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ESCAPARATE

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1. RECENSÕES

Francis FUKUYAMA, A Grande Ruptura. A natureza humana e a reconstituição da ordem social (trad. do inglês), Lisboa, Quetzal Editores, 2000, 493 p.

Francis Fukuyama tornou-se um autor relativamente conhecido, mesmo em Portugal, após a publicação, em 1992, da sua obra, aliás polémica, intitulada O fim da História e o último homem (traduzida para português pela Gradiva, nesse mesmo ano). Três anos depois, o autor deu a lume um outro estudo, denominado Confiança. Valores sociais e criação de prosperidade (cuja tradução portuguesa, da mesma editora, data de 1996). Mais recentemente (1999), Fukuyama apresentou o seu terceiro livro da série, sob o título A Grande Ruptura. A natureza humana e a reconstituição da ordem social (Tradução da Quetzal Editores, Lisboa, 2000).

Nesses três livros, pretendeu analisar aquilo que considera como os “três componentes irredutíveis da modernidade”, respectivamente o estado, a sociedade civil e a família (Expresso/Economia, 24.06.2000). Acrescente-se que, de entre eles, o primeiro e o terceiro foram os que despertaram mais atenção. Aquele, devido ao próprio tema e à controvérsia a ele associada. É que, mais que do “fim da História”, do que efectivamente se trata é do “fim de uma certa história” ou, por outras palavras, do “fim de um determinado ciclo histórico”. Este ter-se-á caracterizado, essencialmente, pela evolução e pelo triunfo das democracias liberais.

Quanto ao último, A Grande Ruptura ? além da pertinência da temática e da forma como Fukuyama a estuda ? , também contribuiu para a sua divulgação o facto de o autor, pouco tempo após o aparecimento da tradução portuguesa, nas livrarias, ter participado, em Lisboa, na conferência Globalização, Desenvolvimento e Equidade, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian (Junho de 2000). O evento foi largamente noticiado por vários órgãos da comunicação social, alguns dos quais aproveitaram o ensejo para o entrevistar.

Concorde-se ou não com as teses do autor ? e as opiniões estão longe de ser unânimes ? , o certo é que elas não nos podem deixar indiferentes nem, tão-pouco, deverão ser esquecidas. Com efeito, os fenómenos analisados, segundo uma metodologia eminentemente interdisciplinar, com o recurso a

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áreas do saber tão diversas como a filosofia e a psicologia, a sociologia e a demografia, a ética e a economia, entre outras, dizem respeito a todos nós, merecendo, pelo menos, ser equacionados, discutidos ou mesmo refutados. Entretanto, foquemos, mais de perto, a última das obras escritas pelo autor.

A Grande Ruptura. A natureza humana e a reconstituição da ordem social (Lisboa, Quetzal, 2000) encontra-se estruturada em três partes, assim intituladas: “A Grande Ruptura”, “Da genealogia da moral” e “A Grande Reconstrução”. O assunto é explanado ao longo de dezasseis tópicos. Ao texto segue-se um apêndice (com gráficos e fontes estatísticas), notas e duas dezenas de páginas com a bibliografia.

Na primeira parte, Fukuyama ocupa-se da Grande Ruptura, entendendo por esta o declínio, verificado de meados dos anos 1960 aos inícios da década de 1990, dos valores sociais prevalecentes a partir de meados do século XIX. Em seu entender, esse declínio ? que se traduziu, em última análise, por uma diminuição do “capital social” ? é bem legível nas seguintes estatísticas: criminalidade, crianças “sem pais”, baixa de rendimento escolar, redução das oportunidades e quebra de confiança.

Os fenómenos sociais acabados de referir, entre vários outros, ocorreram praticamente em todos os países desenvolvidos, pelo menos do Mundo Ocidental. Devido à sua extensão e, inclusive, à sua intensidade, podemos interrogar-nos, como fez o autor, acerca das respectivas causas. Estas não deverão ser procuradas num único país, num certo regime político ou mesmo numa determinada cultura, visto terem-se verificado em contextos muito diversos. Assim, Fukuyama começa por constatar a coincidência temporal entre: por um lado, o enfraquecimento dos laços sociais e dos valores comuns que são o cimento das sociedades ocidentais; por outro, o facto de esse enfraquecimento se ter manifestado, precisamente, quando as economias dessas sociedades faziam a transição da era industrial para a era da informação.

Baseando-se nesse pressuposto, o autor acrescenta: «o postulado deste livro é que os dois factores estão de facto intimamente ligados, e que juntamente com todas as bênçãos que decorrem de uma economia mais complexa, baseada na informação, algumas coisas más aconteceram também na nossa vida social e moral. As ligações foram tecnológicas, económicas e culturais» (p. 20). Concretizando, aponta: a transformação da natureza do trabalho (substituição do esforço físico pelo esforço intelectual) e a entrada de milhões de mulheres no mercado de trabalho, minando as premissas tradicionais em que a família se baseava; inovações na tecnologia médica, como a pílula anticoncepcional e o acréscimo da longevidade, reduzindo o papel da reprodução e da família na vida das pessoas; a cultura do

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individualismo intensivo, ao enfraquecer os laços que mantinham unidas famílias, comunidades e pessoas.

Refira-se, no entanto, que a mensagem do autor não é de pessimismo. Com efeito, entende tratar-se de mais um ciclo, algo semelhante a outros já registados pela história. Um deles teve lugar na primeira metade do século XIX, em resultado da primeira revolução industrial, durante o qual se deu uma acentuada degradação moral e social. Todavia, na segunda metade da mesma centúria, a tendência alterou-se e a sociedade recompôs-se da turbulência vivida anteriormente.

Por outro lado, recordando a conhecida expressão de Schumpeter, de “destruição criadora”, o autor afirma: «a ordem social, uma vez perturbada, tende a refazer-se, e são inúmeras as indicações de que é o que está actualmente a acontecer. Podemos ter esperança de que assim seja por uma razão muito simples: os seres humanos são por natureza criaturas sociais, cujos impulsos e instintos mais básicos os levam a criar regras morais que os liguem às comunidades. São também por natureza racionais, e a sua racionalidade permite-lhes criar modos de cooperarem uns com os outros» (p. 21).

Sublinha o valor das regras, tanto para a esquerda como para a direita. Destaca, igualmente, a importância do capital social, além da do capital físico e do capital humano. Segundo o autor, «o capital social pode ser definido simplesmente como um conjunto de valores informais ou normas partilhadas pelos membros de um grupo e que permite a cooperação entre essas pessoas» (p. 36). Acrescenta que o capital deve incluir virtudes como dizer a verdade, cumprir obrigações e praticar a reciprocidade. Recordando a tese de Max Weber ? em A ética protestante e o espírito do capitalismo ? , Fukuyama afirma que o «capital social produz riqueza e tem consequentemente um valor económico para a economia nacional» (p.33).

Ao focar a “genealogia da moral” (2.ª parte), o autor analisa o papel das redes, das relações familiares e dos raios de confiança. Por exemplo, ao mencionar o significado das relações familiares na cultura de empresa, volta a chamar a atenção para o caso chinês (o que também já fizera na sua obra Confiança), do seguinte modo: «As empresas chinesas são geralmente familiares e formam alianças baseadas não em qualquer espécie de critério relacionado com a maximização dos lucros, mas em relações familiares ou de amizade pessoal» (p.75). O “familismo”, que na China se encontra enraizado na ideologia de Confúcio, no mundo católico tem raízes culturais na tradição latina da família e na importância que o catolicismo lhe atribui.

Seguir-se-á, à Grande Ruptura, a Grande Reconstrução? É este o tópico da terceira parte da obra em análise. O autor não só admite que sim como julga ter-se iniciado já a inversão da tendência, pelo menos em alguns

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países. Os valores decrescentes de certas estatísticas (taxas de criminalidade e de divórcios, entre outras), desde os inícios dos anos 90, parecem comprová-lo. Em certo sentido, a própria sobrevivência da sociedade depende do reforço e da revalorização do capital social.

Daí o relativo optimismo do autor, ao escrever: «as modernas economias capitalistas, pós-industrias, vão gerar uma constante procura de capital social. A longo prazo, deverão ser igualmente capazes de produzi-lo em quantidades suficientes para responder à procura. Podemos estar razoavelmente certos disto porque sabemos que os agentes privados tenderão, na prossecução dos seus próprios objectivos, a gerar capital social e as virtudes que lhe estão associadas, como honestidade, fiabilidade e reciprocidade» (p. 371).

A crescente importância que, ultimamente, tem vindo a ser atribuída às culturas de empresa não é estranha à dita reabilitação e procura de capital social. Além disso, também a tendência para o aumento dos níveis de educação favorecerá a acumulação de capital social, dada a relação positiva existente entre os dois fenómenos (p. 376).

Ao concluir o seu trabalho, Fukuyama admite haver dois processos a funcionar em paralelo, que descreve pelas seguintes palavras: a) «na esfera política e económica, a História parece ser progressiva e direccional, e no final do século XX culminou na democracia liberal com a única alternativa viável para as sociedades tecnologicamente avançadas»; b) «na esfera social e moral, porém, parece ser cíclica, com acréscimos e decréscimos de ordem social no decurso de várias gerações. Nada garante que haverá voltas para cima neste ciclo. A nossa única razão para ter esperança é a poderosíssima capacidade humana de reconstituir a ordem social» (p. 410).

A obra cujo conteúdo se acaba de sintetizar é de leitura aliciante e nela se focam alguns dos problemas mais complexos e pertinentes das sociedades contemporâneas. O autor é professor na George Mason University na Virgínia, Estados Unidos da América do Norte. É doutorado em Ciência Política (Universidade de Harvard), tendo colaborado em várias revistas, além de ser autor das obras já anteriormente referenciadas. A sua análise, baseada embora numa bibliografia relativamente extensa, constitui uma síntese interpretativa com originalidade, de fenómenos bem conhecidos, mas sobre os quais nem sempre reflectimos.

Naturalmente que também é possível fazer-lhe alguns reparos, dos quais destaco certos aspectos que me parecem mais evidentes. Em primeiro lugar, uma focalização excessiva nas transformações operadas na sociedade norte- -americana, apesar de também se referir com alguma frequência a várias outras sociedades do mundo tecnologicamente desenvolvido.

As ilações tiradas pelo autor, sobre a coincidência temporal e a íntima relação, entre a Grande Ruptura e a transição da sociedade industrial para a

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sociedade pós-industrial ou da informação, perdem algum do seu carácter supostamente universal, se tivermos presentes alguns exemplos de países asiáticos, aliás invocados na própria obra. Assim, relativamente a um dos índices mais utilizados ? o da criminalidade ? , o autor declara: «os países asiáticos de alto rendimento, como o Japão au Singapura, apresentam níveis decrescentes de crime violento neste período [anos 60-inícios dos anos 90]» (p. 58). Assim sendo, há que dar mais relevo à cultura e à própria história, dado que estas podem dar origem a consideráveis diferenças, como é o caso.

Por outro lado, também a hipótese da diferença entre a linearidade da história política e social e o carácter cíclico da história social e moral, embora reveladora de uma certa criatividade, por enquanto não passa de mera hipótese, a carecer de posteriores e mais aprofundadas investigações. Aliás o próprio autor revela alguma prudência, ao admitir que a última “parece ser cíclica”.

Antes de concluir, chama-se a atenção para alguns aspectos da tradução e, sobretudo, para as diversas gralhas que pululam no texto. Quanto à tradução, parece-me que, em vez de “destruição criativa” (p. 21), de “teorista” (p. 25) e de “grandes armazéns”, no Japão (p. 200), se adequariam melhor, respectivamente, “destruição criadora”, teórico” e “centros comerciais”. Quanto às gralhas, anotem-se as cometidas nas seguintes palavras que aqui se grafam de forma correcta: “evidentemente” (p. 77), “diversas” (p. 112), “individuais” (p. 118), “numa” (p. 138), “diante de”(p. 160), “se verem” (p. 184), “convicção” (p. 186) e “criação”(p. 374).

José Amado Mendes

Antony GIDDENS, O mundo na era da globalização (trad. do inglês por Saul Barata), Lisboa, Presença, 1999, 92 p.

Giddens reúne neste livro um conjunto de conferências feitas na BBC no ano de 1999, transmitidas pela rádio 4 e pelo World Service da televisão britânica. Realça-se a importância de Giddens ter sido o último conferencista do séc. XX escolhido pela Organização para tratar temas tão actuais, que se prendem directa ou indirectamente com o fenómeno da globalização. Cada conferência se queda por um assunto específico que revela estarmos, segundo o autor, a viver num mundo em processo de mudança acelerada, apresentando a ideia de um “mundo desvairado” (p. 11). Fenómeno que se

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faz sentir por todo o mundo, não estando confinado a nenhuma zona do globo (p. 15).

Assim, o mérito deste livro reside, naturalmente, no valor da sua contribuição para o fenómeno da globalização, por um lado e, por outro, porque são escassos os estudos escritos e traduzidos em português sobre este assunto da globalização. Esta obra revela a importância que o tópico da globalização tem conquistado neste fim do milénio e nos diversos sectores das sociedades actuais. Não é um grande livro, mas é um livro interessante, que consta de um prefácio, introdução e um conjunto de cinco conferências: globalização, risco, tradição, família e democracia, apresentando uma bibliografia específica para cada tema, com um resumo de cada obra, o que pode ajudar quem pretender aprofundar os temas em questão. O livro fala- -nos de algumas das mais importantes análises sobre áreas da convivência multinacional e multicultural nesta era da globalização.

No prefácio, o autor procura explicar o que pretendeu com este conjunto de conferências, onde foram gravadas, agradece a todas as pessoas que contribuíram para o debate que as conferências provocaram na Internet, bem como a todas as que estiveram envolvidas nas produções e nos êxitos alcançados.

Na introdução, o autor revela as preocupações do impacte da globalização na ciência, na tecnologia e no pensamento racionalista, realçando que o mundo, em que se vive, não se parece com aquele previsto pelo Iluminismo. Isto porque, em vez de estar cada vez mais dominado por nós, parece descontrolado, um mundo virado do avesso, que afecta a vida corrente e determina o que se passa à escala planetária. É por isso que o livro inclui não só os aspectos da globalização da economia, mas considera também os aspectos do risco, da tradição, da família e da democracia porque todos eles afectam não só os mercados, mas também as maneiras de viver e as culturas das regiões do mundo.

Na primeira parte Giddens desenvolve o conceito de globalização e chama a pertinência desta palavra, no mundo em transformação em que vivemos, afectando tudo, ou quase tudo o que fazemos, não podendo ser ignorada por ninguém que pretenda progredir. Diz o autor: “Nenhum guru da gestão a dispensa. Nenhum discurso político fica completo sem se referir a ela” (p. 20). O autor evidencia duas teorias contraditórias em relação ao conceito de globalização: uma que não aceita de modo nenhum o conceito e que ele define como cépticos; e, a outra, que considera a globalização um facto concreto e a que chama radicais. Para os cépticos a globalização não passa de um mito, quaisquer que sejam os benefícios, preocupações ou dificuldades, a economia global não é assim tão diferente da que existia em períodos antecedentes. O mundo continua o mesmo, está assim desde há

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muitos anos. Os governos continuam a ter capacidade para controlar a vida económica e manter intactos os benefícios do Estado-providência. Para estes teóricos, a globalização faz parte da perspectiva dos adeptos da liberalização do comércio que querem destruir os sistemas de segurança social e diminuir os gastos públicos.

Pelo contrário, para os radicais a globalização é um facto bem concreto, cujos efeitos se fazem sentir por toda a parte. O mercado global está muito mais desenvolvido do que estava em épocas recentes, nos anos 60 e 70, e é indiferente às fronteiras nacionais. As nações perderam uma boa parte da soberania que detinham e os políticos perderam muita da sua capacidade de influenciar os acontecimentos (p. 20). O autor coloca-se ao lado dos radicais, argumentando e defendendo que: “o volume do comércio externo de hoje é superior ao de qualquer período anterior e abrange uma gama muito mais extensa de bens e serviços”. O autor afirma que a maior diferença regista-se a nível financeiro e nos movimentos de capitais (idem). Assim, a obra reflecte sem hesitar que a globalização, tal como estamos a vivê-la, a muitos respeitos é algo revolucionário. Sem dúvida, esta é a parte mais original e polémica da obra: “[...] nem os cépticos nem os radicais compreenderam inteiramente o que é a globalização ou quais são as suas implicações em relação às nossas vidas. Para ambos os grupos trata-se, antes de tudo, de um fenómeno de natureza económica. O que é um erro. A globalização é política, tecnológica e cultural, além de económica” (p. 22). Efectivamente, a globalização não evolui de forma imparcial, é um erro pensar-se que a globalização só diz respeito aos grandes sistemas financeiros mundiais, pois influencia aspectos íntimos e pessoais das nossas vidas, onde nem sempre as suas consequências são totalmente benignas. A globalização “mexe” com critérios de justiça, a nível mundial e social.

Na segunda parte, onde analisa o risco, o autor demonstra como certos eventos naturais podem impor mudanças que são difíceis de controlar, mas que são nefastas para o desenvolvimento industrial global e apresenta, como exemplo, a alteração do clima com estragos no habitat terrestre. Permanece a dúvida e a incerteza sobre muitas outras mudanças que teremos de suportar e que envolvem riscos imprevisíveis no planeta. Daí que, segundo o autor, a noção de risco seja inseparável das ideias de probabilidade e de incerteza. O que ele distingue de perigo. O risco refere-se a perigos calculados em função de possibilidades futuras. O risco é a própria fonte de energia criadora de riqueza numa economia moderna e empenhada na mudança apostada em determinar o seu próprio futuro. Para Giddens, a ideia de risco sempre andou associada à modernidade, mas actualmente assume nova importância. Se o risco era considerado um meio de regular o futuro, de o normalizar e de o colocar sob o nosso domínio, as coisas hoje não se passam assim. Os

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esforços para controlar o futuro voltam-se contra nós, forçando cada vez mais a procura de novas formas de viver com a incerteza. O autor apresenta alguns exemplos como sejam: a criação de seguros, as aventuras que as pessoas têm, riscos ambientais, como os relacionados com o aquecimento global, o acidente na central nuclear de Chernobyl, cujas consequências, a longo prazo, ninguém conhece. Passa-se o mesmo em relação à BSE, da qual, de momento, não se tem a certeza acerca das influencias na saúde dos seres humanos. Mas, o risco, além de afectar a Natureza, influencia outras áreas da nossa vida, por exemplo o casamento, a família, instituições que sofrem transformações profundas. Argumenta o autor que: « à medida que o risco se expande, torna-se mais “arriscado”» (p. 39). Viver nesta época global significa enfrentar novos factores de risco.

A tradição é abordada na terceira parte, a qual abrange a identidade dos povos como, por exemplo, os Escoceses, onde os homens vestem o kilt, cada clã usa o tartan com as suas cores próprias. O crescimento do fundamentalismo, a expansão dos meios de comunicação de massas, o choque entre as diversas religiões, a expansão das seitas, os rituais, as repetições não são fenómenos nacionais, mas sim transnacionais. Mas, devido ao impacte da globalização, as instituições públicas como também a vida corrente estão a começar a libertar-se do grande peso da tradição, mas esta é necessária e vai persistir sempre, pois é ela que dá continuidade e forma à vida. No entanto, à medida que a tradição se afunda à escala mundial, a própria base da nossa identidade – a consciência de quem somos – altera-se. O autor, embora considerando a tradição como condicionante na vida das pessoas, manifesta um certo desagrado pela pouca atenção que se lhe tem dado.

A família é tratada na quarta parte, sublinham-se as transformações operadas entre indivíduos e grupos, em consequência das “funções” que a família desempenha na organização social. Os valores que decorrem em muitos países, acerca dos valores da família, parecem ter muito pouco a ver com as influências da globalização. Mas têm. Os sistemas tradicionais da família estão a transformar-se, bem como sujeitos a tensões em diversas partes do mundo, embora esta transformação avance a velocidade desigual, conforme as regiões e as culturas. Existe um debate aberto em quase todos os países do mundo, excepto ainda nalguns, onde a repressão dos governos autoritários não o permite. A igualdade sexual, a regulação da sexualidade e o futuro da família sofreram modificações básicas, nos países do Ocidente, onde o fenómeno da globalização atinge proporções não observadas nas regiões onde a família tradicional permanece quase intacta. Existe a dúvida se as mudanças verificadas no Ocidente se vão tornar cada vez mais globais. O autor pensa que sim, até porque as preocupações sobre o estado da família são extensíveis a qualquer zona do mundo.

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Por seu turno, na quinta e última parte, o autor analisa todo o movimento da democracia e a influência pelo progresso das comunicações a nível global, a partir da Segunda Guerra Mundial. De momento, já há poucos países do mundo que se não digam democráticos, mas as pressões sobre eles são muitas. A democracia é um sistema que envolve competição efectiva entre partidos que querem ocupar posições de poder (p. 70). Estes sistemas espalharam-se desde meados dos anos 70, tendo o seu número mais que duplicado. As mudanças começaram nos países da Europa do Sul, com a queda dos regimes militares da Grécia, Espanha e Portugal. Depois expandiu-se na década de 1980 para as Américas Central e do Sul. O mesmo continua em todos os continentes, envolvendo a Europa do Leste e partes da ex-União Soviética, tendo-se seguido a África. Na Ásia, com alguns avanços e recuos, a democratização tem vindo a ganhar terreno desde o princípio dos anos 70, em países como a Coreia do Sul, Taiwan, Filipinas, Bangladesh, Tailândia e Mongólia (p. 71). Mas, também, por todo o mundo surgem interrogações, todos dizem que a democracia é o melhor sistema. Todos sabemos que a democracia se implanta por toda a parte, mas existe uma enorme desilusão quanto aos processos democráticos. Parece um paradoxo, se dizemos que é o melhor sistema de todos, por que será que os níveis de confiança nos políticos tem vindo a decrescer? Há cada vez menos pessoas a votar; os jovens desinteressam-se da política. Ora a globalização está por detrás desta expansão da democracia, põe a nu os limites das estruturas democráticas, que têm de se democratizar ainda mais de forma a responder às exigências da era global. Para Giddens, o que está em questão é o aprofundamento da própria democracia, ao que ele chama democratizar a democracia (p. 74). As preocupações não podem ser apenas locais, a política não pode ser corrupta, os líderes políticos não podem defender interesses pessoais. Isto explica, em parte, o desinteresse que se manifesta pela política. A democracia tem também de ser transnacional. O autor argumenta que é preciso democratizar acima, bem como abaixo, do nível da nação. Uma era de globalização exige respostas globais, isto aplica-se tanto na política como em qualquer outro domínio (p. 75) e de formas diferentes nos diversos países, dependendo da carga histórica de cada um deles. A democracia está interligada com as mudanças estruturais da sociedade (p. 80).

Mas, um trabalho destes tem também as suas limitações, acabando por constituir um estímulo à apreciação crítica de alguns dos seus argumentos. Penso que uma apresentação mais sistemática e aprofundada poderia conferir a esta obra uma maior consistência analítica da tão importante análise sobre a globalização. Para o leitor que conhece tais argumentos, certas interpretações podem parecer dispensáveis, até tendo em conta o público-alvo da BBC, um público seleccionado. Embora seja interessante esta análise de Giddens, o

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autor recorre a muitos exemplos para ilustrar mais a globalização no Ocidente e menos a de outros continentes, pelo que seria importante reforçar alguns aspectos positivos e negativos provocados pela globalização. Não é propriamente um livro teórico-científico, possui muitas ideias pessoais com pouca fundamentação. Isto compreende-se, em parte, pelo facto desta obra ser um conjunto de conferências que, como sabemos têm características e estrutura diferentes, mas que, se fossem mais desenvolvidas e documentadas, isso tornaria a obra mais reconhecida. Estas e outras críticas que podem ser feitas ao livro de Giddens não devem, no entanto, obscurecer os seus méritos. A obra contém reflexões interessantes para a compreensão da globalização e, como já referimos, trata-se de uma obra actual com valor acrescentado para a globalização. Em suma, beneficia também de uma escrita de leitura fácil. Estamos perante uma obra interessante e recomenda-se, tanto aos iniciados no tema, como aos que pretendem melhorar os seus conhecimentos e que se preocupam pela globalização.

Maria Olívia Dias

Pierre-Noël GIRAUD, A Desigualdade do Mundo – A economia do Mundo Contemporâneo (trad. do francês), Lisboa, 1996. Terramar, 199 p.

Por que há pobres e ricos? Esta interrogação atemporal, que o autor considera ser, não uma, mas a questão essencial da economia, está longe de encontrar uma explicação convincente no quadro das diversas escolas de pensamento económico. Segundo ele, “?a?s grandes problemáticas económicas dos clássicos ? incluindo Marx – aos economistas contemporâneos – incluindo Keynes – não conseguem reflectir de forma satisfatória os grandes movimentos de desigualdade que se registaram no mundo, desde o século XVIII” (p. 11).

Pierre-Nöel Giraud, igualmente autor de outro trabalho publicado pela Terramar: A economia é coisa do diabo?, procura, ao longo das cerca de 200 páginas desta obra, alcançar este desiderato, analisando a evolução das desigualdades internas e externas, ou as denominadas desigualdades sociais e espaciais dos capitalismos, e reconstituindo as dinâmicas da economia do mundo que caracterizaram estes últimos dois séculos. A riqueza é, antes de tudo, relativa, e não absoluta: somos pobres ou ricos em comparação com outros, e a desigualdade é entendida apenas como a diferença que existe entre os homens na fruição dos bens materiais. Fiel, neste aspecto, a Fernand Braudel e a Paul Bairoch, Pierre-Nöel Giraud é um economista que não

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despreza nem a História, nem a filosofia política. Este autor propõe-se esclarecer “as relações existentes entre dinâmicas económicas e intervenções estatais” (p. 170), desde o “Antigo Regime pré-industrial”, a partir de noções, previamente definidas no I Capítulo, como são as de mobilidade, de território económico, de dinâmica nómada e sedentária, de crescimento e de capitalismos – capitalismos, como o autor gosta de afirmar, no plural, e não no singular.

Acontece que, no século XVIII, nas três grandes regiões mais populosas do mundo – a Europa, a Índia e a China –, a riqueza material, em média, era ainda da mesma ordem, naturalmente, no seu seio, a distância entre ricos e pobres era considerável. A emergência das desigualdades entre países, bem como a redução das desigualdades sociais no seio dos países, terão sido movimentos caracterizadores da desigualdade do mundo, entre o século XVIII e aos anos 70 do século XX. Contudo, nas duas últimas décadas, esse movimento alterou-se com clara inversão de forças no âmbito das desigualdades internas e externas. “Verificou-se não só uma recuperação extremamente rápida, por parte dos novos países industrializados: ?Coreia do Sul, Formosa ou Taiwan, Singapura, etc…? mas também – facto saliente deste final de século – pelos imensos países de baixos salários mas com capacidade tecnológica: ?a China, a Índia, a ex-União Soviética?. No entanto, esta redução dos desníveis entre países é acompanhada, no seio dos países ricos, por um crescimento das desigualdades internas”.

A obra permite aos leitores contactar com diferentes dinâmicas económicas, dinâmicas essas entendidas, segundo o autor, como o processo de evolução das desigualdades resultantes da interacção de lógicas económicas de agentes coordenadas por mecanismos de mercado. Analisar- -se-ão “dinâmicas económicas específicas, nomeadamente as que actuam em redes que dominam os territórios (Capítulo II), as que pertencem a um determinado território (Capítulo IV) e as que resultam da comunicação entre grupos de territórios através de actividades nómadas (Capítulo VI)” e que caracterizaram os últimos 200 anos.

Assim como afirma Philippe Petit, na introdução de outra obra do mesmo autor já anteriormente mencionada, Giraud “não pretende brincar aos profetas nem falar em nome de todos, porque o futuro não se escreve com antecedência, nem mesmo com o auxílio das dinâmicas económicas. Preocupado em explicar a dialéctica subtil que se estabelece entre a história dos Estados e a das dinâmicas económicas, ele procura apenas isolar comportamentos económicas estáveis para melhor os compreender e descrever” (p. 9).

Filipe Almeida Santos

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Fernando ROSAS, Salazarismo e fomento económico (1928-1948). O primado do político na história económica do Estado Novo, Lisboa, Editorial Notícias, 2000, 259 p. Excepção feita ao texto de apresentação — o qual constitui, em simultâneo, um desafio de polémica e formalização teórica pouco habitual entre nós —, a presente obra de Fernando Rosas resulta do concentrar, num mesmo objecto editorial, de versões revistas e ampliadas de estudos já divulgados em iniciativas académicas, colóquios e conferências, através de publicações periódicas ou de obras colectivas especializadas. Tratar-se-ia, assim, aparentemente, de uma redundância ou, na melhor das hipóteses, de uma actualização de leituras antes apresentadas. Considera-se, no entanto, em sentido inverso, que a existência de um livro torna esses mesmos discursos historiográficos (de caracterização e interpretação) acessíveis a um público mais amplo e generalista; que permite uma visão globalizante (qualitativamente diferente) do universo temático comum a todos eles: as correntes de pensamento, os interesses e os objectivos, os protagonistas, os conflitos e as convergências, as políticas económico-sociais e os resultados efectivos da actuação da Ditadura Militar e do Estado Novo, sobretudo entre a nomeação de António de Oliveira Salazar para o cargo de Ministro das Finanças (1928) e o Primeiro Plano de Fomento (1953)1. De forma coerente e estruturada, o autor propõe uma determinada visão da ditadura salazarista enquanto contra-realidade social-global, perspectivando dialecticamente (de modo totalizante) as vertentes político- -institucional, socioeconómica e ideológico-cultural. Mais do que outros tipos de regimes, o fascismo português — os fascismos em geral ? — teria subordinado as necessidades e potencialidades de natureza económica à salvaguarda de equilíbrios sociais considerados indispensáveis, ao concretizar da matriz ideológica originária, à sua própria reprodução enquanto instrumento de "regeneração nacional" e alternativa única, tanto ao caos demoliberal e anti-clerical/laicista, como ao apocalipse comunista e ateu2. Na "Introdução", Fernando Rosas explicita as principais linhas orientadoras da leitura por si (e por outros) aventada desde o final da década de 1980. Critica, ainda, a natureza unilateral e redutora dos discursos que encaram o Estado Novo apenas como reflexo inevitável do atraso do país e de um conservadorismo hegemónico, como solução repressiva adoptada pelos grupos sociais dirigentes de um capitalismo semi-periférico ou como ponto de equilíbrio entre uma inultrapassável tendência modernizadora (industrialista) e o suprimir da confrontação sociopolítica.

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Demarca-se, finalmente, das pretensões de "verdadeira e exclusiva cientificidade", de "absoluta objectividade" (resultantes da utilização de sofisticadas técnicas quantitativas), afirmadas por alguns investigadores integrantes da corrente habitualmente designada por New Economic History. Fá-lo lembrando a impossibilidade epistemológica desses mesmos desígnios — ciência e ideologia são inseparáveis por definição, objectivação não é sinónimo de objectividade; demonstrando as limitações decorrentes da aplicação ao estudo de sociedades humanas infinitamente complexas, evoluindo em espaços, tempos e de acordo lógicas diferentes, das mesmas grelhas hipotético-dedutivas lineares. Estruturada a partir do pensamento económico neoclássico, fazendo parte da triunfante visão neo-liberal do capitalismo e promovendo a sua legitimação, a econometria retrospectiva pressupõe a existência de um "padrão natural", de uma "racionalidade intrínseca" ao "comportamento económico". À revelia de quaisquer outros factores (ideológico-culturais, socioprofissionais, político- -institucionais), o homo oeconomicus buscaria a satisfação das suas necessidades individuais, participando, assim, na formação de um mercado de concorrência tendencialmente perfeita, ou seja, da modalidade universal e intemporal de produzir, valorar e distribuir bens ou serviços, de acumulação e aplicação de riqueza3. Em "Estado Novo e modernização económica" (Parte I), analisam-se as divergências e os pontos de contacto, as propostas e as iniciativas concretas daqueles que, no interior da base social e política de apoio à ditadura, defenderam (industrialistas e "neofisiocratas"), se abstiveram (grande parte da burguesia comercial e financeira, pelo menos até 1945) ou se opuseram (ruralistas conservadores ou tradicionalistas) a estratégias de modernização económica — mais ou menos intensivas e autoritárias, proteccionistas e colonialistas, baseadas no intervencionismo estatal e corporativista. Para além das "grandes individualidades" — Oliveira Salazar como "Chefe" do regime e líder dos sectores conservadores, Ezequiel de Campos e Rafael Duque, Albano de Sousa, Araújo Correia, Ferreira Dias Júnior e Daniel Barbosa, etc. —, é, também, focado o desempenho de grupos socioprofissionais (empresários, engenheiros, elites regionais e locais do mundo rural) e de instituições — Governo e Assembleia Nacional/Câmara Corporativa, administração pública central e governos civis/câmaras municipais, organização corporativa e universidades, associações industriais e associações comerciais de Lisboa e Porto, Associação dos Engenheiros Civis Portugueses e Ordem dos Engenheiros. Estabelecem-se, igualmente, comparações (identificando continuidades e roturas) entre correntes de pensamento e debates, conflitos e convergências, impasses e iniciativas políticas específicas do salazarismo e outras, coevas da

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fase final da Monarquia Constitucional — com destaque para o regeneracionismo martiniano —, da Primeira República e da Ditadura Militar. Salienta-se, ainda, a função (em simultâneo obstaculizante e potenciadora) desempenhada pelas conjunturas de crise económica internacional (1890/1891, década de 1920, primeira metade dos anos trinta) e de conflito militar generalizado (Primeira Grande Guerra e Segunda Guerra Mundial). A Parte II ("Salazarismo, industrialismo e industrialização") integra três capítulos acerca dos insucessos e das realizações da corrente industrialista no Portugal do segundo quartel do nosso século. Quanto ao texto intitulado "Estado Novo e desenvolvimento económico (anos 30 e 40): uma industrialização sem reforma agrária", realce para a proposta de superação da já clássica dicotomia entre "dependência externa" e "limitada integração na economia-mundo capitalista" como principais vectores explicativos do "atraso económico português". Conjuntamente com esses e diversos outros factores — escassez de recursos naturais, insuficientes investimentos tanto na exploração dos territórios coloniais como nos sistemas de transportes e de produção/distribuição de energia, investigação (científica e tecnológica) e ensino/formação profissional, saúde e protecção social, etc. —, o elemento nuclear do conjunto de condicionalismos explicativos da peculiaridade da evolução económica nacional estaria, assim, na ausência de vontade política e de empenhamento social na concretização atempada de uma reforma agrária. Tratar-se-ia, por diversas vias, quer de assegurar uma participação não apenas reactiva (muitas vezes, mesmo, bloqueadora) do mundo rural no processo de modernização, quer de atenuar as profundas assimetrias regionais e os crónicos fluxos emigratórios.

Nos artigos "A ofensiva industrialista de Ferreira Dias e a resistência da "grei agrária" (1941-1945)" e "Daniel Barbosa e a política de estabilização económica e social do pós-guerra (1947-1948)", considera-se a actuação de José Nascimento Ferreira Dias Júnior enquanto Subsecretário de Estado do Comércio e Indústria e de Daniel Maria Vieira Barbosa na qualidade de Ministro da Economia. Observam-se as características específicas dos anos de 1939 a 1945 e 1947/1948: dificuldades e fragilidades agravadas pela economia de guerra, possibilidades resultantes do estatuto de neutralidade e da guerra económica travada pelos Aliados e pelo Eixo; urgência em "normalizar" a actividade económica e em anular os focos de conflitualidade sócio-política, empenhamento em intensificar o ritmo de industrialização versus a recusa em aprofundar o relacionamento bilateral com os EUA e a ajuda decorrente do Plano Marshall. Constata-se a influência e relativa

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eficácia do "imobilismo" ruralista e corporativista, bem como as opções conservadoras de Oliveira Salazar e a natureza indiscutida da sua liderança4.

A Parte III ("O reformismo agrário ou a batalha perdida dos "neofisiocratas"") é dedicada ao estudo da função desempenhada pelo mundo rural português, ao longo da primeira metade do século XX, quanto ao processo de modernização económica e em termos de consolidação dos vários regimes políticos. Em "O pensamento reformista agrário no século XX em Portugal: elementos para o seu estudo", "Ezequiel de Campos e a solução neofisiocrática da "crise portuguesa"" e "Rafael Duque e a política agrária do Estado Novo (1934-1944)", abordam-se as diversas gerações de "reformistas agrários"; o modo como os seus protagonistas encaravam a possibilidade de compatibilização entre os projectos de reforma agrária, a construção de uma estabilidade dinâmica no mundo rural e modalidades de "industrialização moderada" — tanto quanto possível sem aumento da taxa de urbanização; o respectivo insucesso global, pelo menos até ao início da década de 1960, frente à resistência dos interesses conservadores ou, mesmo, tradicionalistas e ao imobilismo camponês.

O capítulo designado "As lutas sociais nos campos durante a II Guerra Mundial", complementado pelos anexos "Greves dos assalariados rurais em 1944 e 1945" e "Motins camponeses (1941-1945)", constitui, antes de mais, uma proposta de reconstituição das condições de vida e trabalho, das relações sociais e mundividências, das formas de organização e representação existentes, durante os anos trinta e quarenta, nos diversos espaços do mundo rural português. Mesmo tendo, apenas, em conta Portugal Continental, salientam-se, por um lado, a diversidade das estruturas sociais globais detectadas, por outro, a universalidade da pobreza e dos baixos níveis de escolaridade.

Possibilita, ainda, um conhecimento empírico e um esboço de interpretação acerca da forma como a Segunda Guerra Mundial afectou esses diferentes universos camponeses; sobre o modo como as classes populares, as elites locais e o Governo, o aparelho de Estado e a organização corporativa reagiram ao acentuar das dificuldades, à emergência de novas possibilidades e ao avolumar das tensões, ao quebrar da "estabilidade financeiro-económica", da "ordem político-administrativa" e da "paz social" imposta pela ditadura através de um misto de vanguardismo regeneracionista e conservadorismo, de repressão e enquadramento.

No interior centro e norte ocorreram motins expontâneos e de natureza "comunitária", escassamente relacionados com as oposições ao regime. Protestava-se contra o tabelamento e a requisição dos produtos agrícolas, a escassez e o aumento dos preços de bens de primeira necessidade, as limitações impostas à "exploração paralela" e às actividades ilegais em torno

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dos minérios de volfrâmio. A sul exigiam-se melhores salários, emprego regular, acesso aos bens essenciais a preços controlados. Eram frequentes as ligações entre as greves de operários agrícolas e estruturas clandestinas ou grupos informais oposicionistas.

Termina-se a presente recensão crítica apontando duas eventuais insuficiências. Atrever-me-ia, em primeiro lugar, a discordar da apreciação feita (p. 11) a textos de A.F.K. Organski sobre as correlações entre modernização económica e regimes políticos durante a Época Contemporânea. Seria, ainda, relevante conhecer melhor a posição de Fernando Rosas, tanto acerca dessa mesma temática, como sobre o debate que envolve os conceitos de autoritarismo, fascismo e totalitarismo.

No plano das possíveis questões complementares, a desenvolver posteriormente, citam-se: a atitude da Igreja /Acção Católica Portuguesa, das oposições ao Estado Novo perante o desafio do desenvolvimento; a relevância atribuída, a nível central e periférico, à manutenção ou ao agravamento do fosso entre regiões com maior ou menor ritmo de crescimento; os vectores de enquadramento, em todo este conjunto de factores, quer de personalidades como Marcelo Caetano, Armindo Monteiro, Pedro Teotónio Pereira, João Pinto da Costa Leite e Artur Águedo de Oliveira, quer das instituições formadoras e empregadoras de juristas, engenheiros, economistas e oficiais das Forças Armadas.

João Paulo Avelãs Nunes

NOTAS

1 "Finalmente, uma derradeira explicitação para a organização e publicação do presente volume. Questão de transparência deontológica. Se se quiser, é a minha forma de sistematizar o que eu venho pensando, há vários anos, sobre estes problemas. Numa comunidade científica que, por demasiado familiar, tende para alguma complacência face à contrafacção intelectual, é bom clarificar-me, periodicamente, a geografia e a pertença das opiniões. Para que conste." (p. 16).

2 "É precisamente com base neste consenso em torno da "ordem" (e das políticas indispensáveis à sua manutenção), subscrito pelos diversos sectores da oligarquia com distintas estratégias de defesa dos respectivos interesses e pelas classes intermédias ameaçadas pela crise económica, que o salazarismo vai gerir a economia do país: fazendo o consenso durar, adaptando-o às diversas circunstâncias, arbitrando compensatoriamente dissídios, tudo subordinando à prioridade absoluta da durabilidade do regime. Não se trata de fazer durar qualquer regime a qualquer preço. Tratava-se de assegurar aquele regime nacionalista, corporativo e autoritário, a modalidade portuguesa do fascismo, ao preço de condicionar e sacrificar o tipo e os ritmos do desenvolvimento económico às prioridades

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da sua estabilidade e segurança. Para Salazar, na economia, e talvez sobretudo na economia, a política nunca deixaria de estar no comando." (p. 14)

3 "O que significa que os negócios, os empresários e as relações que entre eles e o Estado se estabeleciam eram regidos por outros critérios, por outras lógicas de rentabilidade, de acumulação, de sobrevivência, de estabilidade que é preciso detectar pela investigação para se entender a história económica do período. Procurar fazê-lo através dos quadros teórico-ideológicos e dos instrumentos criados para medir ou guiar a vida económica do presente só pode conduzir ao anacronismo ou à manipulação retroactiva da realidade. Tudo isto para dizer que não me parece possível fazer a história económica do Estado Novo, seja mais ou menos moldada pelas técnicas econométricas, sem entender que ela é indissociável do projecto político do regime, da prioridade decisiva da durabilidade e da estabilidade como princípio orientador da política económica salazarista. Sem se ter em linha de conta que esta era uma economia regida por um determinado regime político, o Estado Novo, que longa e decisivamente a moldou sob o império das suas necessidades de duração, qualquer semelhança entre as locubrações econométricas e o mundo real é pura coincidência ou meramente acidental." (p. 16)

4 "Desde o cesarismo martiniano ao Estado Novo salazarista, passando pela efémera experiência sidonista da "Repúbliva Nova" ou pelo "desarranjo brusco e virtuoso" preconizado por certos seareiros, ou seja, desde finais do século XIX até, pelo menos, ao segundo pós-guerra, as ideias e os homens do fomento económico (neofisiocratas e industrialistas) surgirão quase sempre ligados, com maior ou menor compromisso ideológico, à teorização e experiências autoritárias de superação do liberalismo político e económico.

Pode dizer-se que a agonia do Estado liberal transformou os discursos desenvolvimentistas em bandeiras preferenciais do regeneracionismo autoritário, ainda que de um autoritarismo modernizante e distinto do conservadorismo ultramontano e ruralista. Casar e compor essas "duas direitas", esses dois autoritarismos, designadamente no tocante às respectivas estratégias sociais e económicas, seria a complexa tarefa histórica do Estado Novo." (p. 166)

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Revistas recebidas por permuta

2. REVISTAS RECEBIDAS POR PERMUTA COM GESTÃO E DESENVOLVIMENTO

??ANAIS UNIVERSITÁRIOS ??ANÁLISE SOCIAL ??ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ??APRENDIZAGEM/DESENVOLVIMENTO ??AQUA NATIVA ??ARQUEOLOGIA E INDÚSTRIA ??CADERNOS DE ECONOMIA ??CADERNOS DE GEOGRAFIA ??COMPORTAMENTO ORGANIZACIONAL E GESTÃO ??COMISSÃO DE COORDENAÇÃO DA REGIÃO CENTRO ??COMISSÃO DE COORDENAÇÃO DA REGIÃO NORTE ??DIREITO E JUSTIÇA ??ECONOMIA E SOCIOLOGIA ??ECONOMIA PURA ??ECONOMISTA(O) ??EDUCAÇÃO E MATEMÁTICA ??EDUCAÇÃO E TECNOLOGIA ??ESTUDOS DE ECONOMIA ??ESTUDOS DO GEMF ??EURO-ASIA-JOURNAL OF MANAGEMENT ??FORUM SOCIOLÓGICO ??JORNAL DE CONTABILIDADE ??MEDITERRÂNEO-REVISTA DE ESTUDOS PLURIDISCIPLINARES

SOBRE AS SOCIEDADES MEDITERRÂNICAS ??MEMÓRIA - ELETROPAULO ??MUNDA ??NOTAS ECONÓMICAS ??ORGANIZAÇÕES E TRABALHO ??POBLACIÓN Y SOCIEDAD ??POPULAÇÃO E SOCIEDADE ??POPULATION AND DEVELOPMENT REVIEW ??REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE

LISBOA

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??REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO ??REVISTA DE ECONOMIA CONTEMPORÂNEA ??REVISTA DE GUIMARÃES ??REVISTA HISTÓRIA AGRÁRIA ??REVISTA DE HISTÓRIA DAS IDEIAS ??REVISTA ECONOMIA GLOBAL & GESTÃO ??REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA ??REVISTA PORTUGUESA DE GESTÃO ??REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA ??SOCIOLOGIA ??SOCIOLOGIA - PROBLEMAS E PRÁTICAS ??STUDIA HISTORICA – HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

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Livros recebidos

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3. LIVROS RECEBIDOS A TÍTULO DE OFERTA AMARELO, José Miguel Carreira – Cartas para Augusto Gil. Guarda,

Instituto Português do Património Cultural, 1992. Arte Moderna: … um olhar, um sentido do seu percurso: II – Colecção de

António Piné. Guarda, Museu da Guarda, 1995. BARRACA, Maria – Vidas Ex-postas: estórias bordadas por Maria

Barraca. Guarda, Museu da Guarda, 1999. CABRAL, Roque, S. J. – Temas de Ética. Braga: UCP: Faculdade de

Filosofia de Braga, 2000. DINIS, Alfredo – O Euro: Oportunidades e Desafios para Portugal. Braga.

UCP: Faculdade de Filosofia de Braga, 1999. Eduarda Lapa. Museu da Guarda, Guarda, 1997. GARCIA, Mário – Um Olhar sobre Pascoaes, Braga, UCP: Faculdade de

Filosofia de Braga, 2000. GEADA, José Joaquim Pinto – A Música na Sé da Guarda: século XIII –

século XIX. Guarda, Museu da Guarda, 1990. GIL, Augusto – Cartas de Amor. Guarda, Museu da Guarda, 1989. Guarda: História e Cultura Judaica. Guarda, 1999. LOPES, Teresa Rita – Reminisciências sobre Fernando Pessoa: uma

celebração da Ode Marítima de Álvaro de Campos, Ministério da Cultura.

MINISTÉRIO DO PLANEAMENTO - COMISSÃO DE COORDENAÇÃO DA REGIÃO NORTE – Autonomia Administrativa e Financeira do Estado: O Caso das Comissões de Coordenação Regional. Porto, C.C.R.N., 1999.

MUSEU DA GUARDA – Castelos Raia da Beira: Distrito da Guarda. Guarda, Museu da Guarda.

MUSEU DA GUARDA – Evelina Coelho. Guarda, Instituto Português do Património Cultural, 1990.

MUSEU DA GUARDA – Falar com Deus: Exposição Temporária 18 de Maio a 13 de Agosto de 1995. Guarda, Museu da Guarda, 1995.

MUSEU DA GUARDA – Património Musical da Guarda: Exposição Documental. Guarda, Museu da Guarda, 1990.

MUSEU DA GUARDA, Desenhos de Abel Manta. Guarda, Museu da Guarda, 1992.

MUSEU DA GUARDA, MUSEU DE LAMEGO, MUSEU DE VISEU – Do Gesto à Memória. Instituto Português de Museus, 1999.

Santo António em santa Cruz de Coimbra no Tempo de Santo António. Porto, Investimento Comércio e Turismo de Portugal, 1995.

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SILVA, J. Amadeu C. da – Os Selos de Herberto Helder: entre a apresentação do rosto e a biografia rítmica. Braga, UCP: Faculdade de Filosofia de Braga, 2000.

TORGAL, Luís Reis – Caminhos e Contradições da(s) Universidade(s) Portuguesa(s). Coimbra, CEIS 20: Universidade de Coimbra, 2000.