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O MITO DO DUPLO NAS OBRAS ESAÚ E JACÓ E DOIS IRMÃOS Adenilton Tavares de Aguiar 1 Resumo: Este artigo tem como objetivo fazer uma análise das obras Esaú e Jacó e Dois ir- mãos, com base na ideia de palimpsesto literário. Os palimpsestos consistiam em pergami- nhos cuja escrita havia sido apagada a fim de receber outro manuscrito. A partir do século 18, os processos de reconstituição se aperfeiçoaram, de modo que, com técnicas especiais, na maioria das vezes, ou até mesmo a olho desarmado, em alguns casos se podiam des- cobrir escritas anteriores. O produtor de palimpsestos raspava o pergaminho para regis- trar, por economia, novos textos. A discussão se dará à luz da temática do duplo, buscando mostrar a relação que há entre os romances analisados e a narrativa bíblica registrada na perícope que se encontra em Gênesis 25:20-34. Palavras-chave: Mito do duplo; Palimpsesto literário; Literatura comparada; Bíblia PALIMPSESTS IN THE WORKS OF ESAÚ E JACÓ AND DOIS IRMÃOS Abstract: The aim of this paper is to analyze the works Esau e Jaco and Dois irmãos, based on the idea of literary palimpsest. The palimpsests are scrolls which had been written off in order to receive another manuscript. From the eighteenth century on, recovery processes were im- proved, so that former writings could be discovered with special techniques, most of times, or even to a naked eye. The producer of palimpsests would scrape the parchment to register new texts. The discussion will have base itselfi on the theme of the double, intending to show the relationship between the novels analyzed and the biblical narrative found in Genesis 25:20-34. Keywords: Myth of the double; Literary palimpsest; Comparative literature; Bible O tema do duplo, de identidade e alteridade, de desdobramento do Eu, não é uma coisa colada ou externa: é a nossa realidade constitutiva, tendo em vista que sem alteridade não há unidade. Segundo Finkler (2000, p. 261), um dos mais completos estudos sobre essa temática é desenvolvido por Otto Rank (1914), através de O duplo, o qual vai buscar tanto em dados literários quanto em crenças populares as bases para uma, por assim dizer, “teoria do duplo”. A temática do duplo representa a constante busca do ser humano de compreender a si próprio. Richter (apud SILVA, 2000, p. 250) confirma esta ideia ao considerar que todas as histórias do duplo são de impasse, labirintos e se referem quase sempre à questão: “quem sou eu?”. 1 Mestre em Ciências da Religião pela Unicap (Universidade Católica do Pernambuco). Bacharel em Te- ologia pelo Salt/Iaene e licenciado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba. Professor de Línguas Bíblicas no Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, sede regional Iaene (Instituto Adventista de Ensino do Nordeste); Membro do Grupo de Pesquisa Cristianismo e Interpretações (Unicap); Editor da Revista Hermenêutica. E-mail: [email protected]

o mito do duplo nas obras Esaú E Jacó e dois irmãos

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o mito do duplo nas obras Esaú E Jacó e dois irmãos

adenilton tavares de aguiar1

Resumo: Este artigo tem como objetivo fazer uma análise das obras Esaú e Jacó e Dois ir-mãos, com base na ideia de palimpsesto literário. Os palimpsestos consistiam em pergami-nhos cuja escrita havia sido apagada a fim de receber outro manuscrito. A partir do século 18, os processos de reconstituição se aperfeiçoaram, de modo que, com técnicas especiais, na maioria das vezes, ou até mesmo a olho desarmado, em alguns casos se podiam des-cobrir escritas anteriores. O produtor de palimpsestos raspava o pergaminho para regis-trar, por economia, novos textos. A discussão se dará à luz da temática do duplo, buscando mostrar a relação que há entre os romances analisados e a narrativa bíblica registrada na perícope que se encontra em Gênesis 25:20-34.Palavras-chave: Mito do duplo; Palimpsesto literário; Literatura comparada; Bíblia

palimpsests in the works of Esaú E Jacó and dois irmãos

abstract: The aim of this paper is to analyze the works Esau e Jaco and Dois irmãos, based on the idea of literary palimpsest. The palimpsests are scrolls which had been written off in order to receive another manuscript. From the eighteenth century on, recovery processes were im-proved, so that former writings could be discovered with special techniques, most of times, or even to a naked eye. The producer of palimpsests would scrape the parchment to register new texts. The discussion will have base itselfi on the theme of the double, intending to show the relationship between the novels analyzed and the biblical narrative found in Genesis 25:20-34.Keywords: Myth of the double; Literary palimpsest; Comparative literature; Bible

O tema do duplo, de identidade e alteridade, de desdobramento do Eu, não é uma coisa colada ou externa: é a nossa realidade constitutiva, tendo em vista que sem alteridade não há unidade. Segundo Finkler (2000, p. 261), um dos mais completos estudos sobre essa temática é desenvolvido por Otto Rank (1914), através de O duplo, o qual vai buscar tanto em dados literários quanto em crenças populares as bases para uma, por assim dizer, “teoria do duplo”. A temática do duplo representa a constante busca do ser humano de compreender a si próprio. Richter (apud SILVA, 2000, p. 250) confirma esta ideia ao considerar que todas as histórias do duplo são de impasse, labirintos e se referem quase sempre à questão: “quem sou eu?”.

1 Mestre em Ciências da Religião pela Unicap (Universidade Católica do Pernambuco). Bacharel em Te-ologia pelo Salt/Iaene e licenciado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba. Professor de Línguas Bíblicas no Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, sede regional Iaene (Instituto Adventista de Ensino do Nordeste); Membro do Grupo de Pesquisa Cristianismo e Interpretações (Unicap); Editor da Revista Hermenêutica. E-mail: [email protected]

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O duplo está no campo da literatura fantástica, que é definida por Todorov (apud LAMAS, 2000) como a produção de um acontecimento aparentemente sobrenatural e estranho, que não pode ser explicado pelas leis de nosso mundo familiar, daí o seu ca-ráter ficcional, e tem sido abordado pelos mais diversos autores: de Machado de Assis a Miltom Hatoum — com parada obrigatória, obviamente, em Clarice Lispector; de Platão a Virgínia Woolf, passando, é claro, por Goethe, Dostoievski, Kafka, entre tantos outros que formam o cânone universal.

A noção de duplicidade do sujeito está presente na Filosofia, através da ideia de que tudo o que vemos é o desdobramento de um mundo que não vemos, de uma realidade que é representada de forma imperfeita pelo real imediato. Na Religião, a noção do duplo está presente na crença da existência de uma alma que sobrevive à morte do corpo, a qual é concebida pelas tradições religiosas em geral. Na Literatura, o duplo pode apresentar-se sob diversas formas. Seja através da sombra, que acompanha o indivíduo, mas não faz parte dele; através do retrato, o fragmento de uma imagem exterior ao ser humano, sendo ele próprio; através da imagem refletida no espelho, em que o duplo passa a habitar o mesmo “espaço do homem”; através do sono, em que o “Eu, sob outra forma, prossegue a obra de existência” (MELLO, 2000, p. 118). O desdobramento do eu pode, ainda, apresentar-se sob a forma de irmãos — gêmeos ou não. A literatura apresenta alguns exemplos clássicos de duplos repre-sentados por irmãos: Caim e Abel, Esaú e Jacó, entre outros. As obras analisadas neste tra-balho privilegiam este tipo de duplo. Observa-se que tanto Machado de Assis, na obra Esaú e Jacó, quanto Milton Hatoum, na obra Dois Irmãos, constroem suas narrativas a partir da narrativa bíblica dos conflitos que os personagens Esaú e Jacó vivem entre si (Gn 25:20-34).

palimpsesto literárioSegundo Massaud Moisés (1978), os palimpsestos consistiam em pergaminhos

cuja escrita havia sido apagada a fim de receber outro manuscrito. Referindo-se à obra Esaú e Jacó, a ideia de recriação é comprovada a partir do próprio título, uma vez que ele remete à narrativa bíblica de Esaú e Jacó. No trecho a seguir, é possível perceber uma clara alusão ao relato bíblico:

E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer […] Natividade, que não tivera a gestação sossegada, respondeu que efetivamente sentira movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e insônias […] Mas então que era? Brigaram por quê? […] Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga (ASSIS, 1999, p. 17-18).

Machado de Assis se reporta ao ponto da narrativa bíblica em que Esaú e Jacó, filhos de Isaque e Rebeca, lutam no ventre de sua mãe, a qual, buscando entender as razões do conflito incipiente, busca Yahweh a fim de obter uma resposta, que lhe chega nas seguintes palavras: “Duas nações há no teu ventre, dois povos, nascidos de ti, se dividirão: um povo será mais forte que o outro, e o mais velho servirá ao mais moço” (Gn 25:23).

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No romance Esaú e Jacó, a posição de Yahweh é ocupada por uma cabocla, uma mu-lher que se diz ter habilidades divinatórias. Natividade, a mãe dos gêmeos, vai até ela a fim de conhecer a razão das brigas entre os irmãos, ainda em seu ventre: “E não foi sem grande es-panto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer” (ASSIS, 1999, p. 17). Outra referência à narrativa bíblica ajuda a ratificar a ideia de palimpsesto: “Esaú e Jacó brigaram no seio materno, isso é verdade […] há ainda o caso de quererem ambos a primogenitura” (ASSIS, 1999, p. 39), que relembra a luta dos personagens bíblicos Esaú e Jacó pelas bênçãos relacionadas à primogenitura, a qual garantia alguns privilégios especiais. Já no romance Dois Irmãos, alguns elementos ajudam a perceber a ideia de recriação.

Halim se assustou ao ver os dois dedos da parteira anunciando gêmeos. Nasceram em casa, e Omar uns poucos minutos depois. O caçula. O que adoeceu muito nos primeiros meses de vida. E também um pouco mais escuro e cabeludo que o outro […] Quando os meninos nasceram, Halim passou dois meses sem poder tocar no corpo de Zana. Ele me contou como sofreu: achava um absurdo o período de resguardo, e mais absurda ainda a devoção louca da esposa pelo Caçula (HATOUM, 2000, p. 66-68, grifo nosso).

Observa-se que Omar possui alguns pontos em comum com o Jacó bíblico: ele também é o caçula e é o preferido de sua mãe, como se observa no fragmento destacado acima. Por sua vez, Yaqub é o preferido do pai, à semelhança de Esaú: “E para isso, dizia o pai, orgulhoso, ‘não é preciso língua, só cabeça. Yaqub tem de sobra o que falta no outro’”. A passagem bíblica confirma as asserções: “Isaque amava a Esaú, porque comia de sua caça; mas Rebeca amava a Jacó” (Gn 25:28).

A Bíblia ainda destaca a cor de Esaú: “Saiu o primeiro, ruivo, todo ele como um vestido de pelo; e chamaram-lhe Esaú”. Se a cor de Esaú merece destaque, naturalmente se pode inferir que Jacó tinha a pele mais escura que a dele. Esta é também uma caracte-rística de Omar — ser mais escuro que o irmão —, como se observou na citação anterior.

Por fim, o próprio significado do nome Jacó, para a cultura judaica, “o usurpador”, faz eco às características e ao comportamento de Omar (personagem de Milton Hatoum) e a Pedro (personagem de Machado de Assis). Jacó usurpa o direito de primogenitura e recebe a bênção que era destinada ao irmão; para tanto, ele faz-se passar por Esaú, usur-pando a sua imagem, o que funciona como uma espécie de apagamento do outro. Nas obras em análise, Omar e Pedro invadem o espaço de seus irmãos, Yaqub e Paulo, respec-tivamente, o que se confirmará nas seções a seguir.

o duplo na obra dois irmãosMello (2000), no ensaio As faces do duplo na literatura, comenta que,

na criação literária, a cisão do Eu pode apresentar-se sob múltiplas formas, desdobrando-se em sósias, irmãos — gêmeos ou não […]. Os duplos mais antigos apresentam-se geralmente sob a forma de gêmeos ou irmãos próximos.

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No romance de Milton Hatoum, merecem destaque as semelhanças entre os irmãos Yaqub e Omar, no que diz respeito aos aspectos físicos: “um rapaz tão vistoso e alto quanto o outro filho, o Caçula. Tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmos olhos castanhos e graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, a mesmíssima altura” (HATOUM, 2000, p. 16, grifo nosso). A noção de semelhança é intensificada pelo narrador no fragmento a seguir: “usavam um fato de linho e uma gravatinha-borboleta; saíam iguais, com o mesmo penteado e o mesmo aro-ma de essências do Pará borrifado na roupa” (HATOUM, 2000, p. 25, grifo nosso).

Segundo Bravo (apud LAMAS, 2000, p. 236), “doppelgänger/duplo”2, termo consa-grado pelo movimento do romantismo alemão, significa “aquele que caminha ao lado”,

“companheiro de estrada”. Yaqub e Omar, embora apresentem traços psicológicos bas-tante diversos, como se verá mais adiante, são apresentados, em alguns momentos, dentro desta perspectiva do romantismo alemão: “os gêmeos dormiam em quartos semelhantes e contíguos, com a mesma mobília; recebiam a mesma mesada, as mesmas moedas, e ambos estudavam no colégio dos padres” (LAMAS, 2000, p. 36).

Não é de admirar que “juntos, pareciam a mesma pessoa”. Embora o enredo seja construído de modo a apresentar as semelhanças físicas entre os irmãos, esta questão é periférica, visto que “a maior parte dos estudos sobre o duplo no século 20 privilegia o aspecto psicológico” (MELLO, 2000, p. 122). Para Durand, as manifestações do duplo afloram, em geral, com aspectos de contraste. Bravo (apud LAMAS, 2000, p. 236, 237), por sua vez, explicita o caráter de ser idêntico e diferente, até mesmo o oposto do ori-ginal e, ainda, Jung (apud SILVA, 2000) vai dizer que a tensão entre os contrários é um

“processo natural”, obrigatório. Percebe-se, a partir do pensamento desses autores, que, embora a noção do duplo esteja bastante presente na semelhança, é no contraste que ela desponta com maior intensidade.

No romance Dois irmãos, este contraste é percebido no comportamento dos per-sonagens principais. Yaqub, o mais velho, é apresentado diversas vezes como sendo um rapaz tímido e demasiadamente taciturno: “calava quando podia, e, às vezes, quando não devia […] os pais tiveram de conviver com um filho silencioso […] era um tímido, e tal-vez por isso passasse por covarde […] era o mais silencioso da casa e da rua, reticente ao extremo” (HATOUM, 2000, p. 16, 28, 30, 31).

Quando Yaqub chegou do Líbano, para onde fora enviado em face do objetivo dos pais de evitar as brigas constantes dos irmãos, Rânia, sua irmã, “queria notar algu-ma coisa que o diferenciasse do Caçula. Olhou-o de perto, de muito perto, de vários ângulos; percebeu que a maior diferença estava no silêncio do irmão recém-chegado” (HATOUM, 2000, p. 21, grifo nosso). Este silêncio de Yaqub contrasta com a vivaci-dade de Omar. Em uma fotografia na parede, que Yaqub observa após chegar a casa, estão os dois irmãos sentados no tronco de uma árvore: “ambos riam: o Caçula, com escárnio, os braços soltos no ar; Yaqub, um riso incontido” (HATOUM, 2000, p. 21). Caracterizando o irmão Caçula, o narrador coloca: “exagerava as audácias juvenis: ga-

2 Segundo a lenda alemã, é um monstro ou ser fantástico que tem o dom de representar uma cópia idêntica de uma pessoa que ele escolhe ou que passa a acompanhar, como dando uma ideia de que cada pessoa tem o seu próprio.

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zeava lições de latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para a noite.” As diferenças prosseguem em outras situações:

Quando chovia, os dois trepavam na seringueira do quintal da casa, e o Caçula trepava mais alto, se arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio da árvore, escondido na folhagem, agarrado ao galho mais grosso, tremendo de medo, temendo perder o equilíbrio […] Não, fôlego ele não tinha para acompanhar o irmão. Nem coragem (HATOUM, 2000, p. 17).

Percebe-se claramente que Omar é o oposto de Yaqub, o estranho, o outro, o Ca-çula3, o duplo. E é na vivacidade de Omar que ele se encontra como sujeito:

Sentia raiva, de si próprio e do outro, quando via o braço do Caçula enroscando no pescoço de um curumim do cortiço que havia nos fundos da casa. Sentia raiva de sua impotência e tremia de medo, acovardado, ao ver o Caçula desafiar três ou quatro moleques parrudos, aguentar o cerco e os socos deles e revidar com fúria e palavrões. Yaqub se escondia, mas não deixava de admirar a coragem de Omar. Queria brigar como ele (HATOUM, 2000, p. 17-18).

Omar, portanto, possui as características que Yaqub queria ter. Finkler (2000, p. 269) explica:

o outro nos surpreende, nos arranca de nós mesmos e nos lança no estranho: outro corpo, outros olhos, outro ser. É justo nesse corpo que não nos pertence e nessa vida irremediavelmente alheia, agora não mais o outro, agora não mais dois, que podemos ser nós mesmos.

Omar é descrito ainda como possuindo habilidades de acrobata: “O Caçula tomava impulso, pulava, rodopiava no ar como um acrobata e caía de pé […] Yaqub não era esse acrobata, não lambuzava as mãos com cerol, mas bem que gostava de brincar e pular nos bailes de Carnaval no sobrado de Sultana Benemou” (HATOUM, 2000, p. 18, grifo nos-so). Mais uma vez, observa-se que o narrador diferencia o comportamento dos gêmeos, evidenciando os ciúmes de Yaqub em face do fato de que ele vê no outro as partes não realizadas de si mesmo. Jung (apud MELLO, 2000) analisa que “o desdobramento pode ser interpretado como uma parte não realizada ou excluída de si pelo eu: eis a razão do caráter de proximidade e antagonismo das faces complementares”.

Outro ponto para análise diz respeito ao conflito entre o bem e o mal. Yaqub é apresentado como o bom estudante, que mais tarde ingressaria na Escola Politécnica, em primeiro lugar. Posteriormente, ingressaria à universidade para tornar-se engenheiro. Ade-

3 No romance, o termo “Caçula” sempre aparece com inicial maiúscula, como se todo o conceito ou ideia de duplicidade caísse sobre o termo.

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mais, era bem organizado, constituindo família e vivendo sua própria vida, sem incomodar os pais; antes, ajudou-os consideravelmente, como se pode perceber na fala: “Uma boa amostra da indústria e do progresso de São Paulo estacionou diante da casa […] Tudo o que era novo, mesmo de uso limitado, impressionava. Yaqub surpreendeu ainda mais: mandou dinheiro para restaurar a casa e pintar a loja” (HATOUM, 2000, p. 129). Como se vê, Yaqub é apresentado como sendo o lado bom — o bom estudante, o bom filho, o bom profissional, bem sucedido: “A imagem que faziam dele era a de um ser perfeito, ou de alguém que buscava a perfeição” (HATOUM, 2000, p. 111). Por outro lado, Omar é caracterizado como mau estudante:

gazeava as lições de latim […] Foi reprovado dois anos seguidos no colégio dos padres […] Na verdade, o Caçula não terminou nada, jamais frequentaria uma faculdade, desprezava um diploma universitário, ignorava tudo o que não lhe desse um prazer intenso, fortíssimo, de caçador de aventuras sem fim (HATOUM, 2000, p. 32, 108).

Ademais, vivia uma vida devassa, sem compromissos, como se pode perceber na fala do narrador: “Num dia em que o Caçula passou a tarde toda de cueca deitado na rede, o pai o cutucou e disse, com a voz abafada: ‘Não tens vergonha de viver assim? Vais passar a vida nessa rede imunda, com essa cara?’” (HATOUM, 2000, p. 33). Mais tarde, veio a envolver-se com um contrabandista: “Wyckham,4 o grandalhão de braços longuís-simos, rosto arredondado cheio de pintas vermelhas, era como Zana veio a descobrir, um impostor, um senhor contrabandista […] Omar trabalhava com Wyckham, era o seu braço direito” (HATOUM, 2000, p. 138, grifo nosso). A libertinagem e ociosidade de Omar são destacadas pelo narrador em diversas partes do romance:

O corpo participava de um jogo entre a inércia da ressaca e a euforia da farra noturna […] às vezes vinha tão chumbado que perdia o equilíbrio e tombava, anulado […] gandaiava como nunca […] Dessa vez tinha sido forte, uma gonorreia galopante, como se dizia. […] No liceu5 havia vestígios do Caçula: ex-namoradas, histórias de algazarra, de cenas heróicas, duelos, desafios. Nas paredes do banheiro havia inscrição de sua autoria […] Nem São Paulo corrigiu o Omar! Aliás, nenhum santo nem cidade vai dar jeito nele (HATOUM, 2000, p. 61, 88, 91, 107, 122, 208).

Para Adalbert Von Chamisso (apud BACKES, 2000), escritor do romantismo ale-mão, “o dualismo é desenvolvido com a aparição do espírito bom, do lado direito, e o espírito mau, do lado esquerdo”. No romance, temos o espírito bom representado pelo

4 Personagem secundário que é apresentado inicialmente como um inglês que se dizia gerente de um banco estrangeiro.5 Colégio onde estudou após sua expulsão do colégio dos padres.

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personagem Yaqub, e o espírito mau representado pelo seu duplo, Omar. Embora os gêmeos apresentem várias semelhanças, como já vimos, Yaqub é caracterizado como um sujeito de boa índole, o que se contrapõe aos maus hábitos adquiridos e cultivados pelo irmão, formando os polos negativo e positivo, que se repelem e que se atraem. A atração do duplo deixa marcas irreversíveis na vida de Yaqub:

Depois, o barulho de cadeiras atiradas no chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estocada certeira, rápida e furiosa do Caçula. O silêncio durou uns segundos. E então o grito de pânico de Lívia ao olhar o rosto rasgado de Yaqub […] A cicatriz já começava a crescer no rosto de Yaqub (HATOUM, 2000, p. 28).

Mais tarde, esta cicatriz ajudaria a distinguir os irmãos: “Do cabelo cacheado de Ya-qub despontava uma pequena mecha cinzenta, marca de nascença, mas o que realmente os distinguia era a cicatriz pálida e em meia-lua na face esquerda de Yaqub” (HATOUM, 2000, p. 24). A agressão física marcaria outros encontros entre os irmãos: “e viu Yaqub acuado, ajo-elhado debaixo da escada, ouvindo as ameaças do irmão: que era um metido, um puxa-saco dos padres […] Omar deu um salto, ergueu a rede e começou a socar Yaqub no rosto, nas costas, no corpo todo” (HATOUM, 2000, p. 154, 233). Assim, o duplo se manifesta também no romance pela tentativa de apagar a existência do outro: “Omar sempre esteve por ali, ex-pandindo sua presença na casa para apagar a existência de Yaqub” (HATOUM, 2000, p. 62).

A revelação das características negativas de Omar, no entanto, lança luz sobre tra-ços latentes na personalidade de Yaqub. Segundo Pélicier (apud MELLO, 2000), a vida do sujeito depende da vida do duplo, e os sentimentos de um têm ressonância no outro, mas não são obrigatoriamente os mesmos. Os sentimentos de Omar em relação a Yaqub certamente tiveram ressonância nos sentimentos deste último em relação a ele, como se pode perceber no fragmento a seguir:

Aos poucos, ela [Rânia] foi descobrindo que o irmão distante havia calculado o momento exato para agir. Yaqub esperou a mãe morrer. […] Ela me disse, alterada, que ia escrever uma carta a Yaqub. “Ele traiu minha mãe, calculou tudo e nos enganou”. Foi corajosa: […] escreveu a Yaqub o que ninguém ousara dizer. Lembrou-lhe que a vingança é mais patética do que o perdão. […] Escreveu que ele, Yaqub, o ressentido, o rejeitado, era também o mais bruto, o mais violento, e por isso podia ser julgado. […] Yaqub calculou que o silêncio seria mais eficaz do que uma resposta escrita (HATOUM, 2000, p. 257, 261, grifo nosso).

Em um ponto do romance, Yaqub destaca-se por ser um bom aluno de Matemáti-ca, um engenheiro e um bom calculista. Entretanto, o que inicialmente o enaltecia como sujeito, agora revela o seu lado desconhecido (ele calcula tudo), e, além disso, engana. O engano foi uma característica atribuída a Omar, no início do romance. Segundo Mello (2000), através da noção do duplo, toda a problemática da identidade pessoal e das rela-ções que nós temos com as imagens parentais, mas também com o nosso eu profundo,

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nossa obscuridade e nossos medos se acham reunidas. Percebe-se, destarte, que o desdo-bramento revela o lado desconhecido do ser humano. Portanto, nos conhecemos melhor quando nos encontramos com o nosso duplo, uma vez que o encontro com o outro é, nesse sentido, um encontro com nosso próprio eu.

A figura feminina é importante para a compreensão do duplo no romance. A per-sonagem Lívia é objeto de disputa entre os irmãos: “Lívia sorria para um, depois para o outro, e dessa vez foi o Caçula quem ficou enciumado, disse Domingas6. O Caçula fez cara feia, tirou a gravatinha-borboleta, desabotoou a gola e arregaçou as mangas da camisa” (HATOUM, 2000, p. 26). Mello (2000) afirma que, em muitos mitos, o homem é interpre-tado como um portador de uma dupla natureza, masculina e feminina ao mesmo tempo. A ideia da divisão, como consequência de castigo divino, e a da busca da outra metade, com aspectos benéficos e maléficos, coexistem na crença da perda da unidade original. O homem, portanto, busca a sua outra metade — a mulher, a fim de que na união biológica se dê o desdobramento do eu. Desse modo, a disputa pelo amor de Lívia acentua o anta-gonismo existente entre Yaqub e Omar. A própria figura do pai dos gêmeos sublinha esse antagonismo. O narrador nos informa que “o que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos” (MELLO, 2000, p. 264). Mello (2000) esclarece que o duplo pode simbolizar, também, a rivalidade projetada na figura do pai. A rivalidade de Omar e Yaqub é, consequentemente, a rivalidade de Omar e Halim:

Depois da morte de Halim, a casa começou a desmoronar. Omar foi ao enterro, mas permaneceu distante, tão distante que o irmão, mesmo ausente, parecia mais próximo da despedida do pai […] Omar, ao ver o choro da mãe, se afastou do túmulo do pai […] Ele tinha exagerado com o pai morto, a quem dissera coisas de arrepiar. Humilhar o esposo morto, isso Zana não admitia. Na madrugada em que Halim morreu, ela escutara calada o monólogo absurdo do Caçula e não se esquecera do dedo em riste na cara do finado, nem da voz insolente, das palavras infames contra alguém que não podia responder nem com um gesto, nem com um olhar (HATOUM, 2000, p. 220-221).

Talvez a repulsa do Caçula ao pai fosse apenas aparente. Talvez a preferência aberta de seu pai a Yaqub fosse a causa de sua aversão. Talvez sua indignação dissesse respeito ao fato de que o eixo que lhe poderia manter em pé se havia rompido e, agora desvanecidas suas esperanças, percebia distante a realização dos seus sonhos mais acalentados, e que lhe restava o pesadelo. O narrador encerra esse ponto, afirmando que “alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos” (HATOUM, 2000, p. 64).

em busca da compreensão do duplo na obra Esaú e JacóEsta seção do artigo analisa o mito do duplo na obra Esaú e Jacó, de Machado de As-

sis. A influência desta obra sobre o romance Dois irmãos de Milton Hatoum é atestada pelo

6 Domingas é agregada da casa e mãe do personagem-narrador.

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próprio autor.7 A temática do duplo está presente em outras produções machadianas. No conto O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana, segundo Mello (2000), Machado de Assis explora a teoria da duplicidade da alma e vale-se do motivo da imagem não refletida no espelho. No romance Dom Casmurro, temos o mito do duplo representado através da morte espiritual do personagem Bentinho, que conta a sua história após a morte física das outras personagens — D. Glória, José Dias, Ezequiel de Sousa Escobar e Ezequiel Santiago. O Bentinho ingênuo já não existe mais — morre para dar lugar ao Dom Casmurro. O ato de contar a vida quando já está perto da morte, revela o drama vivido pelo personagem, uma crise existencial que remete a um drama maior: Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou?

No romance Esaú e Jacó, o mito do duplo é retratado através dos personagens Paulo e Pedro8, e é facilmente percebido através das alucinações da personagem Flora:

não obstante virem os gêmeos separados e sós, cada um no seu coupé, cismou que os ouvia falar; primeira parte da alucinação. Segunda parte: as duas vozes confundiam-se, de tão iguais que eram, e acabaram sendo uma só. Afinal, a imaginação fez dos dois moços uma pessoa única […] Flora ouviu mais de uma vez as duas vozes que se fundiam na mesma voz e mesma criatura (ASSIS, 1999, p. 138, grifo nosso).

Os fragmentos acima apontam para uma face muito importante do duplo — a semelhan-ça física entre os irmãos. As expressões mesma voz e mesma criatura deixam clara a ideia de que eram estes os elementos que causavam confusão à personagem Flora. O narrador acrescenta:

Tinham o mesmo peso e cresciam por igual medida. A mudança ia-se fazendo por um só teor. O rosto comprido, cabelos castanhos, dedos finos e tais que, cruzados os da mão direita de um com os da esquerda de outro, não se podia saber que eram de duas pessoas. Viriam a ter gênio diferente […] Começaram a sorrir no mesmo dia. O mesmo dia os viu batizar […] Aos sete anos eram duas obras-primas, ou antes uma só em dois volumes […] Os próprios cavalos eram iguaizinhos, quase gêmeos, e batiam as patas com o mesmo ritmo, a mesma força e a mesma graça (ASSIS, 1999, p. 29, 44, 59, grifo nosso).

Percebe-se que, além das semelhanças, o duplo é representado pelas coinci-dências que envolvem os irmãos. Isto pode ser observado a partir da repetição dos termos mesmo e seu heterogenérico mesma, dando uma noção de similaridade nos fragmentos dados acima: “mesma voz, mesma criatura, mesmo peso, sorrir no mesmo dia, mesmo dia os viu batizar, mesmo ritmo, mesma força e mesma graça”, além das expressões “pessoa única, igual medida, um só teor”. Portanto, o aspecto que vai distinguir um irmão do outro está no nível da personalidade: “viriam a ter gênio diferente”, como se pode perceber no trecho “sabe que os meus dois gêmeos não

7 Tal informação pode ver vista no seguinte site: <http://bit.ly/jFGP2S>. Acesso em: 21 fev. 2012.8 Irmãos gêmeos que brigam desde o ventre materno, e, ao longo do romance, disputam o amor de Flora, que forma um triângulo amoroso com os gêmeos.

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combinavam em nada, ou só em pouco, por mais esforços que eu tenha feito para os trazer a certa harmonia” (ASSIS, 1999, p. 74, grifo nosso). A diferença de gênio entre os irmãos gera uma série de conflitos e cria um clima de rivalidade:

Cresceram um para o outro. Natividade [mãe dos gêmeos] acudiu prestamente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros […] já o fato de se chamarem Pedro e Paulo indicava alguma rivalidade, porque esses dois apóstolos brigaram também […] as paixões embrionárias trabalhavam por viver, crescer, romper, tais quais ela sentira os dois no próprio seio, durante a gestação (ASSIS, 1999, p. 41, 45, 56).

Alguns pontos em comum são facilmente identificáveis nas obras em análise. Não obstante, se na obra Dois irmãos identificamos rapidamente o duplo, em face da menção frequente do termo “Caçula”, referindo-se a Omar. Na obra Esaú e Jacó, a identificação se dará de forma mais sutil. Algumas particularidades e semelhan-ças entre os personagens Yaqub e Paulo, de um lado, e Pedro e Omar, de outro, permitem compreender Pedro como o duplo de Paulo: “Paulo vivia mais tempo ausente […] tinha talento […] tinha uma qualidade a mais, a nota aventurosa do caráter, e esta feição não lhe desprazia […] tudo isso cumpriria a alma de Paulo, faminta de perfeição” (ASSIS, 1999, p. 68, 179, 143, grifo nosso).

As semelhanças entre Paulo e Yaqub podem ser percebidas facilmente. Yaqub tam-bém viveu mais tempo ausente, visto que passou alguns anos no Líbano: “Não era mais o mesmo menino, mas o rapaz que passara cinco dos seus dezoito anos no sul do Líbano” (HATOUM, 2000, p. 13), e que, posteriormente, foi morar em São Paulo: “uma carta de Yaqub, pontual, chegava de São Paulo no fim de cada mês” (HATOUM, 2000, p. 59). O talento de Yaqub é indiscutível, uma vez que ele se torna professor de matemática e enge-nheiro, como vimos anteriormente. Ele também é apresentado como alguém que buscava a perfeição: “A imagem que faziam dele era a de um ser perfeito, ou de alguém que bus-cava a perfeição” (HATOUM, 2000, p. 111). Em alguns momentos se poderia confundir Paulo com Yaqub, de modo que este quase poderia substituir aquele no romance macha-diano e vice-versa. Por outro lado, o personagem Pedro também se confunde com Omar:

A verdade é que Pedro tinha os seus companheiros de escola, os namoros de rua e de aventura, os partidos de teatro, os passeios à Tijuca e outros arrebaldes […] Natividade, que em tudo via a inimizade dos gêmeos, suspeitou que o intuito de Pedro fosse justamente comprometer Paulo (ASSIS, 1999, p. 69, 79, grifo nosso).

A citação acima relembra eventos da vida de Omar e seu comportamento licencio-so: “No liceu havia vestígios do Caçula: ex-namoradas, histórias de algazarra, de cenas heróicas, duelos, desafios” (HATOUM, 2000, p. 107). A suspeita de Natividade de que Pedro quisesse comprometer o irmão, faz ecoar as pretensões de Omar em relação a Ya-qub: “Omar sempre esteve por ali, expandindo sua presença na casa para apagar a exis-tência de Yaqub” (HATOUM, 2000, p. 62). Tais paralelos nos permitem compreender

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Pedro como o duplo de Paulo. A presença do elemento feminino na obra Esaú e Jacó tam-bém lança luz sobre a compreensão do duplo no romance. Para Platão (apud MELLO, 2000), o amor é o resultado da divisão do ser humano em seu estado de perfeição.

[Esta] divisão leva ao enfraquecimento e a uma constante busca da sua metade faltante. Daí é que se teria originado o que chamamos amor, ou seja, o que as pessoas sentem umas pelas outras. Esse sentimento tende a recompor a antiga natureza, procurando de dois fazer um só, e assim restaurar a antiga perfeição.

O amor de Flora pelos dois irmãos é explicado a partir desta perspectiva: a tenta-tiva de fazer, dos dois, um só. Daí a sua indecisão em relação a eles, o que se comprova a partir dos fragmentos a seguir:

Flora ria com ambos, sem rejeitar nem aceitar especialmente nenhum […] Ora bem, acabas de ver como Flora recebia o irmão de Pedro; tal qual recebia o irmão de Paulo […] Mais de uma vez, Pedro deu com ela fitando Paulo, e gemeu com a preferência, mas também ele era o preferido depois, e achava compensação (ASSIS, 1999, p. 68, 106, 108).

Observa-se, portanto, que Flora não amava um dos irmãos, mas a “imagem per-feita” que ela gostaria de formar a partir da unificação de Pedro e Paulo. Tal imagem se intensificava em suas alucinações da noite:

o sono vinha, e o sonho completava a vigília. Flora passeava então pelo braço do mesmo garção amado, Paulo se não Pedro, e ambos iam admirar estrelas e montanhas, ou então o mar, que suspirava ou tempestuava, e as flores e as ruínas. Não era raro ficarem os dois a sós (ASSIS, 1999, p. 140, grifo nosso).

Afinal, os dois quem? Flora e Pedro? Flora e Paulo? Paulo e Pedro? E ambos? Ambos quais?9 O discurso é ambíguo. A ambiguidade está presente nos próprios símbolos que são mencionados no fragmento: estrelas e montanhas ou mar que suspirava ou tem-pestuava. Afinal, o mar suspirava? Tempestuava? Além disso, flores e ruínas dão ideia de coisas contrárias: “flores” está para paraíso o que “ruínas” está para lugar funesto. São ideias antagônicas, e, consequentemente, ambíguas. A ambiguidade gera um dualismo da personagem Flora, que se confirma na fala do narrador:

Se eu consultasse o meu gosto, nem os dois rapazes fariam um só mancebo, nem a moça seria uma só donzela. Corrigiria a natureza desdobrando Flora. Não podendo ser assim, consinto na unificação de Pedro e Paulo (ASSIS, 1999, p. 139).

9 Este é o título do capítulo CVI. Neste capítulo, Flora, próxima da morte, recebe uma visita dos ir-mãos. Não entram no quarto, mas são anunciados pela mãe que diz a Flora que ambos os filhos querem entrar. Ela, delirando, pergunta: “ambos quais?”.

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A indecisão de Flora lembra a angústia vivenciada por um personagem de Dostoievski, no romance Os irmãos Karamazov, que é colocada por Vieira (2010, p. 24) nos seguintes termos:

Ivan Karamazov, personagem mais intelectualizado de Os irmãos Karamazov (1880), experimenta também o abismo da divisão que marca mais uma vez a separação entre o agir e o pensar e, principalmente, entre a possibilidade de escolher e a responsabilidade árdua e insuportável que, da liberdade, derivam.

Se de um lado se dá o desdobramento de Flora, e do outro a unificação de Pedro e Paulo, temos, aqui, uma inversão curiosa: a unificação de Pedro e Paulo como o duplo de Flora.

Tudo se mistura, à meia claridade; tal seria a causa da fusão dos vultos, que de dois que eram ficaram um só. Flora, não tendo visto sair nenhum dos gêmeos, mal podia crer que formassem agora uma só pessoa, mas acabou crendo, mormente depois que esta única pessoa solitária parecia completá-la interiormente, melhor que nenhuma das outras em separado (ASSIS, 1999, p. 144-145, grifo nosso).

Uma ideia semelhante pode ser encontrada em Dois irmãos. Numa festa de aniver-sário de Rânia, irmã dos gêmeos, seus pretendentes eram desprezados um a um, por não atenderem às expectativas da moça. O narrador explica a situação dizendo que “talvez Rânia quisesse pegar um daqueles pamonhas e dizer-lhe: observa o meu irmão Omar; agora olha bem para a fotografia do meu querido Yaqub. Mistura os dois, e da mistura sairá o meu noivo” (HATOUM, 2000, p. 98).

Compreender a unificação de Pedro e Paulo como o duplo de Flora, explica a longa participação da personagem no romance, em detrimento da personagem Lívia, que faz o triângulo amoroso em Dois irmãos, e que possui uma participação muito curta. Quando Flora sai de cena em face de sua morte, faltam apenas quinze capítulos (são cento e vinte e um no total) para terminar o romance. Entretanto, ela é mencionada até o penúltimo, o que mostra a sua importância para o enredo.

Vale acrescentar que Machado de Assis (1999, p. 140) faz menção a Goethe, poeta alemão, autor da obra intitulada Fausto. Nesta obra, uma personagem homônima ao título vende a sua alma ao demônio, que é representado pelo personagem Mefistófeles. Backes (2000), no ensaio “Elementos para a compreensão de Mefistófeles como duplo de Fausto. Grande sertão: veredas e um passo adiante na duplicidade fáustica”, trabalha o desdobramento do Eu fáustico em diversos autores que recriaram o personagem. Enfim, Mello (2000) co-menta que “o imaginário do duplo enseja a liberação de medos e angústias reprimidos, dá vazão a sonhos de habitar espaços fantásticos, escapando à rotina sufocante do cotidiano”.

Considerações finaisOs romances analisados trazem à tona o caráter conflituoso das relações fami-

liares. Na medida em que as narrativas se desdobram, observa-se que os conflitos vi-

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venciados pelos personagens, sobretudo os pares de irmãos Pedro e Paulo, em Esaú e Jacó, e Yaqub e Omar, em Dois irmãos, estendem-se para as relações extrafamiliares. Tais conflitos provocam um despedaçamento do eu, instaurando uma crise existencial que, para ser corrigida, faz o indivíduo buscar o apagamento do outro, sem se dar conta de que desse outro depende sua própria identidade.

A narrativa bíblica sobre o conflito vivenciado pelos irmãos Esaú e Jacó e sua disputa pelo direito à primogenitura, registrada no livro de Gênesis, oferece o background para os romances de Machado de Assis e Milton Hatoum. Entretanto, apesar das simi-laridades, a narrativa bíblica se difere das obras desses escritores por um elemento nelas ausente: o encontro de Jacó com Deus (Gn 32) precede não apenas o encontro de Jacó com Esaú, mas também a reconciliação (Gn 33).

Em dois momentos no livro de Gênesis é questionada a identidade de Jacó. Na primeira vez, ele a nega, dizendo ser “Esaú”: “Tu és mesmo o meu filho Esaú? Respondeu ele: eu o sou” (Gn 27:24); na segunda, ele a assume: “Qual é o teu nome? E Jacó respon-deu: Jacó” (Gn 32:27). É como se o autor de Gênesis quisesse dizer que o encontro de Jacó com Deus provoca um encontro de Jacó consigo mesmo. E, por esta razão, agora ele estava pronto para encontrar-se com o outro.

Embora cada indivíduo procure uma maneira sua de escapar ao vazio existencial deixado pelas circunstâncias da vida, a fala de Lispector (1997, p. 165) se apresenta como uma representação do lugar onde se pode encontrar o objeto que pode preenchê-lo:

A flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. A Via-Láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele extraímos […]. se nós sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos de Deus o que cabe em nós. […] sentimos falta de nossa grandeza impossível — minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido. […] Quanto mais precisarmos, mais Deus teremos.

A temática do duplo ilustra o labirinto vivenciado pelos personagens de Machado de Assis e Milton Hatoum. Tal labirinto os aprisiona dentro de si mesmos, uma vez que perderam a noção de sua identidade. Por sua vez, a narrativa bíblica de Esaú e Jacó eviden-cia que o apagamento do eu se dá a partir do distanciamento de Deus, e que um retorno a ele redunda na reintegração da identidade humana.

referências

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