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o retardamento do tempo mortifica e materializa Numa projeção lenta, ao contrário, observa-se uma degradação das formas que, ao sofrerem uma diminuição em sua mobilidade, perdem algo da sua qualidade vital. Por exemplo, a aparência hu- mana é privada, em boa parte, da sua espiritualidade. O pensamen- to apaga-se no olhar: na fisionomia, o pensamento fica entorpecido, torna-se ilegível. N os gestos, a falta de jeito - signo de vontade, resgate da liberdade - desaparece, absorvida pela graça infalível do instinto animal. Todo homem é apenas um ser de músculos li- sos, nadando num meio denso, onde fortes correntezas sempre carre- gam e moldam este óbvio descendente das velhas faunas marinhas, das águas-mães. A regressão vai mais longe e ultrapassa o estágio animal. E encontra, nos desdobramentos do torso e da nuca, a elasticidade ativa do caule; nas ondulações dos cabelos e da crina, agitados pelo vento, o balanço da floresta; nos batimentos das bar- batanas e das asas, as palpitações das folhas; no enroscar e desen- roscar dos répteis, o sentido espiral de todo crescimento vegetal. Quando a projeção é ainda mais lenta, toda substância viva retorna à sua viscosidade fundamental, deixando vir à tona sua natureza essencialmente coloidal. E finalmente, quando não mais movi- mento visível num tempo bastante dilatado, o homem torna-se está- tua, o vivo confunde-se com o inerte, o universo involui num deserto de matéria pura sem traço de espírito. 292 2.3.5. O CINEMA DO DIABO - Excertos a) O FILME CONTRA O LIVRO * . .. :e porque permanece sempre concreta, de maneira precisa e rica, que a imagem cinematográfica se presta pouco à esquemati- zação que permitiria uma classificação rigorosa, necessária a uma lógica e um pouco complicada. Na verdade, a imagem é um símbolo, mas um símbolo muito próximo da realidade sensí- vel que ele representa. Enquanto isso, a palavra constitui um sím- bolo indireto, elaborado pela razão e, por isso, muito afastado do objeto. Assim, para emocionar o leitor, a palavra deve passar no- vamente pelo circuito dessa razão que a produziu, a qual deve de- cifrar e arrumar logicamente este signo, antes que ele desencadeie a representação da realidade afastada à qual corresponde, ou seja, an- tes que essa evocação esteja por sua vez .apta a mexer com os senti- mentos. A imagem animada, ao contrário, forma ela própria uma representação já semipronta que se dirige à emotividade do espec- tador quase sem precisar da mediação do raciocínio. A frase fica como um criptograma incapaz de suscitar um estado sentimental en- * Trecho do capítulo "O pecado contra a razão". 293

EPSTEIN, Jean [O Cinema Do Diabo]

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o retardamento do tempo mortifica e materializa

Numa projeção lenta, ao contrário, observa-se uma degradaçãodas formas que, ao sofrerem uma diminuição em sua mobilidade,perdem algo da sua qualidade vital. Por exemplo, a aparência hu­mana é privada, em boa parte, da sua espiritualidade. O pensamen­to apaga-se no olhar: na fisionomia, o pensamento fica entorpecido,torna-se ilegível. Nos gestos, a falta de jeito - signo de vontade,resgate da liberdade - desaparece, absorvida pela graça infalíveldo instinto animal. Todo homem é apenas um ser de músculos li­sos, nadando num meio denso, onde fortes correntezas sempre carre­gam e moldam este óbvio descendente das velhas faunas marinhas,das águas-mães. A regressão vai mais longe e ultrapassa o estágioanimal. E encontra, nos desdobramentos do torso e da nuca, aelasticidade ativa do caule; nas ondulações dos cabelos e da crina,agitados pelo vento, o balanço da floresta; nos batimentos das bar­batanas e das asas, as palpitações das folhas; no enroscar e desen­roscar dos répteis, o sentido espiral de todo crescimento vegetal.Quando a projeção é ainda mais lenta, toda substância viva retornaà sua viscosidade fundamental, deixando vir à tona sua naturezaessencialmente coloidal. E finalmente, quando não há mais movi­mento visível num tempo bastante dilatado, o homem torna-se está­tua, o vivo confunde-se com o inerte, o universo involui num desertode matéria pura sem traço de espírito.

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2.3.5.O CINEMA DO DIABO - Excertos

a) O FILME CONTRA O LIVRO *

. .. :e porque permanece sempre concreta, de maneira precisae rica, que a imagem cinematográfica se presta pouco à esquemati­zação que permitiria uma classificação rigorosa, necessária a umaarquitetur~ lógica e um pouco complicada. Na verdade, a imagemé um símbolo, mas um símbolo muito próximo da realidade sensí­vel que ele representa. Enquanto isso, a palavra constitui um sím­bolo indireto, elaborado pela razão e, por isso, muito afastado doobjeto. Assim, para emocionar o leitor, a palavra deve passar no­vamente pelo circuito dessa razão que a produziu, a qual deve de­cifrar e arrumar logicamente este signo, antes que ele desencadeie arepresentação da realidade afastada à qual corresponde, ou seja, an­tes que essa evocação esteja por sua vez .apta a mexer com os senti­mentos. A imagem animada, ao contrário, forma ela própria umarepresentação já semipronta que se dirige à emotividade do espec­tador quase sem precisar da mediação do raciocínio. A frase ficacomo um criptograma incapaz de suscitar um estado sentimental en-

* Trecho do capítulo "O pecado contra a razão".

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XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal: Embrafilme, 1983.
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EPSTEIN, Jean

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quanto sua fórmula não for traduzida em dados claros e sensíveisatravés de operações intelectuais, que interpretam e reunem, numaordem lógica, termos abstratos para deles deduzir uma síntese maisconcreta. Por outro lado, a simplicidade extrema com que se orga­niza uma seqüência cinematográfica, onde todos os elementos são,acima de tudo, figuras particulares, requer apenas um esforço mí­nimo de decodificação e ajuste, para que os signos da tela adquiramum efeito pleno de emoção. Na literatura, mesmo os escritores que,de Rimbaud aos surrealistas, pareceram ou pretenderam libertar-sedo constrangimento do raciocínio lógico, conseguiram apenas com­plicar e dissimular de tal modo a estrutura lógica da expressão, queé preciso operar toda uma matemática gramatical, uma álgebra sin­tática, para resolver os problemas de uma poesia que, para ser com­preendida e sentida, exige não apenas uma sensibilidade sutil, mastambém uma habilidade técnica semelhante à de um virtuose em pa­lavras cruzadas. Nos antípodas de tais ambigüidades, o filme, porsua incapacidade de abstrair, em razão da pobreza de sua constru­ção lógica, da sua impotência em formular deduções, está dispensadode recorrer a laboriosas digestões intelectuais. Assim, o filme e olivro se opõem. O texto só fala aos sentimentos através do filtroda razão. As imagens da tela limitam-se a fluir sobre o espírito dageometria para, em seguida, atingir o espírito do refinamento.

Assim sendo, a razão encontra-se em posição de exercer umainfluência mais marcante, um controle mais eficaz sobre as sugestõesprovenientes da leitura do que sobre aquelas que emanam do espetá­culo cinematográfico. Qualquer que seja o dinamismo sentimentalcom que se possa dotar um texto, uma parte dessa energia se dissi­pa no decorrer de operações lógicas a que os signos devem subme­ter-se antes de se transformarem, para os leitores, em convicções.~ que o uso da lógica de nada vale sem a crítica, tanto quanto seriaimpossível conceber uma dessas faculdades separadas da outra. Mes­mo quando tende a disseminar o ilógico ou o irrazoável, o livro per­manece como um caminho vigiado pela razão, um caminho a partirdo qual a idéia precede e governa o sentimento; um caminho, paraassim dizer, clássico.

Por outro lado, as representações fornecidas pelo filme, sendosubmetidas apenas a uma triagem lógica e crítica bastante sumária,perdem muito pouco de sua força emocional e vêm tocar b~talmen-

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te a sensibilidade do espectador. Esse poder maior de contágiomental, os dispositivos legais reconhecem implicitamente no cinema,onde quer que se mantenha uma censura de filmes, enquanto que aimprensa - em princípio, pelo menos - foi liberada da tutela dospoderes públicos. A primeira apreensão lógica é tão fugaz que averdadeira idéia, aquela que a imagem pode gerar, só se produz de­pois que o sentiment? f,?i envolvido e ~ob a sua influê~cia. Mes~oquando amplia conVlcçoes que, postenormente, poderao ser confir­madas pelo raciocínio, o filme continua a ser, por si só, um cami­nho pouco racional, um caminho sobre o qual a propagação do sen­timento ganha em velocidade sobre a formação da idéia. :e: um ca­minho romântico, acima de tudo.

A invenção do cinema marcará, na história da civilização, umadata tão importante quanto a da descoberta da imprensa? Em todocaso, vê-se que a influência do filme e do livro é exercida em sen­tidos bastante diversos.

A leitura desenvolve na alma as qualidades consideradas supe­riores, ou seja, adquiridas mais recentemente: ? 'poder de a?str~ir:classificar, deduzir. O espetáculo cinematografico atua pnmerra­mente sobre as faculdades mais antigas, logo, sobre as fundamen­tais, que classificamos de primitivas: a emoção e a indução. O li­vro aparece como um agente da intelectualização enquanto que ofilme tende a reavivar uma mentalidade mais instintiva. Tal fatoparece justificar a opinião dos que acusam o cinema de ser umaescola de 'embrutecimento. Mas os excessos do intelectualismo con­duzem a uma outra forma racionalizante de estupidez da qual a es­colástica, no seu apogeu, pode servir de exemplo, e onde a abundân­cia de abstrações e de raciocínios sufoca a própria razão, afastan­do-a da realidade ao ponto de não mais permitir o aparecimento deuma proposição útil; em última instância, de nenhuma outra verda­de. Se o livro encontrou o seu antídoto no cinema, pode-se con­cluir então que tal remédio era necessário.

Reconheçamos que o cinematógrafo é, de fato, uma escola deirracionalismo, de romantismo e que, por isso, ele manifesta nova­mente características demoníacas, que aliás procedem diretamente dodemonismo primordial da fotogenia do movimento. Na vida da al­ma a razão, por meio de regras fixas, procura impor certa medida,um~ relativa estabilidade aos fluxos e defluxos contínuos que agitam

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o domínio afetivo, às fortes marés e furiosas tempestades que trans­tornam sem parar o mundo dos instintos. Se não é o caso de pre­tendê-la imutável, a razão no entanto constitui nitidamente o fatarmental de menor mobilidade. Assim, a lei da fotogenia já deixavaantever que toda interpretação racional do mundo prestar-se-ia me­nos à representação cinematográfica do que a uma concepção in­tuitiva, sentimental.

Rival da leitura, o espetáculo cinematográfico é seguramentecapaz de suplantá-la em influência. Ele se dirige a uma platéia quepode ser mais numerosa e diversificada do que um público de lei­tores, pois não exclui nem os semiletrados nem os analfabetos: nãose limita aos usuários de certos idiomas e dialetos; compreende atémesmo os mudos e os surdos; dispensa tradutores e não precisa te­mer seus contra-sensos; e, finalmente, porque esta platéia sente-serespeitada na fraqueza ou na preguiça intelectual de Sua imensam_aioria. E como o ensinamento do filme vai direto ao coração,nao dando tempo nem oportunidade à crítica de censurá-lo previa­mente, esta aquisição transforma-se imediatamente em paixão, empotencial que exige apenas a elaboração, a descarga em atos seme­lhantes aos do espetáculo do qual foi tirado. Assim sendo, o cinemaparece poder transformar-se - se já não o fez - no instrumentode uma propaganda mais eficaz que a da coisa impressa.

b) A IMAGEM CONTRA A PALAVRA *

Existe um estreito parentesco entre o modo como se formamos valores significativos de um cinegrama e de uma imagem onírica.No sonho também, todas as representações recebem um sentido sim­bólico, muito particular e diverso de seu sentido comum prático,o que se constitui numa espécie de idealização sentimental. Porexemplo um estojo de óculos pode vir a significar avó, mãe, pais,fanlília, desencadeando todo o complexo afetivo - filial, maternal,familiar - ligado à lembrança de uma pessoa. Como a idealizaçãodo filme, a do sonho não constitui uma verdadeira abstração, poisesta última não cria signos tão comuns, tão impessoais quanto possí­vel, para o uso de uma álgebra universal: esta idealização só fazdilatar, por meio de associações afetivas, a significação de uma ima-

* Trecho do capítulo "O pecado contra a razão".

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gem até uma outra um pouco menos concreta, porém mais ampla,mais definida, mas igualmente pessoal.

A analogia entre a linguagem do filme e o discurso do sonhonão se limita a esta dilatação simbólica e sentimental do significadode certas imagens. Tanto quanto o filme, o sonho amplia, isoladetalhes representativos, produzindo-os no primeiro plano dessa aten­ção que eles mobilizam jnteiramente. Do mesmo modo que o sonho,o filme pode desenvolver um tempo próprio, capaz de diferir ampla­mente do tempo da vida exterior, de ser mais lento ou mais rápidodo que este. Todas essas características comuns desenvolvem eapóiam uma identidade fundamental de natureza, uma vez que am­bos, filme e sonho, constituem discursos visuais. Donde se podeconcluir que o cinema deve transformar-se no instrumento apropria­do à descrição dessa vida mental profunda, da qual a memória dossonhos, mesmo que imperfeita, nos dá um bom exemplo.

Quando o sono a libera do controle da razão, a atividade men­tal não se torna anárquica; nela descobre-se ainda uma ordem, queconsiste principalmente de associações por contigüidade, por seme­lhança, e cuja disposição geral está submetida a uma orientaçãoafetiva. O filme está naturalmente mais apto a reunir as imagensde acordo com o sistema irracional da textura onírica do que segun­do .a lógica do pensamento da língua, falada ou escrita, em estadode vigília, uma vez que lança mão de imagens carregadas de valên­cias sentimentais. Todas as dificuldades que o cinema tem paraexpressar idéias racionais prenunciam a facilidade com que é capazde traduZir a poesia de imagens, que é a metafísica do sentimento edo instinto. Assim se confirma a natureza do obstáculo fundamen­tal que os realizadores europeus encontravam em suas tentativas desubstituir totalmente as palavras por imagens, para obrigar o cinemaa transmitir integralmente o pensamento lógico. A despeito da ca­pacidade natural do instrumento, este caminho de dúbia utilizaçãosó podia chegar a resultados inexpressivos.

Todavia, se, ao invés de pretender imitar os processos literários,o filme tivesse se empenhado em utilizar os encadeamentos do sonho .e do devaneio, já teria podido constituir um sistema de expressão deextrema sutileza, de extraordinária potência e rica originalidade. Eessa linguagem não pareceria desaprumada, desnaturada, meio per­dida em esforços ingratos para apenas repetir o que a palavra e aescrita significavam com facilidade. Ao contrário, teria aprendido

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a captar, seguir, publicar a trama fina e móvel de um pensamentomenos superficial, mais próximo da realidade subjetiva, mais obscurae verdadeira. Raros são os filmes, como A Concha e o Clérigo(G. Dulac, 1927-30), O Cão Andaluz (Buftuel, 1928), O Sahgue deum Poeta (Jean Coctreau, 1929), ou mesmo fragmentos de filmes(menos cobiçados, mais sinceros), que marcam os primeiríssimospassos dados timidamente para a revelação na tela de uma vida in­terior mais profunda com seu eterno movimento, seus meandros aca­valados, sua misteriosa espontaneidade, seu secreto simbolismo, suastrevas impenetráveis para a consciência e a vontade, seu impérioinquietante de sombras carregadas de sentimento e instinto. Esseterreno sempre novo e desconhecido que cada um traz em si e quetoâos vêm a temer, mais dia menos dia, foi e é ainda, para muitos,o laboratório em que o Diabo distila seus venenos.

Já que a representação visual reina absoluta sobre esse feudoromântico e diabólico, o cinema - é preciso repetir - surge comoque expressamente designado para difundir o seu conhecimento. E,se este instrumento puder, deverá contribuir preponderantemente paraestabelecer e divulgar uma forma de cultura quase ignorada atéagora e que a psicanálise, por outro lado, começa a esboçar. Cultu­ra reputada como perigosa para a razão e a moral, como se podededuzir, uma vez que ela se baseia no estudo do eu afetivo, irracio­nal e cujos movimentos são anteriores a toda operação lógica ouética. Cultura essa, porém, Que, lado a lado com a descoberta dosdomínios do infinitamente gr~nde e do infinitamente pequeno, ins­taura a ciência do infinitamente humano, do inifinitamente sincero,e que é mais maravilhosa e mais necessária, talvez, que todas asoutras, uma vez que ela remonta às fontes do pensamento que julgasobre toda a grandeza e toda pequenez. Se é normal que o homemtenha vertigem ao sondar seus próprios abismos, tanto quanto elesentiu ao tentar pela primeira vez apreender a imensidão das galáxiasou a infinidade dos elétrons, parece pueril levar tais desconfortostão a sério, a ponto de identificá-los como avisos providenciais des­tinados a demarcar profilaticamente o limiar dos conhecimentosnocivos.

Neste caso, entregar-se à pusilanimidade, deter-se em pretensosconselhos de higiene mental, seria o mesmo Que renunciar a umaconquista, cujo valor supomos seja proporcion~l ao rigor das inter­dições que procuram lhe barrar o caminho. A alegoria do Gênesis

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é de uma atualidade que se renova a cada vez que. o homem se pr~­para para colher outro fruto da árvore do conheCimento. Sem du­vida, não é certo que o progresso tenha um sentido absoluto, nemque ele conduza à felicidade, com que não tem, tal~~z, nenh~marelação de causalidade. Tampouco é certo que a felICidade se]a oobjetivo último do indivíduo ou da humanidade. No en~anto, comou sem razão, atribuímos um alto valor ao desenvol,Vlmento dainteligência e da civilização. Ora, em que po.nto estan~mos nessa'evolução se Galileu e Copérnico, Lutero e CalviDo, FrancIS Bac?n eDescartes Diderot e Comte, Ribot e Freud, Curie e de Broglie, ecem outr~s tivessem se submetido à força da inércia, à proibição deir mais longe ao invés de obedecer à energia do movime~to, a? ape­tite de aprender e conquistar sempre mais? Encontrara o cmema,ele também, inventores corajosos que lhe garantirão a reali~ação plenade sua originalidade como meio de traduzir uma forma pnmordlal depensamento através de um procedimento justo de expressão? Estaconquista, tal como a do velo de ouro, merece que novos argonautasafrontem a raiva de um dragão imaginário.

Sabemos nós qual pode ser o poder direto de significação deuma língua de imagens, isenta da maior parte ~a s~brecarga ~ d~sderivações etimológicas, das restrições e comphcaçoes gramatIcaiS,das fraudes e estorvos da retórica, que entorpecem, abafam e embotamas línguas faladas e escritas de há muito? . ~~ui e ali, a nova l!n~ajá ofereceu as premissas de sua extraordmana força d~ C?nVICçao,de sua eficácia quase mágica, buscadas na extr~m~ fidelIdade ~o

. objeto, obtidas principalmente suprimindo a medlaça~ da ab~traçaoverbal entre a coisa fora do sujeito e a representaçao senslvel dacoisa no sujeito. Assim, anunciava-se uma experiência de alcanceincalculável uma reforma fundamental da inteligência: o homempoderia de;aprender a pensar exclusivamente por .meio da espessurae rigidez das palavras, habituar-se a conceber e mventa:, como nosonho, através de imagens visuais, tão próximas da reahdade,que_aintensidade de sua ação emocional equivaleria em toda parte a açaodos objetos e dos próprios fatos.

Não é exagerado dizer que o cinema mudo, por pouco que tenhacultivado o germe dessa revolução mental, ameaç,ava. ~n~retanto todoo método racional segundo o qual o homem, ha mdemos e, sobre­tudo no decorrer da era cartesiana, exercia quase que unicament~~uas' faculdades psíquicas conscientes. Assim como a imprensa fOI

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e continua a ser o instrumento específico para a expansão da culturaclássica, dedutiva e lógica, do espírito de geometria, o cinema come­çou trazendo uma promessa semelhante: a de tornar-se este instru­mento para o desenvolvimento de uma cultura romântica. sentimen­tal e intuitiva, do espírito de refinamento. Assim, dia~te do mo­vimento contínuo da civilização, uma segunda estrada, até então malconhecida, pouco segura, apenas assinalada na superfície do incons­~ient.e, como so?re um mar noturno de nuvens, podia ser alargada,llummada e sedlmentada. Se parece temerário prejulgar exatamentea mudança que já poderia ter-se produzido ou que se produzirá umdia, graças ao cinema, na relação entre as respectivas importânciasdesses dois modos de desenvolvimento intelectual, é legítimo assinalardesde agora a significação, eventualmente capital, deste momento nahistória da cultura, no qual esta recebe a possibilidade de uma bifur­cação, de uma escolha - que, aliás, nem sempre constitui uma alter­nativa - entre a busca do método racional, tradicional ortodoxo e. , ,a movação de um processo irracional, revolucionário, herético, deuma inversão no equilíbrio, que nunca é estável, entre a imobilidade,a impassividade divinas e os fermentos demoníacos da agitação.

c) A DÚVIDA SOBRE A PESSOA *

Incrédula, decepcionada, escandalizada, Mary Pickford chorouao se v~r na tela pela primeira vez. O que dizer, a não ser queMary P1Ckford não sabia que ela era Mary Pickford; que ela igno­rava ser a pessoa cuja identidade, ainda hoje, pode ser atestada pormilhares de pessoas. Essa aventura, geralmente penosa, de umaredescoberta de si próprio, é o prêmio de quase todos aqueles e

. aquelas que recebem o batismo da tela. Essa surpresa faz lembraraqueles antigos relatos de viagem que contam sobre o deslumbra­mento e pavor com que os selvagens percebiam, num pedaço deespelho, o próprio rosto, que nunca tinham visto com tal precisão.Mas suponhamos que revelação não seria, para cada um de nós,descobrir num espelho a cor dos nossos olhos, a forma de nossaboca se nós só os conhecêssemos de ouvir falar.

O cinema nos revela aspectos nossos que nunca havíamos vistoou ouvido. A imagem da tela não é a que nos mostram o espelho

* Capítulo reproduzido integralmente.

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ou a fotografia. A imagem cinematográfica de um homem não ape­nas é diferente de todas as suas outras imagens não cinematognl.ficas,como também se modifica continuamente em relação a si própria.Quando se passa os olhos sobre algumas das fotografias de umapessoa, sejam elas obras de profissionais ou instantâneos de amado­res, e, em seguida, sobre trechos de filmes, notam-se, nesses retratos,tais dissemelhanças que se é tentado a atribuí-las a várias personali­dades distintas, Assim é que, olhando o rosto filmado de umamigo, imagem por imagem, diz-se: naquele, ele parece ser ele mes­mo; neste, não é ele de jeito nenhum. Mas, quando há vários juízes,as opiniões contrastam: numa certa imagem, o homem que é elemesmo para uns, não o parece ser para outros. Então, quando éele alguém e quem?

Após sua primeira experiência cinematográfica, se tivesse ocor­rido a Mary Pickford afirmar: "Penso, logo sou", teria sido pre­ciso acrescentar esta grave ressalva: Mas não sei quem eu sou.Ora podemos sustentar, como uma evidência, que somos se igno­ramos quem somos?

Assim, esta dúvida tão importante, sobre a unidade e a perma­nência do eu, sobre a identidade da pessoa, sobre o ser, o cinema, senão a introduz, pelo menos a revela de modo singular. Dúvida quetende a se transformar em total desconhecimento, em negação, quandoo sujeito passa, através de uma transposição pela câmera lenta ouacelerada, a outros espaços-tempos. Como a maior parte das noçõesfundamentais (senão todas) que serv,em de alicerce à nossa concep­ção do mundo e da vida, o eu deixa totalmente de parecer um valorsimples e fixo; transforma-se, evidentemente, numa realidade com­plexa e ~lativa, numa variável.

Bem antes do cinema, sabia-se que todas as células do corpohumano são renovadas quase que inteiramente em alguns anos, maspersistia-se em acreditltr comumente que esta colônia regenerava umpolipo sempre idêntico a si próprio, cuja natureza psíquica fora esta­belecida, do mesmo modo que o tipo específico, como una e indivi­sível de uma vez por todas. Cada um sabia também que pOdia serconsiderado belo, bom e inteligente por seus amigos, feio, mau ebobo por seus inimigos, mas cada um mantinha a opinião mais oumenos favorável que tinha de si mesmo apesar dessas contradições,tidas como erros de ordem subjetiva.

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