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Estabelecimento do texto, vocabulário, notas, estudos e comentários por LETÍCIA MALARD LEITURA LITERÁRIA VOL.3 | ROMANCE Esaú e Jacó Machado de Assis 2ª edição revista

Esaú & Jacó - Machado de Assis

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Estabelecimento do texto, vocabulário, notas, estudos e comentários por Letícia MaLard

L e i t u r a L i t e r á r i a V o l . 3 | R o m a n c E

Esaú e Jacó

Machado de Assis

Esaú e Jacó

Machado de A

ssis

Letícia MaLard é doutora, pes-quisadora e ensaísta na área de Literatura Brasileira. Lecionou Por-tuguês, Literaturas de Língua Por-tuguesa e Teoria da Literatura na Escola Estadual Governador Milton Campos (Estadual Central), no Cen-tro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) e na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG).

www.autenticaeditora.com.br

Aparentemente, Esaú e Jacó se cons-trói sob o eixo da dualidade oposi-

tiva, a partir do título: gêmeos bíblicos que brigaram desde o ventre. Mas essa dualidade se estende por um sem-número de situações romanescas. No essencial, o que Machado discute em toda a narrativa é a preservação da vida em sua eterna luta contra o tempo e, consequentemente, contra a morte. Ele apresenta, em várias personagens, o que significa para elas o ato de viver, o qual consiste na capacidade ou na incapacidade de controlar o próprio destino, ou seja, de tomar decisões.

2ª edição revista

coLeção Leitura Literária:

Vol. 1 - Poemas Gregório de Matos

Vol. 2 - Primeiros cantosGonçalves dias

Vol. 3 - Esaú e JacóMachado de assis

Vol. 4 - Memórias póstumas de Brás CubasMachado de assis

Vol. 5 - Triste fim de Policarpo QuaresmaLima Barreto

O terceiro romance da cole-

ção Leitura Literária não poderia

ser mais adequado. Esaú e Jacó,

de Machado de Assis, enriquece e

abrilhanta ainda mais a coleção.

Clássico da última fase ma-

chadiana, a obra conta a história de Pedro e Paulo, gêmeos idênticos que brigam desde o útero e cres-

cem rivais em tudo, até, e princi-palmente, no amor da jovem Flora.

Apesar da simplicidade do enredo, a obra apresenta diversas características que se tornaram marca registrada de Machado de Assis e reafirmam sua inconfundível personalidade. Entre elas estão: o constante diálogo com o leitor, a não linearidade da narrativa, a intertex-

tualidade e a forte presença da iro-

nia e do tom fatalista e pessimista.Organizada e comentada pela

professora Letícia Malard, esta é

uma edição única. O vocabulário, disposto no rodapé de cada página, facilita o entendimento do texto. Para completar, como apêndices,

Wilton Cardoso faz uma significa-tiva reflexão sobre o conselheiro Aires, personagem importante e também narrador da história; e Marco Lucchesi traz uma bela

análise sobre a importância de Machado de Assis para a Litera-

tura Brasileira e sobre sua ligação

com a música, que percorre e dá

o tom de sua obra.

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Esaú e Jacó

Machado de Assis

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Estabelecimento do texto, vocabulário, notas, estudos e comentários por Letícia MaLard

Leitura Literária Vol.3 | RomancE

Esaú e Jacó

Machado de Assis

2ª edição revista

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Assis, Machado de, 1839-1908. Esaú e Jacó / Machado de Assis ; estabelecimento do texto, vocabulário, notas, estudos e comentários de Letícia Malard. -- 2. ed. -- Belo Horizonte : Autên-tica Editora, 2012. -- (Coleção Leitura Literária ; v. 3)

Bibliografia.ISBN 978-85-8658-315-5

1. Romance brasileiro I. Malard, Letícia.

II. Título. III. Série.

11-04067 CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático:1. Romances : Literatura brasileira 869.93

capa Diogo Droschi

editoração eletrônica

Conrado Esteves

revisão

Clarice Maia Scotti Rosa Maria Drumond Costa Rosemara Dias dos Santos

editora responsável

Rejane Dias

Copyright © 1998 Letícia MalardCopyright © 1998 Autêntica Editora

Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da editora.

AutêntICA EDItorA LtDA.

Belo HorizonteRua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários30140-071 . Belo Horizonte . MGTel: (55 31) 3222 6819

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São PauloAv. Paulista, 2073, Conjunto Nacional,Horsa I, 11º andar, Conj. 1101Cerqueira César . São Paulo . SP . 01311-940Tel.: (55 11) 3034 4468

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NotaUm escritor genialUma literatura muito diferente / Uma galeria de mulheres belas e falsas / Uma tribo de homens ingênuos e fracassadosMachado, autor de muitíssimas obras

AdvertênciaCousas futuras!Melhor de descer que de subirA esmola da felicidadeA missa do coupéHá contradições explicáveisMaternidadeGestaçãoNem casal, nem generalVista de palácioO juramentoUm caso único!Esse AiresA epígrafeA lição do discípulo“Teste David cum Sibylla”PaternalismoTudo o que restrinjoDe como vieram crescendoApenas duas. — Quarenta anos. — Terceira causaA joia Um ponto escuroAgora um saltoQuando tiverem barbasRobespierre e Luís XVID. MiguelA luta dos retratosDe uma reflexão intempestivaO resto é certoA pessoa mais moça

III

IIIIVV

VIVII

VIIIIXX

XIXII

XIIIXIVXV

XVIXVII

XVIIIXIXXX

XXIXXII

XXIIIXXIVXXV

XXVIXXVII

XXVIII XXIX

911

13 17

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A gente BatistaFloraO aposentado A solidão também cansaInexplicávelEm volta da moçaA discórdia não é tão feia como se pintaDesacordo no acordoChegada a propósitoUm gatuno“Recuerdos”Caso do burroUma hipóteseO discursoO salmãoMusa, canta...Entre um ato e outroS. Mateus, IV, 1-10TerpsícoreTabuleta velhaO tinteiro de EvaristoAqui presenteUm segredoDe confidênciasEnfim, só!“A mulher é a desolação do homem”O golpe Das encomendasMatar saudadesNoite de 14Manhã de 15Lendo Xenofonte“Pare no d.”Tabuleta novaPaz!Entre os filhosO basto e a espadilhaA noite inteiraDe manhãAo pianoDe uma conclusão errada

XXXXXXI

XXXIIXXXIIIXXXIVXXXV

XXXVIXXXVII

XXXVIIIXXXIX

XLXLI

XLIIXLIIIXLIVXLV

XLVIXLVII

XLVIIIXLIX

LLI

LIILIIILIVLV

LVI LVII

LVIIILIXLX

LXILXII

LXIIILXIVLXV

LXVILXVII

LXVIIILXIXLXX

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A comissãoO regressoUm El-DoradoA alusão do textoProvérbio erradoTalvez fosse a mesma!HospedagemVisita ao marechalFusão, difusão, confusão...Transfusão, enfimAi, duas almas...Em S. ClementeA grande noiteO velho segredoTrês constituiçõesAntes que me esqueçaEntre Aires e FloraNão, não, nãoO dragãoO ajusteNem só a verdade se deve às mãesSegredo acordadoNão ata nem desataGestos opostosO terceiroRetraimentoUm Cristo particularO médico AiresA título de ares novosDuas cabeçasO caso embrulhadoVisão pede meia sombraO quartoA respostaA realidadeAmbos quais?Estado de sítioVelhas cerimôniasAo pé da covaQue voaUm resumo de esperanças

LXXILXXII

LXXIIILXXIVLXXV

LXXVILXXVII

LXXVIIILXXIXLXXX

LXXXILXXXII

LXXXIIILXXXIVLXXXV

LXXXVILXXXVII

LXXXVIIILXXXIX

XCXCI

XCIIXCIIIXCIVXCV

XCVIXCVII

XCVIIIXCIX

CCI

CIICIIICIVCV

CVICVII

CVIIICIXCX

CXI

162163166168171172173175176178179180181185187188188190191192195198200202203206206207209210212213214217218220223223224226227

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O primeiro mêsUma Beatriz para dousConsultório e bancaTroca de opiniõesDe regressoPosse das cadeirasCousas passadas, cousas futurasQue anuncia os seguintesPenúltimoÚltimo

ApêndiceUma geral no romanceEsaú e Jacó: indecisões e previsõesOs dois conselheiros - Wilton CardosoMachadiana - Marco Lucchesi

ExercíciosObras consultadas

CXII CXIIICXIVCXVCXVICXVIICXVIIICXIXCXXCXXI

228230231232234235238239239241

245247251255

265269

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Nota

Neste terceiro volume da Coleção Leitura Literária, edita-se o romance Esaú e Jacó, tomando-se por base o texto estabelecido pela Comissão Machado de Assis, instituída pelo governo federal na década de 1950, para cuidar da publicação das obras do escri-tor. O mencionado texto foi editado uma única vez, em 1975, pela Editora Civilização Brasileira, em convênio com o então Instituto Nacional do Livro. Agradecemos penhoradamente ao Departa-mento Nacional do Livro, através de seu presidente, Prof. Elmer Barbosa, que nos autorizou a publicá-lo.

Para a presente edição, confrontamos o texto de Esaú e Jacó da mencionada edição com o da última publicação de Machado de Assis ainda em vida — o da Editora L. Garnier, Paris, dez. 1904. Dessa feita, acreditamos estar apresentando um texto fidedigno, que atenderá não somente aos estudantes, como também aos pro-fessores, especialistas e admiradores do grande escritor.

Como nos volumes anteriores da Coleção, este vem acompa-nhado de vocabulário, comentários, biobibliografia e estudos da professora e pesquisadora de Literatura Brasileira Letícia Malard. Em anexo, um ensaio de Wilton Cardoso — especialista em Ma-chado de Assis — sobre Aires, o narrador e personagem de Esaú e Jacó e do romance seguinte, último de Machado, Memorial de Aires, bem como textos de Marco Lucchesi sobre o escritor.

Com o objetivo de atingir a um público bem amplo, inclusive estrangeiro, Letícia Malard trabalha os significados de vocábulos do romance supostamente desconhecidos pela ampla maioria dos leitores, registrando explicações de referências e citações de textos e fatos que nele aparecem.

A fim de facilitar a leitura do romance e a consulta ao roda-pé, optou-se por elaborar este último dispondo os vocábulos na

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ordem em que aparecem na página, sem numeração dentro do texto de Esaú e Jacó. Os vocábulos ou expressões estão registrados tal como no dicionário. Cada rodapé refere-se apenas ao texto que se encontra na respectiva página.

Além disso, apresenta a listagem completa e cronológica, por gênero ou espécie, das obras de Machado de Assis publicadas em volume, em sua primeira edição. Algumas retificações na listagem foram feitas para esta 2ª edição.

O Editor.

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Um escritor genial

Machadinho. Assim os íntimos chamavam a um dos maiores, se não o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Por afeto, e talvez pela baixa estatura. Antes da fama, uma vida de muita luta. Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, no Morro do Livramento, em 1839. Neto de escravos alforriados, pelo lado paterno, e filho de portuguesa, pouco se conhece da sua infância e adolescência pobres. Daí a dificuldade de se construir sua biografia desse período. Segundo algumas fontes, Machado fazia o possível para esconder seu passado de imensas dificulda-des e discriminações, quando teria vendido doces na rua, feitos pela mãe, para ajudar a família. Assim, ajuntava-se a pobreza à negritude, além da gagueira e da epilepsia. Já famoso, foi vítima de piadas por ser gago, e fotografado em ataque epiléptico na rua.

Também não há registro do tipo de escolaridade que teve. Certo é que não fez curso superior, crê-se que nem mesmo o se-cundário completo. Foi sacristão na igreja da Lampadosa, fato que pode explicar seu interesse pela Bíblia — constantemente citada em suas obras — ainda que não tivesse crença religiosa na vida adulta. Aos 15 anos publicou o primeiro texto, passando a colaborar com frequência em várias publicações. No ano seguinte ingressou na Tipografia Nacional como aprendiz de tipógrafo, onde ficou só dois anos, pois lia muito mais do que trabalhava. Deixando esse emprego, passou por outros em áreas afins: revisor tipográfico, balconista de livraria e bibliotecário. Como se vê, o grande leitor já nasceu feito. Qualquer tempo disponível era para ler, ler e ler, e assim foi a vida inteira, fazendo dele um dos escritores mais eruditos de seu tempo.

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O escritor revelou-se de fato ao público em dois livros publi-cados: um — de peças teatrais, aos 24 anos; outro — de poemas, um ano depois. Sua primeira narrativa publicada foi uma tradução de Os Trabalhadores do Mar, do francês Victor Hugo. Em 1867, bastante conhecido como teatrólogo — tanto como autor quanto como tradutor, mas sem nenhum romance ou conto publicados em volume — recebeu uma das mais altas condecorações do Império — a de Cavaleiro da Ordem da Rosa. Mais tarde obteve a mesma condecoração, no grau de Oficial.

Aos 30 anos casou com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais, vivendo praticamente de escrever e fazer traduções. Aos 35 anos conseguiu um emprego definitivo, o de primeiro oficial do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, onde fez carreira e chegou a Diretor-Geral da Viação. Quatro anos após a proclamação da república, foi acusado de inimigo do regime e conspirador monarquista, acusação que caiu no vazio. Trechos do Esaú e Jacó dão a impressão de que o autor realmente não simpatizava com a república. Em 1896, fundou, com outras personalidades culturais, a Academia Brasileira de Letras, sendo eleito seu primeiro presidente. Em 1904, ano da publicação de Esaú e Jacó, o falecimento de Carolina causou grande impacto em sua vida. Em 1908, faleceu de arteriosclerose, segundo o atestado de óbito. Outras fontes mencionam câncer na língua. Não teve filhos.

Machado foi um afro-brasileiro de que o Brasil se orgulha. Suas obras são as mais admiradas, lidas, analisadas e antologiadas, além de constituir-se em objeto de trabalhos acadêmicos e de traduções para diversas línguas. Autor muitas vezes difícil, criou personagens e histórias que saltaram das páginas dos livros para o cotidiano de nossas vidas.

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Uma literatura muito diferenteUma galeria de mulheres belas e falsas

Uma tribo de homens ingênuos e fracassados

Machado soube, como nenhum outro escritor, transformar em literatura a sociedade de seu tempo, criticando-a através da-quilo que se chamou de “pessimismo irônico”: a vida da burguesia na Corte, as relações sociais marcadas por interesses financeiros e políticos, a deterioração das relações pessoais em decorrência do individualismo, as relações perigosas entre o público e o privado, a gangorra do destino, onde, enquanto uns sobem, outros des-cem. A essas questões subjaz uma série de episódios das tramas romanescas: amores impossíveis, adultérios, rasteiras econômicas, enganações políticas, mortes inexplicáveis, solidão e loucura.

Seu texto literário é completamente diferente dos demais. Dizer que seus romances podem dividir-se em duas fases — uma romântica e outra realista — não é muito apropriado atualmente. Pesquisas têm demonstrado que, ainda que se prefira estudá-lo pelas características dos estilos de época, muitas dificuldades serão encontradas, devido à impossibilidade de enquadrá-lo num estilo.

Machado não se preocupou em contar uma história de manei-ra linear, cheia de peripécias e detalhes factuais, como o leitor até então estava acostumado. O escritor procurou narrar ou descrever com idas e vindas, em capítulos curtos e curtíssimos, com títulos interessantes, refletindo sobre o escrito, inserindo escritores, tre-chos e cenas de outras obras que tivessem relação com o que estava escrevendo. E mais: dirige-se ao leitor e até mesmo a personagens, comenta com eles a própria narrativa que está construindo, diverte-se com as próprias figuras e situações ficcionais, ri ou “chora” com elas. Trabalha a metalinguagem no melhor sentido do termo.

Para quem gosta de ler romance pensando apenas nos fatos narrados, no mesmo padrão de milhares de outros, recheados de descrições e narrações detalhistas, aflito para saber o que vai

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acontecer em seguida, romance com personagens que falam pelos cotovelos, com diálogos tagarelas que enchem páginas e páginas — Machado não vai servir. Sua literatura é sofisticada no bom sentido: tem a medida exata das coisas e das palavras, exige um leitor calmo, reflexivo, que saiba ler as entrelinhas; um leitor sem pressa, que goste de viajar até à época e aos espaços em que se pas-sa a narrativa. Um leitor que procure compreendê-la e apreciá-la dentro dela mesma, antes de mais nada.

O leitor de Machado precisa ter a arte de curtir cada frase, gostar da literatura pela literatura. E, o mais importante: pensar a Literatura muito além do que uma simples história, um mero pas-satempo, um ajuntamento aleatório de palavras formando frases. A literatura de Machado exige de nós uma disponibilidade total para aceitar o texto como algo diferente, até mesmo difícil para o iniciante na arte e na técnica de ler. O escritor não apresenta as coisas prontas para o consumo, não é nenhum fast food literário, um quebra-galho para matar a fome. Seu texto é um almoço ou jantar preparado com amor, prazer, sabor e sobretudo arte. Um mundo a ser reconstruído pela sensibilidade de quem o lê, daquele que o devora mentalmente. Um mundo transculturado num tipo de língua literária originalíssimo, inigualável, inconfundível.

Veja, a título de exemplificação, nos mais importantes roman-ces machadianos, a média de sua visão do ser humano, muito de acordo com o desenvolvimento da ciência determinista e positivista de seu tempo, via de regra ironizada pelo escritor. Algumas das personagens centrais femininas têm como característica principal a grande beleza aliada à enorme falsidade e ao ócio, em contrapo-sição aos protagonistas masculinos — bem situados socialmente, enganáveis e, ao fim, derrotados.

Helena, do romance Helena, deixa que um rapaz a ame, ele pensando que é seu irmão, ela sabendo que não era, e, assim, obrigando-o a viver cheio de culpa. Capitu, de Dom Casmurro, tem olhos de ressaca do mar, olhos de cigana, oblíquos e dissimulados. Na visão do narrador e seu namorado desde criança, o marido Bentinho, ela o trai sem mais nem menos com Escobar, o maior amigo dele, e tem um filho do amigo. Virgília, de Memórias pós-tumas de Brás Cubas, não ama Brás em solteira, não quer casar com ele, mas passa a amá-lo depois de casada, traindo o marido.

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Sofia, de Quincas Borba, esposa de Cristiano, finge-se interessada pelo milionário Rubião — amigo do casal e que se apaixona por ela — enquanto Rubião financiava os negócios de Cristiano, que pegou todo o dinheiro do “amigo”. Sofia e Cristiano zombam da paixão de Rubião, quando estão a sós. Depois que o ingênuo fica pobre e louco, eles o abandonam, como se fosse o cão que dá título ao livro. Flora, de Esaú e Jacó, amada por ambos, passa a vida sem se decidir por um deles, fazendo-os sofrer por isso.

Há, em suas criaturas, certa filosofia de indiferença diante da incompreensão e da ingratidão, resumida num dito das Me-mórias póstumas de Brás Cubas: “Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens do que de um terceiro andar.”

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Machado, autor de muitíssimas obras

Romances, contos, poemas, peças de teatro, crônicas, crítica literária e teatral, prefácios, discursos, cartas, conferências, textos oficiais, traduções de diversos gêneros — um mundo de textos. Depois de sua morte, pesquisadores fuçaram jornais, revistas, arquivos, etc. e publicaram em novos livros o material disperso que foi encontrado. Houve pesquisador que até redistribuiu, por outros livros, textos do autor publicados em vida! Um dos pesqui-sadores sérios foi R. Magalhães Júnior, que recolheu os contos dos periódicos e os reuniu em volumes, na década de 1950. Convém ressaltar que Machado também usou muitos pseudônimos — fato que dificultou o achado de textos seus. Hoje, pode-se dizer que a quase totalidade do que ele escreveu já foi encontrada e publicada. Um problema importante ainda persiste: manuscritos de algumas obras famosas estão desaparecidos. Existem vários na Academia Brasileira de Letras.

De seus romances, todos publicados em vida, já foram feitas inúmeras edições e reimpressões, por inúmeras editoras. Entre-tanto, os textos utilizados por elas nem sempre são dignos de confiança, tal o número de erros que apresentam, no confronto com a edição principal, chamada princeps.

A seguir, mencionamos as publicações de suas obras em vo-lume, por gênero ou espécie literária e cronologicamente, com a data da primeira edição, deixando de fora traduções, bem como antologias — dado seu incontrolável número.

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Obras publicadas em vida

TEATRO: Desencantos (1861); Teatro: comédias “O Protocolo” e “O Caminho da Porta” (1863); Os Deuses de Casaca (1866); Tu, só, tu, Puro Amor (1881).

POESIA: Crisálidas (1864); Falenas (1870); Americanas (1875); Poesias Completas — incluindo os anteriores com algumas supressões e o novo conjunto, Ocidentais (1901).

ROMANCE: Ressurreição (1872); A Mão e a Luva (1874); Helena (1876); Iaiá Garcia (1878); Memórias póstumas de Brás Cubas (1881); Quincas Borba (1891); Dom Casmurro (1899); Esaú e Jacó (1904); Memorial de Aires (1908).

CONTO: Contos Fluminenses, primeiro volume (1870); Histórias da Meia-Noite (1873); Papéis Avulsos (1882); Histórias sem Data (1884); Várias Histórias (1896); Páginas Recolhidas (1899).

MISCELÂNEA: Relíquias de Casa Velha, primeiro volume (1906).

Obras póstumas

CRÍTICA: Crítica (1910); Crítica Literária (1937); Crítica Teatral (1937).

MISCELÂNEA: Outras Relíquias (1910); Páginas Recolhidas (1921); Novas Relíquias (1932); Contos e Crônicas (1958).

CONTO: Histórias Românticas (1937); Relíquias de Casa Velha, segundo volume (1937); Contos Fluminenses, segundo volume (1937); Páginas Esquecidas (1939); Contos Avulsos, (1956); Contos sem Data (1956); Contos Esparsos (1956); Contos Esquecidos (1956); Contos Recolhidos (1956); Terpsícore (1991).

TEATRO: Teatro (1910).

CRÔNICA: A Semana (1914); A Semana. 3 volumes. (1937); Crônicas. 4 volumes. (1937); Diálogos e Reflexões de um Relojoeiro (1956); Crônicas de Lélio (1958).

CORRESPONDÊNCIA: Correspondência (1932).

NOVELA: Casa Velha (1944).

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Machado de Assis

EsAú E jAcó

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Quando o conselheiro1 Aires faleceu, acharam-se-lhe na secre-tária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.

A razão desta designação especial não se compreendeu então nem depois. Sim, era o último dos sete cadernos, com a particu-laridade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos. Último por quê?

A hipótese de que o desejo do finado fosse imprimir este ca-derno em seguida aos outros, não é natural, salvo se queria obrigar a leitura dos seis, em que tratava de si, antes que lhe conhecessem esta outra história, escrita com um pensamento interior e único, através das páginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do homem que falava, mas a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando fizesse, valia a pena satisfazê-la? Ele não representou papel eminen-te neste mundo; percorreu a carreira diplomática, e aposentou-se.

conselheiro: título honorífico do Império. As personagens, confundindo o título com “aquele que dá conselhos”, sempre os pedem ao Aires, mesmo quando este lhes lembra que ele tem apenas um título concedido pelo imperador. Aqui está uma das marcas irônicas do romance.

Advertência

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Nos lazeres do ofício, escreveu o Memorial,2 que, aparado das pá-ginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis.3

Tal foi a razão de se publicar somente a narrativa. Quanto ao título, foram lembrados vários, em que o assunto se pudesse resu-mir, ab ovo,4 por exemplo, apesar do latim; venceu, porém, a ideia de lhe dar estes dous nomes que o próprio Aires citou uma vez:

ESAÚ E JACó5

Memorial: “memorial” — “escrito que relata fatos memoráveis, memórias”. No caso, é o nome que o Conselheiro Aires dá a seu diário. O último romance de Machado é Memorial de Aires, que parece vir anunciado aqui. Seria interessante verificar o que foi aproveitado desse diário no romance.

barca de Petrópolis: para ir a essa cidade fluminense, tomava-se o barco até Mauá, ao pé da serra, e, aí, pegava-se o trem.

ab ovo: expressão latina que significa “do início”; ao pé da letra — “do ovo”.ESAÚ E JACó: filhos gêmeos de Isaac e Rebeca, netos do patriarca bíblico Abraão.

Os gêmeos brigaram muito no ventre materno. Rebeca perguntou a Deus o porquê das brigas, e este respondeu que cada um deles iria dar origem a um povo: um povo será mais forte do que o outro, e o mais velho servirá ao mais novo. Passados anos, Esaú, o mais velho, vendeu a Jacó, por um prato de lentilhas, o seu direito de ser o primogênito, direito esse que, segundo ele, de nada lhe serviria porque iria morrer. (Gênesis, cap. III).

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