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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade Halysson Dias Santos Épica e memória no século XVIII: Tradição, costume e memória no Poema Épico do Descobrimento da Bahia Vitória da Conquista Outubro de 2016

Épica e memória no século XVIII: Tradição, costume e ... · 3.3 a noÇÃo de tradiÇÃo entre os sÉculos xvi, xvii e xviiii.....128 4 o gÊnero Épico e a tradiÇÃo antes e

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB

Programa de Ps-Graduao em Memria: Linguagem e Sociedade

Halysson Dias Santos

pica e memria no sculo XVIII: Tradio, costume e memria no Poema

pico do Descobrimento da Bahia

Vitria da Conquista

Outubro de 2016

i

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB

Programa de Ps-Graduao em Memria: Linguagem e Sociedade

Halysson Dias Santos

pica e memria no sculo XVIII: Tradio, costume e memria no Poema

pico do Descobrimento da Bahia

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

Memria: Linguagem e Sociedade, como requisito

parcial e obrigatrio para obteno do ttulo de

Doutor em Memria: Linguagem e Sociedade.

rea: Multidisciplinaridade da Memria.

Linha de Pesquisa: Memria, Discursos e

Narrativas.

Orientador: Prof. Dr. Marcello Moreira

Vitria da Conquista

Outubro de 2016

ii

Ttulo em ingls: Epic and memory in the Eighteenth Century: Tradition, Custom and

Memory in the Epic Poem of the Discovery of Bahia;

Palavras-chaves ingls: Caramuru. Consutedudo. Epic Poetry. Memoria. Tradition.

rea de concentrao: Multidisciplinaridade da Memria

Titulao: Doutor em Memria: Linguagem e Sociedade.

Banca Examinadora: Prof. Dr. Marcello Moreira (Orientador), Prof. Dra. Isnara Pereira Ivo

(titular), Prof. Dra. Maria da Conceio Fonseca-Silva (titular), Prof. Dr. Joo Adolfo Hansen

(titular), Prof. Dra. Sheila Moura Hue (titular).

Data da Defesa: 31 de agosto de 2016

Programa de Ps-Graduao: Programa de Ps-Graduao em Memria: Linguagem e

Sociedade.

SANTOS, Halysson Dias H375e pica e memria no sculo XVIII: Tradio, costume e memria no Poema

pico do Descobrimento da Bahia; Marcello Moreira - Vitria da Conquista, 2016. 375 f.

Tese (Doutorado em Memria: Linguagem e Sociedade). - Programa de Ps-Graduao em Memria: Linguagem e Sociedade Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2016.

1. Caramuru. 2. Consuetudo. 3. pica. 4. Memria. 5. Tradio. I. Moreira, Marcello. III. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. IV. Ttulo.

iii

iv

Aos meus pais, Antnio e Lcia

minha esposa, Patrcia e aos meus dois meninos,

Caleb e Felipe

Ao meu irmo, Cristiano

A Marcello Moreira, meu orientador

v

AGRADECIMENTOS

Agradeo:

Ao colegiado do PPGMLS.

s professoras doutoras Maria da Conceio e Lvia Diana, coordenadoras do

PPGMLS.

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, um lugar onde tenho me formado.

Ao professor Dr. Marcello Moreira, pessoa que estimo, meu orientador e responsvel

pela parcela mais significativa de minha formao acadmica.

Repisando o comunssimo lugar da privao dos queridos, minha amada famlia,

sobretudo minha esposa e a meus dois filhos, mas tambm a meus pais e irmo, que

suportaram os muitos momentos em que precisei deles me apartar.

As agudas observaes, as ricas e sbias diretrizes dadas pelos membros da banca de

qualificao Prof. Dr. Flvio Antnio Fernandes Reis e a Prof. Dra. Isnara Pereira Ivo, elas

muitos contriburam para a redao final do texto que se seguir.

Ao professor Dr. Joo Adolfo Hansen, com quem muito tenho aprendido.

Aos demais membros da banca de doutoramento: Prof. Dra. Maria da Conceio

Fonseca-Silva, Prof. Dra. Isnara Pereira Ivo, Prof. Dr

a. Sheila Moura Hue.

Aos demais professores do PPGMLS, especialmente ao Prof. Dr. Edson Silva de

Farias, Prof. Dra. Ana Elizabeth Santos Alves e Prof. Dr. Ana Palmira Bittencourt Santos

Casimiro.

A todas as instituies que mantm acervos digitais de obras antigas e de peridicos na

internet, sem esse suporte a elaborao dessa tese seria praticamente invivel. Como nos

beneficiamos de vrios acervos digitais, e na impossibilidade de citar todos eles, agradecemos

com essa referncia genrica, porm, sincera.

Aos meus caros colegas Flvio Reis, Maria do Socorro Fernandes de Carvalho, Cssio

Borges, Fernando Maciel Gazoni, Ricardo Martins Valle, Adilson Ventura, Matheus Silveira

Lima, ngela Gusmo, pelas palavras de incentivo, pelos livros, artigos e indicaes.

Aos meus vrios amigos, alguns dos quais deixei praticamente de ver durante esses

anos de estudo, pelos vaivns de uma existncia contingente. Espero em breve rever alguns de

vocs. Entre eles, agradeo a Heurisgleides, Glauber Lacerda, como meus irmos, e aos seus

vi

Alice e Benjamin, a Reginaldo, Arlete, Flvio, Maria do Socorro, Milena, Eronildes, Luzia,

Marins, Manoela, Ingridd, Jerry, Elton Quadros, Sebastio Oliveira, Matheus, Aldinei

Cndido, ngela Gusmo, Mara Avelar, Maria de Ftima, Irziane, Humberto, Joaquim,

Samuel, Anglica, Alan, Nicolau, Joo, Jairo, John Nogueira, Leandro, Venivaldo, o Binha,

Suedilson, Mrcio, Gilmar Dantas, Mamdio, Zelma e filhos, Elione, Jane e Eliuan, Pedro

Virglio, Alex, Patrcia, Regina, Consuelo, Rita Santana, Maristela, Marcinha, Graziele

Gusmo, Cleonice, Dbora, Itamar, Lrio, Ivan. A Tiago, Jane, Marcelo, Nuno (aos muitos

primos). dona Euza, Fernanda, Bia, Mnica, Jaqueline, Vailson e filhos, Z Moura. Aos meus

avs (Antnio, Maria, Salustiano, Isabel) e tios.

A Vanderli Marques, meu caro professor Bite, a Silvia Aline e filhos.

escola Milton de Almeida Santos e a todos os amigos que ali fiz e reencontrei.

A tantas e tantas outras pessoas para mim queridas.

A Reinailda, Elton Silva Salgado, Alexandre Lessa, Antnio Joaquim, Lus Cludio,

Hugo, Daisy, Alex, Ricardo, Luciano, Ciro e aos demais colegas do PPGMLS.

A todos os meus muitos professores, sem os quais no teria ido muito longe.

Aos meus alunos de outrora, aos meus alunos de Letras, Cinema e da Parfor.

Aos caros colegas da rea de Teoria e Literatura e ao Departamento de Estudos

Lingusticos e Literrios da UESB, na pessoa do Prof. Dr. Jorge Augusto.

Aos colegiados de Letras e Cinema da UESB

Enfim. A quem no foi possvel referir, mas cuja simples meno um frvolo no

lugar.

vii

RESUMO

Pretende-se, por meio da presente tese, estudar os fundamentos mnemnicos da poesia de

carter pico produzida, recitada e lida silenciosamente, a partir de meados do sculo XVIII

em lngua portuguesa, considerando um poema especfico, o Caramuru, Poema pico do

Descobrimento da Bahia, escrito nos ltimos anos da dcada de 1770 pelo frei Jos de Santa

Rita Duro (1722-1784) e impresso por primeira vez em 1781. Tais princpios podem ser

entendidos, segundo o nosso parecer, mediante o exame das noes de tradio e costume

vlidas naquele perodo. Acreditamos que a memria, assim como o esquecimento,

compreendido como sua contraparte, permearam os processos de composio e transmisso

do Caramuru em suas verses manuscritas e impressas, assim como dos demais picos luso-

brasileiros produzidos na segunda metade do sculo XVIII. Essa hiptese validada quando

consideramos as doutrinas retricas e poticas que, direta ou indiretamente, incidiram sobre

sua elaborao, e quando lemos o Caramuru como produto de uma prtica potica

fundamentada no costume.

Palavras-Chave: Caramuru. Consutedudo. Memria. Poesia pica. Tradio.

viii

ABSTRACT

Through this thesis, It is intended to study the mnemonic foundations of epic poetry produced,

recited and read silently, from the mid-eighteenth century in Portuguese, considering a

specific poem, the Caramuru, Epic Poem of the Discovery of Bahia, written in the late 1770s

by Friar Jos de Santa Rita Duro (1722 -1784) and printed form for the first time in 1781.

These principles can be understood, according to our opinion, through the notions of tradition

and valid custom in that period. We believe that memory, as well as forgetfulness, understood

as its counterpart, permeated the processes of composition and transmission of Caramuru in

its handwritten and printed versions, as well as the other Luso-Brazilian epics produced in the

second half of the eighteenth century. This hypothesis is valid when we consider the rhetorical

and poetic doctrines doctrines that directly or indirectly focused on its elaboration, and when

we read the Caramuru as a product of a poetic practice based on custom.

Keywords: Caramuru. Consutedudo. Epic Poetry. Memory. Tradition.

ix

SUMRIO

1INTRODUO.................................................................................................................10

2 A POESIA LUSO-BRASILEIRA DO SCULO XVIII E TRADIO.....................24

2.1 O CARAMURU E A TRADIO NA CRTICA E DA HISTORIOGRAFIA

LITERRIA.........................................................................................................................24

2.2 ALGUNS LUGARES COMUNS DA RECEPO CRTICA DO CARAMURU A

PARTIR DO SCULO XIX.................................................................................................33

2.3 ANTONIO CANDIDO, OS POETAS LUSO-BRASILEIROS DO FINAL DO

SCULO XVIII E A TRADIO LITERRIA BRASILEIRA.....................................42

2.4 A POESIA COLONIAL E A TRADIO...............................................................50

2.5. A PICA LUSO-BRASILEIRA E A TRADIO.......................................................61

2.6. PROBLEMAS QUANTO AO USO DA NOO DE TRADIO EM RELAO

S LETRAS ANTERIORES AO SCULO XIX SEGUNDO JOO ADOLFO

HANSEN...............................................................................................................................70

3 NOES PS-KANTIANAS DE TRADIO FRENTE TRADITIO..................75

3.1 IDEALISMO, ROMANTISMO E TRADIO, SCULOS XVIII E XIX................ 76

3.2 ALGUMAS DAS REDEFINIES DA NOO DE TRADIO NO CAMPO DA

TEORIA, DA HISTRIA E DA CRTICA LITERRIAS NO SCULO XX.................86

3.3 A NOO DE TRADIO ENTRE OS SCULOS XVI, XVII E XVIIII............128

4 O GNERO PICO E A TRADIO ANTES E DEPOIS DO SCULO XVIII..145

4.1. USOS MODERNOS DE AISTHESIS, GNIO, BILDUNG E O COLAPSO

DAS INSTITUIES RETRICAS E POTICAS ANTIGAS NOS SCULOS XVIII E

XIX......................................................................................................................................147

4.2. DEFINIES ROMNTICAS E PS-ROMNTICAS DO PICO.......................170

4.3. POESIA PICA, TRADIO E PRECEITUAO POTICA NO SCULO

XVIII...................................................................................................................................181

4.4. A RECEPO DA POTICA DE ARISTTELES E A PRECEITUAO SOBRE O

GNERO PICO ENTRE OS SCULOS XVI E XVIII...................................................200

4.5 O CARAMURU E A PRECEPTIVA

POTICA..........................................................212

5 COSTUME, MEMRIA E TRADITIO NA POESIA PICA LUSO-BRASILEIRA

DO SCULO XVIII..........................................................................................................226

5.1 DEFINIO DE COSTUME......................................................................................227

5.2 O COSTUME, A MEMRIA, A EDUCAO E A ANTIGA INSTITUIO

RETRICA........................................................................................................................ 240

5.3 A POTICA, O ENGENHO E A ARTE ENTRE OS SCULOS XVI E XVIII...... 265

5.4 O COSTUME E A ARTE POTICA......................................................................... 279

6 O CARAMURU, ENTRE O COSTUME E A TRADIO.......................................

291

6.1 O POETA SANTA RITA DURO............................................................................. 291

6.2 A CULTURA DO IMPRESSO ENTRE OS SCULOS XVI, XVII E XVIII......... 297

6.3 MEMRIA, ESCRITA E LEITURA.......................................................................... 307

x

6.4 A POESIA HEROICA LUSO-BRASILEIRA SETECENTISTA, ENTRE O

IMPRESSO E O MANUSCRITO......................................................................................

324

6.5 NOTAS SOBRE OS MODOS DE PUBLICAO E RECEPO DO CARAMURU

NO SCULO XVIII............................................................................................................332

7 CONCLUSO................................................................................................................345

REFERNCIAS................................................................................................................353

11

1 INTRODUO

Entre as primeiras dcadas do sculo XIX, quando tem incio a recepo crtica e

historiogrfica do Caramuru, Poema pico do Descobrimento da Bahia, e este incio de

sculo XXI, a noo de tradio foi recorrentemente usada pelos que deram alguma ateno

ao poema de frei Jos de Santa Rita Duro. Matizada por diferentes pressupostos terico-

metodolgicos e ideolgicos, essa noo tem servido a diferentes propsitos nas abordagens

do poema. Com maior ou menor nfase, a recepo crtica do Caramuru tem insistido na ideia

de que ele faz parte de algum tipo de tradio. Entretanto, segundo nos parece, aps ter tido

contato com uma diversidade de textos empenhados na descrio e avaliao do poema, a

noo de tradio a partir da qual se opera no foi em nenhum momento debatida1; ela se

apresenta como uma das muitas pressuposies muitas das quais, como esperamos por em

relevo, que consideramos imprprias para descrever e ajuizar o valor do pico de Santa Rita

Duro, que so assumidas, na maior parte dos casos, acriticamente.

Sendo desse modo, julgamos pertinente propor uma discusso que, partido de uma

definio de tradio que, no nosso entender, perfeitamente vlida para proceder com uma

descrio e uma avaliao do poema que consideramos mais verossmil e historicamente

consistente em relao maior parte das leituras at ento propostas, o que se far, pelas

razes que sero expostas no decorrer da tese, discutindo duas outras noes, como indicia o

ttulo deste trabalho, o costume e a memria. Para tanto, partiremos de uma apresentao de

alguns dos usos da noo de tradio correntes entre os estudiosos e comentadores do

Caramuru, e de alguns dos pressupostos que justificam tais usos, os quais, como pretendemos

demonstrar, remetem aos diferentes vnculos terico-metodolgicos que esses leitores do

Poema pico do Descobrimento da Bahia mantm, em suas respectivas aproximaes do

poema, com vrias correntes filosficas, tericas, crticas, historiogrficas que surgiram a

partir de fins do sculo XVIII, e que, direta ou indiretamente, se ocuparam do literrio. Em

seguida, proporemos, por meio de uma discusso sobre as condies de produo e recepo

do Caramuru, um conjunto de pressupostos que julgamos mais convenientes numa leitura que

se quer verdadeiramente crtica e histrica do pico de Santa Rita Duro.

1 H de se excetuar a discusso empreendida por Hansen sobre o gnero pico publicada como estudo

introdutrio das edies reunidas por Teixeira (2008) e publicados sob o ttulo de picos. Nela, como teremos

oportunidade de ver, em sua exposio, Hansen problematiza a noo de tradio, assim como a de costume, que

tambm ser discutida ao longo dessa tese, tendo em vista a produo pica luso-brasileira dos sculos XVII,

XVIII e brasileira do XIX, em parte dada a pblico no volume que introduz, o que, obviamente, inclui o

Caramuru.

12

Vrios poemas picos foram compostos em lngua portuguesa desde a publicao de

Os Lusadas, de Lus de Cames, que recebe sua primeira edio impressa datada de 1572 e

que, para muitos, por sua excelncia, passou a ser o modelo mximo da poesia pica lusa,

seno ibrica. J no final do sculo XVI apareceram poemas de matria heroica que se

alinhavam com o que muitos denominaram tradio pica camoniana (FIGUEIREDO, 1950).

Um conjunto de poemas que do ponto de vista de sua inveno, disposio e elocuo

buscaram emular Os Lusadas (MOREIRA, 2004, 2008; HANSEN, 2008; ALVES, 2001). Ao

longo do sculo XVII, o interesse pela pica no arrefeceu entre os poetas lusos. Muito ao

contrrio. A recepo do poema de Cames uma recepo polmica, diga-se de passagem

e o contnuo anseio no sentido de produzir poemas que assinalassem mais e mais a excelncia

da lngua ptria quando comparada com as lnguas antigas, notadamente o latim, e os demais

idiomas vulgares impulsionaram tanto a escrita de picos quanto tentativas de estabelecer

quais os modelos a serem seguidos em tamanha empreitada. A ambio de escrever uma

epopeia no deixou de estar no horizonte dos poetas lusos com a chegada do sculo XVIII,

muito embora possamos dizer que outras motivaes para o cultivo dessa espcie potica

tenham sido aditadas com o avano do tempo e o impacto das chamadas ideias ilustradas

sobre a cultura letrada portuguesa. Por mais que se considere a produo de picos parca e/ou

artisticamente inferior em comparao com outros tempos (cf. CANDIDO, 2000),

inegvel que os poetas portugueses e luso-brasileiros do Setecentos continuaram cultivando o

gnero at os ltimos decnios do sculo. A segunda metade do sculo XVIII , por exemplo,

um momento em que picos importantes vieram a pblico. Em Portugal, cantar os feitos de

homens considerados ilustres permaneceu fazendo sentido ao longo do sculo XVIII.

A poesia pica lusa produzida entre os sculos XVI e XVIII s devidamente

entendida quando se reconhece o seu inegvel carter mimtico e, portanto, quando, em seu

estudo, se tem em vista os variados modelos que nela so retomados na emulao

(MUHANA, 1997; MOREIRA, 2004; HANSEN, 2008). Como gnero antigo, cujos

fundamentos de composio a circunscrio do assunto, as tpicas especficas de sua

inveno, os padres de ordenao da matria, a articulao lingustica do discurso, o estilo

que lhe peculiar (usos concernentes ao vocabulrio, aos tropos, etc.), os modos de

enunciao (narrativo, dramtico), a poesia pica produzida no Imprio Ultramarino

Portugus entre os sculos XVI e XVIII no deixando de considerar a especificidade de

cada poema heroico composto em lngua portuguesa nessa longa durao remonta, em

maior ou menor grau, s epopeias atribudas a Homero e a suas apropriaes latinas,

realizadas mediante tradues e emulaes, que tm na Eneida de Virglio seu exemplar mais

13

conspcuo. Remonta, ainda, a depender do poema que se tem em mente poesia registrada

nos romanceiros ditos medievais, s canes de gesta francesas, italianas, castelhanas

(HANSEN, 2008). Mas no somente estes so os modelos disponveis e efetivamente

imitados. Essa produo, por meio de processos de emulao, se vincula poesia pica escrita

em lugares italianos2 nos sculos XIV, XV e incio do sculo XVI (HANSEN, 2008;

ALVES, 2001). Da, se pode chegar concluso de que, no que se refere a esse tipo de poesia,

o que no deixa de ser extensivo s demais espcies poticas ento praticadas, vrias duraes

se sobrepem, se ajustam, na escrita de novos poemas (articulaes particulares de um

conjunto de preceitos e prticas, deliberada e objetivamente repostos; arranjos especficos e

circunstanciados, posto serem efetuados a partir de situaes bastante especficas,

contingentes), os quais, conquanto se apresentem como novidade, no deixam de guardar

semelhanas com os poemas neles emulados, se inscrevendo, desse modo, numa longa

durao do que poderamos chamar tradio pica ou tradio do gnero pico, existindo,

portanto, como variaes de outros poemas heroicos. Tomando-se como exemplos os picos

luso-brasileiros produzidos na segunda metade do sculo XVIII, como o caso de Vila Rica,

de Cludio Manuel da Costa, A Conceio, de Toms Antonio de Gonzaga, Uraguai, de Jos

Baslio da Gama, Caramuru, de Frei Jos de Santa Rita Duro, para alm daqueles modelos

mais antigos, preciso ter em vista modelos mais recentes, poemas, eles prprios, produzidos

enquanto emulao, mas que, doravante, por sua excelncia, assumiram a condio de

paradigma para a composio de novos picos, o caso de Os Lusadas, assim como a

Araucana, para lembrar a pica castelhana do sculo XVI. Mas tambm de poemas

setecentistas, a exemplo de La Henriade de Voltaire, que, direta ou indiretamente, serviu de

modelo a outros poemas do sculo XVIII (TEIXEIRA, 2008, p. 201-210).

Considerando-se a questo a partir de um outro ngulo, devemos lembrar que, pelo

menos desde o V sculo a.C., a poesia em geral e a epopeia em particular passou a ser objeto

de reflexo filosfica. Em Plato e em Aristteles, encontramos, at onde sabemos, as duas

abordagens mais antigas da poesia como assunto filosfico, perspectivas estas que sero

constantemente retomadas em sculos posteriores para se falar da arte potica. A avaliao

moral da poesia sob o vis platnico e o esforo aristotlico no sentido de definir e classificar

a poesia foram, com o passar do tempo, assumidos como paradigmas no somente descritivos,

2 preciso que nos lembremos que, nesse tempo, no existia uma Itlia propriamente dita, como uma unidade

poltica. Como se sabe, o que hoje conhecemos por Itlia s chega a uma unidade nacional no sculo XIX. Antes

disso, o que existiam nessa regio da Europa eram cidades-estado independentes. Basta, por exemplo, que

lembremos dO Prncipe, de Maquiavel, para que tenhamos uma ideia da situao poltica da Pennsula Itlica

no sculo XVII; situao esta que no se alterar at fins do sculo XIX.

14

mas, sobretudo, prescritivos e avaliativos no que tange a arte de compor poemas. Em outras

palavras, Plato e Aristteles passaram a ser autoridades que, para alguns, se completam e,

para outros, se opem. Assim, no somente a poesia pica foi praticada desde a chamada

Antiguidade, mas foi tambm ajuizada e, consequentemente, definida e valorada de diferentes

modos, o que acabou por constituir o que poderamos denominar tradies doutrinrias da arte

potica, pelas mltiplas e, por vezes, contraditrias definies e taxionomias propostas para a

poesia em geral e suas espcies. Exemplo de redefinio interessada da tkhne poietik

encontramos na Epistola ad Pisones Horcio, escrita no I sculo a.C., que, em termos latinos,

traduz culturalmente a noo grega de tcnica potica, concebendo-a juntamente com outros

romanos como ars poetica. O tom normativo, de certo modo j presente em Aristteles e

inegavelmente desenvolvido por Horcio, que, por meio das doutrinas do decoro e da

verossimilhana, supervaloriza o ideal de perfeio potica, j proposto pelo Estagirita, no

deixar de ser valorizado em outros perodos histricos. A partir do sculo XVI, possvel

observar uma intensa produo de discursos preceptivos cuja circulao pretende, e de certo

modo termina por, inflectir sobre a produo potica coetnea. Nesses discursos, seja por

meio da constituio de autoridades prticas, Homero, Enio, Virglio, Lucano, Apolnio de

Rodes, Dante, Petrarca, Boiardo, Ariosto, Tasso, Ercilla, Cames etc., seja por meio do

reconhecimento da auctoritas doutrinria dos tratados gregos e romanos de arte potica,

especialmente os de Aristteles e Horcio, depreende-se preceitos que deveriam nortear a

produo e a avaliao de poemas picos excelentes.

No entanto, a preceptiva por si s no explica a produo pica dos sculos XVI, XVII

e XVIII. Os poetas no produzem seus poemas heroicos simplesmente por terem tido contanto

com tratados de arte potica, eles o fazem pois foram, antes de tudo, adestrados para esse

ofcio. Tal adestramento no meramente doutrinrio, terico, como diriam alguns, ele

antes de tudo prtico. Os poetas se tornam artfices por praticarem continuamente a arte da

poesia no exerccio dos diferentes gneros, passando a ter habilidade para compor no

somente epopeias, mas sonetos, glogas, ronds, madrigais, epitfios, etc, com maior ou

menos grau de competncia tcnica, sendo capazes, a depender do engenho natural de que so

dotados em cada caso, compor poemas excelente, medianos ou pfios. O aprimoramento

tcnico , portanto, a reposio de um costume (HANSEN, 2008; 2013; HANSEN;

MOREIRA, 2013). Costume que, por seu turno, historicamente partilhado, transmitido no

curso do tempo, como per manus traditum. Sem dvidas, um poeta aprende com outros

poetas os poetas considerados excelentes no passado e no presente os procedimentos a

serem adotados na composio dos diferentes gneros poticos por ele praticados. A poesia

15

em geral, e a pica em particular, , desse modo, um saber/fazer; a aplicao de preceitos

mediante o domnio de tcnicas de composio poticas capazes de originar um poema, um

dispositivo discursivo retoricamente constitudo (HANSEN, 2003). A reiterao do costume

por parte do artfice se d mediante o agenciamento da memria. Portanto, para discutir a

tradio e o costume, preciso discutir em que medida a memria atua na atualizao das

prticas consuetudinrias envolvidas na composio de enunciados poticos que so

transmitidas de poeta a poeta ao longo do tempo; pelo que se reconhece uma memria de usos

legtimos, ou como diz Hansen (2003), uma memria dos bons usos. Memria que permeia os

processos de produo e circulao dos escritos; memria que concebida, ela prpria, como

uma tekhn, uma ars, memria que continuamente adestrada pelos poetas ao longo de sua

educao formal e alm dela.

Por outro lado, importa lembrar que esses poemas so produzidos primeiramente como

exerccio da escrita manual, podendo, inclusive, ter sido oralmente recitados em crculos

letrados medida que eram compostos. Antes de serem prensados, antes de se tornarem um

artefato impresso, os poemas so obviamente redigidos como manuscritos. A escrita manual

no apenas pode servir escrita dos poemas, mas tambm a sua publicao. Alm disso, eles

podem passar a ser conhecidos por meio de prticas de leitura e recitao pblica. Assim, a

oralidade pode ser veculo de publicao de poemas, ou de partes de poemas, como

provavelmente ocorria com poemas extensos como uma epopeia. Os poemas poderiam ser,

em seu todo, ou em parte, a depender de seu tamanho, memorizados e posteriormente

recitados. Essas particularidades da partilha social das obras poticas produzidas nesse

perodo no devem ser esquecidas: os textos no somente circulam em forma de livros

impressos, eles tambm so partilhados, e algumas deles apenas como manuscritos (folhas

soltas, livros de mo, etc.), ou como textos lidos ou declamados em voz alta; reproduzidos por

meio de cpias igualmente manuscritas de escritos que tendem naturalmente a gerar variantes

do poema que se pretendeu produzir; sem falar da possibilidade do registro escrito de trechos

dos poemas dados a pblico mediante a oralizao. Embora detenham as tcnicas de

composio o poeta no detm a posse intelectual da obra, como se d a partir da instituio

do copyright. Embora possam dizer que as obras poticas lhes pertencem, estas no lhes

pertencem tal como pertenceriam se vigorasse o regime dos direitos autorais tal como o

conhecemos atualmente. Desse modo, so consideradas legtimas adies e supresses por

parte daqueles que, para ns hoje, no seriam, por definio, autores do poema; aquele que,

por exemplo, ficava responsvel pela preparao do texto a ser impresso. Tudo isso fora uma

16

discusso em torno das noes de autoria e de obra com que deveramos operar no estudo

dessas prticas letradas (cf. HANSEN, 1996; 2008; CHARTIER, 1994).

Quando pensamos nas relaes que se estabelecem entre esses vrios poemas passveis

de ser classificados como picos apesar das suas evidentes diferenas, assim como nas

relaes entre os distintos meios de publicao de um dado poema somos postos diante de

uma importante questo: Quais os processos envolvidos na composio e circulao dessas

obras em sua contemporaneidade? Como possvel pensar a distino e a semelhana, a

singularidade e a constncia que podemos observar nesses escritos, bem como as suas

variantes? A partir de quais noes especficas tais processos poderiam ser legitimamente

descritos por ns que atualmente nos dedicamos ao estudo desses poemas e das prticas

simblicas que deram a eles origem? E, finalmente: Qual o papel desempenhado pela

memria, em suas relaes com o esquecimento, na produo e circulao de picos nesse

perodo?

Cremos que, mediante uma investigao acerca das noes de tradio e costume (no

sentido de contuetudo), ambas compreendidas em seus usos anteriores ao sculo XIX,

especificamente em suas relaes com a poesia, possvel oferecer respostas plausveis a

esses questionamentos. Acreditamos que a memria e o esquecimento como sua contraparte,

permearam os processos de composio e transmisso desse poema, assim como dos demais

picos lusos produzidos na segunda metade do sculo XVIII. Sendo possvel ter acesso a

manuscritos autgrafos, apgrafos e, em alguns casos, a cpias coetneas chanceladas pelos

seus autores, podemos presumir que os poemas picos luso-brasileiros da segunda metade do

sculo XVIII e, entre eles, o Caramuru, se inscrevem em distintas ordens de tradio, que por

seu turno remetem a doutrinas e a prticas letradas contingentes e a modos distintos de

publicao reconhecidamente legtimos na poca, a circulao manuscrita e impressa de obras

poticas, alm das prticas de oralidade, sendo que, em todos os casos na publicao via

manuscritos, na publicao via impresso, na divulgao oral de suas obras , como j se

pontuou, os poetas no gozam de direitos autorais equivalentes queles que desfrutamos hoje.

Desse modo, para que compreendamos os meandros da composio e transmisso de poemas

picos no ltimo quartel do sculo XVIII, poca em que, como se disse, Caramuru foi escrito

e publicado, se faz necessrio refletir sobre os problemas que advm das condies de

produo, editorao e circulao de escritos a que Santa Rita Duro, assim como os demais

poetas de seu tempo, esteve sujeito. preciso dizer tambm, que a compreenso desses

regimes de produo e circulao de escritos poticos no perodo em questo permite que

17

sejam questionadas e evitadas certas interpretaes desse poema que se tm revelado

imprprias, por serem anacrnicas e simplistas.

Nesse estudo, pretende-se, pois, estudar os fundamentos mnemnicos da poesia de

carter pico produzida, declamada e lida silenciosamente a partir de meados do sculo XVIII

em lngua portuguesa, a partir de um caso especfico, o Caramuru, Poema pico do

Descobrimento da Bahia, escrito nos ltimos anos da dcada de 1770 e dado a pblico em

forma impressa por primeira vez em 1781. Tais lastros podem ser compreendidos, segundo o

nosso parecer, a partir das noes de tradio e costume.

Para tanto, prope-se, por um lado, uma espcie de arqueologia que, partindo da

segunda metade do sculo XVI e indo at meados do sculo XVIII, pe em relevo a

transmisso dos preceitos da poesia pica e, por outro, a transmisso do costume de

composio de poemas heroicos, o que se far mediante o estudo de algumas das principais

preceptivas do perodo e da identificao dos vnculos entre a produo pica de fins do

sculo XVIII e poemas anteriores, notadamente Os Lusadas, considerando-se o alegado

alinhamento desses poemas a uma presumida tradio pica camoniana. Assim, possvel

distinguir e relacionar as noes de tradio e costume, propondo uma diferenciao entre

tradio doutrinal e a prtica costumeira da poesia, a traditio das tcnicas de composio de

poemas picos que se d pelas atualizaes do uso. Num segundo momento, pretende-se

abordar os problemas relacionados materialidade dos poemas em questo, tendo em vista os

processos de transmisso dos mesmos seja como manuscritos, seja como impressos. Nesse

caso, temos em vista o uso filolgico da noo de tradio, aquilo que se convencionou

chamar de tradio textual.

medida que discutimos todos esses tpicos, faz-se necessrio questionar os usos da

noo de tradio que incorrem, sob diferentes aspectos, em anacronismo e que, por conto de

vrias noes que vem sendo associadas de tradio desde as perspectivas idealistas e

positivistas que comeam a surgir na segunda metade do sculo XVIII, produzem a falsa

impresso de ter havido uma tradio pica, entendida como uma unidade contnua, um corpo

homogneo de doutrinas e prticas, bem como tradies textuais unitrias, conforme certos

postulados filolgicos dos sculos XIX e XX, dos poemas picos de fins do sculo XVIII,

particularmente, tendo em vista o escopo de nossa pesquisa, no que concerne ao Caramuru.

Antes de qualquer discusso sobre a poesia pica produzida entre os sculos XVI e

XVIII, sobretudo uma que enfoque as noes de tradio e costume, preciso que se

reconhea a longa histria desse gnero, que, como temos dito, se delineia desde a chamada

antiguidade. Isso especialmente verdade em se tratando dos picos escritos no Imprio

18

Ultramarino Portugus em fins do sculo XVIII. Isso porque, nesses poemas, como

esperamos evidenciar, no somente os modelos mais antigos de epopeias, mas muitos poemas

modernos reconhecidos como exemplares foram claramente, e em alguns casos

declaradamente, emulados. Quando os poetas lusos dos Setecentos olhavam para trs desde

seu prprio tempo, eles tinham a possibilidade de inventariar uma multido de poemas de

matria heroica que haviam sido compostos no decorrer de inmeros sculos, desde que o

gnero pico surgiu, segundo pensavam, entre os antigos gregos.

Assim, nessas consideraes iniciais, se pe em relevo, de modo bastante pontual, a

longussima trajetria da pica, principiando pelo que, entre os sculos XVI e XVIII,

representou a arqu do gnero, os poemas homricos. Embora no seja obviamente possvel,

na presente tese, realizar, a contento, um estudo extenso e minucioso sobre a histria do

gnero em questo, at porque nem esse o nosso objetivo ao redigi-la, indispensvel que,

nesse princpio, chamemos a ateno para a sua antiguidade. Uma investigao sobre a

traditio e a consuetudo a partir de uma imitao pica empreendida na segunda metade do

sculo XVIII, por necessidade, exige a historicizao dos modelos que a viabilizaram e,

portanto, o reconhecimento da longa durao do gnero. Sem essa historicizao elementar

no possvel refletir sobre os vnculos que, por tradio, e por costume, se estabeleceram

entre os picos luso-brasileiros setecentistas, e em especial o Caramuru, e os modelos que se

pretendeu emular em sua fatura.

Ao longo dos sculos XVI e XVIII, a Ilada e a Odisseia so reputados como os mais

antigos modelos da poesia heroica (HANSEN, 2008; VALLE, 2004). No mundo grego, em

que esse gnero de poesia gozou de imenso prestgio, a educao, a transmisso da paideia,

em grande medida devia-se partilha social dos poemas homricos. Assim, os poemas

atribudos a Homero esto, por diferentes razes, intimamente associados com a educao

grega arcaica, seja antes, seja depois do advento da escrita alfabtica. A Ilada e a Odisseia

talvez possam ser considerados os dois mais importantes poemas que sobreviveram da

civilizao grega antiga, ao lado dos poemas atribudos a Hesodo. A epopeia, como uma das

espcies de poesia, foi objeto de reflexo dos dois mais renomados pensadores gregos antigos,

sendo, ao menos por um deles, avaliado como um dos dois tipos de poesia mais elevados, ao

lado da tragdia.

Na Repblica de Plato, por exemplo, no contexto de um debate sobre a educao dos

futuros guardies na Polis ideal, Scrates inclui a epopeia como uma das particularizaes

possveis da poiesis. Como um gnero misto, em parte narrativo, em parte mimtico, a poesia

pica foi, juntamente com a tragdia e a comdia, ambas plenamente mimticas, alvo da

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censura socrtica, que nela enxergava um instrumento de perverso dos mais jovens, seja por

seu carter, ao menos em parte, imitativo, seja pelas perspectivas imprprias, segundo o

parecer de Scrates, a partir das quais a imitao nela se d. Para Plato/Scrates, a imitao

dos deuses, dos heris, da vida presentes na poesia homrica seria perniciosa. Desse modo,

nos livros III e X do dilogo de Plato, os poemas atribudos a Homero, conquanto no se

deixe de reconhecer, at certo ponto, seu valor, so finalmente avaliados como inconvenientes

no que tange educao apropriada queles a que se deveria confiar a guarda da Polis que

Scrates tinha em vista e, portanto, a perpetuao de sua plena liberdade. Deixando de lado

esse objetivo moral do tratamento socrtico-platnico da poiesis, observamos que, embora

no tenha sido esse o seu objetivo principal, o dilogo de Plato oferece uma definio da

poesia pica que, por um lado, a concebe como um modo particular de poesia, como um modo

de articulao conjunta das duas possibilidades de enunciao potica, a imitao direta e a

narrao e, por outro, em sendo poesia, como discurso que visa a um fim, ainda que sua

eficcia considerando-se o bem supremo seja posta em questo.

Algumas dcadas depois, por volta de 334 a.C., Aristteles um discpulo de Plato

que com o tempo se distancia das doutrinas de seu mestre reavalia a poesia, de certo modo

reabilitando-a frente perspectiva socrtico-platnica, mediante a redefinio das noes de

poiesis e da mmesis expostas na Repblica. Para Aristteles, poesia sinnimo de mmesis;

um tipo de imitao. O Estagirita opera o que poderamos chamar de um deslocamento das

noes socrtico-platnicas a fim de evidenciar, por um lado, que toda espcie de poesia ,

em ltima instncia, um tipo de imitao e, por outro, que, assim sendo, a poiesis,

compreendida como mmesis, precisa ser devidamente compreendida de um ponto de vista

emprico, que permitisse chegar a uma taxionomia o mais exata possvel daquilo que at ento

no contava com uma designao conveniente. Desse modo, no somente a poesia composta,

em seu todo ou em parte, de dilogos mimtica, mas tambm a poesia que puramente

narrativa, o que, por conseguinte, juntamente com a insero da poesia em si como um

tpico digno da investigao de um filsofo, e, portanto, como algo que pertence, digamos,

positivamente, ao domnio da verdadeira episteme torna possvel uma reconsiderao, entre

outras coisas, de sua natureza, propriedades, origem, espcies e funo, bem como a sria

considerao dos procedimentos de composio que devem nortear o poeta que pretende

compor um poema que se pretenda perfeito de acordo com o paradeigma de poetas como

Homero, Sfocles e Aristfanes. Ainda que tenha como foco a tragdia, em sua Potica,

Aristteles fala bastante da epopeia, oferecendo uma delimitao em muitos aspectos precisa

do que ele compreendia por epos no que tange aos meios, modos e objetos de imitao por ele

20

estabelecidos em sua exposio dos aspectos que diferenciam as espcies de poiesis. A

epopeia definida como um gnero elevado de poesia, cujo objeto de imitao so aes de

homens superiores, homens melhores do que geralmente costumamos ser, assim como ocorre

na tragdia. Em sua feitura, o poeta pico, ao imitar, opera unicamente por meio da palavra e

a partir de dois modos de articulao do discurso: se, por um lado, ao compor um poema

pico, o poeta narra feitos, o que justifica o prprio nome dado ao gnero, epopeia, palavra

que, como sabemos, deriva de epos (HANSEN, 2008, p. 26), por outro, ele finge ser outro ao

imitar, sem recorrer narrao, mediante dilogos, de modo que parea que os personagens

(caracteres agentes) agem e falam por si mesmos. Dramatizando, como na tragdia e na

comdia, o poeta emula de tal modo a ao dos homens que produz um simulacro que

contrafaz, no arremedo, a prpria natureza, conforme compreendero muitos de seus leitores

nos sculos XVI, XVII e XVIII (MUHANA, 1997; HANSEN, 2008). Para Hansen (2008, p.

26), na Potica de Aristteles, feita a primeira exposio doutrinria sobre o gnero pico.

De fato, na Potica, diferentemente do que ocorre nos dilogos atribudos a Plato

(notadamente no Leis, no on e no j referido Repblica), que encontramos uma teorizao

propriamente dita acerca da poesia.

No mundo romano, a epopeia no deixa de ter relevncia. Alm das tradues que se

fizeram dos poemas homricos, poemas de matria heroica foram escritos seguindo-se o

modelo dos poemas gregos, atendendo-se s demandas das novas circunstncias de produo,

o caso, por exemplo, da Eneida, de Virglio, mas no podemos nos esquecer dos poemas

que antecederam o principal pico do tempo de Augusto e aqueles que foram escritos tendo

como referencial o seu modelo. No sculo I, possvel observar processos de variao pelo

qual a designao poema pico passa a designar diferentes tipos de poemas. A Eneida

passar posteridade como um dos modelos mais importantes, em alguns casos o maior de

todos eles, acima, inclusive dos poemas homricos3.

Ainda tendo como parmetro os gregos, sobretudo Aristteles, redefinida entre os

romanos, dando origem desse modo, a um novo paradigma em que o carter normativo da

definio vem para um primeiro plano. Assim, importava menos inquirir filosoficamente

sobre o que vem a ser a poesia, do que explicitar as diretrizes doutrinrias que, se

devidamente observadas, conduziriam ao poema excelente. Por uma acentuada valorizao

das noes de decoro e verossimilhana, a definio da poesia e, consequentemente, a do

gnero pico, se torna eminentemente normativa, visando ao ideal da perfeio potica que,

3 Lembremos que, alm da Eneida, e dos poemas atribudos a Homero, outros poemas heroicos gregos e

romanos so lembrados na preceptiva potica dos sculos XVI, XVII e XVIII como modelos picos.

21

sem sombras de dvida, j pode ser depreendido da Potica. No mundo romano, Horcio

aquele que, em sua Epstola ad Pisones, estabelecer em linhas gerais quais as regras a serem

seguidas na composio de um poema heroico que possa ser tido como perfeito e qual a sua

principal finalidade.

Em fins do sculo XVIII, a morte do gnero pico estava bem encaminhada. Destino

que a epopeia, em seus moldes antigos, encontraria j no sculo XVIII (HANSEN, 2005, p.

176). Seu desaparecimento se processava, portanto, exatamente quando Santa Rita Duro se

aventurou naquela que ento se julgava a mais rdua e comumente fadada ao fracasso das

empresas poticas. Assim, o Caramuru , sem sombra de dvidas, um dos ltimos suspiros da

pica antiga em sua existncia efetiva, antes do seu desaparecimento como gnero potico

regrado perpetuado pelo costume.

A epopeia, em suas estruturas antigas, no tem lugar no universo literrio de hoje,

tampouco razo para existir no mundo moderno, como um gnero de poesia efetivamente

praticado. Como afirma Hansen, a epopeia teve uma durao histrica especfica, que

encontrou o seu limite.

Enquanto duraram as instituies do mundo antigo, a epopeia narrou a ao

heroica de tipos ilustres, fundamentando-a em princpios absolutos, fora

guerreira, soberania jurdico-religiosa, virtude fecunda (HANSEN, 2008, p.

17).

Deixou de existir, pois, paulatinamente, perdeu o seu lugar na sociedade ocidental,

uma vez que os valores que lhe garantiam existncia institucional deixaram de fazer sentido.

Ou nas palavras do mesmo Hansen:

Desde a segunda metade do sculo XVIII, a universalizao do princpio da

livre-concorrncia burguesa que imps a mais-valia objetiva a todos e contra

todos foi mortal tambm para ela, pois o herosmo improvvel e

inverossmil quando o dinheiro o equivalente universal de todos os valores.

Desde ento, apesar de algumas tentativas romnticas de reviv-la nos

sculos XIX e XX, um gnero morto (HANSEN, 2008, p. 17-18).

Por estar extremamente arraigada s estruturas que se sustentaram at o sculo XVIII,

a epopeia perdeu sua razo de ser medida que esse mundo antigo foi desmoronando. Assim,

como sucedeu com a tragdia antiga, ou com o teatro elizabetano, a epopeia sofreu extino,

pois o mundo em que ela tinha sentido pleno sucumbiu na Histria, passando a ser um objeto

de apreciao histrica.

22

As antigas estruturas da sociedade portuguesa estavam prestes a ruir completamente

ante os solavancos que prenunciavam o terremoto que implodiria as ltimas bases que

sustentavam as instituies, prticas e doutrinas (filosficas, polticas, morais, teolgicas,

poticas etc.) do Antigo Regime ibrico que, ainda nessa altura, persistiam com a Monarquia

Portuguesa, mesmo depois da ilustrao catlica do Marqus de Pombal, deixando sob os

escombros as expectativas de posteridade e as iluses de perpetuidade que se podia nutrir at

ento.

Com o fim do sculo XVIII, ruiria tambm o antigo sistema retrico-potico de

matrizes greco-romanas, principalmente pautado nas apropriaes de Aristteles e Horcio e

dos retores romanos, do qual sobreviveriam apenas resduos, presentes em alguns manuais

didticos, produzidos ao longo do sculo XIX, que se concentravam, quase que

exclusivamente, no tratamento dos tropos. Portanto, a mquina retrica que percebemos ser

posta em movimento na inveno, disposio e elocuo do Poema pico do Descobrimento

da Bahia estava prestes a cair em desuso. As tcnicas mnemnicas de incorporao e

recuperao de saberes de que se valeram os letrados dos sculos XVI, XVII e XVIII, as quais

estavam na base dos procedimentos retricos de composio dos diferentes discursos, tambm

deixavam de ser empregadas.

Ao longo do sculo XVIII, ainda vigoraram iluses de eternidade, como diria Nora

(1981, p. 13). A confiana no poder de perpetuao da memria que tem a escrita, pela sua

prpria capacidade de ser perene e de perenizar, bem como as estruturas sociais que tornavam

tal perenidade absolutamente necessria e possvel, ainda no haviam se diludo, at deixarem

de existir no sculo XIX. A histria ainda ensinava vida, fornecendo-lhe condutas, aes e

ideias exemplares, como discurso colocado a servio do necessrio encorajamento as

carreiras militares, jurdicas, fiscais etc. (VALLE; SANTOS, 2008, p. 24). Como prope

Koselleck (2006, p. 41-60), o topos expresso pela frmula hisroria magistra vitae tambm

tem o seu limite temporal no final do sculo XVIII. Da em diante ele perde sua

expressividade ante os novos modos de se conceber a natureza e o papel social da histria, e a

prpria concepo de tempo (HANSEN, 2006, 2008), que passa a ser encarada como uma

disciplina e no mais como uma tekhn. Se a histria deixa de ser a mestra da vida, como

acreditavam os antigos, a crena na perenidade, tal qual a concebiam os homens de letras dos

sculos XVI, XVII e XVIII, do mesmo modo perdia sua validade, encontrando logo o seu

fim. Se a histria como discurso no mais concebida como fonte de exemplos a serem

emulados pelos vivos, a busca pela memria duradoura perde importncia, na medida em que

se arrefece o interesse em buscar no passado a exemplaridade para os assuntos presentes. Se o

23

tempo, a histria como devir, deixa de ser concebida como contnuo providencial em que

presente e passado se sobrepem, os fundamentos mnemnico e metafsico da epopeia

esboroam.

Quando o Caramuru foi escrito, como a histria, a poesia ainda pretendia garantir

memria perene, e do mesmo modo instruir, iluminar, pelos exemplos legados pelos

mortos, o caminho dos vivos. Era poesia que, como diz Valle (2003, p. 106) se realizava pela

construo da posteridade, sem se dar conta que essa posteridade poderia no atingir o fim

que dela se esperava. Com o poder de memria que lhes era caracterstico, por atribuio, as

belas letras, assim como as belas artes, tinham a alta finalidade de garantir a perpetuao do

corpo poltico no tempo, produzindo a impresso (obviamente produzida para tal) de um

continuo temporal, de um mesmo, nas palavras de Valle, que entre os sculos XIV e

XVIII, se atualiza e se adapta ao particular histrico, produzindo o efeito de imutabilidade que

reside, sobretudo, na reposio e encenao das mesmas categorias teolgicas, polticas,

retricas, poticas. Como orienta Cndido Lusitano acerca da pica em sua Arte Potica: Os

Poemas heroicos accendem os Capites, e guerreiros ao amor da gloria, e das emprezas

illustres, com o exemplo dos heroes, e homens famosos. Palavras estas que pretendem

demonstrar o fim proveitoso da poesia, que, contudo, no deve servir somente ao til, pois,

enquanto arte imitadora, tem por fim o deleitar (FREIRE, 1759, p. 27), sendo, como no

preceito horaciano, ao mesmo tempo til e deleitvel. A imitatio antiquorum ou imitatio

vetorum (a imitao dos antigos), portanto, persistia como um preceito vlido no somente no

mbito das letras (VALLE, 2004, p. 54).

Como vemos, para Freire, o passado ainda era compreendido como tempo nico,

sendo avaliado segundo critrios do presente e em funo de uma ideia de civilizao polida e

ilustrada. O que se confirma nas seguintes palavras de Luis Antonio Verney (1950, p. 235):

Homero grande, natural, tem pensamentos elevadssimos, e excede nisto

a Virglio; contudo, este, que escreveu depois, ainda que tenha menos

natureza mostra mais arte que Homero, pois soube evitar um defeito que

freqentemente se acha em Homero, que amontoar suprfluos eptetos, e s

vezes insulsos, como tambm as digresses e colquios inspidos, sem

necessidade alguma.

Como se pode observar, para Verney, o fato de Virglio ter escrito depois lhe dava a

possibilidade de corrigir Homero segundo melhor gosto, dando natureza melhor arte

(VALLE, 2003, p. 109). Ele os aproxima de tal modo, os pe lado a lado de tal modo que os

24

poetas antigos parecem ser ambos letrados dos Setecentos. Isso se d porque no pertence a

esse tempo o relativismo histrico que hoje nos impede de comparar qualitativamente

Homero e Virglio (VALLE, 2003, p. 109).

A epopeia no pde perpetuar-se, como prtica letrada, ante a runa de todas as

estruturas que a sustentavam, e das quais era partcipe (cf. VALLE, 2003, p. 106). , portanto,

um gnero terminado, que, na atualidade, somente pode ser tratado, como o diz Hansen,

arqueologicamente, por meio da reconstituio parcial dos preceitos da sua doutrina

vigentes no presente da inveno dos poemas (HANSEN, 2008, p. 18).

25

2 A POESIA LUSO-BRASILEIRA DO SCULO XVIII E A TRADIO

Como j assinalamos em nossa introduo, desde a sua primeira recepo crtica e

historiogrfica, que principia no incio do sculo XIX, a noo de tradio vem sendo

usualmente empregada pelos comentaristas do Caramuru, ora na descrio de seus atributos

poticos, ora na avaliao de suas relaes com outras obras, sobretudo Os Lusadas e as

fontes histricas que fundamentam seu argumento, ora na afirmao de um status particular

que ocuparia em algum tipo de cnone literrio e/ou linhagem potica, tradio nacional,

tradio pica portuguesa, tradio pica camoniana etc. Se no podemos afirmar que essa

noo esteja presente em todos os discursos romnticos e ps-romnticos (positivistas,

modernistas, estruturalistas, ps-estruturalistas etc.) que tratam do poema de Santa Rita

Duro, ou mesmo que tenha sempre recebido extremo destaque em todos aqueles textos de

sua fortuna crtica em que comparece, podemos, sem grandes dificuldades, demonstrar

exatamente o que pretendemos fazer no tpico inicial deste primeiro captulo , que, em

muitos casos, a referida noo se mostrou decisiva nas diferentes abordagens do poema. Por

vezes, na recepo crtica do Caramuru, a noo de tradio tem, inclusive, desempenhado

um evidente protagonismo. Entretanto, de um modo geral, mesmo quando a noo de tradio

no est num primeiro plano, ou sequer textualmente declarada, a maior parte das abordagens

do poema pressupe que o pico existe e/ou existiu como parte integrante de algum tipo de

tradio, especialmente a chamada tradio literria brasileira. Consideremos, pois, alguns

exemplos de como tais vnculos entre o Caramuru e algum tipo de tradio se estabelecem ao

longo do tempo, bem como alguns dos pressupostos que orientaram o estabelecimento dessas

relaes.

2.1 O CARAMURU E A TRADIO NA CRTICA E DA HISTORIOGRAFIA

LITERRIA

Num dos primeiros textos que tratam do Caramuru como um poema que pertenceria

literatura brasileira, o Rsum de lHistoire Littrarie du Portugal, suivi du Rsum de

lHistoire Littraire du Brsil, de Denis, publicado em Paris no ano de 1826, j nos

deparamos com um ponto de partida para a exposio do presente tpico. Segundo Denis

(1826, p. 534),

26

Le premier pome pique compos au Brsil, et jouissant de quelque

renomme, a t inspire par lvnement de plu potique qui suivit la

dcouverte de ce beau pays. Caramourou, dans lequel on rappelle les

aventures dun jeune Europen que le sort jette sur ces rivages, presente

lheureuse peinture du gnie ardente et aventureux des Portugais de cette

poque, mis en opposition avec la simplicit sauvage dun peuple dans

lenfance. On sent tout ce que pouvait produire un sujet aussi hereux dans un

pays o des souvenirs potiques sont encore rcens et exercent une forte

influence sur les espirits.

Na traduo de Csar (1978)4, a expresso souvenirs potiques traduzida por

tradies poticas, o que se justifica completamente quando pensamos, no conceito

romntico de literatura nacional defendido pelo autor, que, ao longo do texto de Denis,

aparece em conexo com com a ideia de tradio autctone, e, portanto, com a noo de

memria, de patrimnio nacional. Podemos dizer, portanto, que, na exposio de Denis sobre

a histria da literatura do Brasil, histria esta que, no seu parecer, remontaria aos tempos da

colnia, o Caramuru lido como um dos poemas que do incio a uma tradio literria

brasileira. Denis enfatiza a juvenilidade das memrias literrias do Brasil. Embora tenras, para

ele, tais memrias exerceriam larga influncia sobre os espritos. Desde essa leitura

romntica do poema de Santa Rita Duro, este tem sido recorrentemente identificado de

algum modo com a noo de tradio.

Para os romnticos, o que ser reiterado nas histrias literrias do sculo XX, no

somente o Caramuru faria parte de uma tradio, mas seria o resultado da apropriao de

tradies, sobretudo, por razes bvias, a tradio sobre Diogo lvares Caramuru e

Paraguau, tradio esta que remontaria a um fato histrico ocorrido no sculo XVI que, com

o passar do tempo, teria ganhado contornos mticos. Wolf (1978, p. 158), por exemplo, no

deixa de observar que a tradio no repe fielmente o fato histrico. Para ele, na verdade, ela

o teria embelezado. Segundo o seu juzo, no fim das contas, Duro no enriquecera a tradio

sobre Diogo lvares com qualquer achado particular, e tambm no a modificou de modo

original (WOLF, 1978, p. 159).

4 Em sua traduo lemos: O primeiro poema pico escrito no Brasil, detentor de algum renome, inspirou-se no

mais potico episdio que se seguiu ao descobrimento desse formoso pas. O Caramuru, no qual se recordam as

aventuras de um europeu jovem, lanado pelo destino quelas praias, apresenta excelente pintura do esprito

inflamado e aventuroso dos portugueses daquela poca, em oposio simplicidade selvagem de um povo ainda

na infncia. Sente-se tudo o que deveria produzir um assunto magnfico como este, num pas onde as tradies

poticas, tenras ainda, exercem larga influncia sobre os espritos (DENIS, 1978, p. 47).

27

Machado de Assis, em seu famoso ensaio sobre o instinto de nacionalidade, postula

uma cadeia de transmisso do legado literrio brasileiro que remontaria at o Caramuru e O

Uraguai:

Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como

primeiro trao, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as

formas literrias do pensamento buscam vestir-se com as cores do pas, e no

h negar que semelhante preocupao sintoma de vitalidade e abono de

futuro. As tradies de Gonalves Dias, Porto Alegre e Magalhes so assim

continuadas pela gerao j feita e pela que ainda agora madruga, como

aqueles continuaram as de Jos Baslio da Gama e Santa Rita Duro (ASSIS,

1959, p. 28).

Desse modo, tanto Caramuru quanto O Uraguai representariam tradies literrias

que, tendo sido perpetuadas pelos primeiros romnticos, chegaram gerao de Machado de

Assis. Para Machado, essa transmisso imprimiu na literatura de seu tempo um trao

caracterstico: certo instinto de nacionalidade que, no seu entender, assinalaria no somente

a sua vitalidade no presente, como a promessa de uma posteridade.

Aquele lugar comum concernente novidade das tradies brasileiras explorado por

Denis reaparecer quase na ltima dcada do sculo XX, em um dos livros mais

emblemticos da historiografia literria brasileira novecentista, o Captulos de Literatura

Colonial5, num ensaio dedicado obra de Duro, intitulado O Mito Americano. Nele,

segundo Holanda (2000):

certamente lcito objetar que, se a retrospeco perdera algum terreno no

Velho Mundo, ainda menos adequada deveria parecer, primeira vista, em

terras sem pesadas tradies e entre homens sem passado remoto. Mas

sabemos igualmente como a ardente exaltao do passado, a fabricao de

mitos e tradies venerveis constituiu sempre expediente compensatrio

favorito para aqueles que no se podem gabar de longas e ilustres tradies.

E alm disso compreensvel que onde essas tradies so mais escassas, a

fantasia literria ganha liberdade para recri-las a seu jeito. Por tudo isso, as

razes que tornariam o estilo pico anacrnico para um autor europeu no

prevaleceria com o mesmo vigor no hemisfrio ocidental.

A acunha de passadista que Candido (2000) d a Santa Rita Duro no Formao da

Literatura Brasileira busca enfatizar o carter convervador do poeta e o alinhamento

ideolgico de seu poema maior com uma atitude reacionria em relao ao pombalismo.

Comprometido com os antigos valores morais e culturais de Portugal, identificados, no sculo

5 O texto publicado em 1991 foi editado por Candido.

http://www.ufrgs.br/cdrom/machado/index01.html##http://www.ufrgs.br/cdrom/machado/index01.html##

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XVIII portugus, com a figura, para muitos, odiosa, do jesuta, um dos principais objetos do

louvor no do Caramuru, o poeta agostiniano seria o tpico agente da Viradeira, do

reacionarismo mariano e antipombalino (cf. AMORA, 1974, p. 64), acerca do que

explanamos com mais vagar adiante. No que o Caramuru e seu poeta no possam ser at

certo ponto caracterizados desse modo. Para Candido (2000, p. 169), o Caramuru se

enquadra, como um exemplo que, no entanto, destoaria do que comumente ocorre nesses

casos, entre os fenmenos de sobrevivncia e retrocesso que geralmente ocorrem num dado

perodo literrio. O pico de Duro estaria, portanto, pelo menos at certo ponto6, na

contramo das tendncias culturais, polticas e artsticas de seu tempo. Para Candido, que

acabara de se referir aos casos de Cludio Manuel da Costa, Gonzaga e Silva Alvarenga a fim

de ilustrar a presena de elementos de tenso entre o antigo e o moderno na poesia dita

rcade7, Duro, conquanto pertencesse gerao de Cludio, na de Gonzaga, que escreve e

publica o seu Caramuru, num estilo neocamoneano em que resqucios cultistas se misturam a

traos da cosmoviso do seu tempo. No parecer de Candido, que compreende o tempo de um

ponto de vista evolutivo-progressista, as tentativas picas foram a debilidade e o

anacronismo mais flagrante do sculo XVIII, no obstante to aferrado ao senso das

propores e culto das formas naturais8. Apesar das flagrantes mudanas que ocorrem no

sculo de Voltaire, como dizem, segundo Cndido (2000, p. 169): Na literatura portuguesa,

ou luso-brasileira, menos penetrada do esprito do sculo e cuja reforma [...] se prende muito

ao quinhentismo, a tradio encontra condies favorveis sobrevivncia9. Duro, no

entender de Candido, representaria nesta ordem de consideraes um caso interessante, de

tradio inserida em ideias modernas e ideias modernas vincadas pela tradio (CANDIDO,

6 Nas correntes dominantes de um perodo histrico, segundo Candido, ocorreriam normalmente tenes

internas devidas presena de normas e conceitos superados, mistura de geraes, coexistncia da fase final de

uma etapa com o incio de outra (CANDIDO, 2000, p. 169). 7 Segundo Candido (2000, p. 169), vemos um Cludio cheio de cultismo ombrear Gonzaga, muito mais senhor

da aspirada naturalidade; na prpria obra deste, as anacrenticas so matizadas de um amaneiramento rococ,

laivo de transformao barroca visvel ainda nos ronds de Silva Alvarenga. 8 Como segue dizendo: Fraqueza a que no escapou o prprio Voltaire (muito ao contrrio!) e alastrou o sculo

de uma produo abundante e medocre. O racionalismo e o movimento geral do pensamento e da sensibilidade

moderna alteram de modo profundo a viso do homem. Onde antes se via o transcendente, passou-se a ver

apenas o excepcional; onde se ampliava reduziu-se; o miraculoso, componente necessrio do gnero pico,

desapareceu lentamente; o heri assumiu feio diversa da que lhe dera a tradio clssica ou a lenda medieval,

perdendo amplitude para ganhar diversidade que o aproximava do quotidiano. Passando lenta mas decididamente

da viso para a anlise, a criao artstica ia emudecendo a tuba canora e belicosa em favor do romance e da

lrica. No sculo XVIII j predomina (se no quanto quantidade, quanto ao significado) a anlise novelstica e a

pesquisa potica da vida diria: sculo de Fielding, de Prevost, de Garo e de Bocage, onde os roncos atrasados

da musa heroica s produziram ecos mortios ou, ento, que inflectiam para se ajustar ao tempo, como foi o caso

do Uraguai (CANDIDO, 2000, p. 169). 9 Ainda assim, como segue, explicando, no se compara abundncia da pica ps-camoneana no sculo XVII,

com a do XVIII, j marcada alm disso por traos novos (CANDIDO, 2000, p. 169).

29

2000, p. 169-170). Como um dos roncos atrasados da musa heroica que, no sculo XVIII,

tentaram retomar os modelos clssicos da epopeia, o Caramuru se revelaria, ao menos em

parte, a parte mais significativa, como um poema descompassado com o esprito dos novos

tempos. Desse modo, Duro seria um ponto fora da curva em tempos ilustrados:

Dentre os que vieram a formar com ele, para a posteridade, a chamada

Escola Mineira, o mais isolado. Leu com certeza as obras de Cludio e

Baslio, e poderia ter-se avistado com este; mas no conviveu com escritores

nem andou nas rodas literrias. Como poeta, deveria ter notcia da Arcdia

Lusitana; no conhecemos dele, todavia, qualquer preocupao terica que

permita relacion-lo ao movimento, bem se nota em seus versos influncia

estilstica dos rcades. O fato de no ser cultista , provavelmente, devido

impregnao direta dos quinhentistas e a um senso de objetividade que

encontramos nos documentos em prosa dele conhecidos. As influncias

gerais da poca, agindo sobre seu esprito, aproximaram-no virtualmente dos

contemporneos; da nos parecer hoje no um arcaizante puro e simples, mas

um homem do seu tempo enquadrado na tradio pica (CANDIDO, 2000,

p. 170).

Mais adiante, Candido reitera, j descrevendo a composio do Poema pico do

descobrimento da Bahia, o vnculo que Duro, em sua atividade potica, manteria com a

tradio pica10

:

O Caramuru tem os elementos tradicionais do gnero: duros trabalhos de um

heri, contacto de gentes diversas, viso de uma seqncia histrica. de

duvidar-se que Duro haja lido o pontfice da epopia em seu tempo,

Voltaire, que influiu em Baslio e Cludio: no conheceria Milton, que leu

em francs, cantou numa ode e seguiu em certo passo do Vila Rica. A sua

linha camoniana e o intuito foi compor uma brasilada, (Varnhagen),

servindo de pretexto o caso de Diogo lvares, cujo relato fora sistematizado

em 1761 por Jaboato no Novo Orbe Serfico, mas vinha sendo feito havia

mais de um sculo pelos cronistas (CANDIDO, 2000, p. 170).

Em outro escrito, este inteiramente dedicado ao poema de Duro, mais propriamente a

sua recepo por parte dos romnticos, h uma clara identificao do Caramuru com pelo

menos duas tradies: aquela tradio conforme Candido (2011, p. 182) simultaneamente

histria e linhagstica a que Wolf se refere, aquela que propiciou, mediante a apropriao

10

Holanda (2000), tambm aponta para essa adoo de elementos considerados tradicionais da epopeia na

composio do Caramuru, na comparao que faz entre o pico de Baslio da Gama e o de Duro: Em contraste

com o Caramuru, construdo, todo ele, segundo os esquemas tradicionais, seu poema [O Uraguai] escapa

inteiramente aos moldes camonianos (HOLANDA, 2000, p. 133). Entretanto, como pontua alhures, apesar de

todo o seu classicismo ou quinhentismo deliberado, Duro no se mostra de todo infiel ao seu sculo

(HOLANDA, 2000, p. 110).

30

que Duro fez de vrias fontes historiogrficas, sobretudo as que foram produzidas na

Academia dos Renascidos (CANDIDO, 2011, p. 180), o argumento do poema e a tradio

pica, cujos elementos barrocos Candido acusa na Formao da Literatura Brasileira. Para

Candido, sem sombra de dvidas, o poema de Santa Rita Duro se enquadra na tradio da

pica literria (CANDIDO, 2011, p. 183), antes mesmo de vir a pertencer tradio literria

nacional de que passaria, finalmente, a fazer parte pelo esforo dos primeiros romnticos

brasileiros11

.

Sabemos que, para Candido, no Formao da Literatura Brasileira, o final do sculo

XVIII representa o ponto de partida da constituio do cnone nacional. Desse modo, o

Caramuru no somente faria parte da tradio literria brasileira que, como veremos, do

ponto de vista de Candido, somente tem incio nas ltimas dcadas do perodo colonial,

quando as condies scio-histricas que em tese viabilizariam a emergncia de um sistema

literrio nacional autnomo teriam j se configurado no Brasil. O poema de Santa Rita Duro

seria um dos primeiros textos coloniais que prenunciariam a autonomia literria da nao que,

em poucas dcadas passaria a ser independente de Portugal, e que serviria, no sculo XIX,

pela apropriao romntica de que foi objeto, ao propsito de tornar evidente a realidade de

uma literatura verdadeiramente brasileira, a cuja conscincia ento se chegava. Antes disso,

conforme o modelo de interpretao de Candido, no havia tradio orgnica prpria, nem

densidade espiritual no meio que permitisse a formao de um cnone literrio autnomo (cf.

CANDIDO, 2011, p. 177-178).

Num livro intitulado A Formao pica da Literatura Brasileira (1987), essa

afirmao do carter pico do poema de Duro e sua relao com os modelos picos do sculo

XVI, novamente enfatizada por um membro de sua recepo crtica. Para Silva (1987, p.

35),

11

Embora proponha uma leitura que, no nosso entender, significativamente mais arguta e historicamente

verossmil do Caramuru e de sua recepo romntica quando comparada a outras anteriores e posteriores sua,

no podemos deixar de apontar alguns pontos passveis de crtica na abordagem de Candido. Tal caracterizao,

porm, no deveria apagar o fato de que o poema claramente se alinha com muitas das ideias ilustradas que

circularam na segunda metade do sculo XVIII, do que no se esquece Candido, como pudemos notar. A

alcunha de o passadista pode, portanto, ser enganosa se mal compreendida. De qualquer modo, o que nos

interessa por ora a identificao de Duro e de seu pico com uma atitude favorvel tradio. H de se

destacar o endosso que Candido parece conceder ao ponto de vista equivocado de Vanhagen, que v, no que foi

seguido por muitos outros, mesmo aps o perodo romntico, no pico de Duro uma espcie de brasileida,

quando, como bastante evidente pela leitura do Caramuru, o poeta jamais teve intenes nacionalistas no

sentido romntico da ideia de Nao , muito menos no que se refere ao Brasil, etc. Deixa de criticar de modo

mais incisivo a insero, por parte de uma posteridade romntica, do poeta Santa Rita Duro na chamada Escola

Mineira (cf. WOLF, 1978, p. 153; ROMERO, 2001, p. 107), outro ponto em que a abordagem de Candido

precisa ser objeto de crtica.

31

Caramuru epopeia autntica, chega mesmo a superar as extrapolaes da

matria pica que ameaam a qualificao pica do heri. Teoricamente

identificado com o modelo pico renascentista, traz todavia, devido a nova

concepo literria, inovaes particulares que integram a epopeia

expresso literria do sculo XVIII. Embora alienando a brasilidade pela

adoo da tica cultural do colonizador, consequncia da opo pela

ideologia do civilizado, alinha-se, ao lado de O Uraguai, na etapa inicial do

percurso pico brasileiro, contribuindo para a afirmao da tradio pica.

Vinte anos depois, em Histria da Epopeia Brasileira, o mesmo Silva, agora em

parceria com Ramalho (2007), reitera a tradicionalidade da estrutura potica de Caramuru

que, segundo eles, explicita a inteno pica na forma tradicional, com proposio,

invocao, dedicatria, narrao e eplogo (SILVA; RAMALHO, 2007, p. 82), o que o

aproxima de Os Lusadas. Como teremos a oportunidade de discutir j no prximo tpico do

presente captulo, desde o sculo XIX, lugar-comum entre os comentaristas do poema sua

identificao com a pica camoniana. Desde cedo, para o bem e para o mal, o Caramuru

foi lido como um dos muitos poemas sados da fonte camoniana (VERSSIMO, 1998, p.

155-156).

Biron (1998), em sua tese de doutoramento, foi quem, na recepo crtica do

Caramuru, mais enfatizou as relaes do poema com a tradio que, no pico de Santa Rita

Duro, compareceria numa tenso com a renovao potica levada a cabo pelo poeta. O

prprio ttulo de seu trabalho, Tradio e Renovao no Poema pico Caramuru, o indicia.

Na verdade, desde sua dissertao de mestrado, Biron (1988) enfatiza essa tenso entre

tradio e inovao no Caramuru, como podemos observar na seguinte declarao: o

momento de transio traz perdas e ganhos, pois o abandono de uma tradio no se faz num

abrir e fechar de olhos. E o poeta deixa isso bem claro, ao dizer que canta o antigo Portugal

renascido no Brasil (BIRON, 1988, p. 9). Entre as concluses a que chega em sua tese, Biron

defende o ponto de vista de que:

O Caramuru passa posteridade, porque o poeta no se contentou apenas

com a repetio, com a cpia do modelo camoniano. Duro inaugura um tipo

de renovao que, sem romper com o passado literrio, procura atualiz-lo

numa mensagem potica restaurada. O poeta cria obedecendo s regras

gramaticais, da retrica, da ideologia, enfim, de toda uma bagagem cultural

da tradio. No obstante, a obedincia s regras no significa que o autor

no tenha liberdade de modificar ou mesmo ampliar o seu enfoque dentro do

processo criativo (BIRON, 1998, p. 115).

32

No seu entender, Santa Rita Duro, como um poeta do final do sculo XVIII, teria sido

um neoclssico, o que o leva a recuperar modelos poticos do classicismo renascentista,

notadamente o da epopeia quinhentista. Tal opo, porm, no teria inviabilizado, segundo

pensa Biron, que Santa Rita Duro alcanasse at certo ponto uma efetiva renovao da

linguagem potica no seu poema maior, afirmao esta que repe o que fora afirmado, por

exemplo, por Silva. Ainda segundo Biron (1998, p. 116),

O poema pico Caramuru se alinha na tradio renascentista retomada no

sculo XVIII pelo neoclassicismo. E embora teoricamente identificado com

o modelo pico renascentista, traz, devido nova concepo literria, a

tradio e a renovao. Esta renovao j aponta para o pr-romantismo

brasileiro, que pode ser resumido em duas palavras: nativismo e indianismo.

De fato, o profundo sentimento nativista e a figura do indgena so dois

elementos novos nesta obra.

Como vemos, no somente a autora postula um vnculo de Santa Rita Duro com uma

suposta tradio neoclssica e, por extenso, a uma presumida tradio clssica, como

tambm identifica o Caramuru com o chamado pr-romantismo, cujas as duas caractersticas

fundamentais estariam presentes no poema com uma de suas muitas inovaes. Conquanto

reponha a tradio, para Biron, o poeta teria ido muito alm de uma mera repetio de

modelos12

.

Embora, tenha, com o passar do tempo, reavaliado muitas das hipteses que levantara

em seus trabalhos de ps-graduao, Biron no deixa de recorrer noo de tradio em seus

escritos posteriores sobre o Poema pico do Descobrimento da Bahia. Ao tratar, num texto

publicado dez anos aps a sua tese, da aplicao dos preceitos do gnero pico na feitura do

poema, declara:

No somente na mtrica e na rima, frei Santa Rita Duro soube aplicar os

preceitos que regulam o estilo pico, apreendido como o mais elevando para

cantar os feitos do heri ou fundador [...]. Tais obras os poemas picos

constituam representaes metafricas sob a forma de descries e

narraes que, imitando a natureza, tornavam-se verossmeis [...] Como se

sabe, a narrao pica procura glorificar u passado histrico, em que a

tradio nacional quase sempre se mostra uma fonte fidedigna. O mundo

12

Alguns anos depois, tratando da questo da repetio no Caramuru, da retomada do modelo camoniano em

sua composio, afirma Cunha (2006, p. 81): A repetio de Os Lusadas e a profunda aderncia ao imaginrio

imperial, no entanto, no so, ou pelo menos no deveriam ser, estmulos ao silncio defensivo ou condenao

sumria. Melhor seria, lendo-o como descendente, aprender a desl-lo, no sentido proposto por Harold Bloom,

em A angstia da influncia, para que se produza uma crtica antittica, uma sequncia de desvios

acompanhando os atos singulares de m compreenso criativa. Que se pese o anacronismo da leitura do

Caramuru luz da desleitura bloomiana e desconstrucionista proposta pela autora.

33

pico geralmente trata do passado nacional e heroico. Enfim, um mundo de

tempos gloriosos na histria nacional (BIRON, 2008, p. 343-344).

Na primeira dcada do sculo XXI, revisitando, por vezes de uma perspectiva crtica,

alguns textos da fortuna do Caramuru (notadamente Verssimo, Candido e Bosi), destacando

as diferentes articulaes que aproximam o poema de Santa Rita Duro de Os Lusadas, do

indianismo romntico de Gonalves Dias e Alencar e do projeto modernista de um Oswald de

Andrade, Cunha (2006, p. 73) qualifica o Poema pico do Descobrimento da Bahia como um

dos membros de uma presumida tradio dos textos coloniais, que remontaria aos escritos

dos primeiros padres jesutas ela menciona Anchieta que, no sculo XVI, abordaram

assuntos referentes s terras recm-descobertas. No entender da autora o Caramuru

representaria uma espcie de limite histrico dessa tradio.

Cunha, apesar de reconhecer o carter luso do Caramuru, enquanto epopeia do

colonizador (CUNHA, 2006, p. 69), ainda assim, o insere numa tradio literria brasileira

(CUNHA, 2006, p. 78). Para a autora, no poema de Santa Rita Duro, a antropofagia, que do

seu ponto de vista declaradamente orientado pelo discurso desconstrucionista de um Deleuze

e um Derrida, seria uma diferena a ser apagada, mas no apenas isso, pois seria tambm a

possibilidade do dilogo modernista com a tradio da literatura e da cultura do pas

(CUNHA, 2006, p. 78), dilogo que se estabeleceria com o iderio modernista de Oswald de

Andrade, para quem, segundo ela, a antropofagia seria a diferena a ser ressaltada,

reassimilada e afirmada, com o valor no de trao de origem, e sim de emergncia de uma

regra de dominao a ser invertida (CUNHA, 2006, p. 78).

Em sua tese de doutoramento sobre os usos argumentativos das notas do Caramuru,

Gama (2004) tambm recorre noo de tradio para descrio e anlise do poema de Santa

Rita Duro. Vale destacar ainda o estudo que Gama faz do topos da autoridade da tradio

que atualizado no poema, especialmente em suas notas. Portanto, a noo de tradio

aparece com diferentes sentidos no trabalho de Gama.

, portanto, inserido em uma ou outra tradio notadamente uma tradio literria

brasileira, no cnone nacional, e/ou em uma tradio literria clssica, uma tradio pica e

uma tradio camoniana, uma tradio letrada que o Caramuru ser objeto de apreciao

literria, crtica e historiogrfica a partir do sculo XIX. Integrado a uma tradio inventada13

desse esse primeiro momento de sua recepo crtico-historiogrfica, o Caramuru ser lido

mediante a mobilizao de um repertrio de lugares-comuns que vo se cristalizando ao longo

13

Discutiremos com mais vagar o conceito de tradio inventada no prximo captulo.

34

dos sculos XIX, ao quais, em sua grande maioria, sero levados adiante pela histria e pela

crtica literria brasileira do sculo XX at chegarem nossa contemporaneidade. Entre

romnticos e ps-romnticos o poema ser lido e relido, e consequentemente resinificado, por

intermdio de categorias que so completamente estranhas poca e o lugar de sua

composio e primeira recepo, sendo convertido em literatura brasileira, um dos membros

do cnone literrio nacional.

2.2 ALGUNS LUGARES COMUNS DA RECEPO CRTICA DO CARAMURU A

PARTIR DO SCULO XIX

Dado como membro de uma suposta tradio literria brasileira que teria se iniciado

nos tempos coloniais, o Caramuru ser valorado com base em critrios crticos e

historiogrficos completamente alheios lgica de sua produo e de sua primeira recepo.

Boa parte dos inmeros lugares comuns, tal como os nomeia Polito (2000), que passaram a

compor a fama, por vezes infame, para lembrar Guimares Rosa, do poema de Santa Rita

Duro se constroem a partir da crena partilhada de que o Poema pico do Descobrimento da

Bahia um poema braslico, um poema que, por direito de nacionalidade, pertence ao cnone

literrio do Brasil. No obstante, pois sua recepo polmica, em outros casos, como j

pudemos vislumbrar, o Caramuru vinculado a outros tipos de tradio, com destaque para a

tradio pica clssica e a tradio camoniana. Consideremos, pois, alguns exemplos desses

lugares comuns, o que faremos com apenas alguns poucos14

.

Numa anlise sumria, como ele prprio diz, de certos poetas do perodo colonial,

Denis, aquele que considerado o primeiro crtico do Caramuru (cf. POLITO, 2000, p.

xxviii), volta-se, com um cuidado especial, para o poema de Duro (DENIS, 1978, p. 47-

64)15

. Nessa anlise do Caramuru, apesar de reconhecer o valor do poema, Denis revela

14

Alguns trabalhos oferecem exposies bem mais acuradas e minuciosas das opinies sobre o Caramuru que

circularam na crtica e na historiografia literria dos sculos XIX e XX (cf. BIRON, 1998; GAMA, 2004).

Embora mais sucintos, vale a pena destacar tambm a introduo de Polito (2000) edio do Caramuru por ele

organizada e o estudo de Cunha (2006). 15

De acordo com Ricupero, se referindo ao projeto romntico de independncia literria e ao pioneirismo de

Denis, o bibliotecrio parisiense, quanto afirmao do carter autctone da literatura do Brasil: mesmo antes

da realizao desse programa, que ainda era basicamente uma potencialidade, o bibliotecrio parisiense assinala

que o processo de autonomizao de nossa literatura j se teria iniciado, intensificando-se a partir do sculo

XVIII. Entre os escritores desse sculo, destaca Jos Baslio da Gama e Jos de Santa Rita Duro, uma vez que

em seus poemas picos com temtica indianista, O Uraguai e Caramuru, j se sentiria o carter nacional

brasileiro (RICUPERO, 2004, p. 88). Pressupondo uma temtica indianista nos dois poemas luso-brasileiros,

romnticos, como Denis, enxergaram neles uma inteno que revelaria esse carter nacional brasileiro de que

fala Ricupero. Tal pressuposto presente nos escritos dos primeiros romnticos que afirmam a, para eles, inegvel

existncia de uma histria da literatura do Brasil persiste na crtica, reaparecendo continuamente em obras bem

recentes quando comparadas de Denis. Volobuef, em seu estudo sobre as possveis relaes entre o

35

algumas restries em relao poema, especialmente no que se refere ao seu estilo que, no seu

entender, nem sempre corresponde grandeza das imagens que o poeta se prope pintar

(DENIS, 1978, p. 49). Alm disso, Duro, teria pesado a mo na representao dos selvagens;

talvez houvesse exagerado ao n-los mostrar devorando logo aps as vtimas que apanhavam

ou que o mar deitava praia (DENIS, 1978, p. 48). Como argumento que corroboraria sua

observao, no tocante a esse ltimo ponto, Denis assevera que ordinariamente, tais cenas

horripilantes faziam parte de horrendas cerimnias, preparadas com muita antecedncia. Para

Denis (1978, p. 57), as pessoas conhecedoras da Histria do Brasil h de perceber que Duro

no soube tirar proveito da oportunidade [grifo do autor] excepcional que lhe haviam

propiciado as aventuras de Diogo lvares Correia. Apesar das falhas que aponta na

composio do Caramuru, Denis se julga obrigado a analisar a obra de Duro, porque

reveste carter nacional, apesar de suas imperfeies, e assinala claramente o objetivo a que

deve dirigir-se a poesia americana (DENIS, 1978, p. 57). Wolf, num texto publicado em

1863, outro que, no sculo XIX, aponta problemas no somente na composio do

Caramuru, mas tambm na de Uraguai; o foco principal de sua crtica diz respeito

caracterizao dos indgenas, que considera aqum dos altos ideais do indianismo em relao

aos povos amerndios16

. Para um Wolf (1978, p. 160), porm, malgrado seus defeitos, a

romantismo brasileiro e o alemo, declara: Nossa literatura foi aos poucos embebendo-se no indianismo,

antes mesmo do advento do romantismo aqui (VOLOBUEF, 1999, p. 170). Esse o pressuposto que

fundamenta o livro de Chaves (2000) sobre O Uraguai, intitulado O despertar do gnio brasileiro, cujo ttulo j

o evidencia. 16

Em 1888, Romero no comentrio que faz do Caramuru e do Uraguai, no seu Histria da literatura brasileira,

critica negativamente, e de forma contundente, a leitura que Wolf faz da representao do indgena nesses picos

quando comparada ao modo romntico de apropriao da imagem do amerndio. Segundo ele, Wolf cometeu

um erro nocivo sobre ambos os picos setecentistas, que ele, logicamente, busca repelir na sua anlise. Nas

suas palavras: Acha este escritor que, por no ser ento independente o Brasil, aqueles poetas no deram em

suas obras o primeiro plano aos indgenas, e que s mais tarde Domingos de Magalhes e Gonalves Dias,

herdeiros e continuadores dos dois primeiros, puderam preencher esta lacuna. Ainda segundo Romero,

Primeiramente, inexato que Magalhes e Dias tenham preenchido coisa alguma neste sentido; eles que so

posteriores a Baslio e Duro, no deram tambm aos indgenas o primeiro lugar. Depois, ainda que o tivessem

planejado, seria em pura perda, seria um atentado contra a histria: o ndio no entre ns o vencedor, o

primeiro lugar no lhe pode pertencer. Se o lusismo exclusivo um absurdo, o indianismo absoluto no o

menos (ROMERO, 2001, p. 234; cf. WOLF, 1978, p. 157-160). Como vemos, Denis e Wolf ignoram o efeito

retrico que tal pintura de caracteres produz no Caramuru. Para o efeito pretendido por Duro, o qual est

claramente expresso no prlogo de poema, essa representao perfeitamente adequada. Entretanto, Denis a

julga a partir de sua perspectiva romntica. Por obliterar a funo retrica e poltica do artifcio empregado pelo

poeta e buscar encontrar nos poemas coloniais que representaram o indgena, expresses do indianismo

romntico, Denis faz uma avaliao negativa da representao do ndio no Caramuru. Entretanto, no que se

refere proposta argumentativo-apologtica de Duro a representao perfeitamente coerente. As cenas de

antropofagia foram empregadas para justamente por em relevo a ferocidade do indgena que o heri subjuga.

Para atender funo pragmtica que a obra assume em relao ao iderio de expanso do Imprio Ultramarino

Portugus e o seu carter apologtico cristo-catlico, h no Caramuru uma necessria polarizao quanto aos

caracteres (ethe) que contrape de um lado o heri portugus e do outro a fera gente (cf. GAMA, 2003). O

civilizador versus o que foi domado pela fora e astcia daquele. O que necessita ser domado, pois selvagem e

feroz, posto diante daquele que pode dom-lo. Nesse caso, so exaltadas as virtudes do conquistador, que, com

sagacidade, engenho e fora consegue superar a situao que lhe era contrria e, finalmente, subjugar o

36

Duro e Jos Baslio cabe o mrito de terem retratado os indgenas da Amrica muito antes de

Cooper e Longfellow, destaque que aponta para a corriqueira defesa do indianismo

supostamente defendido por Santa Rita Duro no Caramuru.

So constantes esse tipo de avaliao negativa relativamente composio do

Caramuru. Na segunda metade do sculo XIX, tanto Verssimo (1998, p. 156, 157), quanto o

cnego Pinheiro (1978, p.