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Changes in the pattern of morbidity and mortality of the brazilian population: challenges for a new century Eduardo Hage Carmo Secretaria de Vigilância em Saúde/MS Maurício Lima Barreto Instituto de Saúde Coletiva/Universidade Federal da Bahia Endereço para correspondência: Esplanada dos Ministérios, Bloco G, Edifício-Sede do Ministério da Saúde, 1 o andar, Brasília-DF. CEP: 70058-900. E-mail : [email protected] Mudanças nos padrões de morbimortalidade da população brasileira: os desafios para um novo século * [Epidemiologia e Serviços de Saúde 2003; 12(2) : 63 - 75] 63 REPUBLICAÇÃO * Publicado anteriormente em: Finkelman, J, organizador. Caminhos da Saúde Pública no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; Organização Pan-Americana de Saúde; 2002. Reprodução autorizada pelos editores. Resumo Neste artigo, são analisadas as tendências na morbidade e na mortalidade da população brasileira priorizando-se as intensas transformações ocorridas no século XX. Foram utilizados dados dos sistemas nacionais de informação sobre mortalidade e internações hospitalares, de notificação de doenças transmissíveis e de diversos programas de controle do Ministério da Saúde. Dentre as tendências observadas, destacam-se a redução da mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias e o aumento das causas crônico-degenerativas e agravos relacionados aos acidentes e violência. Essas modificações não significaram a superação das doenças transmissíveis enquanto problema relevante na população brasileira. A análise das tendências na morbidade por esse grupo de doenças, evidencia três padrões distintos e que podem ser bem caracterizados: doenças transmissíveis com tendência declinante, representadas pelas doenças para as quais se dispõe de instrumentos eficazes de prevenção e controle, como as imunopreveníveis; doenças transmissíveis com quadro de persistência, destacando-se as hepatites B e C, a tuberculose, as leishmanioses, a esquistossomose, a malária, entre outras; e doenças transmissíveis emergentes e reemergentes, com destaque para aids, dengue e hantavirose. Essas tendências apresentam-se em um contexto de extrema complexidade e desigualdade social, requerendo abordagens analíticas apropriadas para que possamos melhor entendê-lo – abordagens que levem à proposição e adoção de políticas de saúde que mantenham as conquistas alcançadas nos últimos anos, à ampliação na efetividade das ações de promoção, prevenção e recuperação, e que ajudem a superar as desigualdades na produção do atual padrão de morbidade e mortalidade. Dessa forma, estaremos prontos para enfrentar os novos desafios que se colocam na agenda da saúde pública do país. Palavras-chave: padrões de morbi-mortalidade; transição epidemiológica; tendências históricas. Summary In this paper, the morbidity and mortality trends of the Brazilian population are analyzed prioritizing the intense transformations that occurred during the 20 th century. Data from the national information systems for mortality, hospitalization, notifiable infectious diseases surveillance and, from specific control programs of the Ministry of Health was used. A decrease in the mortality for infectious and parasitic diseases and, an increase of chronic-degenerative diseases, accidents and violence-related health events were among the most important observed trends. Despite these changes infectious disease continue to be a relevant health problem for the Brazilian population. The morbidity trends analysis for this group of diseases depicts three distinct patterns: transmissible diseases with a decreasing trend, represented by those with effective prevention and control tools, such as vaccination; transmissible diseases with a persistent pattern, such as hepatitis B and C, tuberculosis, leishmaniosis, schistosomiasis and malaria, among others; and, emerging and reemerging diseases, such as aids, dengue and hantavirus. These trends are present in the context of extreme complexity and social inequality. Appropriate analytical approaches for a better understaing need to be developed making possible the proposition and adoption of health politicies that aim to maintain the conquests of previous years, to extend the effectiveness of health actions towards promotion, prevention and care. It must include efforts to reduce social and health inequalities responsible for the production pattern of morbidity and mortality. In this way the health system will be prepared to confront the new challenges of the country´s public health agenda. Key Words: morbidity and mortality patterns; epidemiological transition; historical trends. Jarbas Barbosa da Silva Jr. Secretaria de Vigilância em Saúde/Ministério da Saúde

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Changes in the pattern of morbidity and mortalityof the brazilian population: challenges for a new century

Eduardo Hage CarmoSecretaria de Vigilância em Saúde/MS

Maurício Lima BarretoInstituto de Saúde Coletiva/Universidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência:Esplanada dos Ministérios, Bloco G, Edifício-Sede do Ministério da Saúde, 1o andar, Brasília-DF. CEP: 70058-900.E-mail: [email protected]

Mudanças nos padrões de morbimortalidadeda população brasileira: os desafios para um novo século *

[Epidemiologia e Serviços de Saúde 2003; 12(2) : 63 - 75] 6 3

REPUBLICAÇÃO

* Publicado anteriormente em: Finkelman, J, organizador. Caminhos da Saúde Pública no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz;Organização Pan-Americana de Saúde; 2002.Reprodução autorizada pelos editores.

Resumo

Neste artigo, são analisadas as tendências na morbidade e na mortalidade da população brasileira priorizando-se asintensas transformações ocorridas no século XX. Foram utilizados dados dos sistemas nacionais de informação sobremortalidade e internações hospitalares, de notificação de doenças transmissíveis e de diversos programas de controle doMinistério da Saúde. Dentre as tendências observadas, destacam-se a redução da mortalidade por doenças infecciosas eparasitárias e o aumento das causas crônico-degenerativas e agravos relacionados aos acidentes e violência. Essas modificaçõesnão significaram a superação das doenças transmissíveis enquanto problema relevante na população brasileira. A análisedas tendências na morbidade por esse grupo de doenças, evidencia três padrões distintos e que podem ser bem caracterizados:doenças transmissíveis com tendência declinante, representadas pelas doenças para as quais se dispõe de instrumentoseficazes de prevenção e controle, como as imunopreveníveis; doenças transmissíveis com quadro de persistência,destacando-se as hepatites B e C, a tuberculose, as leishmanioses, a esquistossomose, a malária, entre outras; edoenças transmissíveis emergentes e reemergentes, com destaque para aids, dengue e hantavirose. Essas tendênciasapresentam-se em um contexto de extrema complexidade e desigualdade social, requerendo abordagens analíticasapropriadas para que possamos melhor entendê-lo – abordagens que levem à proposição e adoção de políticas de saúdeque mantenham as conquistas alcançadas nos últimos anos, à ampliação na efetividade das ações de promoção, prevençãoe recuperação, e que ajudem a superar as desigualdades na produção do atual padrão de morbidade e mortalidade. Dessaforma, estaremos prontos para enfrentar os novos desafios que se colocam na agenda da saúde pública do país.

Palavras-chave: padrões de morbi-mortalidade; transição epidemiológica; tendências históricas.

Summary

In this paper, the morbidity and mortality trends of the Brazilian population are analyzed prioritizing the intensetransformations that occurred during the 20th century. Data from the national information systems for mortality,hospitalization, notifiable infectious diseases surveillance and, from specific control programs of the Ministry of Healthwas used. A decrease in the mortality for infectious and parasitic diseases and, an increase of chronic-degenerativediseases, accidents and violence-related health events were among the most important observed trends. Despite thesechanges infectious disease continue to be a relevant health problem for the Brazilian population. The morbidity trendsanalysis for this group of diseases depicts three distinct patterns: transmissible diseases with a decreasing trend,represented by those with effective prevention and control tools, such as vaccination; transmissible diseases with apersistent pattern, such as hepatitis B and C, tuberculosis, leishmaniosis, schistosomiasis and malaria, among others;and, emerging and reemerging diseases, such as aids, dengue and hantavirus. These trends are present in the context ofextreme complexity and social inequality. Appropriate analytical approaches for a better understaing need to be developedmaking possible the proposition and adoption of health politicies that aim to maintain the conquests of previous years,to extend the effectiveness of health actions towards promotion, prevention and care. It must include efforts to reducesocial and health inequalities responsible for the production pattern of morbidity and mortality. In this way the healthsystem will be prepared to confront the new challenges of the country´s public health agenda.

Key Words: morbidity and mortality patterns; epidemiological transition; historical trends.

Jarbas Barbosa da Silva Jr.Secretaria de Vigilância em Saúde/Ministério da Saúde

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morbidade, como visto nos indicadores de morbidadehospitalar, principalmente por aquelas doenças paraas quais não se dispõe de mecanismos eficazes de pre-venção e controle. Ainda assim, as alterações no qua-dro de morbimortalidade, com a perda de importân-cia relativa das doenças transmissíveis, principalmen-te no último quarto do século XX, criaram, na opiniãopública, uma falsa expectativa de que todo esse grupode doenças estaria próximo à extinção. Esse quadronão é verdadeiro para o Brasil, nem mesmo para ospaíses desenvolvidos, como demonstrado pelos movi-mentos de emergência de novas doenças transmis-síveis, como a aids; de ressurgimento, em novas con-dições, de doenças “antigas”, como a cólera ou a den-gue; de persistência de endemias importantes como atuberculose; e de ocorrência de surtos inusitados dedoenças como a Febre do Oeste do Nilo nos EstadosUnidos.

missão interrompida desde o final de 2000. O tétanoneonatal apresenta taxa de incidência muito abaixodo patamar estabelecido para considerá-lo eliminadoenquanto problema de Saúde Pública (1/1.000 nasci-dos vivos). A redução na incidência e concentraçãodos casos também permite prever uma próxima eli-minação da raiva humana transmitida por animais do-mésticos.

Ainda dentro do grupo de doenças transmissíveiscom tendência declinante, estão: a) a difteria, a co-queluche e o tétano acidental, que têm em comum ofato de serem imunopreveníveis; b) a doença de Cha-gas e a hanseníase, ambas endêmicas há várias déca-das em nosso país; c) a febre tifóide, associada acondições sanitárias precárias; d) e a oncocercose, afilariose e a peste, todas com áreas de ocorrênciarestritas.

Exemplificando o impacto da redução produzida naincidência de doenças imunopreveníveis, principalmentepara aquele grupo em que as medidas de controle im-plicaram um maior impacto (sarampo, pólio, tétanoacidental e neonatal, coqueluche, difteria), em 1980,foram registrados 153.128 casos para o conjunto des-sas doenças, número que se reduziu para apenas 3.124casos, 20 anos depois. Ainda mais relevante foi o im-pacto sobre o número de óbitos por essas mesmas do-enças, tendo-se observado a redução de 5.495 para 277óbitos, no mesmo período. Análise similar poderia serfeita para as demais doenças desse grupo, que tambémapresentaram reduções na incidência, na mortalidadee na ocorrência de seqüelas, com impactos significati-vos na qualidade de vida.

Doenças transmissíveiscom quadro de persistência

Algumas doenças transmissíveis apresentam quadrode persistência, ou de redução, em período ainda re-cente, configurando uma agenda inconclusa nessa área.Para essas doenças, é necessário o fortalecimento denovas estratégias, recentemente adotadas, que propõemuma maior integração entre as áreas de prevenção econtrole e a rede assistencial, já que um importante focoda ação nesse conjunto de doenças está voltado para odiagnóstico e tratamento das pessoas doentes, visandoà interrupção da cadeia de transmissão.

É importante, também, enfatizar a necessidade deações multissetoriais para a prevenção e controle desse

Ações multissetoriais deprevenção e controle de doençasendêmicas são necessárias diantede fatores determinantes externosà Saúde: urbanização acelerada,alterações do meio ambiente,migrações, entre outros.

No tocante à sua ocorrência no período compre-endido entre as duas últimas decádas, a situação dasdoenças transmissíveis no Brasil apresenta um qua-dro complexo, que pode ser resumido em três gran-des tendências: doenças transmissíveis com tendên-cia declinante; doenças transmissíveis com quadro depersistência; e doenças transmissíveis emergentes ereemergentes.3

Doenças transmissíveiscom tendência declinante

Em um grande número de doenças transmissíveis,para as quais dispõe-se de instrumentos eficazes deprevenção e controle, o Brasil tem colecionado êxitosimportantes. Esse grupo de doenças encontra-se emfranco declínio, com reduções drásticas nas taxas deincidência. A varíola foi erradicada em 1973 e a poli-omielite em 1989. O sarampo encontra-se com a trans-

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grupo de doenças, já que grande parte das razões paraa manutenção da situação de endemicidade residem napersistência dos seus fatores determinantes, externosàs ações típicas do setor Saúde: urbanização aceleradasem adequada infra-estrutura urbana, alterações domeio ambiente, desmatamento, ampliação de frontei-ras agrícolas, processos migratórios, grandes obras deinfra-estrutura (rodovias e hidroelétricas) etc.

Nesse grupo de doenças, destacam-se as hepatitesvirais – especialmente as hepatites B e C – e a tuber-culose, em função das altas prevalências alcançadas,da ampla distribuição geográfica e do potencialevolutivo para formas graves que podem levar ao óbi-to. Devem-se destacar, no entanto, os resultados favo-ráveis que têm sido alcançados na redução da morta-lidade pela tuberculose, com a disponibilidade de tra-tamento específico de alta eficácia. A implantação uni-versal da vacinação contra a hepatite B, inclusive paraadolescentes, no final dos anos 90, também deve pro-duzir, a médio prazo, impactos positivos na prevençãodas formas crônicas da doença.

Ainda que apresente uma distribuição geográficamais restrita às áreas que oferecem condiçõesambientais adequadas para a transmissão, a leptospi-rose também assume relevância para a Saúde Públi-ca, em função do grande número de casos que ocor-rem nos meses mais chuvosos, bem como pela suaalta letalidade.

As meningites também se inserem nesse grupo dedoenças, destacando-se as infecções causadas pelosmeningococos B e C, que apresentam níveis importan-tes de transmissão e taxas médias de letalidade acimade 10%. Por outro lado, tem-se observado significativaredução na ocorrência da meningite causada por H.influenzae tipo B, possivelmente em conseqüência davacinação de menores de um ano, a partir de 1999,com um produto de comprovada eficácia.

Ainda nesse grupo, além da manutenção de ele-vadas prevalências, tem sido observada expansão naárea de ocorrência para as leishmanioses (viscerale tegumentar) e a esquistossomose, em geral asso-ciada às modificações ambientais provocadas pelohomem, aos deslocamentos populacionais origina-dos de áreas endêmicas e à insuficiente infra-estru-tura na rede de água e esgoto – ou na disponibilida-de de outras formas de acesso a esses serviços.

A malária, que, até recentemente, apresentava ní-veis de incidência persistentemente elevados na Re-

gião Amazônica – onde se concentram mais de 99%dos casos registrados no país –, passou a apresentar,a partir de 1999, reduções acentuadas nessas taxas(acima de 40%, em média), estimando-se que, em2002, sejam detectados menos de 300 mil casos, pa-tamar que não era atingido desde o início dos anos80. O Plano de Intensificação das Ações de Controleda Malária, lançado em julho de 2000, além de ga-rantir a ampliação do acesso ao diagnóstico e trata-mento – por intermédio da descentralização e daintegração com as ações de atenção básica –, e ummelhor equaciona-mento das ações seletivas de con-trole vetorial, possibilitou a implementação de impor-tantes ações extra-setoriais, a partir de estabelecimentode normas específicas voltadas para a instalação deassentamentos rurais e de projetos de desenvolvimento.

A febre amarela, após a eliminação do ciclo urba-no, em 1942, vem apresentando ciclos epidêmicos detransmissão silvestre, como ocorrido em 2000 (Goiás)e 2001 (Minas Gerais). Entretanto, apesar da amplia-ção da área de transmissão para Estados e Municípiossituados fora da área endêmica (Região Amazônica),tem sido observada redução na incidência a partir doano 2000 e até o presente momento. A possibilidadede reintrodução do vírus amarílico no ambiente urba-no, pela ampla dispersão do Aedes aegypti, tem moti-vado uma intensa atividade de vacinação, que resultouem mais de 60 milhões de doses aplicadas entre 1998e 2002. Na medida em que foram identificados even-tos adversos graves associados a essa vacina,4 a estra-tégia inicial, de vacinação universal, teve que ser ajus-tada para uma cobertura mais focalizada, em toda aárea de circulação natural do vírus amarílico e tam-bém na área de transição.

Doenças transmissíveisemergentes e reemergentes

Um terceiro grupo de doenças expressa, em nos-so país, o fenômeno mundial de emergência ereemergência de doenças transmissíveis. Doençasemergentes são as que surgiram, ou foram identifi-cadas, nas últimas duas décadas; ou, ainda, asque assumiram uma nova situação, passando dedoenças raras e restritas para constituírem proble-mas de Saúde Pública. Reemergentes, por sua vez,são aquelas que ressurgiram, enquanto problema deSaúde Pública, após terem sido controladas nopassado.

Eduardo Hage Carmo e colaboradores

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Desde o início da década de 80, algumas doençasinfecciosas passaram a ser registradas ou foram rein-troduzidas no país, destacando-se a aids (1980), o den-gue (1982), a cólera (1991) e a hantavirose (1993),e, dentre estas, somente a cólera apresentou reduçãosignificativa na última década. A rápida disseminaçãoda aids no país, por sua vez, tem-se refletido na ocor-rência de uma série de outras doenças infecciosas,particularmente a tuberculose.

A partir da detecção da aids no Brasil, observou-se um crescimento acelerado da doença até 1997, anoem que foram registrados 23.545 casos novos, comum coeficiente de incidência de 14,8 casos/100.000hab. A partir de então, seguiu-se uma diminuição navelocidade de crescimento da epidemia, com uma re-dução da incidência. No período de 1995 a 1999,observou-se redução de 50% na taxa de letalidade emrelação aos primeiros anos do início da epidemia,quando esta taxa era de 100%. A disponibilidade denovas drogas tem propiciado o aumento na sobrevidapara os portadores da infecção pelo HIV.

A cólera experimentou seu pico epidêmico em1993, com 60.340 casos. Apesar do ambiente favorá-vel para a disseminação e persistência dessa doença,dada a insatisfatória condição sanitária de parte dapopulação, os esforços do sistema de saúde consegui-ram reduzir drasticamente sua incidência. Em 1998 e1999, a seca que ocorreu na Região Nordeste, ondese instalou uma severa crise de abastecimento de água,inclusive nas capitais, favoreceu a possibilidade de re-crudescimento da doença, o que exigiu uma intensifi-cação das ações de prevenção e de vigilânciaepidemiológica nessa região. A cólera passou a mani-festar-se sob a forma de surtos, principalmente naspequenas localidades do Nordeste, com maior dificul-dade de acesso à água tratada e deficiência de esgota-mento sanitário. Eventualmente, podem outras formasde transmissão ser associadas com surtos, como oocorrido no porto de Paranaguá-PR, relacionado como consumo de marisco.

No ano 2000, a cólera apresentou redução impor-tante, tanto no número de casos como na área geo-gráfica em que se manifestava. Foram registrados 734casos, ocorridos na sua quase totalidade em apenasdois Estados da Região Nordeste (Pernambuco eAlagoas). Já no ano de 2001, ocorreram, em todo opaís, apenas sete casos da doença, igualmente con-centrados na Região Nordeste. Os dados dos últimos

dois anos asseguram a situação de controle da cólerae, mantida essa tendência, a doença passará a inte-grar o grupo das enfermidades transmissíveis com ten-dência declinante ou mesmo, brevemente, eliminadas.

A dengue tem sido objeto de uma das maiores cam-panhas de Saúde Pública realizadas no país. O mos-quito transmissor da doença, o Aedes aegypti, quehavia sido erradicado em vários países do continenteamericano nas décadas de 50 e 60, retorna na décadade 70, por falhas na vigilância epidemiológica e pelasmudanças sociais e ambientais propiciadas pela ur-banização acelerada dessa época.

Atualmente, o mosquito transmissor é encontradonuma larga faixa do continente americano, que se es-tende desde o Uruguai até o sul dos Estados Unidos,com registro de surtos importantes de dengue em vá-rios países como Venezuela, Cuba, Brasil, El Salvadore, recentemente, Paraguai.

As dificuldades para a eliminação de um mosquitodomiciliado, que se multiplica nos vários recipientesque podem armazenar água, particularmente aquelesencontrados nos lixos das cidades, como em garrafas,latas e pneus, ou no interior dos domicílios, como nospratinhos dos vasos de plantas, têm exigido um esfor-ço substancial do setor Saúde. Entretanto, esse traba-lho necessita ser articulado com outras políticas pú-blicas, como a limpeza urbana, além de uma maiorconscientização e mobilização social sobre a necessi-dade das comunidades manterem seu ambiente livredo mosquito. Esse último elemento, a mudança de há-bitos, tem sido apontado, mais recentemente, comoum dos mais efetivos na prevenção da infestação domosquito.

Nos últimos três anos, vem sendo registrado umaumento no número de casos, alcançando cerca de700 mil ocorrências em 2002. Entre outros fatores quepressionam a incidência da dengue, destaca-se a in-trodução recente de um novo sorotipo, o DEN 3, parao qual a susceptibilidade é praticamente universal. Acirculação seqüencial de mais de um sorotipo propi-ciou um aumento na incidência de febre hemorrágicada dengue, com conseqüente incremento na mortali-dade por essa doença.

Os primeiros casos de hantaviroses, no Brasil fo-ram detectados em 1993, em São Paulo, e a doençatem sido registrada com maior frequência nas Regi-ões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. A implantação da suavigilância epidemiológica, o desenvolvimento da ca-

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pacidade laboratorial para realizar diagnóstico, a di-vulgação das medidas adequadas de tratamento parareduzir a letalidade e o conhecimento da situação decirculação dos hantavírus nos roedores silvestres bra-sileiros possibilitaram o aumento na capacidade dasua detecção, gerando um quadro mais nítido da rea-lidade epidemiológica das hantaviroses em nosso país,assim como permitiram a adoção de medidas adequa-das de prevenção e controle.

O desafio da desigualdade

Os indicadores de morbimortalidade da populaçãobrasileira apresentados acima permitem uma compa-ração com outros países de níveis socioeconômicos se-melhantes. Tem sido fartamente documentada a situa-ção paradoxal do Brasil, que apresenta indicadoreseconômicos em níveis incompatíveis aos dos seus indi-cadores sociais, incluindo-se os de saúde, como, porexemplo, taxa de mortalidade infantil e expectativa devida ao nascer.5,6 Ainda que se observe tendência demelhoria para alguns indicadores de saúde no país, areduzida velocidade dessas tendências propicia a per-sistência – ou mesmo ampliação – das desigualdades.7

A insuficiente melhoria em alguns indicadores glo-bais de saúde no Brasil pode ser melhor visualizadana comparação com alguns países da América Latina.Assim, segundo as estimativas do Banco Mundial, para2000 (www.worldbank.og), o México apresentou umaexpectativa de vida ao nascer 4,5 anos superior à doBrasil, a Argentina 5,4 anos, o Uruguai 5,9 anos e oChile 7,1 anos. No período de 1970 a 2000, houve re-dução das Taxas de Mortalidade Infantil (TMI) paratodos esses países, bem como na grande maioria dospaíses do globo. Entretanto, enquanto essa taxa, parao Brasil, era de 29,6 óbitos por 1.000 nascidos vivosem 2000, Argentina (17,4), Uruguai (13,8) e Chile(10,1) apresentavam taxas inferiores. Somente o Mé-xico, entre os países analisados nessa comparação,apresentou taxa semelhante (29,2). Estudos tambémmostram que a expectativa de vida no Brasil é menordo que em países com rendas per capita menores ousimilares ao nosso país. China e Sri Lanka, por exem-plo, com renda per capita em torno de 1/5 da rendaper capita brasileira, apresentam expectativas de vidaao nascer significativamente maiores.

No contexto nacional, a existência de desigualda-des inter-regionais pode ser melhor apreendida pelas

diferenças entre os indicadores de mortalidade. En-quanto nas Regiões Sul e Sudeste, em 1980, as DIPs járepresentavam a quinta causa de óbito, esse grupo re-presentava, na Região Nordeste a segunda causa deóbito naquele ano e, somente em anos recentes, assu-me a mesma posição já verificada para as demais re-giões (excluindo-se os sinais e sintomas mal defini-dos). As doenças cardiovasculares, por sua vez, re-presentavam a primeira causa de óbito para todas asregiões, já em 1980. Entretanto, em 1999, esse grupode causas era responsável por taxa de mortalidadepadronizada na Região Sudeste, 83,2% e 77,0% supe-rior às taxas registradas nas Regiões Nordeste e Norte,respectivamente.

As desigualdades entre as regiões também podemser visualizadas nos indicadores relacionados à com-posição da morbidade. Assim, considerando-se a com-posição de grupos de causas da morbidade hospita-lar, entre os mesmos grupos analisados para a morta-lidade, verifica-se que as doenças cardiovascularesrepresentaram a segunda causa de internações nasRegiões Sul e Sudeste em 2001, em seguida às doen-ças respiratórias. Nessas duas regiões, naquele mes-mo ano, as DIPs representaram a terceira e quartacausas de internações, respectivamente. Na Região Nor-deste, as DIPs ainda representaram a segunda causade internações em 2001, enquanto as doençascardiovasculares representaram a terceira causa.

Eduardo Hage Carmo e colaboradores

Organismos internacionaiscomo o Banco Mundial e aOrganização Mundial de Saúdereconhecem que melhorassubstanciais na saúde dapopulação só serão alcançadascom a redução significativadas desigualdades sociais.

A análise histórica dos indicadores globais de saú-de também evidencia o quadro de desigualdades en-tre as regiões do país. Na década de 30, a Região Su-deste apresentava TMI de 153, a Região Sul de 127 e aRegião Nordeste de 168. Portanto, a Região Nordesteapresentava taxas 10% superiores à Região Sudeste e32% superiores à Região Sul. Para o ano de 99, o Nor-

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deste apresentava TMI 154% maior do que a registradana Região Sudeste e 205% maior do que a taxa daRegião Sul. Apesar de uma melhoria absoluta ter sidoobservada em todas as regiões, o agravamento dasdiferenças relativas mostra que as soluções em buscado cumprimento das potencialidades biológicas está-se dando com diferentes intensidades, provocando umaampliação das desigualdades.8 Deve-se destacar que,na última década, ocorreu uma maior redução relati-va na taxa de mortalidade infantil para a Região Nor-deste, que apresentava o valor mais elevado. Quanto àexpectativa de vida ao nascer, verificou-se tendênciade maiores ganhos, entre 1991e1999, nos Estadosque apresentavam os menores valores no início doperíodo.9

Outros indicadores de morbidade, de base nãohospitalar, também revelam as desigualdades inter-regionais. Assim, as maiores taxas de incidência ouprevalência para cólera (até o ano de 2001, quandoforam registrados os últimos casos), esquistossomose,doença de Chagas e leishmanioses têm sido registradasnas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Há, em todo o mundo, evidências de que a estra-tificação da população de acordo com seus níveissocioeconômicos define, também, estratos diferen-ciados nos níveis de saúde. Países desenvolvidos ouem desenvolvimento, com diferentes patamares nosníveis de saúde das suas populações e com diferentespadrões epidemiológicos, assemelham-se no tocanteà existência desses gradientes. A freqüência de qual-quer doença, com raras exceções, aumenta com aredução do nível social e econômico dos grupos soci-ais. É consistente o fato de que, entre países com ní-veis econômicos similares, aqueles com maiores ní-veis de desigualdade social apresentam níveis maisbaixos de saúde. Por exemplo, entre o grupo de paí-ses desenvolvidos, os Estados Unidos, apesar de ser omais rico desse restrito grupo, é o que apresenta mai-ores desigualdades sociais, gerando diferenciais nosindicadores de saúde entre distintos grupospopulacionais.10 Organismos internacionais (BancoMundial, Organização Mundial da Saúde) vêm reco-nhecendo que, sem reduções significativas nasiniqüidades sociais, será impossível alcançar melho-ras mais substanciais no quadro global de saúde dapopulação, pois observa-se que melhorias modestasno padrão das desigualdades têm fortes efeitos nos ní-

veis de saúde. No Brasil, essa questão assume grandeimportância e ganha nuances especiais. Por exemplo,em 1999, 50% dos óbitos infantis concentraram-se nos30% dos nascidos vivos que residem nos estados comas maiores taxas de pobreza,9 bem como a TMI esti-mada em 1996 para os 20% dos brasileiros mais po-bres foi três vezes maior que a estimada para os 20%de maior poder aquisitivo (www.worldbank.org). Aconcentração da riqueza e dos bens gera imensas dis-tâncias também entre as suas regiões ou entre seusespaços intra-urbanos. No interior das cidades brasi-leiras, são igualmente observados diferenciais nas ta-xas de mortalidade infantil, bem como na mortalida-de pela maioria das doenças, entre as zonas mais po-bres relacionadas com as zonas mais ricas das cida-des. Iniqüidades quanto aos gêneros e aos grupos ét-nicos agravam tal situação.

O desafio da complexidade

Vimos que entre as principais causas de óbito einternamentos em nossa população estão as doençascrônico-degenerativas, os acidentes e as diversas for-mas de violência. Entretanto, já se observam tendên-cias recentes de redução da mortalidade por algumascausas específicas de doenças cardiovasculares, sufi-ciente para redução das taxas nesse grupo de causa.No grupo das doenças infecciosas, além da reduçãona mortalidade, observa-se também diminuição sig-nificativa na morbidade por um conjunto importantede doenças.

Em outra direção, temos visto que o reapareci-mento, nas duas décadas passadas, de problemascomo a cólera e a dengue, além de expor as frágeisestruturas ambientais urbanas em nosso país, as quaistornam as populações vulneráveis a doenças que pa-

A intensificação do comérciointernacional, o narcotráfico,o contrabando de armase cigarros e os câmbios climáticosocasionados pela poluiçãoatmosférica são exemplosde novos riscos globaiscom efeito na deterioraçãodas condições de saúde.

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reciam superadas, amplia a já alta carga de doenças dapopulação. Esses fatores agregam-se ao surgimento denovas doenças ou de novas formas de manifestação dasdoenças na população – aumento na severidade porsurgimento de novas cepas patogênicas, ampliação daresistência aos antimicrobianos –, bem como à persis-tência de problemas como a desnutrição e doençasendêmicas como a tuberculose. Essa situação implica amanutenção de estruturas de cuidado dispendiosas quecompetem por recursos escassos, os quais poderiam,em caso da não-existência desses problemas, vir a serutilizados na solução de problemas de saúde de maiormagnitude, para os quais existem menores possibilida-des de prevenção a curto prazo, como as doençascrônicas não transmissíveis.

Um quadro bem paradigmático dessa superposiçãode padrões ocorre com relação aos problemasnutricionais – reduções na prevalência da desnutri-ção proteico-calórica estão sendo acompanhadas pelocrescimento da obesidade e da anemia.11 Tambémdeve-se destacar que, em geral, o tratamento das ‘do-enças da modernidade’ requer mais recursos tecnoló-gicos e, como conseqüência, implica maiores cus-tos para o sistema de saúde. A violência, por exem-plo, ao lado das mortes e incapacidades que causa ànossa população produtiva, impõe pesadas sobrecar-gas aos sistemas de saúde e previdenciário.12

A falta de solução para alguns problemas estrutu-rais e básicos, a manutenção de condições e modo devida inadequados, a insuficiência nos mecanismos queregulam os danos ao meio ambiente, ocasionam queos riscos aos quais está exposta a nossa população sesuperponham, ao invés de se sucederem. Assim, se deum lado temos a manutenção dos problemas urbanoscaracterizados por marcantes deficiências em áreascomo saneamento ambiental, habitação e transporte,temos também o surgimento da poluição ambientalde origem química (industrial, inseticidas etc.), os ris-cos ocupacionais, o aumento dos fatores estressoresgerados pela ‘modernização’ das relações sociais, asmudanças comportamentais, o desemprego estrutu-ral e crescente e a ampliação das desigualdades intra-urbanas. Ademais, o fato de o envelhecimento dapopulação ocorrer em condições que associammúltiplos riscos, amplifica as chances de ocorrên-cia de várias doenças, aumentando a carga mór-bida e reduzindo a qualidade de vida de um grupopopulacional.

Existem, cada vez mais, relatos sobre fatores quese dão no plano internacional e seus efeitos deletériossobre a Saúde. A chamada globalização está relacio-nada com questões tão aparentemente diversas comoo aumento das desigualdades entre as nações, a inten-sificação do comércio internacional – especialmentede produtos alimentícios –, o narcotráfico e o contra-bando de armas e cigarros, ou o aumento da tempe-ratura global ocasionado pela crescente poluição at-mosférica, exemplos de ‘novos riscos globais’ comefeito na deterioração das condições de saúde. Essasuperposição de fatores ambientais e sociais ‘velhos’e ‘novos’ é que torna possível algumas doenças infec-ciosas tradicionais serem mantidas e propicia a emer-gência ou a reemergência de outras tantas, em para-lelo ao aumento das doenças crônicas e das violênci-as. Tomemos o exemplo do desemprego: além da pri-vação a que sujeita os indivíduos e suas famílias, ge-rando efeitos no estado nutricional de adultos e crian-ças e aumento do risco de exposição a doenças infec-ciosas, provoca aumento na ocorrência das doençaspsiquiátricas e cardiovasculares.

Tendo em vista a impossibilidade de uma atuação,a curto prazo, em alguns riscos gerados pelos proces-sos globais, faz-se urgente a superação de algumascategorias de risco tradicionalmente vinculadas à ocor-rência de doenças, cuja superação pode ser alcançadaem função de decisões políticas mais limitadas. Porexemplo, a completa resolução das desigualdades noacesso aos serviços de saúde e do déficit no supri-mento de água e no esgotamento sanitário em muitoscentros urbanos. Já é amplamente conhecido o efeitopositivo da melhoria das condições de saneamento,não somente na diminuição de uma série de doençasinfecciosas responsáveis por importantes demandasno sistema de saúde, como também na proteção dian-te do ressurgimento de outros problemas. Não por aca-so, em locais com alto padrão de saneamento, nãohouve o ressurgimento da cólera na década de 90.

Os desafios para as políticas de saúde

A superposição de problemas de saúde implica amanutenção de uma carga de magnitude semelhante,de morbidade e mortalidade na população, ao longodos anos. A redução dessa carga, dentro dos limitesbiológicos estabelecidos, representa um desafio paraa definição de políticas de saúde.

Eduardo Hage Carmo e colaboradores

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Os benefícios alcançados para a população, em con-seqüência de redução da mortalidade para as doençasinfecciosas, da morbidade por algumas patologias des-se grupo de causa, como também da mortalidade paraas doenças cardiovasculares, não somente devem sermantidos como necessitam ser ampliados para outrascausas de adoecimento e morte da população. Essesresultados positivos indicam que existe tecnologia sufi-ciente para melhoria dos padrões de morbidade e mor-talidade, cujos efeitos são muito mais intensos e dura-douros em contextos socioeconômico e ambiental fa-voráveis.13 A constatação supera a proposição inicial nocontexto da aplicação do termo “transição epidemio-lógica”, para explicação das grandes mudanças nospadrões epidemiológicos dos países desenvolvidos e dosdemais países da America Latina.14,15

Por outro lado, mais do que representar uma uto-pia, não se deve reforçar a ilusão, disseminada sublimi-narmente, de que é possível viver em um mundo semdoenças – incluindo as transmissíveis –, o que implica-ria, em última análise, um mundo com seres humanosimortais. Ao menos com o conhecimento atual que sedispõe sobre as potencialidades biológicas e as tecno-logias disponíveis, este não constitui o cenário das pre-sentes gerações.

As modificações internas na composição dascausas de morbidade e de mortalidade têm geradomelhorias significativas dos indicadores de saúde dopaís. O processo de envelhecimento da população tam-bém representa um avanço na plena utilização do po-

tencial biológico. Entretanto, na medida em que a ocor-rência de doenças tem-se caracterizado por superpo-sição de suas causas e riscos, um efeito que pode serobservado é a manutenção ou mesmo incremento nascausas de incapacidades. Nesse aspecto, o desafio paraas políticas de saúde, integradas às demais políticassociais, é agregar ao aumento da longevidade huma-na a qualidade de vida.

Vimos, também, que os benefícios na melhoria deindicadores de saúde não são alcançados de formahomogênea, por todos os grupos populacionais, o quecontribui para a manutenção de carga persistente demorbidade, mesmo referindo-se a problemas em que re-duções sejam observadas, fazendo com que essa mesmacarga não se reduza abaixo de determinados patamares.Ainda que as políticas de saúde tenham possibilidade deampliação dos benefícios para grupos populacionais ex-cluídos desse processo, a articulação com outras políti-cas públicas adquire relevância impar na redução dascausas e riscos. Sem essa articulação, serão mantidas asdesigualdades nos padrões epidemiológicos atuais. Taispolíticas e ações, devem ser, necessariamente, dirigidaspara os determinantes das doenças, visando ao enfren-tamento da complexidade da sua produção.

Agradecimentos

Os autores agradecem a Carlos Antonio de S. T.Santos (ISC/UFBA e UEFS) pelos cálculos das taxaspadronizadas de mortalidade.

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Eduardo Hage Carmo e colaboradores