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246 Para a atualização dos temas tratados no texto A Psicologia no Brasil, primeiro artigo publicado na revista número zero, a comissão editorial da revista Psicologia: Ciência e Profissão indicou duas pessoas para serem entrevistadas, que representassem respectivamente a ciência e a profissão no nosso país. Para falar sobre o desenvolvimento da profissão nos últimos 30 anos, foi entrevistada a professora Ana Mercês Bahia Bock, Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde leciona e desenvolve pesquisas, com ênfase em Psicologia sociohistórica, atuando e pesquisando principalmente nos seguintes temas: Psicologia, educação, Psicologia sociohistórica, profissão e compromisso social e dimensão subjetiva da desigualdade social. Foi presidente do Conselho Federal de Psicologia por três gestões. Preside o Instituto Silvia Lane – Psicologia e Compromisso Social e é, atualmente, secretaria executiva da União Latino-americana de Entidades de Psicologia. Para falar aos leitores da revista sobre o desenvolvimento da ciência psicológica, foi entrevistado o professor Cesar Ades. Doutor em Psicologia experimental (1973), livre- docente pela Universidade de São Paulo (1991), é professor titular (1994) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Atualmente, dirige o Instituto de Estudos Avançados da USP. É membro do International Council of Ethologists, da International Society of Comparative Psychology e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Etologia (SBEt), da qual foi fundador. Suas principais linhas de pesquisa estão na área de etologia e do comportamento animal. “A Psicologia no Brasil” Entrevista PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2010, 30 (num. esp.), 246-271

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246246

ParaaatualizaçãodostemastratadosnotextoA Psicologia no Brasil,primeiroartigopublicadonarevistanúmerozero,acomissãoeditorialdarevistaPsicologia: Ciência eProfissão indicouduas pessoas para serem entrevistadas, querepresentassemrespectivamenteaciênciaeaprofissãononossopaís.

Parafalarsobreodesenvolvimentodaprofissãonosúltimos30anos,foientrevistadaaprofessoraAnaMercêsBahiaBock, DoutoraemPsicologiaSocialpelaPontifíciaUniversidadeCatólicadeSãoPaulo,ondelecionaedesenvolvepesquisas,com ênfase em Psicologia sociohistórica,atuando e pesquisando principalmente nosseguintestemas:Psicologia,educação,Psicologiasociohistórica,profissãoecompromissosocialedimensãosubjetivadadesigualdadesocial.FoipresidentedoConselhoFederaldePsicologiapor três gestões. Preside o Instituto SilviaLane – Psicologia eCompromisso Social e é,atualmente, secretaria executiva da UniãoLatino-americanadeEntidadesdePsicologia.

Para falar aos leitores da revista sobre odesenvolvimento da ciência psicológica, foientrevistado o professorCesar Ades.Doutorem Psicologia experimental (1973), livre-docente pela Universidade de São Paulo(1991),éprofessortitular(1994)doInstitutodePsicologiadaUniversidadedeSãoPaulo(IPUSP).Atualmente, dirige o Instituto de EstudosAvançadosdaUSP.ÉmembrodoInternationalCouncilofEthologists,daInternationalSocietyofComparativePsychologyevice-presidentedaSociedadeBrasileiradeEtologia(SBEt),daqualfoifundador.Suasprincipaislinhasdepesquisaestãonaáreadeetologiaedocomportamentoanimal.

“APsicologianoBrasil”

Entrevista

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APsicologiacomoProfissão:EntrevistacomAnaBock

PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO,

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Ana Bock

PontifíciaUniversidade

CatólicadeSãoPaulo

Ana Bock –OtrajetodaPsicologiapodesersintetizadocomoodeumaprofissãocomprometidacom interesses da elite brasileira – que, de certa forma, é responsável pelo ingresso edesenvolvimentodaPsicologianoBrasil–atéomomentoatual,quepodeserchamadodemomentodecompromissoou,pelomenos,docomeçododesenvolvimentodeumprojetodecompromissocomasnecessidadesdamaioriadapopulaçãobrasileira,comumavontadeclara,entreospsicólogos,deumainserçãomaior.Issonãoquerdizerquehajaumúnicotipodeinserção,poisháumatensãosobrecomoseriaessainserção.Entretanto,pode-sedizerquetodosospsicólogosatualmentegostariamqueaPsicologiativesseinserçãomaiornasociedadebrasileira,oquesignificaefetivamenteumcompromissomaiorcomoutrossegmentosdasociedade.

As pesquisas têmmostrado que os psicólogos gostammuito da profissão, que semantêmregistradosnoConselhomesmosemtrabalharnaprofissão,porqueelesimaginamqueumdiavãoexercê-la.OscursosdePsicologiatêmbaixosíndicesdeevasãoedeinadimplência,oquemostraumvínculo,eissotemrefletidoointeressepormaiorinserção.

Iracema Neno Cecílio Tada –Nocomeçodaprofissão,quaisáreastinhammaiorfocodeatuaçãodospsicólogos?Atualmente,outrasáreasestãosurgindo?Comovocêasanalisa?

Ana Bock –Tínhamos,noiníciodainstitucionalizaçãodaprofissãonoPaís,umcompromissoquasequeexclusivocomaelitebrasileira.EstávamosincluídosnoprojetodemodernizaçãodoPaís.Sabemosque,namodernização,tudooqueseapresentoucomotecnologiaganhouseuespaçosocial.AtecnologiaapresentadapelaPsicologiaconsistianostestespsicológicos,que,deformaobjetivaetecnológica,contribuíamparaacategorização,paraadiferenciação,ajudandoaencontrarohomemcertoparaolugarcerto.Estávamosincluídosemprocessosdeseleçãodepessoaleorientaçãoprofissional.Tambémcomostestes,nasescolas,ajudamosaformarclassesmaishomogêneasparaprepararmelhorascriançaseos jovensparao trabalho.GanhamosespaçonasociedadecomessesdoiscamposdaPsicologia.

“A Psicologia no Brasil”

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faculdade,aindacomoaluna,querelatavaahistóriaouvidadeumoperário.Elecontavaque havia perdido uma oportunidade deempregoporquenãosoubedesenharumaárvore, comoopsicólogo havia solicitado.Dizia ele: “Opsicólogomandoudesenharumaárvoreedepoisdissequeeunãoserviaparaotrabalho”.Decertaforma,atéhoje,naseleçãodepessoal,permaneceesseproblemadodesconhecimentodecomoessasatividadespodemservirparaefetivamenteselecionar.Seumprofissionaldaseleçãopedisseparaqueooperárioapertasseumparafusoeavaliassequenãoapertoubem, seria fácil entendernão ser aprovado,masmandar desenharuma árvore soava estranho. Issomostra ocaminhodeelitedaprofissão.Nossasformaseinstrumentosdetrabalhoutilizavameaindautilizamrecursosque,muitasvezes,nãosãocompreendidospelamaioriadapopulação,àsvezesporquesãosofisticadosparaquemtempoucaescolarização,àsvezesporquesetemdificuldadedeentenderarelaçãocomoobjetivoparaoqualseempregaatécnica.

EdlaGrisard de Andrade–Querdizer,nãoera significativo para a camada pobre oumesmomédiadapopulação?

Ana Bock –Isso;haviaumarelaçãodistantecomapopulação,queeratensa,demedo,dedesconhecimento.Eraumenigmaoqueaqueleprofissionalefetivamentefaziae,aomesmotempo,haviaumreconhecimentodecertopodernoqueelefazia,napossibilidadede tirardo lugar,mandarparaoutro lugar,reprovarnaescola,colocarnaclasseespecial.As pessoas não sabiam o que faziam ospsicólogos, e daí o imaginário de que ospsicólogosadivinhamacabeçadooutroouquetratamdegentequetemacabeçafraca,queédoido.Ospaismuitasvezessereferiamaospsicólogosdessaforma.Osexemplossãoparadizerqueeraumaprofissãoquenãotinhanenhuminteresse,nenhumprojetoparaseaproximarefetivamentedapopulaçãoefazerumtipodeserviçoquefossepercebido

Edla Grisard de Andrade –EaLeinº4119?

Ana Bock –ALein°4.119/62,queregulamentaaprofissãonoBrasil,foicomoumacertidãodenascimentoantesqueobebêtivessenascido,ou seja, não tínhamos, naquelemomento,algoquepudesseserdenominadoprofissão:não havia uma categoria profissional, nãohavia (anãoseros testes)umconjuntodeferramentas de trabalho, não havia umdiscurso que identificasse os psicólogos,enfim,nãohavianenhumacondiçãosocialparaoreconhecimentooficial,legal,deumaprofissãodepsicólogo.ÉinteressanteobservarqueospsicólogosforamsurpreendidospeloProjetodeLei.QuandooProjetodeLeijáestavapronto,ospsicólogosforamchamadosparaopinarsobreele.Nãogostaram,e,apartirdisso, trabalharam paramodificá-lo, paraproduziremendas.OProjetomodificaquasecompletamenteotextooriginal.AprovadaaLei,restouodesafiodeconstruiraprofissão.Tínhamosumcerto reconhecimento socialque provinha das elites,mas a sociedadecomoum tododesconheciaaPsicologiaesuacontribuição.Osanos70eoiníciodosanos80sãofundamentaisparaamudançaderumodaprofissãonoPaís.Nafaculdadeem que fiz o curso, por exemplo, existiaum professor que criou uma disciplinachamadaCaracterização sociopsicológica dotrabalhador brasileiro,noiníciodosanos70.ÍamosparaOsasco,SãoBernardodoCampo,SantoAndréconversarcomgruposoperáriossobreaPsicologia,eapopulaçãodesconheciacompletamente o que estávamos falando.Quando perguntávamos se conheciampsicólogos,arespostaeranegativa.Quandoperguntávamos se, na empresa onde ooperáriotrabalhava,eletinhafeitoseleção,alguns entrevistados diziam conhecer opsicólogo da seleção de pessoal, que eratido, no imaginário operário dos anos 70,comoumporteirodeluxoqueimpediaseutrabalhousandoferramentascujaefetividadea população desconhecia. Eume lembrode termos feito umamatéria no jornal da

Eu me lembro de termos feito

uma matéria no jornal da

faculdade, ainda como aluna, que

relatava uma história ouvida

de um operário. Ele contava

que havia perdido uma

oportunidade de emprego porque

não soube desenhar uma

árvore, como o psicólogo havia solicitado. Dizia

ele: “O psicólogo mandou desenhar

uma árvore e depois disse que

eu não servia para o trabalho”.

Ana Bock

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como necessário ou para responder àssuas necessidades. Estávamos efetivamenteligadosaosinteressesdaelitebrasileiraeaoseuprojetodemodernização.Essecaminhonãoé sempedras.Encontra-se,nahistóriadaprofissãonoPaís,pessoasquebuscavamoutrasformaseoutroscompromissosparaaPsicologia.Ospsicólogos,quandoentravamna saúde pública e levavamomodelo detrabalhoqueestavamacostumadosautilizarcomaelite,encontravamdificuldadesmuitograndesparaexerceressetrabalho,porqueas técnicas e as ferramentas eram todasintelectualizadas,os recursosde linguagemsofisticados,enãoserviamparaamaioriadapopulação.Issoévividocomoumacrisequeseacentuanosanos70comodesenvolvimentodo pensamento crítico na sociedade,decorrente da ampliação domovimentosocial que se organizou para combater aditaduramilitar. É o lado contraditório daditadura. Ela vempara nos calar, para nosimpedir,mas, contraditoriamente, produzum tensionamento,uma insatisfação,evaiproduzindonasuniversidadesenasociedadeemgeralumpensamentocrítico.

Edla Grisard de Andrade –Eabreabrechaparaoprojetodocompromissosocial,éisso?

Ana Bock – Sim, é isso. Alguns aspectosdos anos 70 nos permitem compreenderporque o projeto do novo compromissosocial vai surgir nesse período.O fato determos a ditaduramilitar e a perseguiçãoaos intelectuais, a toda a esquerda, deveser levado em conta. A parte intelectualdessa esquerda recua para as instituiçõesuniversitárias e vai fazero seu trabalhodemilitânciaali,ensinandoMarx,quepropicialeiturasmaiscríticas.Contraditoriamente,naditaduramilitar,omarxismo,umpensamentoque estava resguardado às esquerdasbrasileiras, começa a se espalhar.Outracoisa é todo omovimento operário, quecresce.Háumcaldo demovimento socialimportante:ofortalecimentodossindicatos,

as grandes greves de 1970, 1972, em SãoBernardo,osurgimentodaliderançadoLula.Essamovimentação à esquerda propicia osurgimento, nos cursos de Psicologia, depensamentos críticos, principalmente dequestionamentossobrede que lado estavam os psicólogos.Começaasurgirodesenhodeumanovaprofissão.

Tambémé fator importante a abertura dasuniversidades para a camada média. Aditadura precisava do apoio das camadasmédias para se sustentar. Ao mesmotempo,quandoelaabreoPaísaosgrandesinvestimentos internacionais, começama se instalar os grandesmonopólios. Ospequenos negócios, como a vendinha daesquina,apadaria,acostureira,oalfaiate,osapateiro,vãocomeçarafalir,eosfilhosdacamadamédiavãoperdersuapossibilidadedemanutençãodostatusdecamadamédia.Claro que a ditadura perderia o apoiodessa camada se isso semantivesse assim.Então, a ditadura negocia comesse grupoapossibilidadedequeseusfilhos,nãomaisherdeirosdospequenosnegócios,setornempsicólogos,médicos,engenheiros,advogados.Eassimasuniversidadesvãoampliarassuasvagas.Háumgrandeboomdasuniversidadesna primeirametadedadécadade 70. Eraumaoutracamadasocialqueingressavanasuniversidades,queatéentãoeramreservadasàselites.IssomudaaUniversidade,issomudaaformaçãoemudaaprofissão.

Edla Grisard de Andrade – Quantasuniversidades de Psicologia nós tínhamosnessaépoca?

Ana Bock – Tínhamospoucas; é nos anos70quemuitoscursosvãosurgir.SãoPaulopassaaterumgrandenúmerodecursosquecolocamnomercado umnúmero enormedeprofissionais.Souonº2.771noConselhoRegionaldePsicologiadeSãoPaulo (CRP–06),inscritaem1977.ComoesseConselhotinha,àépoca,maisde60%dospsicólogos

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inscritos noPaís, significa quenão éramosmaisde5mil(aproveitoparasalientarqueestamosemmeadosdosanos70, imagineem1962, quando a Lei foi promulgada!).Em1980,jáseencontramnasestatísticas30mil.Háumsalto.Crescemosemprogressãogeométrica, principalmente no Sudeste,depois nos espalhamosmais lentamentepeloPaís.Nosanos90,emalgunsEstadosdoNorteedoNordeste,aindasetemumaescoladePsicologiaporEstado.HojenãohánenhumEstadoquetenhasóumcurso.Masoboomdosanos90temoutrascondiçõesecaracterísticas.

Iracema Neno Cecílio Tada –Apartir dadécada70,quaisáreasdeatuaçãotêmmaisdestaque?

Ana Bock –Vouchegarlá,masquerofazeroutracorreçãoantes.Achoque,nosanos90,ooutroboomquevaiacontecernasescolasnãoéaindaporumapolíticadeacessodascamadaspobres.Atualmente,háampliaçãodevagasnasuniversidades federais, temoProgramaUniversidadeparaTodos,oProuni,e agora sim, há umprojetode acessodascamadaspobres.Masoquelevaaograndeboom dasescolasnadécadade90,quelevaRondôniaatersetecursos,SantaCatarinaater 23, é o projeto neoliberal, de reduçãoe privatização dos serviços que eram doEstado,oprojetodoEstadomínimo.ÉessareduçãodosserviçosprestadospeloEstado,masnãode reduçãodo seu controle,quevaipermitirqueosgrandesinvestidoresdabolsa de valores, negociantes que tinhamnegóciosdeoutranatureza,passemainvestirnaeducação,levandoàaberturadeescolasparticularesnoensinofundamental,noensinomédioenasuniversidades,campoquetinhaumademandareprimidamuitogrande.Issoéumparêntesequefaço,apenasparadestacarquetemoscrescimentodasuniversidadesporváriosmotivos,nodecorrerdaHistória.Nosanos70,eradevidoàcooptaçãodascamadasmédiaspelaelite.

Então, chega-se aos anos 70 com essesfatores: a ditadura, omovimento social, aclassemédianaUniversidade.Issovaitrazerpara aUniversidade e para a organizaçãodacategoriaprofissional,dossindicatos,dopróprio Conselho, questionamentos sobreque profissão temos. Eramuito comum,naquela época, encontrar semanas dePsicologia que tinham comoquestõesque Psicologia queremos, que psicólogos queremos ser. Era ummovimento de construção deidentidade, e estava posta a questão será que eu queroser esse psicólogo que está aí, da elite? Issovaisefortalecerenormementenosanos80,quandoacontecemduascoisasimportantes: a entrada dos psicólogos nasaúdemental,encontrandoaliomovimentosanitarista já organizado e avançando apassos largos, e o surgimento, a partir dasuniversidades, da Psicologia comunitária,quenascenosestágiosdosalunos.Elesvãofazersuasexperiênciasjuntoaooperariado,emSãoBernardo,Osasco,nocasodeSãoPaulo,ou vão trabalharna favela, juntoaomovimentodecrechesounascomunidadesdebairro.Éomomentododesenvolvimentodo pensamento do Paulo Freire. A Igrejavai utilizar o pensamento freiriano comoum pensamento capaz de organizar aspopulações.Éomomentodasorganizaçõesdaspastoraisoperárias.APsicologianasaúdemental, dentro do serviço público, vai sedistinguir completamente da saúdeque sefazia nas clínicas psicológicas particulares,quenemsechamavasaúde.Eissovaimudarmuitoacaradaprofissão.Ospsicólogosvãoentrarnasaúde,vãoseorganizarnasaúde,vãosedestacar,vãovirarliderançasnasaúde.Essasnovaspráticasvão,aospoucos,penetrarnasUniversidades,modificandoaformação.APsicologiacomunitária tambémteveessemesmopapel.Ela,diferentementedasaúde,começou nas universidades e se espalhoupara aprofissão.Dequalquer forma, eramdoismovimentosqueaprofissãofaziaqueseintegravam,sealimentavamepropiciavamodesenvolvimentodeumnovoprojetoparaa

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profissão:oprojetodocompromissosocial.

Edla Grisard de Andrade – QualarepercussãodissoparaaPsicologia?

Ana Bock – Isso fortaleceumpensamentonovonocampodaPsicologia.APsicologiacomunitária é um contato direto e umaexpressãodiretadeprojetodecompromissocom a população. São os psicólogostrabalhando nas favelas, nas comunidadeseassociaçõesdebairro,nascreches, juntocomasmãesnomovimentodecrecheenasentidadessindicais.

Édessaexperiênciaque,acho,vãocomeçara surgir e a se desenvolver novas áreas enovas possibilidades de intervenção: umanovatecnologiaparaotrabalhodopsicólogo,ampliandoasformasrestritasquehavia.AnaMariaAlmeidacomenta,apartirdapesquisarealizadaem88peloCFP,queresultounolivroQuem É o Psicólogo Brasileiro, quenão tínhamosum instrumentalde trabalhodiversificado.Ospsicólogosfaziamamesmacoisaemtodososlugaresemqueatuavam.Nosanos80,issosemodifica.OutrosfazerescomeçamaseinstituircomorealpossibilidadedetrabalhoemPsicologia.Cabelembrarque,em 2000, quando realizamos a I Mostra Nacional dePráticas em Psicologia: Psicologia e Compromisso Social,tivemosdificuldadespara que os psicólogos, que atuavam demaneiradistintadoquesepoderiachamardetradicional,reconhecessemqueoconviteparamostrarseutrabalhoeraparaeles.Elesachavamque não atuavam emPsicologiaporquenãofaziamasatividadesqueestavammarcadasequeidentificavamocampo.Mas,termos recebidodoismil trabalhosmostraque anova Psicologia já estava inventada.Tudoissosignificaquejáhaviaumnovojeitodesecolocarnasociedade,comprometidocom necessidades, com carências, comexigênciasquevinhamdeoutrossegmentosdapopulação.Edla Grisard de Andrade –Claroqueétudo

muitodialético,mas às vezesmeperguntose não é também uma reparação com apopulação, porque a profissão começouvoltadaparaaselitese,emcertamedida,portodo essemovimento contraditório, acabaatendendoasdemandasdapopulação.

Ana Bock –Sim,éumatenderasdemandasda população, como disse no começo,não sem contradições, não sem intenções.Existe um voltar-se para a população queestá diretamente relacionado a interessescorporativos,deteremprego,nãoexatamenteao acesso da população.Mas está tudocolocadoemummesmocampo,háumdiálogoe uma tensão permanentes entre aquelesque constroemo projeto do compromissosocial, porque acham que a Psicologiadeve colaborar com a transformação dasociedade,dandocondiçõesdignasdevidasparaagarantiadosdireitoshumanos,eentreaqueles que só estão interessados em terempregoeachamque,para isso,éprecisoqueaPsicologiapossaserestendidaaoutraspessoas.APsicologiaéumbemsocialetodosdevemteracessoaela,masháumadivisãoentreaquelesqueachamqueessaampliaçãosignificaapenasutilizarosrecursosexistentescomanovaclientelaeaquelesqueachamqueéprecisoconstruirumanovapsicologiaadequadaàsnecessidadesdanovaclientela.Eudiriaqueessassãotensõesnaprofissão,tensõesquesãoquasepermanentes.

Iracema Neno Cecílio Tada – E há umdistanciamento do compromisso teórico,crítico,comatécnica.

Ana Bock –Háumdistanciamento.Hápoucapreocupaçãocomareformulaçãodatécnica.Porquê?Essaéjustamenteaquestãoquemelevouaestudarofenômenopsicológicocomoévistopelospsicólogos.Comotemos,talvezhegemonicamente ainda, o pensamentode que o fenômeno do psicológico é umfenômenonaturaldohumano,universalnohumano,tomamosnossosconceitosdasvárias

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teoriaspsicológicaseosaplicamosaqualquerhumano.Éaideiadequetodossãoiguais,todos são dotados dessas potencialidades,que vem do pensamento liberal e quepermite que se aplique à Psicologia, damesma forma, amesma técnicapara todomundo.Nãopassapelacabeça–ainda–damaioriadospsicólogos,quenossapsicologiaéumapsicologiabranca,masculina,europeiaou americana.Há estudos específicos danegritude,daexistêncianegranoBrasil,emquemaisde50%dapopulaçãosereconhecenegra. Essa questão não é percebida.Não discutimos, no curso de Psicologia,essasquestões,não fazemospesquisaparaconheceressarealidadepsíquicadamaioriadenossapopulação.HáumestudodeFranklinFerreira quemostra quão poucos estudosexistemsobreaquestãonegranocampodaPsicologia.TemosdificuldadedeperceberoquantoasconstruçõesdaPsicologiaacabamocultandoadesigualdadesocial,asdiferençassociais, porque vamos aplicar osmesmosconceitos, omesmoesquema teóricoparaqualquer sujeito. Essa questão a profissãoaindatemparaenfrentarnospróximosanos.Hámuita coisa escondida por detrás denossos conceitos,porqueaindanão fomoscapazes de dar visibilidade, de enxergarcomclarezaque,emnossosconceitos,emnossas técnicas, está embutidoumpadrãodebranco,masculino,europeu,eque,nasnossas teorias de desenvolvimento, aindaestamos presos a conceitos e construçõesquetêmcomomodelocriançasamericanasou suíças. Ainda não vemos problemanisso,porquenãoseevidenciouaquestãono campo da Psicologia. Nós ainda nãoduvidamosqueossujeitossejamuniversais,nãopusemosaquestãoverdadeiramentenaPsicologiadeformaquetodomundopossadizer:“Ondeestáessesujeito?Eleéíndio.Seráquepossousarosmeusrecursosteóricosque foram criados na Europa branca paraentender o dinamismopsíquico do índio?Servem? E o negro? E amulher brasileira

dasperiferiasquechefiasuafamília?”Masoprojetodocompromissosocialjácolocouessaquestãosobreamesae,comcerteza,vamosavançarnela.

Edla Grisard de Andrade –Poroutrolado,háquemdigaqueessetipodepensamentoenfraqueceocientificismodaPsicologia,háquemcritiquemuitoessaideiadepsicologias.

Ana Bock – Hámesmo. Você tem todarazão, por isso digo que é um debatenecessário.Minha opinião aqui explicitaUMA posição,mas não a única posição.HámuitospensamentosdistintosnocampodaPsicologia (hápsicologias)queprecisamser debatidos.Quando se começa a dizerque nem todas as pessoas são iguais, queesseconhecimentonãoserveparaalgumas,começa-seaquestionaraprópriasustentaçãodopensamentomoderno,dequetodomundoéigualepodeterasmesmascondições. Jáfoiaépocaemquenobreseramumacoisae servoseramoutra.Opensamento liberalrompeuessacertezaedissequetodomundopodeserigual,dependedoesforçodecadaum. Foi dado um salto revolucionário dopensamento feudal, sem dúvida alguma.Então,édifícilsuperarissosemquesecaiana ideiadequeos sujeitos sãonovamentecolocadoscomodesiguaispelasuacondição.Oreconhecimentodadesigualdadetemdeser um reconhecimento da desigualdadesocial aliado a umpensamento de que ascondiçõessociaisconstituemsubjetivamenteos humanos, para o psicólogo poder, aoconsiderar os sujeitos de forma desigual,entender que são as condições sociais esubjetivas,históricas,queestãoproduzindoessasdiferenças.

Edla Grisard de Andrade –Issoamedrontaoprofissionalqueestálánaponta,juntocomapopulação.Ana Bock – Claro, pois levamos cincoanos para nos formar, e agora tudo o que

Não passa pela cabeça – ainda – da maioria dos psicólogos, que

nossa psicologia é uma psicologia

branca, masculina,

europeia ou americana. Há estudos

específicos da negritude, da

existência negra no Brasil, em que mais de 50% da

população se reconhece negra. Essa questão não

é percebida. Não discutimos,

no curso de Psicologia, essas

questões, não fazemos pesquisa

para conhecer essa realidade

psíquica da maioria de nossa

população.

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se aprendeu não serve para trabalhar naUnidadeBásicadeSaúdeouemumCentrodeReferênciaemAssistênciaSocial(CRAS).Nósnossentimosdesarmados.Adificuldadede nos instrumentalizarmos para trabalharnesses locais faz,muita vezes, com queprefiramosacharque todosos sujeitos sãoidênticos e que se pode usar omesmorecurso,poiséoqueaprendemos.

Edla Grisard de Andrade –Comoasenhoravê a função daAcademia nesse processo,comoformadora?OquantoaAcademiaaindaestá,ounãoestá,distantedoprofissionalquerepetetécnicasdescontextualizadas,porqueasaprendeunaAcademia?

Ana Bock – Tenho visto aAcademia commuitopessimismo,talvezporqueestejamuitodentro dela, hámuitos anos. Eu pensavaqueasdiretrizescurriculares,sópelofatodeseremalgoquenosmoveudolugar,poderiamproduzir outra realidade de formaçãoacadêmica, semdeixarde reconhecerquemuitos cursos fazemhojeumesforçoparaabsorverasquestõesdapopulação;euachoa ciência dura. Há esforço nos estágios,professoresfazendoinovações,colocandoosalunosemsituação,masoconhecimentoéduro.Elenãosemove.Continuamostendo,noscursosdePsicologia,asteoriasensinadassem suas bases epistemológicas, semqueseensinequalhumanoestápresente,qualhumanoéomodelo emcadaumadessasteorias. Tenho dito que nossa formação étecnicista,ouseja,ensinamosparaaplicaroqueensinamos.Nãotemostidoumaposturauniversitáriaecientíficaqueimplicaduvidar,questionar, interrogar o conhecimento apartir do contato problematizador com arealidade.Achoqueé issoque temosquefazer:ensinarumcontatoproblematizadorcomarealidade.Podemosedevemosensinartodasaspsicologiasquesãoproduzidasnomundo todo,mas nãopodemos continuarcom essa postura colonialista de recebereaplicar.Épreciso traduzir,e isso significa

dialogarcomosconhecimentosproduzidosemoutrospaísesdemodoareinterpretá-los.

Edla Grisard de Andrade – EnãoseconstróiumateoriaquesejaprópriadoBrasil.

Ana Bock – Nós precisamos ter umconhecimento que SIRVA para o Brasil,ou seja, para todos os brasileiros. Se eleé produzido aqui ou reinterpretado aqui,não importamuito.Oque não se pode éaplicarmecanicamente o que é produzidoa partir de outras realidades. Os povoslatino-americanos têm realidades parecidase desafios parecidos.No entanto, estamosisolados.Deveríamosfazerumesforçomaiscoletivo, pois precisamos ter aliados paraa produção de uma nova psicologia. HáesforçosnoMéxico,emCuba,naArgentina,noUruguai,noChile,cadaumpensando,emseupaís,qualomelhorjeitodeselibertardapsicologia americanizada ou europeizada.Atéagora,nãonosaliamoscompletamenteparaesseesforço.Lemosumautoramericanoporquesetraduzaquiolivro,masnãolemoso autor de língua espanhola.Dificilmenteos alunos estudam Baró, por exemplo,ou autores argentinos, como pensamentoimportante na América Latina. E eles, osoutros latino-americanos, leemquase nadadeportuguês.Aindaestamosdistantes,nãotemos a construção feita,mas já estamosnesse tempohistórico,eéporessemotivoqueconseguimosdizerquetemosqueformara Psicologia naAmérica Latina, que aindatemosquecriticaropensamentodohomemuniversal,dohomemnatural,aindatemosquesairdessaideiadequeossujeitosfazemumesforçoparaproduzirsuaindividualização,apartirdopuxarseuspróprioscabelos.Então,eu diria que já estamos no tempo de umnovocompromissosocial.Nessesentido,souotimista.Eachoqueéapráticadospsicólogosnoslocaisdetrabalho,emtodasessasfrentesqueseabriram–naáreajurídicatrabalhandonasVaras, empenitenciárias, noConselhoTutelar,naassistênciasocial,nosCRASenas

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medidas socioeducativas,na saúdepública,naáreadotrabalho,naeducação,discutindoseu fazer, se organizando para um novopensamento.

Edla Grisard de Andrade –No início daentrevista, falaste algo sobre, no iníciodosanos70,serdadoaopsicólogoaoportunidadede trabalho,masdizia-seoqueeledeveriafazer.Hoje eu ainda vejo que, no campojurídico,porexemplo,pelomenosnaminharealidade em SantaCatarina, o psicólogoqueentrano tribunalde justiça recebeumpacotedoquedevefazer.Aindasemantémessefuncionamento,emboraumpoucomaiscrítico.

Ana Bock – Umbom termômetro disso é avaliaraentidadedecadaárea.Hásetoresque têmentidadesbastante representativas,com congressos fortes, que agregam acategoria,quereúnempessoasquepensamcriticamente sobreaPsicologiae,com isso,setemapráticaavançandoeaorganizaçãoavançando,criandopossibilidades.Quandoseavançanaprática,avança-senaorganização,evice-versa.

Iracema Neno Cecílio Tada – Quandotemosa prática avançando com a organização,podemos,quemsabe,pormeiodoseventoscientíficos,levá-lasparaaAcademiae,comelas,reveralgunsconstrutos,algumasteoriasquejáestãotãofirmes.

Ana Bock – Éisso,vocêtemrazão.Éimportanteagregar. Tem-se a prática profissionalavançando, a organização avançando eo conhecimento avançando; tem-se asentidades sendopressionadaspara superaraquelemodelo tradicional.Nãoquerdizerqueconseguirãosuperar,maselasestãosendopressionadas.

Iracema Neno Cecílio Tada – OPauloRosas,no texto publicado no número zero darevistaqueéabaseparaestaconversasobreo desenvolvimento da profissão, coloca o

quantoaAcademiaestavadistantedapráticaprofissional,semfornecerinstrumentosparaopsicólogoatuar.Opsicólogoestavaatuandoaleatoriamente, buscando, em sua prática,condições e recursospara sua atuação. Elechamaessefenômenodepsicologiaparalela,casuística,limitando-seaumareflexãosobreaexperiênciaindividual.Nocomeçodatuafala,euestavaangustiada,pensandoquenãomudamosmuito.Masmudamosportermosasassociações,asorganizações,quepermitemqueoprofissional, comaAcademia,possarepensarumpouquinhosuaformaçãoinicial.Ana Bock – Nósmudamos, e a existênciadoprojetodocompromissosocial,doqualpartilho, demonstra isso.Nessemovimentohistóricocontraditório,temosasorganizaçõesquevamosformandoeháumacamadamédia– hojepodemosfalaratédeumacamadamaispobre– queentranauniversidade.Vão secriandocontradições.Meusalunos,quesãodeumafaculdadedaelitepaulista,são900jovensqueagoraconvivemcomcemalunosquesãodoProUni,ouseja,10%delesvêmdacamadapobredapopulação.Éinteressantepensar que existem lá 900 representantesda elite convivendo obrigatoriamente comessa camadamais pobre. A organizaçãosocial,ocrescimentodomovimentosocial,omomento de democratização do País,o projeto de governo atual, voltado paraamaioria da população, o fortalecimentoda crítica à perspectiva neoliberal, temostudo isso.Mas temos,poroutro lado,umasociedademoderna que se individualizacada vezmais, e esse talvez seja um doselementosquetrazvalorizaçãoedemandaàPsicologia.Oindivíduotomaumlugarcadavezmaiornapreocupaçãosocial,noprojetodamodernizaçãodasociedade,eentãotudooqueservirparaavaliaresseindivíduoébom.Etudooqueservirparaavaliarafelicidadetambém.Hojecomeçamosafalar,nocampodaPsicologia,defelicidade.Oqueéissoqueestamos trabalhando?Contraditoriamente,percebendoqueo indivíduoestá correndo

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o risco de ser consideradodescolado docontexto, do seumeio. Aí vem a forçasocialcontraditóriaquevairebater,dizendoque não podemos considerar o indivíduoisoladamente. São pensamentos do nossotempoequeestãoaíparaseremdebatidos.Porisso,aorganizaçãoeaformaçãosetornamaspectos importantes, porque são espaçosprivilegiadosdodebateedaconversa.Nãotemosquepensar em ter umpensamentoúnico;temosquenosesforçarparadialogar,paratrocarideiaseparaavançarmostodosnadireçãodenossosprojetos.

Poderíamosnosperguntar:estamosmelhoroupior?Háummovimento,evamospoderavaliar seépiorou seémelhor conformeessasforçascontraditóriassecolocarem:seofortalecimentodaideiadosujeitocoletivo,desujeitocontextualizadoégrandeeenfrentaa ideia de indivíduo isolado, que busca asua felicidade individual.De um jeito oude outro, esse confronto existirá. Nossopensamentonãoéhegemônico,masexistemhoras em que nosso pensamento disputalugar com o hegemônico. Respeitamos adiversidadedaPsicologia,nãoqueremosumpensamentoúnico,masqueremosodireitodecolocarnossopensamentonacenasocialparaqueelepossatercertoreconhecimentoepossaserconsideradoumaalternativa.

Iracema Neno Cecílio Tada – EquandovocêestavanoConselho,quaisforamasprincipaisdificuldadesdaprofissão?Ounosindicato?

Edla Grisard de Andrade –Noeixociênciaeprofissão.

Ana Bock – Nosindicato,arealidadeeraoutra.Mastambémjáfazmuitotempoqueestivenosindicato.Aquestãoprincipaleraqueopsicólogonãosepercebecomotrabalhador.Hádificuldadedeconstruirumpensamentosindicalnacategoriadospsicólogos,estamosmaisparasujeitosendeusadosdoqueparamerosmortaistrabalhadores.Nãoimportava

ganhar pouco, porque gostavam do quefaziam.Então,eraeémuitodifícilconseguirconstruir,dentrodacategoriadospsicólogos,umpensamento sindical. Acho que nossoingresso no serviço público e emmuitasinstituiçõesvaipermitindoisso,masaindaémuitodifícil.

Aspesquisastêmmostradoque,quandoseperguntaaosprofissionaisporqueforamcursarPsicologia,osquatrotiposderespostanãosereferemaumaatividadesocial.Referem-seaumprazercomoconhecimento,umprazeremconhecerooutro,emconhecer-semelhoreemajudarooutro.Emnossocampo,édifícilencontramosaclarezadequePsicologiaéumtrabalhonaeparaasociedade;asrespostasindicam um projetomais voltado para simesmoouparaossujeitosindividualizados.Ainda hoje, dificilmente se encontra aargumentação de trabalhos sociais comomotivoparaaescolhadaprofissão.

Issomostraqueconstruímosnossoimaginário,nossossignificadossobreaprofissãoincluindopouco a ideia de que é um trabalho paraa sociedade, do qual a sociedade precisa.Pensamos,muitasvezes,quesempreexistiuPsicologia, e, se não existiu, as pessoasdeveriam sempre sermuito infelizes.Nãopercebemosquefoiaprópriahistóriahumanaque tornou necessário um conhecimentocomoonosso,queservimosaopensamentomodernoequepoderemosdesaparecercomasuperaçãodessepensamento.Essasideiasde felicidade,de sujeito, de indivíduo, sãotodasdamodernidade.

Sem falsamodéstia, achoque fizemos umexcelente trabalho noConselho. Falo issosemmodéstia,porquenãofuieuquemfiz,masumconjuntomuitograndedepessoasque trabalhou por esse projeto, ocupandoasdireçõesdosConselhosRegionais,sendocolaboradores dos Conselhos Regionais e

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do Federal, quepassaram a envolver umaquantidademuitograndedegentedispostaaconstruirumnovoprojetoparaaPsicologia.Umadasdificuldadeséenfrentararesistênciaparaonovoprojeto.Acategoriaaindanãoestácompletamenteinteressadanoprojetodocompromissosocial.Odesafio,paranós,erapoderfazerarelaçãodessenovoprojetocom interesses corporativos, por exemplo.Quandoselutaporpolíticaspúblicas,estásedefendendooutroprojetodecompromissosocial para a Psicologia e também se estádefendendoempregoparaospsicólogos.Odesafiodaboapolíticahojeestáempoderjuntarosinteressesdospsicólogosnoprojetodo compromisso social,mas favorecendoas condições de trabalho, ampliando olugar social do psicólogo, produzindoreconhecimentopelosgestorespúblicos.

O desafio é esse. Por exemplo, nostestes psicológicos, foi difícil para nósdemonstrarmoseconvencermosacategoriada importância e da necessidade daregulamentação e da avaliaçãodos testes,mas ela está completamente convencida.Onossonovocódigodeética,queagorajásofre novapressãoparamudar, foi notícianos jornais, que diziam: “Os psicólogosagoravãoserdedoduro”.Fomosemfrenteeconvencemoscompletamenteacategoriade que era preciso repensar nosso códigodeética.Eassimpoderíamoscitarváriasdasiniciativasque tivemos. Já citei a IMostra,mas pode-se acrescentar: a criação doFórum de Entidades Nacionais da PsicologiaBrasileira – FENPB, a questão dos direitoshumanos,aresoluçãodaorientaçãosexual,o fortalecimento das formas democráticasde estruturar e funcionar dos Conselhos(os Congressos – CNP e a Assembleia dePolíticas,deAdminstraçãoedeFinanças– APAF),oBancoSocialdeServiços,oCREPOP,enfim,muitasdasiniciativasdemoramaserreconhecidaseaceitas.Masesseéopapeldogestor,enuncanosrecusamosaesclarecer,demonstrar, debater emesmo retomar emudar.

O segredo talvez esteja em uma gestãoafetivadasentidades.Seiqueamaioriadacategoria não pensa como nós pensamos,nemestamosquerendoisso,mastenhoumrespeitoabsolutopelaexistênciadediversospensamentos, porque reconheço essesdiversos projetos como frutos daHistória,das possibilidades sociais que oBrasil deuparaodesenvolvimentodaprofissão.NadadoqueexistenocampodaPsicologiameéestranho,porquetudotemsuajustificativanoprocessodaevoluçãodaprofissão,inclusiveopensamentoquedefendo,quetambémtemaslimitaçõeshistóricas.Aperspectivahistóricanosdáhumildade,nosdáacapacidadedenosapaixonarmospelaquestãodaPsicologia,pelaimportânciadainserçãosocialdaPsicologiana nossa sociedade; essa perspectiva nospermiteacrençaabsolutadequeaPsicologiapodeedeveseinserirnaconstruçãodeumasociedademelhor,dequeelatemcondiçãodefazerisso.Tudoissopermiteumagestãomuitocarinhosadasquestõesdaprofissão.

Edla Grisard de Andrade – Derespeito.

Ana Bock – De respeito, de as pessoasperceberemquedialogamoscomodiferente,essetempotodo.

Ana Bock – ÀsvezesaspessoasfalamquejáestamosnoConselhohámuitotempo.Masonossoprojetosemodifica,elecaminha,eoquesemantémnosgruposquevêmocupandooConselhoFederaleosConselhosRegionaiséesserespeitoàcategoria,saberqueomeuprojetoparaaprofissãonãoéoúnico.Então,oquetemosdefazerépossibilitarodiálogodeprojetos.Eoespaçodasentidadesdeveserumespaçocidadão,ouseja,dodireitodecadaumdefenderoseuprojeto.

Edla Grisard de Andrade – Eesseespaçosedámelhor,emsuaopinião,nasassociações?

Ana Bock – Ele tem se dado hoje nasentidades,porquesecomprometeramcomo

A perspectiva histórica nos

dá humildade, nos dá a

capacidade de nos apaixonarmos

pela questão da Psicologia, pela importância da inserção social

da Psicologia na nossa sociedade; essa perspectiva

nos permite a crença absoluta

de que a Psicologia pode e deve se inserir

na construção de uma sociedade melhor, que ela

tem condição de fazer isso.

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espaçocoletivoqueéoFórumdasEntidadesNacionaisdaPsicologiaBrasileira (FENPB),e comespaçonaAméricaLatina,queéaUnião Latino-americana de Entidades dePsicologia(ULAPSI).Masnãoachoquesejasó.NocampodaPsicologia,desenvolvemosaideiadequeasentidadessãoumespaçoparaadiversidade,paraoembate,paraodiálogo,concepçãoque,podemosdizer,aculturadaPsicologiahojealimenta.Quandoháumaentidadepoucodemocrática,todoscriticam.AUniversidadedeveriaserumlugardodiverso,mastemostidopoucooembatedas formulações distintas. AUniversidadeaindatem,aomeuver,muitacaracterísticadeigreja,nosentidodolugardacerteza,daverdade.Oprofessor temumaabordageme tem certeza, dá aula como se estivessecontando ao alunoqual é a verdade, nãose relaciona com o saber que transmitecomoumsaberprovisório,queé frutodeumconsensotemporário.Então,oalunoserelacionadamesmaformacomosaberqueele ouve, recebe, incorpora. E isso faz daUniversidade um lugarmuito duro,muitoantigo,muitosuperadoemseuformato.

Edla Grisard de Andrade – Queinteressante.Tiveumaexperiênciacomoprofessoraevivio oposto, os alunos exigindo demimumdogma,comosequeeutivessededizerparaelesoqueestácerto.

Ana Bock – Sim,édesse jeitoqueeles serelacionamcomosaber,enós reforçamosessapostura.Nósmesmos,professores,nãonos relacionamos com o saber como umconsensoprovisório.Osabertemsidovistopor todos como A VERDADE. E o alunodemonstraqueserelacionaassimtambémquandopergunta:“Masoqueestácerto?”,“Quemestácomaverdade?”Tenhoachado,nos últimos tempos, que esse é um dosaspectosmaisimportantesparaamudança:a relaçãoquemantemos como saber emPsicologia.SabermosqueaPsicologianemsempre existiu, sabermosque ela é criada

pararesponderanecessidadesespecíficasdeumtempohistórico,saberqueseussaberessãoconsensos sociais, frutosdeacordo,namedidaemqueoquechamamosdeTEORIAéumsaberquerespondeadequadamenteaumaperguntadasociedade,enfim,defendouma postura histórica frente ao saber emPsicologiae,claro,frenteàprofissão.

Mas voltando à questão da avaliação dagestãodoConselho,gostariadeindicaraindaque tenho uma avaliação positiva, achoque caminhamos. Tenho certeza de quenosmovimentamos na direção de termosaHistóriaemnossasmãos.Achoqueissoéimportante.APsicologianãotinhaasrédeasdasuahistórianasmãosdospsicólogos,eospsicólogoscaminharamnessadireção.Achoque esse é o grande avanço da Psicologiadentrodocenáriobrasileiro.

Edla Grisard de Andrade – Olhando umpouquinhoprospectivamente,comotuachasqueestarádaquiatrintaanos?

Ana Bock – Sejátiversuperadoopensamentomoderno,podemosaténãotermaisPsicologia(risos).Daqui a trinta anos, talvez a gentetenhanovacriseparasuperar,porqueacreditoque,nospróximosdezouvinteanos,vamoscrescer, e, talvez em trinta anos, tenhamosnovas questões nos emperrando ou nosdesafiando. Acho que dá para arriscar aprevisão do futuro para os próximos dezanos.Nospróximosdezanos,ospsicólogosganharãoumenormereconhecimentosocial,porque é tempo suficiente para estarmosnos espaços e sabermos o que devemosfazer.IssopoderáocorrerseoPaíscontinuarcomessacultura,quevaisedesenvolvendo,com a possibilidade de a população tersuas reivindicações atendidas, desse valorqueosFórunsSociaisMundiaistêmtrazidoe que está relacionado ao fato de termosna sociedade organizações, movimentosquedão forçaaessasquestões, atécomoenvolvimentodaprópriaelite– quecomeçaa

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seenvolveremmovimentosdequalificaçãoedeatendimentouniversaldaescola,porexemplo.Nós,muitasvezes,estamosnosespaços,masaindanãosabemosexatamenteoquefazer.Éoqueacontece,porexemplo,comospsicólogosdosCentrosdeReferênciaemAssistênciaSocial(CRAS). Issoestá relacionadocomoCentrodeReferênciaTécnicaemPsicologiaePolíticasPúblicas(CREPOP),queéuma invenção importantedocampodaPsicologia,porquevamosproduzirininterruptamente,mudandoeoferecendoàsociedade,aosgestores,aosestudantes,aosprofessores,aospsicólogos,referênciasparaaconstruçãoouparaareformulaçãodeumapráticacondizentecomonovoprojeto.OCREPOPéumacoisaaindatímida,aindaengatinhando,mas,emdezanos,teremosumareferênciaimportante,eissosignificará,semdúvidaalguma,apossibilidadedeampliação,queenvolveumreconhecimentomuitograndedainserçãosocialdospsicólogosnasociedadebrasileira.

Edla Grisard de Andrade – Entãonóstemosumcompromissomarcadoparadaquiadezanos.

Ana Bock – EufuiaoMatoGrossodoSul,eaprofessoraquemeconvidoulembrouqueeuhaviaidoláem2001paraainstalaçãodocursodePsicologiaehaviafeitoaconferênciadeabertura.Elameavisouqueo textoestavano sitedeles.Fuiolhardepoisde já terpreparadominhafala,epensei:“Puxa,olhaoqueeudisseaqui.Nãopensomaisisso”.Então,comeceiminhaconferênciadizendoestarmuitofelizdevoltar,porqueemnoveanoseumudei.Osassuntoseramosmesmos,eufalavadaprofissão,dahistóriadaprofissão,domercadodetrabalho,masalgumascoisaseuexpliqueimelhor,reformulei.SinaldequenãotemosoutraalternativaanãoseracompanharaHistória.

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APsicologiacomoCiência:EntrevistacomCesarAdes

Cesar Ades

UniversidadedeSãoPaulo

Henrique Figueiredo Carneiro – Apropostaparacomemoraresses30anosdarevistaPsicologia: Ciência e Profissão épublicarumaediçãoespecial, resgatandoahistóriadapublicaçãoe ahistóriadaPsicologiaemnossopaís.Trabalharemosnasduasvertentesdarevista:aPsicologiacomociênciaecomoprofissão.Apartirdessaintenção,buscamospessoasquesãoreferênciaparaessasáreasnoPaísparateressaconversa.

Inara Barbosa Leão – Nessestrintaanos,comoosenhoravaliaasituaçãodaciênciapsicológicanoBrasil?OPauloRosas,no textopublicadonarevistanúmerozero,eraotimistaquantoàpossibilidadedeavançoepontuavaalgumasdificuldades.Nãotemos,necessariamente,quenosprenderàquelesindicadores,atéporquenossasituaçãoémuitodiferenciada,maspoderíamoscomeçarporessetema.

Cesar Ades – Souumotimistadeplantão,decarteirinha.Sempreolhooladoconstrutivo,omuitoqueháporfazer.APsicologiameencantadesdequecomecei,nostemposdaMariaAntonia,evejamquecomeceiquandoexistiamtrêscursosdePsicologianoBrasilinteiro.Umapessoaeraconsideradaexcêntrica,diferente,seescolhesseaPsicologiacomocarreira.Ficoimpressionadodeveraexpansãodaárea.Háumanovaconsciênciapsicológica,eonúmerodepsicólogoscondicionaprogressosnapesquisa,nacompreensão,naatuaçãosocial.Pelomenostemosaforçadonúmero,semdúvida,estamospresentes.Tenhopensadomuitonopapelsocial,novalorestratégicodaPsicologiaeconversadocomaAnaBockarespeitodisso.JácoordenamosumamesasobreoassuntonoIII Congresso Brasileiro Psicologia:Ciência e Profissão(2010).APsicologiatemquesecolocarestrategicamente,emfunçãodesuainovaçãoedecenáriosfuturos.Elanãotemovalordeoutrasiniciativasquesãoestratégicasnamedidaemquegeramrecursos,elaéestratégicaemfunçãodobem-estarquepodegerar,eissoéessencial.

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Henrique Figueiredo Carneiro – Esse éumpontoquemechamamuitoaatenção.Ontemà noite, quando cheguei aohotel,passava na televisão um programa sobrePsicologiaqueeunãoconhecia.CreioqueeraPsicologia em destaque,oualgosimilar.Talvez fosse de algum canal universitário,mas, de qualquer forma, um programavoltado para a Psicologia chamou-me aatençãoporqueéraroservisto,pelomenosemoutrascidades.SobreessaestratégiadaPsicologia,umadasquestõesquemechamaa atençãoé a linguagemdopsicólogoemrelaçãoaocontextoda sociedade.Parece-me que ainda é algomuito técnico. Essaestratégiapassapelaformacomoopsicólogosecolocadiantedasociedade?

Cesar Ades – Sim,passapelamaneiracomoopsicólogosecolocadiantedasociedade.APsicologiaseesgotaemdisputasinternas,deixa de ressaltar o que é comum, oque constitui o cerne psicológico. Comonos dividimos em escolas, isso nos deixasem uma linguagem integrada, e mais,semumaposição integrada em relação àsociedade.Dequeméanossamensagem?Do psicanalista, do experimentalista, doteóricocomportamental,dofenomenólogo,do lacaniano, do reichiano? A graça daPsicologiaéserassimdiversa,nãoqueroquehajaumaúnicalinguagem,maselaprecisaencontrarumapropostaunificadadentrodadiversidade.Opontoqueeuqueroressaltaraquitemavercomonomedarevista,umnomeperfeito,Psicologia: Ciência e Profissão.Sãoempreendimentosintegrados;ofatodeserprofissãonãoécontraditóriocomofatodeserciência.QueroaquidefenderoladocientíficodaPsicologia.

Inara Barbosa Leão – Apartir daminhaprática,achoqueoinversoestásendomaisdifícil de trabalhar. Tenho acompanhado,porexemplo,otrabalhodospsicólogosquesão contratados para executar atividadesnapolíticadeassistênciasocial.Oqueelesaprendemdeteorianãofacilitaseutrabalho.

Emcompensação,asestratégicasqueestãodesenvolvendo, ainda que o ConselhoFederalestejatentandomapeá-laspormeiodo Centro de Referências Técnicas emPsicologiaePolíticasPúblicas(CREPOP),nãoas tenhovisto se transformaremdiscussãosistemática,nasuniversidadesoumesmonasassociações,talvezporseralgomuitorecente.

Cesar Ades – É recente, sim. Quandofalamos de ciência, usamos de uma sériedearquétipos.NocasodaPsicologiaedasciências humanas, são arquétipos que àsvezesamedrontam,imagensquedistorcemoquehádeessencialnaPsicologia,ocontatoentre pessoas. Alguns veem a perspectivacientíficacomoperigosa,namedidaemquereduzisseosensodocontatoentrepessoas.Nãomeparecejustificadootemor.Oquenosdefineéointeressepeloindivíduoconcreto,que sofre, que fica alegre, que precisa deapoio, de instrução.Nada há, na atitudecientífica, que coloque isso de lado. Poratitudes comoessas,discute-sepouco, emPsicologia,opapeldesuanaturezacientífica,atéquepontoaposturacientíficaéessencialtantoparaoensinoeparaapráticacomoparaageraçãodeconhecimentos.

Inara Barbosa Leão –QuetipodeciênciaéaPsicologia?

Cesar Ades –APsicologia,desdequetudocomeçou,desdeaépocado(Paulo)Rosas,sevaledoprivilégio,umpoucofantasioso,deserumaleituradamente.Aspessoasficamumpoucopreocupadascomessacapacidademágicadeopsicólogopenetrarnosmeandrosdamente,“eunãosabiaqueeueraessacoisacomplicada,eusouisso?”Emcompensação,a Psicologia perde umpouco por não serconsiderada, plenamente, ciência, por sertomadamaisapartirdeseu jeito intuitivo,comouma arte. Semdesistirmos da ideiadequequeremosentendercomofuncionaamente, é importante ressaltarqueoqueestamosfazendoéciência.

Cada vez mais, as ciências entram em interação e

interdependência, e esse é

especialmente o caso da

Psicologia. Pode ser que exista

uma Física independente,

mas a Psicologia é, por natureza,

interdisciplinar. Não se pode

pensar em uma Psicologia sem

Antropologia, sem educação,

sem biologia, sem fisiologia.

Somos um pouco híbridos, cada psicólogo elege uma área

externa com a qual se relaciona,

aprende a falar outras linguagens,

comunica-se com outros

cientistas. E outros cientistas hão de aprender a nossa

linguagem.

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APsicologiaéumaciênciaespecial,comosãoabiologia,aAstronomiaeoutrasciências.Adificuldadequeseenfrenta,quandosecolocaarelevânciadopontodevistacientífico,éanoçãodequeciênciaépositivismo,écoisadoCírculodeViena,éousodeummodelofisicalista.ÉsimplesdemaisafastaraideiadeciênciaemPsicologiacomoargumentodequeelalevaaumaposiçãoquereduzoserhumano e o identifica comumanimal delaboratório.Éumaposiçãofácildesetomar,maselalevaanegligenciaraquestãomuitorelevante,aquestãodotipodeciênciaqueestamospraticando.

Cada vez mais, as ciências entram eminteração e interdependência, e esse éespecialmenteocasodaPsicologia.PodeserqueexistaumaFísicaindependente,masaPsicologia é, por natureza, interdisciplinar.NãosepodepensaremumaPsicologiasemAntropologia,semeducação,sembiologia,sem fisiologia. Somos umpouco híbridos,cada psicólogo elege uma área externacom a qual se relaciona, aprende a falaroutras linguagens,comunica-secomoutroscientistas.Eoutroscientistashãodeaprenderanossalinguagem.

Não se trata de fazer da Psicologia umaciênciaexclusivamenteexperimental.Talvezos que nutrem alguma resistência à ideiade ciência em Psicologia tenham umaconcepção rígida de ciência, tomem aciênciacomomuitomenoscriativaemenossocialmenteengajadadoqueé.APsicologia,comoqualquerciência,partedadescriçãoedaanálise,estrutura-seemtornodapesquisa,temde buscar um consenso em torno desuasconclusõesprincipais, temregrasparaestabelecerorigordesuasafirmações,buscaumconhecimentoválidoarespeitodealgoqueexiste.Masapesquisaqueeladefendeseconstituiapartirdaaberturaemrelaçãoàspeculiaridadesdeseuobjeto,dessealgoque existe.Oque interessamais é a vidapsicológicahumana,obem-estarhumano.

Inara Barbosa Leão – Essesnovosdesafiosque estamos encontrando na Psicologia,comoosenhorentendequeelespermitemque nós, psicólogos, ao lidarmos com aciência,tenhamoscondiçãodedizer:“Issoaquiestánoslimitesdaciênciapsicológica,eissoaquiestámuitoincipiente,édelirante”?

Cesar Ades – Colocar um limite entre odeliranteeorigorosoéumatarefadetodososmomentos.Hámuitacontrovérsiaainda–eunãosoucontraacontrovérsia,porqueela é omotor da reflexão – em torno dequestõesbásicasemPsicologia.Sãoquestõesque nos acompanham, mas que temosde situá-las sempre em novos patamaresepistemológicos,apartirdosconhecimentosadquiridos.Aolongodessestrintaanosquefestejamos,temoslidado,deformamaisoumenosimplícita,comproblemasclássicos:anaturezadasubjetividadeedaconsciência,aquestãodaexperiênciaedaaprendizagem,adeterminaçãosocialdocomportamento,asorigensevolutivasdamotivaçãohumana,etc.Nadademuitonovo(ésólerWilliamJamesparaconstatá-lo),masessasquestõestêmdeserretomadasereformuladasemfunçãodoprogressodoconhecimentopsicológico,quepodeserimpressionanteemalgumasáreas.Há progressos notáveis nas interfaces.Antigamente,quandosefalavaemcérebroe comportamento, era a partir demuitainferência, tanto que Skinner, com umacerta ironia,chegoua referir-seao sistemanervoso conceitual (em vez de sistemanervosocentral).Oquesesabiadecorriadeexperimentaçãoemanimaisdelaboratório,demedidasdepotenciaisexternos,decasosexcepcionais de lesões e de intervençõescirúrgicas. Os métodos modernos deneuroimagem põem, por assim dizer, océrebro a nu, surpreeendendo-o durantesuaatividade,semnecessidadedemedidasinvasivas. É possível conhecer as regiõesdo cérebromobilizadas durante funçõesmentais definidas; sabemosmuitomais arespeito de onde, no cérebro, sentimos e

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pensamos,inclusivedeformainconsciente.Lembro-medeumestudonãomuitoantigoemquesedescreviamasregiõescerebraisespecificamente ativadas quando se olhapara umbebê (umpouco dentro do queLorenzimaginavaquefosseasensibilidadeinstintivadiantedaaparênciainfantil).Nãocabe isolar-se no estudo da subjetividadecomosubjetividade;osfenômenoscomosquais lidamos envolvem, sistemicamente,formas e determinantes neuropsicológicos.Nãoéredução,masumtrânsitoemambosos sentidos através do qual se constroemconcepçõesmaisabrangentesecompletas.O neurocientista necessita das análisespsicológicasparasaberoqueolhareoqueregistrarnocérebro.

Umexemplo,entremuitosoutros,doquantoprogrediuoconhecimentopsicológico,umexemplodequegostobastante,éjustamenteo do comportamentodos bebês. Lembro-me de ter ficado sem fôlego quando li,em Science, o primeiro artigo deMeltzoffe Moore sobre as respostas imitativasde crianças recém-nascidas. Nos últimostrintaanos, foi feitoumlevantamentosemprecedentes, através demuita pesquisaoriginal, commetodologias cada vezmaissutisereveladoras,sobreacogniçãoeoafetodebebês.Sabemosmuitomaissobrecomopercebemomundo,sobrecomoselembrame se esquecem das coisas, sobre comoadquiremalinguagem,e,especialmente,oquantosãocompetentesecomplexosnasuainteraçãosocial.

Éimportantedizerquesabemosmaishojedoquehátrintaanos,doquehávinte,hácinco anos. Se não ressaltarmos o avançodo conhecimento, seremos condenados alongas discussões epistemológicas ou nosexporemosàconcepçãodifundidadequeas ciências humanas, e a Psicologia emparticular,nãochegamaserverdadeiramentecientíficas. Dispomos de metodologiasmelhores, e omovimento de crítica e de

embate interno a respeito de como sedãoascoisas,nocomportamentohumano,aguçaas teorias. Faltamuito aindapor investigar:issonão significaquenão seja apreciáveloprogressojáefetuado.

Inara Barbosa Leão – Essesconhecimentosnovos praticamente não têm chegado aoscursosdegraduação.FiqueialgumtemponaAssociaçãoBrasileiradeEnsinodePsicologia(ABEP) e acompanhávamos as bibliografiasdoscursos,queeramasbibliografiasbásicasdocomeçodoséculo20.Cesar Ades – Deque adianta pesquisar edescobrir,seaspesquisaseasdescobertasnãochegamnasaladeaulaeseoconhecimentotransmitidoébasicamenteumconhecimentotiradodemanuais? Oalunosentequandovocêapresenta ideias recentes e conhecimentosnovos,issoolevaaparticipardomovimentodaciência.Amudançanamaneiradeconsideraroensinode graduaçãodaPsicologia temavercomodebate,aoqualmereferi,sobreopapeldaciência.

Ficomuito preocupado como número decursos de Psicologia que existemnoBrasil,alguns criados recentemente.Que tipo deensinoépraticado?Quetipodeconhecimentoétransmitido?

Inara Barbosa Leão – Nostrêsúltimosanos,houveumacontençãodaabertura,mas foialgoenlouquecedornosanosanteriores.

Cesar Ades – A formação em graduação,do jeito que semultiplica, é certamentedeficiente. Há um desequilíbrio, faltamprofessorescapacitadosparatantoscursosetantosalunos.Henrique Figueiredo Carneiro – Amaioriadoscursosabertos temcorpodocentecomqualificaçãomuito limitadaemuitosdessescursos não almejam sequer pós-graduação,terpesquisa.

Cesar Ades – Considerar a Psicologia uma

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ciência envolve a responsabilidade deensiná-la como tal. É muito cômodo (epouco produtivo, ameu ver) adotar umaperspectivatécnicaparaaformaçãodoalunode Psicologia, como se o aluno, quandoformado,tivesseapenasopapeldeatuaremquestõesprofissionaisespecíficas,semter-seaprofundadoesemcompreenderafonteeaslimitaçõesdosconhecimentosqueaplica.Publiqueiumartigonoprimeiro(ousegundo,se se levar emcontaumnúmeroespecial)número dePsicologia: Ciência e Profissão,isso,háunstrintaanos.Amensagemestavano título: Treino em pesquisa, treino em compreensão.Continuoachandoqueotreinoempesquisaéparteessencialdaformaçãoepreparaoestudanteparaasuaatividadeprofissional.

Oaluno,quandoentranocursodePsicologia,muitas vezes quer atuar como clínico, eespera, na fantasia, ter logo um pacientedeitadonumdivã,paraexercerpsicanálise.Isso se entende, o exercício da Psicologiaé praticamente todo aplicado, e,muitasvezes,clínico.MasaminhaexperiêncianaUSP,acreditoquesejaomesmoemoutroscursosdePsicologia,indicaqueosestudantesgostamdepesquisaeseentusiasmamquandoenvolvidos em pesquisa. Aproveitam essetreino de váriasmaneiras, principalmentepor sentirem que o conhecimento é algorelativo e em transformação.Quando secriticaaabordagemcientífica,muitasvezesse pensa na aplicação de uma camisa de forçametodológicaeemumaciênciaondetudojáfoidescoberto.Aciênciadefineoseucampoeseautodefineenquantoestásendoefetuada.Umaciênciacompletaeredondanãotemgraça.

Nunca consegui, pessoalmente, identificar-me com qualquer das grandes figuras daPsicologia.Nãoacreditoquehajavantagemem ser seguidor, de forma exclusiva, destaou daquela escola psicológica, em serskinneriano,piagetiano,lacaniano,jungiano,darwiniano ou de outra designação.Maisvaleseguiroquesãoascoisas,mesmoquenos surpreendam e nos choquem nossos

pressupostos.O aluno ganha quando sedá conta desse aspecto em-se-fazer doconhecimento.Elegostadeperceberqueseuprofessornãotemtodasasrespostas,quandotemahonestidadededizerquenãosabe.OtreinoempesquisaéumbeloeimportanteobjetivoparaqualquercursodePsicologia.

Henrique Figueiredo Carneiro – Osenhortocou em um ponto essencial do nossotrabalho,essesmitosquesecriamemtornodafiguradopsicólogo,vistoquasecomoumbruxo.QuandoosenhorbuscaotreinoemPsicologia,emumaPsicologiacomociência,esseéocaminhoquecomeçamosaconstruir,éumaestratégiaparadirimiressaconcepçãomíticadaPsicologia?

Cesar Ades – Otreinoempesquisaincentivauma certa modéstia, ao mostrar que aPsicologiasabedesuas limitações,mas,aomesmotempo,temdetransmitiraideiadeque é possível descobrir e conhecer algocomalgumacerteza.Aalegriadocientistaédescobrir:entranissoumavaidaderaramenteconfessada (risos). Algo que eu achavadiferente, algo que eu supunha conhecer,nãoéexatamente comoeupensava, e, àsvezes, no final dapesquisa, vejo-medonodeumpoucomaisdeincerteza.Oestudanteadora ser parte do processo. Demonstramaisinteressedoquequandoparteapenasdaquilo que pessoas geniais elaboraram eemqueeletemqueacreditar.Asperguntasquelevamaotrabalhopráticopodemmuitasvezesserperguntasparaasquaisapesquisajáofereceurespostas,como,porexemplo:emquemedidaapercepçãoeaproduçãodeexpressõesdeemoçãodifereentremulheresehomens?Masagraçaérefazerocaminhoeredescobrir,alémdaabstraçãonecessária,dateoria,apercepçãodeque,emassuntosrelevantesedodiaadia,aobservaçãoeoregistrosistemáticopodemterasuavez.

Fico gratif icado por ter participado,recentemente,dacriaçãodarevistaPsicologia:Ensino e Formação, da ABEP, e por ter

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contribuído comoprimeiro artigo do seuprimeirofascículo,tocandojustamentenumapráticadepesquisamuitasvezesempregadaemminhasaulas,atravésdaqualosalunospodemavaliaraspectosdateoriadeWilliamJamesarespeitodeemoção.Oobjetivodarevistaéchamaraatençãoparaoprocessodeensinar,depermitirqueasexperiênciasdeensinopossamestimularoutrasexperiências.AdiscussãosobreoqueéPsicologiapassapela reflexão acerca do que é ensinarPsicologia.

Inara Barbosa Leão – NaquelemomentodonúmerozerodarevistaPsicologia: Ciência e Profissão, falava-semuitoda limitaçãodosmétodosdisponíveis.Osenhorvêcomoumaspecto facilitador ou como complicadoressaamplitudedemétodosetécnicasquetemoshoje?

Cesar Ades – Por mais métodos quetenhamos,hálacunasemitos.Nãoépossíveldizerquetenhamoschegadoàplenitude.Hácertamentecoisasinteressantespara,ainda,investigar.Houveprogresso, e o progressoéperceptívelquandosetrabalhadentrodeumcampocientífico.Nãohácritériosparadecidirseumartistacontemporâneoémais(oumenos)adiantadodoqueLeonardodaVinci,nãosetratadissonocampoartístico.Mas, em ciência, não há dúvida de quesabemosmais a respeito dememória doque se sabia na época de Ebbinghaus oude Ribot. E essa ampliação de saber levanecessariamenteaumaampliaçãodasformasdeaplicação.

Voltando ao temada formaçãodo aluno:nareformacurricularquefizemos,quandoeueradiretordoInstitutodePsicologiadaUSP, abrimos opções suplementares paraos estudantes escolherem disciplinas depesquisaemtodososcampos.Nãoerapuxarocurrículoparaaminhaárea,não,masaadoçãodeumaconcepçãodeensino.

Henrique Figueiredo Carneiro – AformaçãodopsicólogonasuniversidadesaindaéumcalcanhardeAquiles.

Cesar Ades – Vai sempre haver um certodesequilíbrio entre ensinar e pesquisar. Pormim, tododocentedeveria estar envolvidoem pesquisa e ter as condiçõesmateriaisde fazê-lo.Não acredito emuniversidadesde puro ensino. Mas como conciliar anecessidade de pesquisa com os aspectosmaisconcretosdashoras-aulaedosalário?Emgeral,asuniversidadesnãoestãodispostasasubvencionarapesquisa(emtermosdosaláriodeseusdocentes):essaéumaquestãoquemereceserpensada.Henrique Figueiredo Carneiro – Esobreessediálogointernoque osenhormencionou,queperpassaocorpodocente,sobreaformaçãodopsicólogo,osenhorpodecomentar?

Cesar Ades – É muito pessoal a minhaposição,talvezpossaconvencê-los!Acreditoque exista, por trás dos inevitáveis viesescom os quais se abordam os fenômenospsicológicos,umarealidadequeresisteedaqualtemoscondiçõesdenosaproximar,porcorreçõessucessivas.Éumaposiçãorealista.Aspessoassecomportamepodemservistasse comportando, as pessoas sentem, eusinto, você sente; pensam, eupenso, vocêpensa; tenho certeza de que você sente epensa, seu pensamento e seu sentimentonão são criaçãominha. Incomoda-meumavisãorelativistamuitocomumemPsicologia.Ela afirma, e eu concordo plenamente,queoconhecimentocientíficodependedaposturaepistemológicaqueseassume.Comotenho uma certa experiência e obedeçoa certos princípios, vejo as coisas de umacertamaneira.OK,masoobjetonãodeixade existir. Esse tipo de relativismo (muitasvezes colocado dogmaticamente) leva aumaposturaquetenhocombatido,porqueembasaumafaltadediálogo.Sópodereiserplenamenteentendidoseforporalguémdo

Vai sempre haver um certo

desequilíbrio entre ensinar e pesquisar.

Por mim, todo docente deveria

estar envolvido em pesquisa e

ter as condições materiais de fazê-lo. Não acredito em

universidades de puro ensino. Mas como conciliar a necessidade de

pesquisa com os aspectos mais concretos das

horas-aula e do salário?

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meugrupo,ouseja,poralguémquepartilheos meus pressupostos; os outros, nemmesmoesperoqueentendam.Háaquiumacerta concepção da liberdade teórica emPsicologia:cadaumdescreveosprocessospsicológicostaiscomoosdefine,quasecomosesetratassedeumserhumanoàparte,esão eliminados os confrontos (necessários)comoutrasperspectivas.

Essa posição talvez evite conflitos diretos,masnãocontribuiparaoestabelecimentodepontesetiraaPsicologiadoqueeuchamariade uma interdisciplinaridade interna.Sem diálogo interno, como apresentar àcomunidade científica e à sociedade umcorpo de conhecimentos seguros? Alémdisso,comoestabelecerinterfacesexternasseasinternasnãosãocultivadas?

Penseiumavezemorganizarumcongressosobre o comportamento de bebês,convidandoumetólogo,umpsicanalista,umpsicólogoexperimental,umfenomenólogo,umanalistadocomportamento,umadeptodateoriacríticaeoutrospsicólogosdeoutrascorrentes.Haveriadeinícioavariedadeeaincompatibilidade teórica esperadas,masquem sabe surgisse a percepção de queasdiversasposiçõesconvergemnomesmobebê,equeexplicarporquechoraeatendê-lonasuaafliçãopudessemsebeneficiardeumasuperaçãodasfronteirasteóricas.

Tem de haver d iá logo in te rno . Ainterdisciplinaridade não é, contudo, algoqueseimponhapordecreto,masdecorredeinteressesconvergentesedeumavantagememtermosdemetodologia.Tenhoumcoleganeurofisiólogo,GilbertoXavier, interessadoemretomar,nocampoexperimental,ideiaspsicanalíticasarespeitodememória.Nãoseiseosseusresultadosereflexõesserãoaceitostranquilamente por psicanalistas,mas, seentendermosumpoucomaisosmecanismosdamemóriaapartirde sua iniciativa, terávalidoapena.

Não se trata de impor um certo esquemade ciência,mas de deslocar o centro daatençãoparaoobjetodeestudo,entendidocomoindependente,nolimite,dasformasdeapreendê-lo.Seeutenhoquememaravilhar,nãoéapenascomacontribuiçãodosgrandespsicólogos,quemodificarameconstituíramaminhaciênciae sãopor issoadmiráveis.Tenhodemanterabertaacapacidadedemesurpreendercomfatosnovos,comsíntesesoriginais ede rever, em funçãodissoedodebatecrítico,osmeusprópriospressupostos.

Henrique Figueiredo Carneiro – Estouentendendo,denossaconversa,quetalvezo ponto referencial para que esse diálogointerno seja frutífero seja exatamente apesquisa, se a pesquisa puder dialogarinternamente.

Cesar Ades – Exatamente. Isso acontecequando várias pessoas descobremque seinteressampelomesmoassunto.Nãosignificaircontraaespecialização,elaénecessária,ninguémjamaispoderiadominaraPsicologiatoda. Em geral, permanecemos dentro deumcírculoimediatodeestudiososquenosentendemeusamamesmalinguagem,masháelementosapartirdosquaisestabeleceroconfrontoeocopensamento.

Um tipode copensamentoéque fazemoso tempo todo no Instituto de EstudosAvançados,queéumdomínioprivilegiadopara a interdisciplinaridade. Participei,por exemplo, de uma sessão em queum economista e um físico debatiam oconceito de entropia, acredito que paramútuo aproveitamento. Temos um grupodepesquisanoIEAcentradonaquestãodadesnutrição:deleparticipamespecialistasembiologia,nutrição,PsicologiaeSociologiaembons termos e, acredito, comboas ideias.Estãoparapublicarumlivrocujotítuloincluinutriçãoesofrimentopsíquico.

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Henrique Figueiredo Carneiro – Parece-me, pensandoapartirdasuafala,queesseéumcaminhopara articular, comnossos alunosemformação,aformadedialogarcomoutroscamposdosaber.

Cesar Ades – Você não perde suaindividualidadepor relacionar-se, essa é aideia.Há ummedode perder a essêncianoconfrontocomoutroscamposdosaber.Aocontrário,aindividualidadeéamaneiraatravésdaqualpodemosnos relacionar. Éimportantequevocêpensecomopsicólogoparaqueainteraçãotenhafrutos.

Henrique Figueiredo Carneiro – Psicologiaepsiquiatria,porexemplo,quefazempartedeumcampoemquestão e sobreoqualexisteumaeternadiscussão.Hojeháváriosespecialistas que lidam coma questãodocérebro.Porquenãopodemosestar juntocomessesespecialistasediscutircomelesapartirdeumponto,comoosenhorcolocou,dosofrimentopsíquico,porexemplo?

Cesar Ades – Temos um acesso especialaos fenômenos psicológicos, pelo nossofoco, pela nossa formação. Lidamos comindivíduos, é essa a nossa especialização,sabemosumpoucomaisarespeitodecomoindivíduossedesenvolvem,comosentemepensam,comosecomportam.Opsiquiatrasabemaissobreamaquinariacerebral,sobrenúcleos, sinapses e neurotransmissores,e sobre remédios capazes de atuar sobreessamaquinaria. Não há como negar aimportânciadesseconhecimento,etemos,comopsicólogos,queaproveitarospontosdeconvergênciaedecomplementação.Ospsiquiatrassedãoconta,cadavezmais,daimportância dos estudos psicológicos. Fuiconvidadohápouco, comuma colegadoIPUSP,paraescrevercapítulos(psicológicos)emdoismanuaisdepsiquiatria.

Henrique Figueiredo Carneiro – Essasquestões nos convidam também a uma

reflexão sobrea relaçãodaPsicologiacomciênciaeapolítica,não?

Cesar Ades – Existe uma disputa entrepsicólogos e psiquiatras, que é política. AhistóriadaPsicologiaéahistóriadalutaemtornodosdecretosedasleisquepermitemaopsicólogoterautonomianasuaatuaçãoprofissional.Édeseesperarquealgumatritohaja comoutras áreas profissionais, comapsiquiatriaemparticular,eéclaroquetemosquenosdefenderinstitucionalmente.EssaéafunçãodosConselhos.AideiaàqualmereferidecolocaraPsicologiadentrodeumprojeto estratégico também constitui umadefesa institucional. O aperfeiçoamentodenossapesquisaedenossapráticaéquenosconfereaforçaprincipal,nãoapenasadisputapolíticacomotal.Inara Barbosa Leão – Respaldados pelonosso conhecimento, com todas essastransformações quepodemos exemplificar,anossaciênciapsicológica,nasuaopinião,tem se aproximadomais das necessidadescotidianas? Por exemplo, sempre fomosmuitopróximosdaeducação,masquandoopsicólogoestánasescolas,aindaháumreceioda sua atuação, e os psicólogos tambémdemonstram incertezas sobre como devesersuaatividade.Aomesmotempo,temosalgunsenfrentamentosnaáreadasaúdequenão se resumem a essa questão de quempode ou não fazer terapia. Algumas áreasmais próximas ao serviço público agora jáestãonoscobrandomais.Issoaindaéreflexodessa nossa complexidadeounão tivemosaindacondiçãoderesolver?

Cesar Ades – Suaquestãoérelevante.Nãobasta ter boa intenção para atuar. Entre ateoria,aconcepçãoquetenhodaatuação,eatuar,hámuitoespaço.Aescolanaqualvouatuaréreal,concreta,precisoestarequipadoparadarsoluções.Eháumespaçoemquea pesquisa guiada por conceitos básicos eapercepçãodoqueacontecenocontexto

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histórico e situado onde a nossa práticaprecisa se instalar, emquenovas soluçõespodem ser exploradas.Uma experiênciaricafoiterparticipado,comaminhacolegaEmmaOtta,deumcurso,dadonoInstitutode Psicologia daUSP para estudantes degraduação,sobreamotivaçãonasaladeaula.É impressionante como, embora todos osdocentes(eestudantes)concordemquantoàrelevânciadamotivaçãoduranteoprocessode ensino-aprendizagem, o campo aindarequer bastante pesquisa, pelomenos naáreadoensinosuperior.HáumacontribuiçãomuitoimportanteaserdadapelaPsicologia.Agora,comodefinir,emtermosinstitucionais,apresençaeaparticipaçãodopsicólogonaescola?Éoutraquestão.Inara Barbosa Leão – Nós teríamosconhecimento acumulado para dar contadealgumasdessasquestões,masaindanãoconseguimosutilizá-las,sistematizá-las?

Cesar Ades – A abordagem científicaenvolve o contato direto com o objeto.Tenhoqueestarpertodoquemeinteressa,observando.Essecontatogeraumasériedeconhecimentos, ideias, intuições, às vezessem coerência interna,mas estou ali, emcontato. É impossível fazer Psicologia semcontato direto, aberto, com as pessoas ecomseuambientedevida.Trazê-lasparaolaboratório?Sim,àsvezeséessencial,masprecisotambémconhecê-lasemseucontextodevida.

Henrique Figueiredo Carneiro – Estourealizando emFortalezaumapesquisasobrevítimas de violência emespaços públicos.Nessesentido,ogrupodepesquisadoresvaitrabalharcomasvítimasnasdelegacias,nahoraquevãofazeroboletimdeocorrência.Sãoexperiênciascomoessaaqueosenhorserefere?

Cesar Ades – Ir à delegacia, na hora da

ocorrência, observando e perguntando etentandoomaispossívelserfielaoqueestáocorrendo,éentraremcontatocomaecologiadofatopsicológico.Nãohácomoprescindirdele.Existemmetodologiasparatrabalhosdecampocomoesse.Fazerciêncianãosignificanecessariamente saber de que jeito atuarsobrearealidadesocial,háquesedistinguirumpragmatismobem intencionado, e quemuitas vezes funciona, e o conhecimentomaisestruturaldoqueestáacontecendo.Édiferente procurar pelos princípios teóricosque dão conta da forma que a violênciaassumeeplanejarumaintervençãolocal.Há,aquitambém,umcamporicoparaumvai-e-vementreteoriaeaplicação.Aquestãonãoéopsicólogoseguirumacartilhateórica.Seguiréquemeincomodaumpouco.

Inara Barbosa Leão –Seguirenãorefletir.

Cesar Ades – Isso. E não ver que às vezeso dado pode desmentir a bela teoria quetenho.SintoporLacaneLorenz,àsvezesaobservaçãopodedesmenti-los.Henrique Figueiredo Carneiro – E nãohánadademal.

Inara Barbosa Leão – Atéporquenãosepodecobrardelesexplicaçõesparafenômenosquenãopresenciaram.

Cesar Ades – Issomesmo. Não acho quetodopsicólogodevaserumcientista.Hácertavocaçãoparaisso,deve-seachargraçanisso.Tambémhácertavocaçãoparaserumbomterapeuta,eháprazeresmuitosnoexercíciodaterapia.Ascoisasfuncionamdemaneiramais primitiva doque se imagina.Quandoduaspessoasseencontram,elascolocamemjogomecanismosensaiadosdurante todooseu desenvolvimento e tambémdurante aevolução social complexíssima da espéciehumana.Oqueaconteceentreduaspessoasé sutil, rápido, complexo, inconsciente eracionaldeumjeitoparaoqualaciênciaainda

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nãotemrespostacompleta.Énecessáriofazerusodessesmecanismos,mesmoquenãooscompreendamos totalmente,mas tambémvaleexplorá-loscientificamente.

Inara Barbosa Leão – Àmedidaquevamoscomplicando omundo, complicando avida, necessariamente vamos complicar aPsicologiatambém.Essaideiadapossibilidadede leis concretizadas, de enunciados quecontemplemamaioriadosfenômenos,vemsemostrando cada diamais distante daPsicologia.

Cesar Ades – Essaéuma longadiscussão.Nãoháumconjuntosimplesdeprincípios,masháprincípiosbásicos.Oproblemaéainserção histórica e cultural do fenômenopsicológico. Nunca haverá uma teoriacompleta,definitiva,dofatocomportamental,porqueelatemdeserreformuladaoupelomenosmoduladaapartirdamudançaqueocorrenosparâmetroscontextuais.Masnãose pode ceder ao reducionismo cultural,que relativiza tudo e não dá conta dotranscultural.Sevocêderavoltaaomundo,perceberá que as pessoas permanecempsicologicamente semelhantes aomesmotempoemquesedistinguemporcausadesua experiência peculiar (serão as leis daaquisiçãodeexperiênciasimilares?).

Édifícilatribuiraexpressãofacialdasemoções,um tema queDarwin tratou demaneiraespetacularequemeinteressasobremaneira,ainfluênciasculturaislocalizadasearbitrárias.Se você der a volta aomundo, verá quesorrir é sorrir, chorar é chorar,manifestarnojo é manifestar nojo, mesmo que acircunstância em que essas emoções sãosentidaspossa variarbastantedeum lugaraoutro.Matsumoto,discípulodeEckman,especialistarenomadoemexpressõesfaciais,fotografouatletasdejudô,cegosevidentes,quandoganhavammedalhasounão,duranteumaolimpíada.Asexpressõesdeunsedeoutrossãopraticamenteindistinguíveis,um

forte argumento a favor da determinaçãobiológica.Há,contudo,indicaçõesrecentese controvertidas de que há variaçõesinterculturais na expressão facial,dialetos emocionais. Falei desse assunto na últimareunião (2010) daANPEPP, em Fortaleza.Meu ponto é este: não há contradiçãoentre umadeterminação biológica e umadeterminaçãocultural.Odialetosemanifestadentro de uma linguagem universal dasemoções, são aspectos integrados, facetasquecompõemoconhecimentopsicológico.Aregrageralabrangesuasprópriasflutuaçõeslocaisehistóricas.Inara Barbosa Leão –Enessasinterações,oslimitesseriamdadosporquem?(risos)

Cesar Ades – Como eu vejo, é criaroportunidadesdecontatoentrepsicólogosdelinhasdiferentesemtornodeproblemascomuns: o que interessa a umpode nãosertãoafastadodoqueinteressaaooutro.Concretamente, seria avaliar o ensino dePsicologia, pensar a atuação como fonteriquíssima de conhecimento, eliminara barreira entre ciência básica e ciênciaaplicada. Por que não? São atitudesinstitucionaispelasquaistemosdebatalhar.SeéqueaPsicologiatemquesesituaremuma rede de relevância social, cabe quetranscenda,semperderosensoeagraçadosolharesdiversos,assuascisõesatravésdeumdiálogointerno.

Henrique Figueiredo Carneiro –Umpsica-nalistacomcertatendênciaapsicólogovaidizerquetrabalhacomlaçossociais.

Cesar Ades – Porquenão?

Inara Barbosa Leão – E,comtantanovidade,como garantir coerência, respeitabilidade?Dentro das confusões, encontra- sejustificativa para tudo. Já vimos, em umavisitaaumcursodeespecializaçãoquepediacredenciamento,aofertadeumadisciplina

É difícil atribuir a expressão facial

das emoções, um tema que Darwin

tratou de maneira espetacular e

que me interessa sobremaneira,

a influências culturais

localizadas e arbitrárias. Se

você der a volta ao mundo, verá que sorrir é sorrir, chorar é chorar,

manifestar nojo é manifestar nojo,

mesmo que a circunstância em que essas emoções são

sentidas possa variar bastante de um lugar a outro.

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sobre terapia de vidas pregressas. Comolidamoscomisso?

Cesar Ades – Nãohásoluçãomágicanemimediata.Nãogarantonada,mas,sehouverum trabalho de confronto, uma reflexãoepistemológicafeitaerefeita,oportunidadesboasdeintercâmbio,quemsabe?Senão,tudoépossível(risos).Estamosemummomentobom,deboaproduçãodaciênciabrasileira.Há um aumento notável do número deartigosbrasileirospublicadosemrevistasdeimpacto,estamoscomeçandoanosintegrarna comunidade internacional da ciência.A internet, os intercâmbios internacionaistransfiguram a ciência provinciana queestávamosacostumadosafazer.NãodigoqueestejatudobememPsicologia,precisamosurgentementeparar e ver o quanto temosque fazer,mas houve expansão.O PauloRosas já falavadeexpansão,no seuartigodetrintaanosatrás,hoje,então!Omomentoé propício para um salto na qualidade epara uma inserçãomaior da Psicologia,tantoemnossomeiocomonacomunidadeinternacional.

Inara Barbosa Leão – NesseperíodoquevemdootimismodoPauloRosasatéagora,oquevocêachaqueimpulsionouoavançoda Psicologia, mesmo em períodos tãodesfavoráveispelosquaisoPaíspassou?

Cesar Ades –Háfatoresdedesenvolvimentoefatoresqueemperramodesenvolvimento.Umaatitudecríticaéessencial.Muitacoisase fez em universidades públicas e emalgumasuniversidadesparticularesnocampodo apoio à pesquisa.Oprogresso sedevemuito simplesmente ao fato de ter havidoinvestimento em ciência.Nadaocorrepormágica,seminvestimento.TivemosetemosaFapesp,aCapes,oCNPq.

Henrique Figueiredo Carneiro –Eomodelodepós-graduaçãohojeémuitorespeitado.

Cesar Ades –Muitorespeitado,viu-se issonomais recente simpósio daAssociação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Não quero serufanista, hámuitas restrições. A questão écomo proporcionar boa formação, dadoo grandenúmerode cursos de Psicologia,comooferecerformaçãoqueincluaciênciaetenhaprofessorescapacitados.Nossospós-graduandos, quandodão aula emalgumasfaculdadesparticulares,nemsemprecolocamemusooque aprenderam, ficam tolhidosporque não têm condição de produzirpesquisas.Sãoquestõesdramáticas.

Inara Barbosa Leão – Eéparaasfaculdadesparticulares que vai a grandemaioria dosalunos.

Cesar Ades – Ficocontente,deumlado,pelaexistênciadasmuitasfaculdadesparticulares:sãofontesdeempregoparaosnossospós-graduandos!Deoutrolado,evidentemente,preocupa-meoníveldeensino.Inara Barbosa Leão – Essa ampliação daofertadepós-graduaçãoaparececomoumindicador de que poderemos fazer tantoquantofoifeitoanteriormente,oumelhor?

Cesar Ades – Certamente. O problemaé que geramosMestres eDoutores paraserem absorvidos pela carreira docente,poruniversidades.Hálimitação,nemtodospoderão ser aproveitados. Valeria a penadiscutirapossibilidadedeotítulodeMestreouDoutorrepresentarumtrunfoprofissional,foradauniversidade.

Henrique Figueiredo Carneiro – Que afunção doDoutor e doMestre não sejaapenasnorecortedaUniversidade?

Cesar Ades – Sim,nãopoderiaapessoacomtítuloserumprofissionalmaiscapacitado?

Inara Barbosa Leão – Osenhorachaquenãoestamosconseguindomostrarissopara

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aquelesMestres eDoutores que saemdasuniversidades?

Cesar Ades – Ocontexto social precisariavalorizarotítulo.

Henrique Figueiredo Carneiro – Se aformação passa pela pesquisa, e se essarelação entre Psicologia e sociedade nãoformuitobemcolocadaparaosalunosemformação...

Cesar Ades – Pensoquehávantagensparaopsicólogoquetrabalhaemaplicaçãoatualizar-seprestandoatençãoàspublicaçõescientíficasemsuaárea.Minhafilha,psicólogaclínica,trabalha com transtornos de alimentação(nem todos são pesquisadores na família).Notooquantoéimportanteparaelaaleituradeartigosdepesquisaeaparticipaçãoemcongressos.Temosaduplatarefadeinteressarnossosfuturospsicólogospelaproblemáticasocialedetorná-losconsumidoresdeciência.

Nossaposiçãoemrelaçãoàsociedade,comoclasse de profissionais, a nossa propostaestratégica,dependedaaçãodosConselhosedasAssociaçõesemPsicologia.Lembro-medeterouvidoumaexposiçãodoProfessorZagoarespeitodasprioridadesdeinvestimentodoCNPq(doqualeleerapresidente).DelasnãoconstavaaPsicologia,eissoésintomáticodaposiçãoquenosacostumamosaterdentrodonossocontextoacadêmicoesocial.

Inara Barbosa Leão – Voltandoàquestãoda pós-graduação e à possibilidadede elaperderessecarátermaisacadêmico: tenhovistocoisasemrelaçãoàpós-graduação.Osalunosvãoporquenãoachamemprego,eláterãobolsa.E,aomesmotempo,existeessediscursofácildasociedadedoconhecimentoedasoluçãodosproblemasdomundopelasociedadedo conhecimento.Mas isso nosparecequequebraumpoucoaideiadeumaformaçãopara apesquisaquepudesse serarticuladacomaprofissão.

Cesar Ades –Aquestãoécomplexa.Faleisobre a necessidade de haver empregosexternos para oMestre ou oDoutor,masénecessário tomarcuidadoemnão tornara pós-graduação uma continuação dagraduação e uma forma de esperar peloemprego.Após-graduaçãonãodevedesviar-se de seuobjetivo, que é acadêmico,masseriainteressantediscuti-laemtermosdeumpesopossívelemtermosdemercado.Henrique Figueiredo Carneiro – Comrelaçãoaoiníciodanossaconversa,dos30anosatráseagora,aquestãodostrêscursosiniciaisqueosenhorcolocoucontinuouemminhacabeça.

Cesar Ades–Éalgoimpressionante.Havia20vagasaquinaUSPparapsicólogo,eanotaeraeliminatória,entãoopessoalsedavaaoluxodeaceitar10,12estudantes.Eonúmerodecandidatoseraemtornode30para20vagas.

Henrique Figueiredo Carneiro – APsicologiahoje,noBrasil, tempresençanoNorte,noCentro-Oeste,noNordeste.Gostariadeouvirumpoucodosenhorsuaimpressãosobreisso,ecomoissorepercutenaciência.

Cesar Ades – Pode-sefazermuitomaishojeemdia porque hámais gente que pensa,maisgentequepesquisa,umnúmeromaiorde áreas a serem exploradas, um acessocemporcentomaioràsfontesbibliográficas.Masnemsempreaqualidadeacompanhaonúmero.Ocursoque tivenaFaculdadedeFilosofia,CiênciaseLetras,porcarentequefosseemrelaçãoaospadrõesmodernos(nãotínhamosmanuais traduzidos, erampoucosos laboratórios e os espaços para o treinoemaplicação, aPsicologiamaldeslanchavacomoprofissão,nãohaviacomputadoresneminternet,etc.)nãodeixoudeserextremamenteestimulante,talvezporque,contrariamenteaosalunosdehoje,nossentíssemosnocomeçodetudo.AexpansãogeográficadaPsicologiaémuitobem-vinda:contribuiparaqueanossaciênciaestejamaispertodetodososaspectosdarealidadebrasileira.

“A Psicologia no Brasil”

Cesar Ades PSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2010, 30 (núm. esp.), 246-271

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Ana BockDoutoraemPsicologiaSocialpelaPUCSP.ProfessoratitulardodepartamentodePsicologiaSocialdaFaculdadedeCiênciasHumanasedaSaúdenaPontifíciaUniversidadeCatólicadeSãoPaulo,SãoPaulo–SP-BrasilE-mail:[email protected]

Endereço para correspondência:RuaIrundiara,35–VilaNovaConceiçãoSãoPaulo,SP–BrasilCEP04535-050

Cesar Ades(UniversidadedeSãoPaulo)Professortitular.DiretordoInstitutodeEstudosAvançadosdaUSPProfessortitulardoInstitutodePsicologiadaUSP,SãoPaulo–SP–BrasilE-mail:[email protected]

Endereço para envio de correspondência:R.Pamplona825/34SãoPaulo,SP–BrasilCEP01405-001

Henrique Figueiredo Carneiro – Eadiscus-são sobreproduçãocientíficanaPsicologia,éoutrocalcanhardeAquilesquenoschamaaatenção?

Cesar Ades – Aexigênciadeprodutividade,quando começou a ser sentida, gerouresistência, principalmente entre docentesdaáreadeciênciashumanas.Criticou-seoprodutivismoporprivilegiarcertostiposdepesquisa,porcriarumdesequilíbrioentreosvários requisitos da carreira, prejudicandoointeressedidático,etc.Hojeosdocentesestãomaisreconciliadoscomanecessidadedepublicaredepublicarcomqualidade,easpressõesdaCAPESsurtiram,pelomenos,maiorconsciênciadequepesquisaprecisaser divulgada e lida. Campos novos decomunicaçãoseabrem,porexemplo,comapossibilidadedepesquisadoresbrasileirospublicarem em revistas de Psicologia deoutrospaísesdaAméricaLatina.Sobraaindaosentimento,queeuachojustificado,dequenãosedeveriapublicarporpublicar.Umaprofessora carioca, cuja palestra assisti nareuniãodaANPEPPemFortaleza,disse,deumaformamuitopessoaledivertida,queaobsessãoempublicarafastaopesquisadordeumricolazercognitivo,davontadedepensarascoisassemcompromisso,dacriatividade,denãoestarcompressa.

Inara Barbosa Leão –Pedirdoisartigosaum aluno no primeiro ano domestrado,por exemplo.Não sepodedar um temponecessárioparaoalunoamadurecer?

Cesar Ades –Eleterquepublicarsobreatesedeleéimportante,senãoelaficaesquecidana estante da biblioteca.Mas publicar éapenasopontofinaldeumlongoprocessode amadurecimento, de aprendizagemdaartedepesquisar.

Inara Barbosa Leão – Agradecemos pelaentrevista.Cesar Ades–Muitoobrigadoavocês,quemeestimularamcomosseusquestionamentos;as perguntas iluminam também a quemresponde. A Psicologia cresceu de umaforma impressionante e assumiuumpapelimportante entre nós. Sobra uma granderesponsabilidade quanto à qualidade daformação, quanto à inserção do camposocialequantoaoincentivoparaapesquisa.Consideroacomemoraçãodos30anosdarevistaPsicologia: Ciência e Profissãomenosuma recapitulação do que foi feito nosúltimos30anospassadosemaisumolharparaafrente,paraoquequeremosfazereparaoqueesperamosqueaconteçaparaaPsicologia.Sehouverciência,estábem.

“A Psicologia no Brasil”

Cesar Ades PSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2010, 30 (núm. esp.), 246-271