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1 EQUAÇÃO/FUNÇÃO EXPONENCIAL EM DOIS LIVROS DIDÁTICOS ANTES E DURANTE O MOVIMENTO DA MATEMÁTICA MODERNA Rogeria Teixeira Urzêdo Queiroz Elenice de Souza Lodron Zuin Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Resumo A função exponencial é um dos conteúdos do atual Ensino Básico e tem grande importância pelas suas aplicações em diversas áreas do conhecimento. A equação exponencial estava presente em livros didáticos de Álgebra publicados no século XIX. A função exponencial passa a constar dos programas para o ensino da Matemática no nível secundário, em âmbito nacional, a partir da Reforma Francisco Campos, em 1931. Sob a perspectiva da História das Disciplinas Escolares (CHERVEL, 1990), realizamos uma investigação buscando verificar se e como a equação exponencial e a função exponencial eram retratadas em livros didáticos de Matemática editados entre as décadas de 30 e 80 do século XX no Brasil. Para este trabalho, trazemos um recorte do nosso estudo apresentando duas obras nacionais: a primeira, dos Irmãos Maristas, intitulada Matemática, Primeira Série Colegial, publicada em 1959 e, a segunda, de Scipione Di Pierro Netto e Célia Contin Góes, Matemática na Escola Renovada, primeira série do 2 o grau, publicada em 1972. Averiguamos que, na obra dos Irmãos Maristas, não há referência à função exponencial. Os autores incluem as equações exponenciais em cinco páginas, iniciando com a definição de equação exponencial, classificando-as em primeira, segunda, terceira e quarta ordem. Há exercícios resolvidos com o emprego de logaritmos e outros resolvidos por “artifícios”. Não é descrita nenhuma referência histórica. Os exercícios são propostos no final do capítulo sob o enunciado “Resolver as equações seguintes”. Não há nenhum exercício de aplicação em outras áreas. Na segunda obra, percebe-se a influência do Movimento da Matemática Moderna. Num primeiro momento, em relação às questões gráficas de impressão, tais como a utilização de cores e recursos visuais. É realizada uma exposição da função exponencial, através da utilização da linguagem dos conjuntos, privilegiando a estrutura da álgebra abstrata sem nenhuma abordagem histórica. As equações exponenciais são apresentadas no capítulo posterior denominado Equações exponenciais e logarítmicas. O conteúdo é desenvolvido em um total de dezenove páginas. Os exercícios propostos são dispostos no final do capítulo, sendo exigidos traçados e análise de gráficos. Os exercícios relativos às equações exponenciais são semelhantes aos propostos pela primeira obra citada, porém o enunciado difere, dando ênfase às soluções indicadas na forma de conjunto verdade. Não são encontradas aplicações da função exponencial em outras áreas do conhecimento. Pode-se concluir, a partir das nossas análises, centradas nesses dois livros, que a abordagem relativa às exponenciais experimentou mudanças significativas com o surgimento do Movimento da Matemática Moderna. Palavras-chave: Livros didáticos, Educação Matemática, Função Exponencial

EQUAÇÃO/FUNÇÃO EXPONENCIAL EM DOIS LIVROS … · Com a promulgação do Decreto-lei 4244, em 1942, fica estabelecido no Título ... 1 O artigo 12º da lei 4244/1942 indicava um

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EQUAÇÃO/FUNÇÃO EXPONENCIAL EM DOIS LIVROS DIDÁTICOS

ANTES E DURANTE O MOVIMENTO DA MATEMÁTICA MODERNA

Rogeria Teixeira Urzêdo Queiroz

Elenice de Souza Lodron Zuin

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Resumo

A função exponencial é um dos conteúdos do atual Ensino Básico e tem grande

importância pelas suas aplicações em diversas áreas do conhecimento. A equação

exponencial estava presente em livros didáticos de Álgebra publicados no século XIX.

A função exponencial passa a constar dos programas para o ensino da Matemática no

nível secundário, em âmbito nacional, a partir da Reforma Francisco Campos, em 1931.

Sob a perspectiva da História das Disciplinas Escolares (CHERVEL, 1990), realizamos

uma investigação buscando verificar se e como a equação exponencial e a função

exponencial eram retratadas em livros didáticos de Matemática editados entre as

décadas de 30 e 80 do século XX no Brasil. Para este trabalho, trazemos um recorte do

nosso estudo apresentando duas obras nacionais: a primeira, dos Irmãos Maristas,

intitulada Matemática, Primeira Série Colegial, publicada em 1959 e, a segunda, de

Scipione Di Pierro Netto e Célia Contin Góes, Matemática na Escola Renovada,

primeira série do 2o grau, publicada em 1972. Averiguamos que, na obra dos Irmãos

Maristas, não há referência à função exponencial. Os autores incluem as equações

exponenciais em cinco páginas, iniciando com a definição de equação exponencial,

classificando-as em primeira, segunda, terceira e quarta ordem. Há exercícios

resolvidos com o emprego de logaritmos e outros resolvidos por “artifícios”. Não é

descrita nenhuma referência histórica. Os exercícios são propostos no final do capítulo

sob o enunciado “Resolver as equações seguintes”. Não há nenhum exercício de

aplicação em outras áreas. Na segunda obra, percebe-se a influência do Movimento da

Matemática Moderna. Num primeiro momento, em relação às questões gráficas de

impressão, tais como a utilização de cores e recursos visuais. É realizada uma exposição

da função exponencial, através da utilização da linguagem dos conjuntos, privilegiando

a estrutura da álgebra abstrata sem nenhuma abordagem histórica. As equações

exponenciais são apresentadas no capítulo posterior denominado Equações

exponenciais e logarítmicas. O conteúdo é desenvolvido em um total de dezenove

páginas. Os exercícios propostos são dispostos no final do capítulo, sendo exigidos

traçados e análise de gráficos. Os exercícios relativos às equações exponenciais são

semelhantes aos propostos pela primeira obra citada, porém o enunciado difere, dando

ênfase às soluções indicadas na forma de conjunto verdade. Não são encontradas

aplicações da função exponencial em outras áreas do conhecimento. Pode-se concluir, a

partir das nossas análises, centradas nesses dois livros, que a abordagem relativa às

exponenciais experimentou mudanças significativas com o surgimento do Movimento

da Matemática Moderna.

Palavras-chave: Livros didáticos, Educação Matemática, Função Exponencial

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Introdução

A história do ensino da Matemática pode ser acompanhada através dos livros

didáticos, publicados ao longo dos anos. É possível citar vários professores que se

valeram da sua competência em ensinar, para escrever e tornar materializado, pelas

publicações, o desenvolvimento de formas didáticas de transmitir os conhecimentos que

nortearam, ou não, as exigências das reformas de ensino que se fizeram presentes.

Percorrendo a linha do tempo, podemos verificar que, em relação aos vários conteúdos

ministrados, alguns foram destacados pela sua importância, enquanto outros não foram

mais mencionados. Como exemplo, podemos citar o Cálculo Vetorial, que foi destinado

a ser ministrado nos cursos superiores, permanecendo apenas como suporte aos

conhecimentos de trigonometria, conforme exigência da reforma Gustavo Capanema.

Em razão desse princípio, foram vários os pesquisadores (VALENTE, 2003;

VALENTE, 2004; DASSIE, 2008) que se ocuparam em estudar os livros didáticos e

apresentar razões de propostas de ensino que também se interligaram com movimentos

que surgiram a partir de ideias e questionamentos de vários matemáticos do Brasil e de

outros países. O livro didático se constitui em um símbolo da escola (CHOPPIN, 2001).

É o instrumento de trabalho mais importante do professor, pois muitas vezes é a

principal, senão a única, fonte que o docente possui para preparar suas aulas. Além de

ser um meio facilitador para a complementação de conhecimentos, torna-se um vetor de

conteúdos que, no decorrer das décadas, foram experimentando formas diferentes de

apresentação.

Em nossas investigações, procuramos verificar de que forma a equação e função

exponencial eram retratadas em obras didáticas de Matemática editadas, entre as

décadas de 30 e 80 do Novecentos, no Brasil. Para o presente trabalho, trazemos um

recorte do nosso estudo, focalizando dois livros didáticos. A escolha dos livros foi

norteada pelo conhecimento das mudanças nas apresentações dos conteúdos dos livros

de Matemática que surgiram com o Movimento da Matemática Moderna (MMM).

Dessa forma, justifica-se a atenção para duas obras: a primeira, dos Irmãos Maristas,

intitulada Matemática, Primeira Série Colegial, publicada em 1959 – que antecede o

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MMM – e, a segunda, de Scipione Di Pierro Netto e Célia Contin Góes, Matemática na

Escola Renovada, primeira série do 2o grau, publicada em 1972.

Trazemos como referência Chervel (1990), que cita em seu texto as “finalidades

do ensino escolar”, identificando finalidades religiosas, finalidades sócio-políticas,

finalidades de ordem psicológica e finalidades culturais diversas, sendo que estas

mantêm uma estreita correlação. Conforme afirmação de Zuin (2007, p.12), “nos livros

didáticos, estão embutidos valores a serem transmitidos num determinado momento

histórico”. Chervel (1990) ainda sinaliza que:

A instituição escolar é, em cada época, tributária de um complexo de

objetivos que se entrelaçam e se combinam numa delicada arquitetura

da qual alguns tentaram fazer um modelo. É aqui que intervém a

oposição entre educação e instrução. O conjunto dessas finalidades

consigna à escola sua função educativa. Uma parte somente entre elas

obriga-a a dar uma instrução. Mas essa instrução está inteiramente

integrada ao esquema educacional que governa o sistema escolar, ou o

ramo estudado. As disciplinas escolares estão no centro desse

dispositivo. Sua função consiste em cada caso em colocar um

conteúdo de instrução a serviço de uma finalidade educativa.

(CHERVEL, 1990, p. 188).

Quando se lê, na citação acima, que a função da disciplina escolar é “colocar um

conteúdo de instrução a serviço de uma finalidade educativa”, entendemos que os

conteúdos realmente podem sofrer transformações, atendendo determinadas correntes

pedagógicas e/ou imposições da legislação escolar. Dentro desse último aspecto,

descrevemos, de forma sucinta, nos parágrafos seguintes, alguns aspectos da legislação

educacional e do Movimento da Matemática Moderna que trouxeram mudanças

significativas na abordagem dos conteúdos e, em especial, da função/equação

exponencial.

Reformas de Ensino que antecederam o Movimento da Matemática Moderna

Uma reforma que dá início a um ensino secundário, com outras características, é

a Reforma Francisco Campos, do ano de 1931. Sua grande relevância se centra no fato

de estabelecer, para todo o país, novas diretrizes relativas à organização do ensino

secundário, sendo este dividido em dois ciclos: fundamental e complementar, com

duração de cinco e dois anos, respectivamente. Outra alteração importante é a fusão da

Aritmética, Álgebra e Geometria em uma única disciplina: a Matemática – tendo “o

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conceito de função como fator de integração das partes da matemática” (MARQUES,

2005, p. 29).

A equação exponencial já estava presente em livros didáticos de Álgebra

publicados no século XIX. No entanto, a função exponencial passa a constar dos

programas para o ensino da Matemática no nível secundário, em âmbito nacional, a

partir da Portaria Ministerial n. 70, de 30 de junho de 1931 – que estabeleceu os

programas e as instruções metodológicas para as disciplinas do curso fundamental do

ensino secundário. Para a quarta série, ficava prescrita a introdução da função

exponencial. Foi a primeira vez que este conteúdo apareceu indicado na legislação.

A 9 de abril de 1942, por iniciativa de Gustavo Capanema, ministro da

Educação, durante o governo de Getúlio Vargas, era promulgada a denominada Lei

Orgânica do Ensino Secundário, mediante o decreto-lei número 4244. Na exposição de

motivos para que fosse sancionado um projeto de lei orgânica do ensino secundário,

incluindo o texto do projeto, Gustavo Capanema assim se pronunciou:

É que o ensino secundário se destina à preparação das

individualidades condutoras, isto é, dos homens que deverão assumir

as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação, dos

homens portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso

infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre o povo. Ele

deve ser, por isto, um ensino patriótico por excelência, e patriótico no

sentido mais alto da palavra, isto é, um ensino capaz dar aos

adolescentes a compreensão da continuidade histórica da pátria, a

compreensão dos problemas e das necessidades, da missão e dos

ideais da nação, e bem assim dos perigos que a acompanhem, cerquem

ou ameacem, um ensino capaz, além disto, de criar, no espírito das

gerações novas, a consciência da responsabilidade diante dos valores

maiores da pátria, a sua independência, a sua ordem, o seu destino.

(CAPANEMA, 1942).

Para o ensino de Matemática, Capanema justificava:

No curso ginasial, a matemática e as ciências naturais serão estudadas

de modo elementar. Seria antipedagógico sobrecarregar os alunos,

nessa primeira fase dos estudos secundários, com estudos científicos

aprofundados.

Posteriormente, no curso clássico e no curso científico, far-se-á das

ciências estudo mais acurado. Terá o estudo da matemática, da física,

da química e da biologia, no curso científico, maior desenvolvimento

e profundidade do que no curso clássico. Não deverá, porém, êsse

estudo ser tão abundante e minucioso no curso científico que possa

tornar-se inconveniente demasia, nem de tal modo reduzido no curso

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clássico, que não baste à formação de uma cultura científica adequada

aos fins do ensino secundário. (CAPANEMA, 1942).

Com a promulgação do Decreto-lei 4244, em 1942, fica estabelecido no Título

primeiro, pelo artigo 2o, do capítulo II, que o ensino secundário passaria a ser

ministrado em dois ciclos. O primeiro compreenderia um só curso: o ginasial, enquanto,

o segundo, seria subdividido em dois cursos paralelos: clássico e científico. Para

Romanelli (1980), os cursos clássico e científico não apresentavam nenhum caráter de

especialização, sendo evidente o caráter de cultura geral e humanística dos currículos,

mesmo no científico. De acordo com esta autora, “sobressaiam, nos dois níveis, uma

preocupação excessivamente ideológica e ausência de distinção substancial entre os dois

cursos: o clássico e o científico” (ROMANELLI, 1980, p. 158). A lei estabeleceu as

disciplinas em cada um dos níveis de ensino, contudo, não definiu os programas

curriculares.1

A Portaria Ministerial n. 177, de 16 de março de 1943, expediu os programas de

Matemática para os cursos clássico e científico. Referente ao ensino de Álgebra, para a

segunda série do curso clássico, entre outros tópicos, após o estudo das progressões e

logaritmos, era proposta a “resolução de algumas equações exponenciais simples”. Para

o curso científico, também para a segunda série, eram indicados: “a função exponencial:

1. estudo das progressões aritméticas e geométricas; 2. noção de função exponencial e

de sua função inversa; 3. teoria dos logaritmos; uso das tábuas; aplicações; 5. resolução

de algumas equações exponenciais.” (BRASIL, 1943). Um programa mais aprofundado

para o curso científico.

Do início da década de 50, temos a Reforma Simões Filho, então ministro da

Educação. São baixadas a Portaria Ministerial no 966, de 2 de outubro de 1951, logo

depois, a Portaria Ministerial no 1045, de 14 de dezembro de 1951. Fica demarcado o

período compreendido entre 1951 e 1966, com o “Programa Mínimo” expedido pelas

referidas portarias. Estes programas procuraram simplificar e ajustar os conteúdos

1 O artigo 12º da lei 4244/1942 indicava um currículo enciclopédico para os cursos clássico e científico,

dividido em três grupos: I - Línguas (Português, Latim, Grego, Francês, Inglês, Espanhol); II - Ciências e

Filosofia (Matemática, Física, Química, Biologia, História Geral, História do Brasil, Geografia Geral,

Geografia do Brasil, Filosofia) e III - Artes (Desenho). Pelo seu artigo 13º: “As disciplinas indicadas no

artigo anterior são comuns aos cursos clássico e científico, salvo o latim e o grego, que somente se

ministrarão no curso clássico, e o desenho, que se ensinará somente no curso científico” (BRASIL, 1942).

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propostos para o ensino secundário nas reformas anteriores. Na Matemática, os

conteúdos abordados para a primeira série estavam distribuídos em cinco seções assim

delimitadas: I – Noções sobre o cálculo aritmético aproximado; erros. II – Progressões.

III – Logaritmos. IV – Retas e planos; superfícies e poliedros em geral; corpos redondos

usuais; definições e propriedades; áreas e volumes. V – Secções cônicas; definições e

propriedades fundamentais. Para o estudo dos Logaritmos, especificavam-se os tópicos:

1. O cálculo logarítmico como operação inversa da potenciação. Propriedades gerais dos

logaritmos; mudança de base. Característica e mantissa. Cologaritmo; 2. Logaritmos

decimais; propriedades. Disposição e uso das tábuas de logaritmos. Aplicação ao

cálculo numérico; 3. Equações exponenciais simples; sua resolução com o emprego de

logaritmos. Este último tópico só era indicado para o Curso Científico, como alguns

outros, que não constariam do programa do Curso Clássico.

Depois da Reforma Capanema, surgiu a primeira Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Brasileira, em 1961, e recebeu o número 4024. Dez anos depois, foi

promulgada a Lei 5692, de 11 de agosto de 1971, fixando o objetivo geral da educação

de primeiro e segundo graus.

O Movimento da Matemática Moderna ocorreu em nível internacional e não se

deu através de leis e decretos no Brasil. Apesar disso, o movimento foi amplamente

difundido em todo o território nacional (SOARES, 2005). Esse movimento se

caracterizou pela proposta de renovação curricular, que se iniciou na década de 60 do

Novecentos e permaneceu como uma alternativa para o ensino da Matemática. Houve

ampla discussão, instaurada em congressos científicos que ocorreram nos anos de 1955,

1957, 1959, 1962 e 1966. A pesquisa realizada por Soares (2005) mostra que já existia

uma insatisfação em relação ao ensino, manifestada pelos professores nos primeiros

congressos. Para Soares (2001), as iniciativas para as mudanças no ensino surgiram a

partir da fundação do Grupo de Estudos de Ensino da Matemática de São Paulo, GEEM,

sob a liderança do professor Osvaldo Sangiorgi e a divulgações das ideias da

Matemática Moderna se deram por meio de livros e cursos para professores. O principal

marco do Movimento da Matemática Moderna foi a introdução, de uma forma mais

ampla, do estudo da Teoria dos Conjuntos bem como da utilização de toda a simbologia

que lhe é peculiar.

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As obras analisadas e os seus autores

A primeira obra analisada foi da Coleção Didática FTD, Matemática – primeira

série colegial, de autoria dos Irmãos Maristas, do ano de 1959, cuja capa é ilustrada na

figura 1.

A sigla FTD foi uma homenagem ao Frei Théophane Durand, que assumiu a

direção geral da Congregação Marista em 1833. No Rio de Janeiro, a FTD foi

inaugurada, em 1902, para atender a demanda “de livros europeus pelos novos colégios

católicos criados no Brasil”. A editora investe na edição de um grande número de livros

didáticos de “todas as disciplinas escolares” (VALENTE, 2002, p. 190), obtendo êxito.

Frei Théophane Durand foi um grande incentivador dos irmãos dessa

congregação para escreverem obras didáticas, apesar de que, nessa época, já havia 50

títulos publicados (BARONI, 2008). Dessa forma, as edições mais antigas e as novas

publicações compuseram o que os Irmãos Maristas denominaram “Coleção Didática

FTD” – a primeira frase impressa como título na capa do livro ora citado. Outra

particularidade dessa obra é que não há a apresentação do nome do autor. Essa é outra

característica dos livros didáticos de Matemática da Editora FTD. Com essa ação,

segundo Baroni (2009), os Maristas deixavam suas obras como obra da Congregação e

não como obra específica de um único Irmão. Por essa razão, em algumas obras,

poderemos também encontrar os impressos “Por FTD” ou “Por uma reunião de

professores”.

Figura 1 - Capa do livro da Coleção Didática FTD

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Fonte: FTD (1959)

A segunda obra analisada, Matemática na Escola Renovada, publicada em 1972,

(figura 2), tem como primeiro autor Scipione Di Pierro Netto e, como co-autora, Célia

Contin Góes.

Scipione Di Pierro Netto (1926-2005) era doutor em Educação pela

Universidade de São Paulo – USP. No início de sua carreira, foi professor de

Matemática na rede pública do Estado de São Paulo, ingressando posteriormente, por

concurso público, no Colégio de Aplicação da USP. Lecionou em diversas instituições

de Ensino Superior, entre elas a USP e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Teve participação no G.E.E.M. – Grupo de Estudos do Ensino da Matemática,

presidido por Osvaldo Sangiorgi. Di Pierro Netto foi autor de inúmeros livros didáticos

de Matemática e começou a ter destaque nesse ofício no final da década de 1960.

A co-autora, Célia Contin Góes, também foi professora do Colégio de Aplicação

da USP, tendo publicado com Di Pierro Netto os três volumes da Coleção Matemática

na Escola Renovada. O rigor, demonstrado pelos autores nessa obra, é evidenciado pela

nota “Aos Senhores Professores”, anterior ao índice, quando escrevem que: “O estudo

da função exponencial é rigoroso a êste nível e julgamos que, em muitos cursos, o

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tratamento minucioso que demos pode até ser dispensado num primeiro estudo.” (DI

PIERRO NETTO & GÓES, 1972).

Figura 2 - Capa do livro Matemática na escola Renovada.

Fonte: DI PIERRO NETTO & GÓES (1972)

Equação/ função exponencial na obra dos Irmãos Maristas

Antes da análise do conteúdo em pauta, ressaltamos que, nessa obra dos Irmãos

Maristas, existe a informação de que a mesma segue a Portaria n.o 966, de 2 de outubro

de 1951, bem como a Portaria n.o 1045, de 14 de dezembro de 1951 do Ministério da

Educação e Cultura.

A figura 3 mostra o índice geral e o índice analítico da obra. O conteúdo

equações exponenciais encontra-se no capítulo VI, após o capítulo de logaritmos e

pode-se verificar pelo denominado “Índice Analítico” que as funções exponenciais não

foram ali citadas e, de fato, a análise do livro demonstra que os autores não abordam o

referido tópico.

Figura 3- Conteúdos para a primeira série no livro Matemática dos Irmãos Maristas

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Fonte: FTD (1959)

O capítulo VI inicia na página 91 e finaliza na página 95. Todas as definições,

conceitos e exemplos, ao longo de toda a obra, são numerados em ordem crescente e,

assim procedendo, a apresentação das equações exponenciais inicia-se no tópico 74,

onde é dada uma definição simples de equação exponencial. No parágrafo seguinte do

mesmo tópico, define-se exponencial, citando três exemplos. A seguir, classificam-se as

exponenciais em: primeira ordem, quando o expoente é uma incógnita; de segunda

ordem, quando tem por expoente uma exponencial de primeira ordem; de terceira

ordem, quando tem por expoente uma exponencial de segunda ordem e, assim,

sucessivamente.

Para a resolução das equações exponenciais (tópico 75), os autores informam

que as mesmas poderão ser resolvidas por logaritmos ou, em certos casos, por artifícios.

No tópico 76, são apresentados exercícios resolvidos e, em todos os exemplos,

houve o emprego de propriedades dos logaritmos. Na figura 4, apresentamos o 2o

exemplo, disposto na página 92, no qual há a apresentação de uma mudança de variável

do tipo 𝑏𝑥 = 𝑦 que se repete nos exemplos 3 e 4.

Figura 4 - Exemplo de resolução de equação com o uso de logaritmos

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Fonte: FTD (1959, p. 92)

No tópico 77 (figura 5), os autores apresentam exemplos de resolução sem o

emprego de logaritmos. Neste caso, o método de resolução sugere o emprego do

artifício, citado no tópico 75, que é a decomposição em fatores primos. São

apresentados 5 exemplos.

No tópico 78, é apresentado um único exemplo de equação exponencial, na qual

há uma soma de exponenciais no primeiro membro da equação.

Os autores, durante o desenvolvimento do capítulo, não incluem referências

históricas e não apresentam nenhum problema de aplicação. Os exercícios propostos ao

final do capítulo, num total de 25, se concentram em: “Resolver as equações seguintes

sem os logaritmos” e “Resolver as equações seguintes pelos logaritmos”. Não há,

evidentemente, nenhuma representação gráfica, uma vez que, como citado

anteriormente, não existe nenhuma indicação de qualquer conceito ou noção de função

exponencial.

Figura 5 - Exemplo de resolução de equação sem o uso de logaritmos

Fonte: FTD (1959, p.93)

Equação/função exponencial na obra Matemática na Escola Renovada

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A obra é composta por treze capítulos, subdivididos em tópicos, dispostos em

ordem crescente, da mesma forma que na obra dos Irmãos Maristas. As páginas são de

dimensões maiores, quando comparadas com a obra dos Maristas, com capa flexível,

explorando várias cores. A função exponencial se concentra no sexto capítulo, enquanto

os logaritmos e equações, incluindo as exponenciais, estão no sétimo capítulo. A função

exponencial está disposta em quatro tópicos (57 a 60) e, as equações exponenciais, no

tópico 140.

O tópico 57 apresenta a definição de função exponencial (figura 6) com a

utilização de uma simbologia bem característica da teoria dos conjuntos, que é

apresentada no primeiro capítulo do livro – como uma forma de fornecer subsídios para

o leitor.

Figura 6 - Definição de função exponencial

Fonte: DI PIERRO NETTO & GÓES, (1972, p.98)

Após a definição, os autores propõem algumas questões “provocativas”,

indagando, por exemplo, por que não se pode ter a < 0. Parece, então, que os autores

tentam estabelecer um diálogo com os leitores, anunciando, no tópico seguinte, que

“Tais perguntas estarão respondidas quando tivermos construído a função f a partir de

sucessivas ampliações dos campos numéricos a partir de N”.

No tópico 58, apresenta-se a definição da função exponencial no conjunto dos

naturais; as cinco propriedades das potências, sendo as duas primeiras de multiplicação

e divisão de potências de mesma base; a terceira, de uma potência elevada a um

expoente e, as duas últimas, referindo-se a potência de um produto e de uma divisão. A

seguir, os casos de função crescente e decrescente e, finalmente, os gráficos relativos às

funções apresentadas.

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De forma similar, apresenta-se a função exponencial no conjunto dos inteiros, no

conjunto dos racionais e no conjunto dos reais. Em todos os tópicos, há um rigor muito

acentuado, com as demonstrações das propriedades das potências apresentadas,

incluindo, além das citadas anteriormente, potências com expoente fracionário e com

expoente negativo. Outra característica, que se evidencia da análise, é o fato de que os

autores não incluem exemplos e exercícios resolvidos, demonstrando, apenas, a

preocupação em apresentar o conteúdo; sendo que o fornecimento dos exemplos

numéricos ficaria a cargo do professor.

No tópico 62, os autores apresentam a denominada “Aplicações”, onde são

colocados dois exemplos para a verificação de que as potências dadas pertencem ou não

ao conjunto dos números reais. Como na obra dos Irmãos Maristas, Di Pierro Netto &

Góes não propõem aplicações da exponencial em outras áreas do conhecimento e, tão

pouco, incluem qualquer abordagem histórica. A utilização, quase que “exagerada” de

simbolismos, denotou à obra um grau de dificuldade muito grande para o entendimento

do conteúdo. A figura 7 pode ilustrar muito bem essa observação, quando os autores

citam que a função exponencial é bijetora no conjunto dos números reais.

Figura 7 - Função exponencial bijetora

Fonte: DI PIERRO NETTO & GÓES, (1972, p.111)

O capítulo destinado às funções é finalizado, no tópico 63, com a proposição de

exercícios, colocados em três sequências. Na sequência 1, há exercícios sobre as

propriedades das potências; na sequência 2, representação gráfica de funções, questões

onde os questionamentos teóricos deverão ser respondidos com justificativas e

determinação do domínio de algumas funções; na sequência 3, são colocados exercícios

de resolução de inequações.

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As equações exponenciais são incluídas no tópico 79 do capítulo VII, iniciando-

se na página 140 e finalizando no início da página 143. A definição de equações

exponenciais em nada difere daquela apresentada pelos Irmãos Maristas. Sem nenhuma

classificação das equações, já são apresentados dois exemplos de resolução, sendo o

primeiro de uma equação simples e, o segundo, de maior grau de complexidade. As

respostas são expressas utilizando o conjunto verdade. Os autores ressaltam que “Não

existe um processo determinado para se resolver uma equação exponencial. Todavia,

examinaremos alguns tipos mais comuns”. Feita essa observação, apresentam três tipos

de resolução:

- Primeiro tipo: equações cujos membros são redutíveis a potências de uma

mesma base.

- Segundo tipo: equações cujos membros são potências de base distintas.

- Terceiro tipo: As equações são redutíveis a um dos tipos:𝑎𝑚𝑥 + 𝑏 = 0 ou

𝑎𝑚2𝑥 + 𝑏𝑚𝑥 + 𝑐 = 0.

Após cada tipo citado, há um exemplo resolvido. Os exercícios para o aluno são

colocados no tópico 81 em duas sequências. Na primeira, os exercícios são propostos de

forma a aplicar, ou não, as propriedades dos logaritmos. Na sequência 2, as equações

propostas exigem um manuseio algébrico maior. Há 39 exercícios e, em todos, o

enunciado exige a determinação do conjunto verdade.

À guisa de considerações finais

Através da análise dos conteúdos função e equação exponencial, nas duas obras

relatadas nesse trabalho, constatamos que:

1. Não há, nas obras, nenhuma citação de caráter histórico;

2. Embora a exponencial tenha diversas aplicações, nenhum dos autores insere

exemplos da utilização desse conteúdo em outras áreas do conhecimento;

3. A função exponencial não é contemplada no livro dos Irmãos Maristas;

4. No livro Matemática na Escola Renovada, a função exponencial é tratada com

grande rigor, dentro da estrutura da álgebra abstrata, utilizando a simbologia da

Teoria dos Conjuntos, que consta do capítulo I da mesma obra;

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5. As equações exponenciais estão incluídas nos dois livros analisados. A forma de

apresentação dos tópicos teóricos não diferiu muito de uma obra para a outra.

Contudo, os exercícios apresentados por Di Pierro Netto & Góes têm maior grau

de dificuldade.

A inserção do tópico funções exponenciais, através da legislação escolar, é

seguida por Di Pierro Netto & Góes, porém, em uma época em que as funções

exponenciais já estavam incluídas em outros livros didáticos.

As obras analisadas têm relevância no cenário da História da Educação

Matemática no Brasil pela adoção de ambas em diversas escolas no país. Os livros da

FTD tiveram ampla divulgação e circulação. Os volumes da Matemática na Escola

Renovada atingiram uma venda expressiva: dois milhões de exemplares em 1971, como

indica Hallewell (2005).

Muito das metodologias praticadas em sala de aula advieram dos livros didáticos

utilizados pelos professores. As marcas da Matemática Moderna podem ser verificadas

na Matemática na Escola Renovada, indicando a apropriação dos autores das ideias

veiculadas pelo movimento naquela época.

Apenas com essas duas obras, e com o recorte para os tópicos equação/função

exponencial, é possível constatar uma mudança na cultura escolar relativamente ao

ensino da Matemática, quando a Matemática Moderna é absorvida pelos autores dos

livros didáticos e a teoria de conjuntos se torna a base de quase todos os conteúdos.

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