.Foiomeuprimeiroprofessordecomposiçãoedevo-lhemuitonoplanodaescritamusical.Lopes-Graçasabiaqueaescritaeraofundamentaldotrabalhodocompositor.Isto,sefosseditonoséculoXIX,eraumaevidênciaululante,massendotransmitidocomoumprincípiopedagógiconofimdoséculoXX,quandoahistóriapassavapelosterritóriosdopós-modernismoedainclusãodossistemasmultimédia, onde a parte da escritamusical foi bastante relativizada em relação aoutras práticas (como a improvisação, como a música concreta, entre outros), foi muitoimportante na minha formação. Lopes-Graça recentrava tudo na escrita e por isso foi ummestre naquilo a que o próprio chamava de «o fazer a mão». Aprendi com Lopes-Graça a

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«fazer amão».Mas, de facto, foi tão importante paramim o homem como o compositor.Lopes-Graçaéumexemploéticoextraordinário.

FernandoLopes-Graça(1906—1994)éconsideradoumdosmaioresmaestrosecompositores

portuguesesdoséculoXXP—EStockhausen?PA—QuantoaStockhausen,nãoquerodizerquefosseooposto,maseraocontrário(risos)!TudoemStockhauseneracentradonapersonalidademusicalmaisdoqueemoutrosaspetos.O lado religioso em Stockhausen, por exemplo, interessava-memenos e para Stockhausenesseladoeramuitoimportante.OladopolíticodeStockhausen,queeuconhecimasquenãoéconhecido publicamente, também não me interessava particularmente. Tinha uma grandeproximidadecomele,possodizerumaamizade,tantoquantoummiúdode35anos—passoaexpressão—podetercomumhomemquetemquase80.Paramim,Stockhausenésobretudoumexemplodemúsico.Praticandoaaventuramais tresloucada,Stockhausenconseguia serdeuma racionalidadeedeum rigora todaaprova.Ele conseguia,permita-meaexpressão,cuspir fogo. Conseguia ser o mais hábil dos trapezistas, lançava-se, mas calculavamilimetricamentecadaaspetodasuaperformancecomposicional–eessecontrole,umavezmais,eraexercidoatravésdaescrita.Normalmenteumartistaconcebeumfluxocriativo,quevaitentaratodoocustoestruturarporviaracional.NocasodeStockhauseneraocontrário:primeiroestabeleciaracionalmenteasregrasdoseucampodeaçãoe,umavezestabelecidasasregras,eleentravaládentroeagiacomomáximodeimaginaçãopossível.P—Umainversão…

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PA—Exatamente!Normalmente há um fluxo, aquilo quepodemos chamar de um rasgo, edepoisháatentativadeencontrardisciplina,detornaresserasgoobra.EmStockhausenerarealmenteaocontrário:primeirovemadisciplinaesódepoisvemorasgo.P — Falou de performances… Dirigir uma orquestra e compor são dois trabalhosdiferentes...PA—Completamente!P— … tornou-se imprescindível, para um maestro do século XXI combinar estas duasperformances?PA — Acho que não. Acho que depende da personalidade de cada um. No meu caso éimportantemasnãoéimprescindível.Paramimofundamentaléacomposição,sódepoisvemadireção.Paramimnãoseriaumproblemavitaldeixardeserum intérprete,masdeixardecompor,sim,seriaumproblemavital.

KarlheinzStockhausen(1928—2007)foiumcompositoralemãodemúsicacontemporâneaP—Gerirpessoas,noseucasomúsicos,estánocentrodafunçãodomaestro.Estagestãohumanaaprendeu-aduranteasuaformação?

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PA—Não.(risos)P—Aprendeucomaexperiência?PA—Aexperiênciaéimportante,masnãopodesersóaexperiência.Fuiumprivilegiadonessesentido.Tiveumaexperiênciadegestãonauniversidademasaí foi tudomuitoenquadrado.Quantotivedegerirpessoas,dentrodaminhaárea,comomúsico,tivesempreaomeuladooexemplodeumgrandegestor,oAntónioMegaFerreira.Pudeaprendercomelecomosefaz.O António Mega Ferreira tem uma coisa extraordinária: consegue ser rigorosamenteformalista e, ao mesmo tempo, absolutamente flexível no seu trato e na sua forma defuncionar.Estaconjugaçãoentre formalidadeesouplesseéúnicanasuapessoa.ParamimoMegaFerreiraéummodelo,umexemplo–umtipoque,numalmoçoinspirado,imaginafazerem Portugal uma Expo e que, vinte anos depois, transformou uma zona inteira da cidade.Aprendi imensocomeleecontinuoaaprenderdiariamentecomaquelemistoextraordináriodeumgestornotávelqueétambémumescritor.P—Voltandoàcomposição,emqueinstrumentoéquecompõeassuasobras?PA—Nãocomponhoemnenhuminstrumento.Componhodiretamenteentreacabeça,amãoeopapel.P—Amúsicacontemporâneatemnecessidadedapresençadocompositor?PA—Émuitointeressanteaquestãodapresençaouausênciadoautor.UmbertoEcoescreveumtextomuitointeressante,emdeterminadomomentodavidadele,emquedizqueoautorperturba a interpretação da sua obra. E, portanto, o ideal seria que o autor (o compositor)expirasseantesdo intérpretedeitaramãoà suaobra! (risos)Deumacerta forma,UmbertoEcotemalgumarazão.Oautorperturba,claro,ainterpretaçãodoseutexto.Nãoseisesabe,masexistemgravaçõesfeitasporDebussydassuasobras.Porquediaboestasgravaçõesnãosãobestsellers? Porque quando o público as ouve fica desiludido. Logo, não se vendem.Ouseja,nóstemosoautorainterpretarasuaobra,temosapossibilidadesingularemiraculosadeouvirDebussyouMahleratocaraprópriaobraedepoisoqueháéumagrandedesilusão!?...Sim, é. E não é uma desilusão porque Debussy tocasse mal, mas porque a sua forma deinterpretarnãoestáemfasecomonossotempo.Aobradocompositor–aobradoartista–passa-se fora do tempo, numa espécie de intemporalidade; mas a obra do intérprete éindelevelmentemarcadapeloZeitgeist,peloqueumintérpretedehácemanosnosfaladeumtempoquenãoéonosso,aindaqueesseintérpreteseja,porcoincidência,opróprioautor.

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Claude-AchilleDebussy(1862[1]—1918)foiummúsicoecompositorfrancêsP—Osinterpretessãoumaespéciedetraidoresaosintentosdocompositor?PA—Traduttore,traditore,nãoé?Ointerpreteéantesdemaisumtradutor.Portanto,éclaroqueháumatraição.Podiadizeristodeumaformafilosóficamas...averdadeéque,decertaforma,paraseservirumautoréprecisotraí-lo.P — Quando se trata das suas obras, das obras que Pedro Amaral compõe, consegueafastar-se?Conseguenãointerferir?PA—Tentonão interferirdemasiado.É fundamentaldar-seespaçoao intérprete.Poroutrolado,háumdesejoprimordialelegítimodeocompositorouviraobracomoaimaginou,eseisso não acontece, a estreia pode ser uma experiência dolorosa.Mas estou a referir-me aomomento da estreia. A partir desse momento, a obra é um filho que segue o seu própriocaminho e é sempre interessante ver os outros pontos de vista que os intérpretes trazemànossaobra.

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P—Comoéqueviveasestreias?PA—Aestreiaéomomentomaisdifícilparaumcompositor.Comointérpreteraramentemesinto nervoso em palco. Posso dirigir uma sinfonia de Bruckner ou de Brahms e não estouespecialmentenervoso.Oumelhor:tenhoograudenervosnecessárioesuficiente,semoqualoconcertoseriaummarasmo.Jáenquantocompositorseestiveroutrapessoaaestrearumapeçaminhaficonumapilhadenervos.Ficomuitosensível,frágil,ansioso.P—EoqueéqueoPedrocompositoresperadaquelesqueinterpretamassuasobras?PA—Dizer assim soa umpouco ingénuomasgostaria queo interprete fosse para aminhamúsicaaquiloqueeusou,comointerprete,paraamúsicadoscompositoresqueinterpreto.P—Oqueéesse«ser»?PA—Éconhecera fundoapartitura,éterumapreparaçãoexaustivae,semalterarotexto,apoderar-me dele, no todo como nos detalhes. Da mesma forma que o ator só pode serconvincente apoderando-se da personagem, ainda que diga todas as palavras que o

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dramaturgoescreveu,omaestro,emnadacedendodaquiloqueo textomusical lheordena,deveapoderar-sedessetextoparaotransmitir.Esóaíéquechegaatocaropúblico.P— Enquanto maestro, sente por parte do público esse desejo de ser guiado pelosintérpretesparapenetrarmelhor,precisamente,nocoraçãodeumaobra?PA — Sinto completamente! Sente-se perfeitamente esse desejo do público. Até mesmoquandoseestádecostasparaopúblicoadirigirumaorquestra.P—Comoéqueissosesente?PA—Sente-se pelos silêncios, pela própria respiração do público.OCarlos doCarmodisseuma vez num concerto: « perdoem-me pela ousadia mas sinto que vos tenho ao colo». Opúblico quer ser conduzido e é por isso que um maestro, um músico ou qualquer outroperformerqueestejaemcenadeveterumahipersensibilidadeaopúblicoegerirasuaprópriaemoção.Asuaeadopúblico.Nofundo,conduziropúblicoporestaflorestareinventadaqueécadanovainterpretaçãodeumaobra.P — Trabalha regularmente com diferentes ensembles e orquestras, nacionais eestrangeiros.Quaisasprincipaisdiferençasentretrabalhar«emcasa»etrabalharláfora?PA—Éprecisoreferirqueo«emcasa»eo«láfora»têmcoisascomuns.Seéverdadequeháuma cultura local também é verdade que as orquestras são viveiros de transversalidadenacional e de cosmopolitismo. Uma orquestra não é só formada por elementos de umdeterminadopaís.Longedisso!Maséverdadequeháculturaslocais.Quandosetrabalhacomorquestrasalemãschega-semuitofundoechega-se lá lentamente.Maschega-seaqualquercoisa extremamente sólido e denso. Quando se trabalha com uma orquestra inglesa podechegar-sebastante fundoe chega-se lámuito rapidamentemas é sobretudoobrilhantismoperformativoqueconta.Háaliumladocénico,umaevidênciaacústicafulcrais,quetemdevercomamaneiradeserdaquelacultura.Cadapaístemdefactoasuacultura.Oprocessoéumpoucodiferenteemcadapaísmasépossívelchegar-searesultadossemelhantes.P—Quais sãoasprincipaisdificuldadesqueumcompositoremPortugalpodeencontrarparaviverexclusivamentedasuaarte?PA—EmPortugalnãoháescala,omercadoémuitoreduzido,apesardetermostrêsgrandesorquestras na cidade de Lisboa: Metropolitana, Sinfónica Portuguesa e Gulbenkian. MasLisboa é a única cidade do país a ter isto. À volta de Lisboa há pouquíssimas orquestras. AMetropolitana serve não apenas a urbemas toda a zona envolvente. E o nosso problema éeste.EmqualquerpaíscomadimensãodaFrançaoudaAlemanhahámuitassolicitações.Aquionúmerodesolicitaçõesé limitado.Comocompositor,tenhoasminhaspeçasregularmenteapresentadasnaCasadaMúsica,noPorto,ounaFundaçãoGulbenkian.Masláestá,sãoduasinstituições. Um compositor com aminha idade num país como a França temmuitosmaissolicitaçõesporqueexistemmuitomaisinstituições.

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P—Oapoiodeummecenaséhojeemdiatãoimportantequantoeraháduzentosouhátrezentosanosatrás?PA—Quandonós pensamos nos grandesmecenas de hámuitos anos atrás, esses grandesmecenas, muitas vezes, eram o próprio Estado. Os Medici eram os soberanos da Florençarenascentista.NósatribuímosomecenatoaumafamíliamasmuitasvezesessafamíliaeraoEstado.Hoje emdia existe algumapráticamecenática, embora não tão desenvolvida comonosséculosanteriores,porqueopróprioEstadosefoisubstituindoaela.P—OEstadoportuguêscumpreessapráticamecenática?PA—O Estado em Portugal apoia pouquíssimo a produção artística, e nãome refiro só àproduçãomusical.Aliás,hápoucoounenhumapoiodoEstadoàproduçãoartísticaepoucoapoiodoEstadoàdivulgaçãodopatrimónio,nocasodamúsica.Quempromoveu,quemfezaediçãodaobradoPadreAntónioVieira,porexemplo,nãofoioEstadopropriamentedito,foiaSanta Casa daMisericórdia de Lisboa.Omesmo para a edição crítica da obra de FernandoPessoa,pelaAssírio&Alvim.Porescassezdemeios,éverdade,mastambémporfaltadevisão(eistonãoédeagora,duraháséculos),oEstadoportuguêsnãodesenvolveupolíticasculturaisdeinternacionalizaçãodasuaculturaedasualínguacomooutrospaísesofizeram.OGoethe-Institut é o grande agente da Alemanha no exterior – e os alemães conhecem bem o valorcultural e monetário da sua língua. O mesmo no caso de França e até mesmo na vizinhaEspanhacomoInstitutoCervantes.P—EoInstitutoCamões?PA—Infelizmente,oInstitutoCamõesnãotemosmeiosnecessários,porquenãolheédadaamissãoparaainternacionalizaçãodacultura.Eistoédramático.Portugalmovimenta-seetemumadiplomaciamuitofortenaCPLPmasnãochega.ACPLPélínguaeaculturatambéméalínguamasémaisdoquealíngua.Háumfraquíssimoinvestimentonaculturaanívelinternoeaníveldadivulgaçãoexterna.P—Édesde2013diretorartísticodaOML.Quaissãoassuaspreocupações?Osdesejos?PA—Tenhocomopreocupaçãoterumquadroartísticodeexcelênciaecumprircomeleumamissão fundamental, que é amissão da própria AMECMetropolitana: transmitirmúsica aograndecentrourbanodeLisboaeàáreametropolitanaenvolvente,queémuitíssimogrande.P—AMetropolitanaédasorquestrasquedámaisconcertosemPortugal,nãoapenasnaáreadeLisboa,sobretudoatravésdossolistasdaMetropolitana.Comoéqueseconsegueisto?PA—Comumagestãosempremuitocriteriosadosmeios.Nósfazemoscercade90concertosorquestrais por temporada e cerca de 90 concertos camarísticos, pelos Solistas da

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Metropolitana,portemporada. Istoquerdizerquesóaorquestraprofissional (semcontarasorquestrasacadémicas,porquesomosumaorquestraetrêsescolas)faz180apresentaçõesporano.Metade comoum todo, orquestral.Metadedesdobrando-se. 180 concertos sãomuitosconcertos, são muitas apresentações, principalmente se tivermos em conta que temosrepertórioscompletamentediferentesunsdosoutros,eemcadasemanapreparamosváriosnovosrepertórios.Istoimplicaumagestãoquotidianadotempo,datotalidadedaorquestraedecadamúsiconasuaindividualidade.Épuragestãoderecursoshumanos.Poroutrolado,émuitoimportantenãoesquecerqueestamosatrabalharparaumpúblico.Anossaartenãosefaznumatorredemarfim,paranóspróprios,diantedeumespelhocomoNarciso.Anossaarteé um instrumento de transmissão de culturamusical. É importantíssimopara nós, alargar onosso público. Desde que chegámos, em 2013, praticamente duplicámos o público daMetropolitana.Istoéabsolutamentefundamentalparanós.

AOrquestraMetropolitanadeLisboa

P—A pensar nesse público, como vê a evoluçãodaOrquestraMetropolitanade Lisboaprecisamentequantoàescolhadorepertório?PA—Orepertóriotemdeserescolhidoemfunçãodedoiscritérios:temdeserapelativoparaopúblicoetemdeserapelativoparaaorquestra.Istoé,aorquestratemdesesentirdesafiadapelorepertório.

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P—Hápoucofalámosda importânciaedapertinênciade incluircompositoresnacionaisnaspeçasquesãotocadasaquinaImprensaNacional.Deumaformamaisabrangente,fazumesforçopara incluircompositoresnacionaisnosrepertóriosqueapresentamao longodatemporada?PA—Façoumesforço,naturalmente.Nãoéfácilencontrardesdelogoediçõesmusicais.Porexemplo, este ano quisemos promover a música camarística de Vianna da Motta edescobrimoscomestupefaçãoqueumagrandepartedaobradelenãoestáeditada!...P—ComoadeAlexandreReyColaço,quecontinuacompletamentedesconhecida…PA—Exatamente!Eissocausa-nosproblemasgrandes.Muitasvezes,oquefazemosétocarpormanuscritos e gravar os concertos. Estamos agora a fazer a gravaçãodaobra completapara piano e orquestra de João Domingos Bomtempo, que escreveu seis concertos.ComeçámospeloConcertoN.º3,emsolmenor.Procurámosmateriaisdeorquestraeficámossurpreendidos quando descobrimos que só existe uma edição, do inicio do século XIX daeditoraClementideLondres.Estamosafalardeumaediçãocommaisde200anos.Aediçãotemmuitoserrosenãohámanuscritodestaobra.Fazeramúsicadosnossoscompositoreséfascinantemasétambémumatodearqueologiaedevoluntarismo.Enãoestamosafalardeumdesconhecido:BomtempoéomaisimportantecompositorportuguêsdoséculoXIX.P—Epodeserdramático…PA—Édramáticoquenãoestejaestudado,édramáticoquenãoexistaumaediçãocríticadaobra,porexemplo,deJoãoDomingosBomtempo.JoãoDomingosBomtempoescreveunoseuRequiemoquedemelhorseproduziunaHistóriadaMúsicaPortuguesa.TambémdeLopes-Graçahámuitacoisaporassimdizer“sepultada”emmanuscrito.P— Continua-se, então, a perpetuar-se o erro de não salvaguardar a nossamemória epatrimónioculturalmusical.Serásóafaltademeios?PA—Porfaltademeios,porfaltadeinteresseeporfaltadevisãopolíticatambém.

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P—MasaMetropolitanajáestáafazercoisasnessesentido.PA—Sim.Épor issomesmoqueestamosagravarosconcertosdoBomtempoeestamosaeditá-los,apesardeissonãofazerpartedanossamissão.OEstadoportuguêsnãotemavisãodapreservaçãodonossopatrimóniomusical.Porissoestamosmuitosujeitosàsinfluênciasorafrancesa ora alemã ora italiana. Por contraste, veja o exemplo do nascimento da óperafrancesa. Desde o Renascimento, os compositores franceses iam aprender em Itália. Nasegunda metade do século XVII e primeiro quartel do XVIII tiveram um reinado com umaextensãotemporalimensa,odeLuísXIV,queestimulavaoaparecimentodeumaartefrancesaprópria, curiosamente feitaporum italiano importado: Jean-BaptisteLully, criadordaóperafrancesa.Lullynaturalizou-sefrancêseacabouporseroprimeirodoscompositoresoperáticosfranceses, criou a ópera francesa, a chamada “tragédia lírica”, que depois inicia toda umatradição que passa por Rameau, Berlioz… Começa com um italiano, mas já totalmenteafrancesado.EcomeçaporimpulsodiretodoEstado,napessoadoRei.Investirnopatrimónioé investirnopróprioEstado,é investirnacultura,édar-lhesubstânciaedepoisteroretornoeconómicodisso.

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JoãoDomingosBomtempo(1775–1842)foiumpianistaclássicoecompositorportuguês

P — Além desta tentativa de «restauro» de algumas obras de compositores nacionais,diga-me:oqueéqueaMetropolitanatemqueasoutrasorquestrasnãotêm?PA—AMetropolitanatemduascomponentesúnicas:acomponenteartísticaeacomponentepedagógica. Estas duas componentes estão de mãos dadas no nosso projeto. Somos umaorquestra e três escolas nas quaismuitos dos professores são simultaneamentemúsicos daorquestra,completandoumcírculovirtuosoqueculmina,emtrêspontosdoano(apartirdesteano serão quatro), em que lado a lado se sentam aluno e professor, formando uma grandeorquestra de dimensão sinfónica. Esse momento justifica, de um ponto de vista quasefilosófico, a existência daMetropolitana. Somos a única instituição em Portugal e uma dasraras do mundo que proporciona isto. Um outro aspeto importante é que somos umaorquestra itinerante: não temos a nossa própria sala, algo que espero que vá mudarbrevemente. Em Lisboa, estamos ancorados em três salas principais (fazemos o repertóriosinfónico no CCB, o repertório barroco no Museu Nacional de Arte Antiga e o repertórioclássico no Teatro Thalia) e temos também a missão de levar a melhor música à ÁreaMetropolitanadeLisboa.FazemosconcertosdeSetúbalàsCaldasdaRainhaouaLeiria.

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OTeatroThalia,nasLaranjeiras,Lisboa

P—QuerdesvendarondeseráanovasaladaMetropolitana?PA—Nãotenhoumarespostaparasi.Só lhepossodizerqueestamosa trabalharparaquenumfuturonãomuitolongínquopossamosteranossaprópriasala.P—Comobemrelembrou,aMetropolitanaéumaorquestraeétambémtrêsescolasdemúsica.Aseuver,qualéaimportânciadaaprendizagemdamúsicaaolongodaeducaçãodosjovens?OPedro,aliás,fezpartedoseupercursonoInstitutoGregoriano.PA — É muito importante ter a música como uma parte da educação geral. A formaçãoacadémica, psíquica e cultural de um aluno que, a par da sua escolaridade, faça também aaprendizagem de um instrumento é incomparavelmentemais rica e completa que a de umalunoquenãopasseporessaexperiência.Oestudodamúsicae,emparticular,doinstrumentoimpõeumadisciplinaprópria.Natradiçãogrega,amúsicaeraumacomponentecientíficaaolado da aritmética, da geometria e da astronomia. A música tem uma componentedisciplinadoradotempo,dapersistência,dacompreensão,darapidezdeação.Umrapazouumaraparigaquecomeceaestudarmúsicacom6ou7anos,ladoaladocomoensinobásico,eseasuaaprendizagemculminanoo12.ºeaomesmotempono8.ºgraudoinstrumentoserácom certeza uma pessoa muito mais rica, disciplinada, mais culta e com outro prazer naapreciaçãodamúsicadoqueumapessoaquenãotenhapassadoporisso.

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Amúsicaeranatradiçãogregaumacomponentecientífica

P — Concorda que também as bandas filarmónicas desempenham um papel de relevonestamatéria?PA—Absolutamente! As filarmónicas têm um papel incontornável. Cumprem um desígnioúniconoplanopedagógico,longedosgrandescentrosurbanos.Decertaforma,éasociedadecivil amobilizar-se para o ensino damúsica. São elas que formamos alunos que depois, jánuma etapa muito avançada, passam para as escolas superiores e depois para a vidaprofissional. Alguns dos nossos melhores músicos, na Metropolitana como no panoramanacional,começaram,justamente,pelasfilarmónicas,queacabamporserexemplosdeserviçopúbliconumpaísondeo saláriomédio rondaos800eurosmensais,ondeamaiorpartedasfamíliasnãotemrecursosparaporosseusfilhosaaprenderuminstrumentomusical,eondeéescassaaofertadeescolaspúblicasquepermitamessaaprendizagem.P — Qual é o contributo de Pedro Amaral para fazer evoluir o espírito da OrquestraMetropolitanadeLisboa?PA—Omeucontributoéaminhaexigênciaartística.Precisamosdeumaorquestraquetenhaprazeremtocar,quetenhaaambiçãodeseramelhorparaqueoníveldeexcelênciasejacadavez mais elevado e para que a relação com o público seja cada vez mais reforçada. É aqualidadequefazasuaperenidade.

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P—Setivesseumorçamentoilimitadohaviaalgummúsicoemparticularquegostassedecontratar?PA—Seeutivesseumorçamento ilimitadoaprimeiracoisaque fariaeraumasala!Àparteisso,claroquehámuitosmúsicosqueeugostavadetrazerparatrabalharconnosco.P—Comoporexemplo?PA—Gostavadetrazergrandesmaestros–PaavoJärvi,considero-oumdosgrandesartistasda atualidade. Voltaria a convidar omeu amigo Pablo Heras-Casado. Traria, certamente, oDaniel Harding ou o notável Jaap van Zweden. Músicos como Ivo Pogorelich ou PatriciaKopatchinskaja.

PedroAmaralconsideraPaavoJärviumdosgrandesartistasdaatualidade

P—Sabequal foioCD,deentretodososestilosmusicais,quevendeumaisexemplares,em2016,segundoaeditoraUniversal?

PA—Não,nãosei.

P—EmnúmerodevendasdeCD’snenhummúsicosuperouMozart.AcaixaMozart225:The new complete editionvendeu mais de 1,5 milhões de exemplares, segundo aUniversal.Surpreende-o?

P—Éfantástico,masnãomesurpreende.Mozartéintemporal.

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P — Confesso que eu fiquei surpreendida de saber que Mozart superou Beyonce, porexemplo…

PA—Nãomesurpreende.HojeemdiacomosmediaaspessoasnãoprecisamdecomprarumCDdaMadonnaoudaBeyonceporqueestãosempreaouvi-lanosmaisdiversossítios.MasMozarttemdeseiràprocura.Eessaprocuraéreveladora.

P—AindacompraCD’sououvetudodigitalmente?

PA—OiçodigitalmenteecompromuitamúsicanoiTunes.FisicamentejánãocomproCD’s.Oferecem-me muitos mas já não compro. Curiosamente, o último CD que comprei foijustamentedeMozart.

AcaixaMozart225:Thenewcompleteeditionvendeumaisde1,5milhõesdeexemplaresP—OPedroAmaraléumdosmúsicoseuropeusmaisativosdanovageraçãoeestámuitoligado à música contemporânea. Quais são os seus compositores contemporâneospreferidos?PA—AcompanhoparticularmentedaobradeMagnusLindberg.P—EporqueelegeMagnusLindberg?

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PA —Acho que ele conseguiu libertar-se da geração anterior, que foi uma geração muitocondicionante, mantendo uma grande genuinidade bem como uma enorme capacidade decriarnovasideiaseumnovopensamentomusical.Oqueaconteceunosanos1950,emmúsica,foi uma sobre-abundância de reflexão, interessantíssimamas... de algummodo esgotou-se,provisoriamente, essa obsessão com a armadura intelectual da obra e com o pensamentoestético-musical. As gerações seguintes afastaram-se um pouco dela. Certamente, hoje emdia,nãoseriamosoquesomosmusicalmentesemtermospassadoporaqueleperíodo.Poucosforam os compositores que conseguiram ao mesmo tempo beneficiar do impacto daquelaestéticaesobreviverinventandoterritóriospróprios,consistentes.Lindbergfoiumdeles.P—Equeoutroscompositoresquerrealçar?PA — Na continuidade, evidentemente, os compositores ligados a essa estética anteriorcomeçarampormarcar-nos.NocasoportuguêstemosEmanuelNunescujaobra,justamente,partedasreflexõesestéticasdeStockhauseneBoulez.Dageraçãodele,masquefoiumpoucomais longe, temosWolfgangRihm,queaindaestávivoe fazobrasextraordinárias.RihmfoialunodeStockhauseneStockhausenreclamavasempreisso(«oRihmfoimeualuno...»)comummisto de desdém e orgulho! (risos)O que Rihm fez, na verdade, foi recuar umpouco àgeração anterior à de Stockhausen (a Segunda Escola de Viena, de Schönberg, Berg eWebern),incorporandonumaestéticamodernaeestruturalistaaspectospuramentesensíveiseumaexpressãoque,emgrandeparte,osserialistastinhamperdido.Écomosecortássemosum pedaço de terreno e observássemos as várias camadas geológicas que formam esseterreno.EmRihmouve-seperfeitamente,deformaoriginalesintetizada,atransiçãoentreagrande escola alemã e austríaca da primeira metade do século XX e a grande músicaconsagradadopósguerra.Rihmconseguefazeralgodenovocomisso.EemFrança,Griseyabriuasgrandesportasdaquiloaquesechamaomovimentodoespectralismo.

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MagnusLindberg,pianistaecompositorfinlandês

P—Comodefineoperíodoatualnamúsica?PA—Creioquehojevivemosumperíododesíntese.Háperíodosmarcadosporumaestéticauniversal e transversal. Emmúsica, por exemplo, estudamos aquilo que se designa como oPeríodoInternacionaldaRenascença,umperíodoameiodoséculoXVIondealinguagemdecompositoresdosváriospaísesconvergiu,numRenascimentomuitotardio.P — Comparativamente a outras artes os movimentos na música são quase sempretardios…

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PA — Sim, é verdade. Vem sempre um bocadinho depois. E neste caso do PeríodoInternacional da Renascença é quase duzentos anos depois do inicio do Renascimento nasoutrasartes–recordoqueBrunelleschiconcebeuoseuprojetoparaacúpuladeSantaMariadelFiorenosprimeiríssimosanosdoséculoXV.NoterceiroquarteldoséculoXVItem-seumalinguagemmusical que é o produto da confluência de várias grandes tradições, da tradiçãoinglesaàtradiçãoborgonhesa,datradiçãofrancesaàtradição italiana,etudo istoconfluinochamadoPeríodoInternacional,numaEuropaemplenaContraReforma,nasdécadasqueseseguiramaoConcíliodeTrento.Pelocontrário,háperíodosemqueaindividualidadeemergeejá nãoestamosnumperíodo transversalmas simnuma sériede ilhas férteis.Oque tevedeinteressanteamúsicanosegundoquarteldoséculoXXfoiistomesmo:essamultiplicaçãodosestilos e da individualidade. Mais tarde essa individualidade dissolve-se. Os modernistasestavamtãopróximosque,emcertasfasesdosnosanos1950,dificilmentesedistinguiaumapeçadeBerio de umapeçadeBoulez oudeStockhausenoude LuigiNonoou até de JohnCage.Amúsica era extremamente parecida, homogénea no estilo, uniformena técnica.Noentanto,dezanosdepoiscadaumseguiuoseucaminho,eseguiramcaminhostãodiferentesquesetornarammundosquaseincompatíveis.Aliás,incompatibilizaram-semuitosdeles.P—Depoisdamúsicaeletrónicaeeletroacústicaqualéofuturodamúsicaerudita?PA—Possivelmenteachamadamúsicamista.Umamúsicaqueconjugameiosinstrumentaisemeioseletrónicos.P—Comoéquesetrazmaispúblicoparaamúsicacontemporânea?Existeessavontadedeconquistarmaispúblico?PA—Existeessa vontade, sim.EemPortugal existeuma instituiçãoquemerece ser citadacomoexemplo:aCasadaMúsica,nacidadedoPorto.ACasadaMúsicaassentounumterrenopouco povoado no sentido da oferta musical. Quando a Fundação Gulbenkian surgiu, emLisboa,jáexistia[oTeatroNacionalde]SãoCarlos,comumatradiçãoenormeaoníveldasuaorquestra,doseurepertório,dopúblicoqueofrequentava…P—...umpúblicoseleto…PA—Depende.QuandoosmúsicosatuavamemSãoCarlossim,eraumpúblicomuitoseleto.Masnaalturadosnossospais,numageraçãoanteriorànossa,SãoCarlostinhaumaatuaçãoregularnoColiseudosRecreios.Eramasclassesmaisoperáriasque iamassistiràsrécitasdeSãoCarlosnoColiseu.HaviaaelitenolargodeSãoCarloseasrécitasparaograndepúbliconoColiseu. Quando a Gulbenkian apareceu já existia isso e também a Orquestra da EmissoraNacional.QuandoaMetropolitanasurgiujáexistiaGulbenkianeSãoCarlos.NoPorto,quandoaCasadaMúsicasurgiuoterreno,nãosendovirgem,erapoucopovoado.EoqueaCasadaMúsicaconsegueémultiplicarassuasformaçõesecriarumanotáveldinâmicanaofertaenarelação comopúblico.Herdouuma formaçãoque já existia, aOrquestraNacional doPorto(hojeOrquestraSinfónicadoPortoCasadaMúsica),mas criou tambémoRemixEnsemble,dedicadoàmúsicacontemporânea,aOrquestraBarrocadaCasadaMúsica,etc.Opercursoda

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CasadaMúsicafoiconstruídoaolongodeanos,comconsistência,multiplicandoospúblicos,integrandoamúsicacontemporâneanosseusprogramasorquestrais.Estamosaquidiantedeumtrabalhodepersistêncianarelaçãocomopúblico.HouvemomentosemqueaGulbenkiantambémfez isso,nosanos1990,masestávamosnumcontexto sociológico, completamentediferente,commuitomenosofertaquehojeemdia.Recordo-meperfeitamentedeversalascheiasparaassistiràsobrasdeStockhausen.

P—Apesardeserintuitivamentereconhecidaporqualquerpessoa,definir«música»nãoéumdesafio fácil. Édifícil encontrarumconceitoqueabarque todosos seus significados.Querdeixar-noscomasuadefiniçãodemúsicapossível?PA—Músicaéaartedeorganizaroespaçosonoro.P—OcompositoralemãoKurtWeilldiziaquenãoconseguiaperceberadiferençaentremúsicasériaemúsicaligeira.Paraelesóexistiaboamúsicaemámúsica.OPedroAmaralconsegueperceberestasdiferença?

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PA—Sim, consigo. KurtWeill viveu numa época em que essas diferenças eram esbatidas.Tinha terminado o grande século romântico, o século XIX, e já no principio do século XXdeflagrou a apoteose do romantismo, com o expressionismo germânico, com as obras deMahleredeRichardStrauss,queéageraçãoprecedenteàdeKurtWeill.Essescompositores,essasmúsicaseesseestiloatingiramumgigantismopóswagneriano(quandosepensavaquedepoisdeWagnereraimpossívelser-semaisgigante).Essascatedraisgóticasquesãoasobraspós-românticasdoprincipiodoséculoXXpassam-se,todaselas,nodomíniodapuraerudição,embora na grandemúsica deMahler (não tanto na de Strauss emuitomenos ainda na deWagner) aconteça a introdução de ecos de música mundana. O Frère Jacques aparece naprimeirasinfoniadeMahler,Titã,queabarcatudo.Aobrasinfónicapassaaserumaespéciedesublimaçãodomundo,atravésdocrivodaerudiçãomasabarcandoatambémmundanidade.A geração seguinte já não queria esta reflexão gigantesca, nem a sua estética quasedemiúrgica.Queria,sim,estarpertodamundanidade,pertodascoisasfuncionaisdodiaadia.Tanto podiam escrever umamúsica erudita para ser tocada numa situação de concerto, nagrandetradiçãoschubertianadepianoevoz,comousaromesmopianoeamesmavozparacantarumanúncioparaarádiocomumasenhoraaexaltarasvirtudesdeumsabonete,numalinguagemmaisacessívelaopúblico,aquemoanúncioeradirigido.Defacto,emKurtWeillenessaépoca(nofundo,aépocadaRepúblicadeWeimar,umaépocaextraordinária...)háumesbatimento das fronteiras estéticas que, entre outras coisas, está na origem de formashíbridascomoa introduçãodoJazznaópera,comoKrenekfaráemJonnyspieltaufseguido,mais tarde, por Gershwin em Porgy and Bess. Aliás, isso não acontece apenas dentro doperímetro germânico: a maneira como Stravinsky integra o jazz na sua poética musical éextraordinária. Conseguimos ouvir ao mesmo tempo o objeto jazz e a distância que ocompositor provoca em relação a esse objeto. Claro que, nessa época, as fronteiras seesbateram.

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KurtWeilleamulher,LotteLenya,em1942

P—Masafinalqueelementodiferenciadoréesseque,nosnossosdias,defineafronteiradamúsicaeruditadamúsicaligeira?PA—Voudar-lheumexemplomuitoconcreto.NãohádúvidadequeMozartéumcompositorerudito. No entanto, hámúsica emMozart que é puramente popular. E é esta conjugaçãoentreopopulareoeruditoquefazcomqueMozartsejasimultaneamenteumgénioparaaspessoasqueapreciamoladoeruditoeomaisfascinantedoscompositoresparaaspessoasqueapreciam peçasmusicaismais populares, até para uma criança.QuandoMozart compôs AsBodasdeFígaro,BeaumarchaistinhaacabadodeestrearAsBodasdeFígaropoucosanosantes,na década de 1780. Era, portanto, uma obra contemporânea. Quando se lê o texto deBeaumarchaisedepoisselêotextod’AsBodasdeFígaro,talcomoLorenzoDaPonteeMozarto adaptaram na ópera, encontra-se uma diferença capital: o texto do Beaumarchais é puraliteratura,éumtextocomumalinguagemliteráriasofisticadíssima,ondeaspersonagenssãoextremamente inteligentes e a linguagem erudita. Mozart e Da Ponte colocam a mesmahistórianumalinguagemcompletamenteterra-a-terra.

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P—Issoé,numalinguagemmuitomaisacessívelaopúblico?PA—Totalmente acessível, popular e, emmuitos casos, brejeira. As pessoas normalmentenãoleemcomparticularatenção,porqueestãoabsorvidasnamúsica,masseobservarmosotextod’AsBodasdeFígarotalcomoMozarteDaPonteoadaptaramencontramosobservaçõesde fazercorarqualquerum!!Encontramos lá tiradascompletamentebrejeirasqueumapeçaeruditaprovavelmentenãoteria,enumalinguagemdodiaadia,longedospíncarosliteráriosdeBeaumarchais.Aestepropósito,éconhecidaacríticaqueBeethovenfazia,nãoemrelaçãoaAsBodasdeFígaromasemrelaçãoaoDonGiovanni.

P—Quecríticaeraessa?

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PA—Eraumacríticamoral.Beethovenquestionavacomoerapossívelagrandeartedescerapontodetocarnaimoralidade.P—Voltandoàsdiferençasentremúsicaeruditaemúsicaligeira…PA— Penso que se há uma diferença fundamental entre arte erudita e arte popular, essadiferençaestánaescrita.Aartepopularnão resultadeumprocessodeescritamasdeumaconstruçãoessencialmenteempírica.Sepegarmosemcasos concretosdepoetaspopulares,comoAntónioAleixo, verificamos que a poesia dele, ainda que fixada na escrita, resulta deumaelaboraçãoquaseoral–étalvezporissoquesememorizatãofacilmente.Pelocontrário,numaobraeruditaaescritaconstituiopróprioveículocriativo.SepegarnumtextodeProustoudeBalzac,aquiloqueláécontado,étotalmenteirrelevante.Proustdeambulaemdezenasdepáginassobreobeijoqueamãelhedáantesdeadormecer.Istoéumproblemadele–doautor ou da personagem ou provavelmente dos dois. O que nos faz ficar colados àquelaspáginasnãoéoconteúdomasaescrita,éainvençãopropriamenteliteráriacomaqualaqueleconteúdo, tantas vezes irrelevante, é veiculado. Já na literatura de tantos bestsellers éexatamenteocontrário:oconteúdoéextraordinárioeaescritaéinsignificante.Éissoquefazcomqueessasobrassejamprovavelmentetransitórias.Jánãonoslembramosdosbestsellersdosanos1980nemdosanosde1990.Osnossosfilhosprovavelmentenãose lembrarãodosbestsellersdehoje.Aexistirumafronteiraentreaartepopulareaarteeruditaéafunçãodaescritaemcadaumadelas.P—Acabamos, então, como começamos, unindo literatura emúsica.OscarWilde diziaquemúsica é a artemais perfeita e justificou o porquê, por nunca revelar o seu últimosegredo.Quesegredoéeste,Pedro?PA—(risos)Étodaumavidaàprocura…

QUESTIONÁRIO:

Oqueandaaler?TermineiItáliadeAntónioMegaFerreiraeestoualerdoislivrossobreassinfoniasdeBrahms:odeDavidHurwitzeodeWalterFrisch.

Comporoudirigir?

Ambas.

OsmaiorescompositoresdoséculoXX?

[Ígor]Stravinsky;[Claude]Debussy(semdúvida,apesardeestarnatransiçãodoséculoXIXparaoséculoXX),[Maurice]Ravel,[Pierre]Boulez,[Karlheinz]Stockhausene[Luciano]Berio.

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Maiorcompositordetodosostempos?

Setalexiste,serátalvezJohannSebastianBach.

Maiormaestrodetodosostempos?

Umconjuntoformadopor[Leonard]Bernstein,[Herbertvon]Karajan,[Sergiu]Celibidachee,provavelmente,CarlosKleiber.

Ummúsicoabsoluto?

LucianoBerio.

Músicaséria,eruditaouclássica?

Erudita.

Músicaorquestraloumúsicadecâmara?

Dependedahoradodia.

Notamusicalpreferida?

Dó.

Termomusicalpreferido?

Lontano.

Instrumentomusicalpreferido?

Aorquestra.

Acidademusicalporexcelência?

Veneza.

Asalapreferida?

Nãoreveloparanãoestimularaconcorrência.

Opúblicoqueaplaudeentreosandamentos?

Entusiasta.

OCdmaisouvido?

Dependedoqueestouatrabalhar.

Umrepertórioquejamaisvaidirigir?

Ummusicalamericano.

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Orepertóriodesonho?

Todaaobrade[Anton]Bruckner.

Nomesdedestaquedamúsicaportuguesacontemporânea?

AntónioPinhoVargas,semdúvida,SérgioAzevedo,LuísTinocoeMiguelAzguime.

Estaçãoderádioportuguesapreferida?

AAntena2.