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ESCOLA AUSTRÍACA Jesús Huerta de Soto 1

Escola AustríacaMercado e criatividade empresarial

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Jesús Huerta de Soto

Escola AustríacaMercado e criatividade empresarial

Tradução e Estudo Introdutório deAndré Azevedo Alves

Prefácio deJosé Manuel Moreira

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4 ESCOLA AUSTRÍACA Jesús Huerta de Soto

FICHA TÉCNICA

O Espírito das Leis Editora, LdaAv. Visconde de Valmor, 41-2º Esq.1050-237 Lisboa

TRADUÇÃO DO ORIGINAL ESPANHOLLa Escuela Austríaca. Mercado y creatividad empresarialEDITORIAL SÍNTESIS

AUTORJesús Huerta de Soto

TRADUÇÃO E ESTUDO INTRODUTÓRIOAndré Azevedo Alves

PREFÁCIOJosé Manuel Moreira

DESIGNwww.blug.pt

PAGINAÇÃO, IMPRESSÃO E ACABAMENTOSGráfica Almondina, Progresso e Vida, Lda.Torres Novas

TIRAGEM600 Exemplares

DEPÓSITO LEGAL229 370/05

ISBN972-9020-11-6

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Índice

Nota do Presidente da Causa Liberal ............................ 11

Nota do Editor ................................................................. 13

Prefácio ............................................................................. 15

Estudo Introdutório ........................................................ 19

Introdução ....................................................................... 39

1. Princípios essenciais da Escola Austríaca .............. 431. 1.1. A teoria da acção dos austríacos frente1. 1.1. à teoria da decisão dos neoclássicos ................... 471. 1.2. O subjectivismo austríaco frente1. 1.2. ao objectivismo neoclássico ................................ 491. 1.3. O empresário austríaco frente ao homo1. 1.2. oeconomicus neoclássico .................................... 50

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1.4. A possibilidade de erro empresarial puro1.4. (austríacos) frente à racionalização a posteriori1.4. de todas as decisões (neoclássicos) .......................... 511.5. A informação subjectiva dos austríacos

1 .5. frente à informação objectiva dos neoclássicos ....... 521.6. O processo empresarial de coordenação

1 .5. dos austríacos frente aos modelos de equilíbrio1.5. (geral e/ou parcial) dos neoclássicos ........................ 541.7. O carácter subjectivo que os custos têm

1 .5. para os austríacos frente ao conceito1 .5. de custo objectivo dos neoclássicos ......................... 59

1.8. O formalismo verbal dos austríacos frente1 .5. à formalização matemática dos neoclássicos ........... 60

1.9. A conexão da teoria com o mundo empírico:1.5. os diferentes entendimentos do conceito1.5. de “previsão” ............................................................ 62

1.10. Conclusão ................................................................. 68

2. Conhecimento e função empresarial ...................... 711. 2.1. Definição de função empresarial ......................... 721. 2.2. Informação, conhecimento e empresarialidade... 741. 2.3. Conhecimento subjectivo e prático,1. 2.3. não científico ....................................................... 751. 2.4. Conhecimento exclusivo e disperso .................... 781. 2.5. Conhecimento tácito não articulável ................... 781. 2.6. O carácter essencialmente criativo1. 2.3. da função empresarial ......................................... 81

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1. 2.7. Criação de informação ........................................ 821. 2.8. Transmissão de informação ................................. 831. 2.9. Efeito aprendizagem:1. 2.3. coordenação e ajustamento ................................. 841. 2.10. O princípio essencial ......................................... 861. 2.11. Competição e função empresarial ..................... 891. 2.12. Conclusão: o conceito de sociedade1. 2.3. para a Escola Austríaca ....................................... 92

3. Carl Menger e os precursores1. da Escola Austríaca .................................................. 951. 3.1. Introdução ............................................................ 951. 3.2. Os escolásticos do Século de Ouro espanhol1. 3.1. como precursores da Escola Austríaca ................ 971. 3.3. A decadência da tradição escolástica

1.10. 3.2. e a influência negativa de Adam Smith .......... 1081. 3.4. Menger e a perspectiva subjectivista1. 3.1. da Escola Austríaca: a concepção da acção1. 3.1. como um conjunto de etapas subjectivas,1. 3.1. a teoria subjectiva do valor e a lei1. 3.1. da utilidade marginal ......................................... 1141. 3.5. Menger e a teoria económica1. 3.1. das instituições sociais ...................................... 1201. 3.6. A Methodenstreit, ou a polémica1. 3.1. sobre os métodos ............................................... 123

4. Böhm-Bawerk e a teoria do capital ...................... 129

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1. 4.1. Introdução .......................................................... 1291. 4.2. A acção humana como conjunto de etapas1. 4.1. subjectivas ......................................................... 1311. 4.3. Capital e bens de capital .................................... 1341. 4.4. A taxa de juro .................................................... 1431. 4.5. Böhm-Bawerk contra Marshal .......................... 1491. 4.6. Böhm-Bawerk contra Marx............................... 1501. 4.7. Böhm-Bawerk contra John Bates Clark1. 4.1. e o seu conceito mítico de capital ..................... 1521. 4.8. Wieser e o conceito subjectivo1. 4.1. de custo de oportunidade ................................... 1601. 4.9. O triunfo do modelo de equilíbrio1. 4.1. e do formalismo positivista ............................... 161

5. Ludwig von Mises e a concepção dinâmica5. do mercado .............................................................. 1671. 5.1. Introdução .......................................................... 1671. 5.2. Breve resenha biográfica ................................... 1681. 5.3. A teoria da moeda, do crédito e dos ciclos1. 5.1. económicos ........................................................ 1721. 5.4. O teorema da impossibilidade do socialismo.... 1771. 5.5. A teoria da função empresarial .......................... 1841. 56. O método da economia política:1. 5.1. teoria e história .................................................. 1861. 5.7. Conclusão .......................................................... 191

6. F. A. Hayek e a ordem espontânea do mercado ... 193

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1. 6.1. Introdução biográfica ........................................ 1931. 6.2. Investigações sobre o ciclo1. 6.1. económico: a descoordenação inter-temporal ..... 2001. 6.3. Polémicas com Keynes e a Escola de Chicago .... 2091. 6.4. O debate com os socialistas e a crítica1. 6.1. à engenharia social ............................................ 2141. 6.5. Direito, legislação e liberdade ........................... 222

7. O renascimento da Escola Austríaca .................... 2311. 7.1. A crise da análise de equilíbrio1. 6.1. e do formalismo matemático ............................. 2311. 7.2. Rothbard, Kirzner e o ressurgimento1. 6.1. da Escola Austríaca ........................................... 2431. 7.3. O actual programa de investigação1. 6.1. da Escola Austríaca ........................................... 2471. 7.4. Resposta a alguns comentários críticos ............. 2551. 7.5. Conclusão: uma avaliação comparativa1. 6.1. do paradigma neoclássico ................................. 264

Bibliografia ..................................................................... 271

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Nota do Presidente da Causa Liberal

Traduzir e publicar um livro sobre uma das grandes“escolas” do pensamento económico é uma iniciativa que seenquadra nos propósitos da Causa Liberal, uma associação dehomens e mulheres interessados no estudo, no debate e nadivulgação do liberalismo clássico em todas as suas vertentes.

Embora algumas pessoas possam achar estranho, há defacto um punhado de liberais no Portugal do princípio do séculoXXI que conversa, se encontra e troca ideias e leituras.Só pelo prazer que isso dá, só por concordar que nas suasvidas há espaço e apetência para isso. Ora, se o estudo e odebate são, há três anos, a nossa principal actividade, tornava--se agora necessário dar expressão à componente da divulgação.

Daí o projecto de uma colecção, que pretendemos fazercrescer, da qual este livro é o primeiro título. O tema da EscolaAustríaca impôs-se porque se deu a feliz coincidência de todosnós (economistas e não economistas), conhecendo autoresdessa corrente, estarmos conscientes da sua importância.

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Por outro lado, sentíamos a necessidade de preencher a enormelacuna de não existir no mercado português, disponível para ogrande público, um bom livro de divulgação dessa Escola –um livro acessível, mas rigoroso; não exaustivo, mas completo.

Na obra do Prof. Huerta de Soto encontrámos esse livro,escrito exactamente com as mesmas preocupações. O seu autor,grande conhecedor do tema, teve ainda a amabilidade defacilitar todas as questões relativas aos seus direitos deautor, apoiando desde a primeira hora a iniciativa de levar acabo esta edição portuguesa. Os membros da Causa Liberalestão-lhe imensamente gratos.

Também ao Prof. José Manuel Moreira, o maiscompetente conhecedor entre nós da Escola Austríaca,agradecemos o texto que justamente dedica à pessoa e à obrado Prof. Huerta de Soto, infelizmente pouco conhecidas emPortugal.

Ao André Azevedo Alves que, num meritório exemplode iniciativa individual, levou a cabo a tradução do livro, cabeum agradecimento especial. A sua formação em Economia, ojá vasto conhecimento que possui sobre a Escola Austríaca e asua competência linguística garantiram, não só uma traduçãode qualidade, mas também um texto tecnicamente impecávelem língua portuguesa.

Luís Aguiar Santos(Presidente da Causa Liberal)

(www.causaliberal.net)

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Nota do Editor

É um privilégio e uma honra para O Espírito das Leiseditar uma obra do Prof. Jesús Huerta de Soto. Trata-se deuma personalidade com um prestígio pessoal, intelectual eacadémico que só distingue esta Editora. Este é o primeirolivro seu editado no nosso país.

“Escola Austríaca” marca ainda o início do queesperamos vir a ser uma nova colecção de publicaçõesem parceria com a Causa Liberal. Porque o pensamentoliberal também marca o espírito de certas leis e pretendealterar com espírito outras leis. Porque o liberalismo estáhoje no centro do debate ideológico. E porque, comotudo aquilo que está no centro do debate, o liberalismo tambémé hoje albergue de muito “descamisado” do poder, que nelejulga ter encontrado barco seguro para atravessar certastormentas.

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Esperamos que a este se sigam outros livros e que dessaforma, também nós, editorialmente falando, possamoscontribuir para o debate das ideias que a todos inquietam eque mais não é do que o produto de tempos incertos comonunca.

Jorge Ferreira

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Prefácio

A publicação em língua portuguesa deste livro resultade uma feliz iniciativa, de destacados membros da nobre CausaLiberal. O “liberalismo clássico” de que se sentem herdeirosem Portugal é, na verdade, inseparável da Escola Austríaca deEconomia. O cuidado “Estudo Introdutório” de André AzevedoAlves ajuda a situar a obra e a perceber de que maneira a“incorporação do ponto de vista austríaco de uma formageneralizada acabará por dar lugar a uma ciência social aoserviço da humanidade muito mais realista, ampla, rica eexplicativa”.

É também uma oportunidade para darmos melhor contadas raízes ibéricas de uma Escola que, embora tenha nascidono seio de um Império, cedo se espalhou por todo o mundo.Uma Escola tão conhecida entre os novos países doalargamento (que, em vez de Marx e Lenine, traduziam e liamos proibidos Mises e Hayek) como desconhecida entre nós.Isto apesar de ter sido por Lisboa que, na sua ida para o outro

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lado do Atlântico, passaram proeminentes judeus da Escola,como é o caso de Mises.

Mas os difíceis caminhos da “escola austríaca” nãopassaram só pela diáspora, passam também por obstáculosteóricos e epistemológicos que impedem de ver como, de facto,a escola abriu horizontes para uma espécie de são caminho do“meio”. A tendência para arrumar os austríacos em um doslados da barricada, conservadores ou socialistas, monetaristasou keynesianos, foi mais um obstáculo na descoberta da suasingularidade.

Isso mesmo se constatou numa nota necrológica de trêslinhas publicada no nosso mais conceituado semanário. Nelase considerava Hayek como neoconservador, monetarista eguru do neoliberalismo. Nenhum dos adjectivos era verdadeiromas manifesta bem a tendência de uma certa “inteligência”para arrumar as pessoas chamando-lhes nomes. Hayek deixouescrito “Porque não sou conservador”, mas pouco adiantou.Foi conhecido crítico do keynesianismo – embora isso nãotivesse impedido Keynes de elogiar o seu “Caminho para aServidão” – e, por isso, obviamente tinha que ser monetarista.Em nome do liberalismo clássico sempre se demarcou doschamados “neoliberais” mas pelos vistos pouco adiantou.

O que grassa agora é o “politicamente correcto”. Umacorrente tão crítica do “pensamento único” que fica impedidade perceber o que o “único” tem de singular, de abertura àdiversidade, de amor à novidade. Como bem afirma Huertade Soto, a própria noção de descoberta ou criatividade[empresarial] encontra-se num são ponto intermédio entre a

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busca deliberada de informação dos neoclássicos e a noçãoanárquica e caleidoscópica do mercado que têm autores comoShackle.

É em parte esta natureza da surpresa e da descoberta –inerente ao processo empresarial – que aproxima a dinâmicado capitalismo mais da teologia católica do que doprotestantismo de Weber (veja-se o nosso texto “Capitalismo,Catolicismo e Protestantismo” em Público, de 7, II. 2001) eque está a levar à redescoberta das relações entre Economia eReligião (veja-se a este propósito o recente número de Journaldes Economistes et des Etudes Humaines, 2/3, 2003,inteiramente dedicado a esta temática).

O arguto Schumpeter, que sempre considerou que umcapitalismo não dinâmico era uma contradição de termos, bemcedo deu conta – logo em 1954, na sua History of EconomicAnalysis – das três razões que impediam a compreensão doponto de vista austríaco. Razões – que abrem a “Introdução” ànossa obra Hayek e a História da Escola Austríaca – que, seatendidas, há muito teriam impedido a ignorância sobre umadas mais ricas e promissoras tradições do pensamentoeconómico actual. Uma falha que esta obra ajudará por certoa colmatar.

Está assim de parabéns a Editora e em especial, o Autor,Jesús Huerta de Soto, catedrático de Economia Política daUniversidad Rey Juan Carlos, de Madrid. Acresce que estamesma obra tem já uma tradução italiana, com prefácio donosso amigo Raimondo Cubeddu.

Doutor em Ciências Económicas e em Direito pela

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Universidade Complutense de Madrid e MBA pela Univer-sidade de Stanford, são alguns dos títulos de que o Prof. Huertade Soto se pode orgulhar. Conta-se também entre os membrosda Royal Economic Society de Londres e da AmericanEconomic Association.

Mais importante ainda – e por aqui passa a nossa ligação– é membro destacado e Vice-Presidente do Conselho Directivoda Mont Pèlerin Society e considerado internacionalmente umdos expoentes mais representativos da tradição austríaca daeconomia. Os seus muitos trabalhos de investigação constamda sua página web (www.jesushuertadesoto.com) masprovavelmente a melhor honraria que poderá receber é a leituraatenta das páginas que se seguem.

José Manuel Moreira

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Estudo Introdutório

É relativamente consensual afirmar que o renascimentodo interesse pela Escola Austríaca foi despoletado, em grandemedida, pela atribuição em 1974 do Prémio Nobel deEconomia a Friedrich von Hayek1. O facto de essa atribuiçãoter ocorrido, como Huerta de Soto oportunamente realça nocapítulo 7 deste livro, num período em que o descrédito dasteorias keynesianas começava a generalizar-se, levou a que,um pouco por todo o mundo, mas com particular incidêncianos E.U.A. (para onde muitas das mais importantes figuras daEscola emigraram na primeira metade do século XX), aespecificidade da tradição austríaca fosse redescoberta pormuitos economistas e outros estudiosos no campo das ciênciassociais e jurídicas.

1 O Prémio Nobel de Economia de 1974 foi atribuídoconjuntamente a Gunnar Myrdal e a Friedrich von Hayek.

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Convirá no entanto ter em conta que a expressão “EscolaAustríaca” serviu historicamente (e continua ainda hoje aservir) para designar realidades diferentes, mas nãonecessariamente incompatíveis. Um facto que, conjugado coma vivacidade do debate entre as várias correntes no interior daprópria escola, tem vindo a dificultar a compreensão e ocorrecto enquadramento dos seus importantes contributosteóricos por parte de muitos observadores externos.

A presente obra de Jesús Huerta de Soto, um dos maisdistintos representantes contemporâneos da Escola Austríaca,presta um inegável contributo para a compreensão eclarificação da problemática austríaca. Tal não obsta a que apublicação desta obra possa constituir também ocasião parapodermos juntar o nosso contributo à reflexão sobre a génesee a inesgotável riqueza implícita na tradição austríaca e, emparticular, sobre as influências ibéricas e católicas que a mesmarecebeu.

Nascimento e evolução da Escola Austríaca

É geralmente aceite que o marco fundador da EscolaAustríaca consistiu na publicação, em 1871, da obraGrundsätze der Volkswirtschaftslehre2, de Carl Menger (cujos

2 Cf. Carl Menger, Principles of Economics (Grove City:Libertarian Press, 1994), nesta edição com uma excelente«Introdução» de F. A. Hayek.

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principais contributos teóricos são apresentados no capítulo 3do presente livro). A divulgação das teorias de Menger foi, noentanto, feita essencialmente através das obras de Eugen vonBöhm-Bawerk e de Friedrich von Wieser e, posteriormente,através de discípulos destes últimos3.

Entre as figuras da geração seguinte que prosseguirama tradição austríaca ou foram fortemente influenciadas por elacontam-se economistas tão importantes como Ludwig vonMises, Joseph Schumpeter, Friedrich Hayek, GottfriedHaberler, Oskar Morgenstern, Fritz Machlup e mesmo, atécerto ponto, Lionel Robbins.

No referido conjunto de autores, no entanto, apenasMises e Hayek desenvolveram o respectivo trabalho científicono sentido de constituir uma abordagem alternativa aoparadigma neoclássico, preservando a especificidadecaracterística da Escola Austríaca e dos contributosfundacionais de Menger. Tem origem aqui, quanto a nós, aprimeira fonte de confusão relativamente à utilização daexpressão “Escola Austríaca”.

Na medida em que vários dos autores formados natradição austríaca acabaram (ao contrário do que fizeramHayek e Mises) por se aproximar da escola neoclássica, o queterá levado a que muitas das características essenciais e únicas

3 Para um tratamento mais desenvolvido das questões que deseguida se apresentam cf. José Manuel Moreira, Hayek e aHistória da Escola Austríaca de Economia (Porto: EdiçõesAfrontamento, 1994).

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da escola4 acabassem por ser gradualmente ignoradas ou menosconsideradas. A juntar a este facto, a síntese «neoclássica»promovida por Marshall no início do século XX tendeu aapagar as diferenças entre os três autores (Menger, Jevons eWalras) que, separadamente, estiveram na base da revoluçãomarginalista ao desenvolverem o conceito de utilidademarginal5.

Estas duas influências contribuíram para que, em muitoscírculos, se propagasse a ideia de que a Escola Austríaca estavadestinada a ser diluída na corrente neoclássica dominante,depois de assimiladas as suas contribuições mais relevantes.A abordagem austríaca, que havia sido concebida por Mengerde certa forma como um caminho intermédio entre a ortodoxiaclássica inglesa e os excessos anti-teóricos da escola históricaalemã, via-se assim empurrada para uma assimilação numasíntese neoclássica que, a concretizar-se, anularia muitas dassuas mais importantes especificidades.

4 A este propósito, veja-se o rigoroso contraste estabelecido porHuerta de Soto entre os princípios essenciais da Escola Austríacae os da escola neoclássica que constitui o capítulo 1 do presentelivro. Embora as diferenças apresentadas não impliquem que asduas escolas tenham de estar em constante e radical oposição,cremos que, da análise desse contraste, deverá ser possívelconcluir que existem efectivamente reais diferenças entre as duasabordagens consideradas.

5 Para um maior desenvolvimento desta matéria, cf. José ManuelMoreira, op. cit., pp. 74-84.

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Um terceiro factor que agravou esta situação foi apercepção, nos anos trinta do século XX, de que Mises e Hayek,os dois principais expoentes da abordagem austríaca autónomae “não assimilada”, haviam perdido o debate sobre aimpossibilidade do cálculo económico numa sociedadesocialista para os seus adversários teóricos. Esta percepçãolevou a que as teorias de Hayek e Mises fossem simplesmenteignoradas ou, quando muito, consideradas como merascontribuições pontuais posteriormente incorporadas naabordagem neoclássica.

O facto de o resultado do debate sobre o cálculoeconómico entre austríacos e socialistas ter, entretanto, sidoreavaliado6 (uma reapreciação teórica para a qual certamentecontribuíram as desastrosas experiências das economiasplanificadas), não impede que ainda hoje persista junto demuitos economistas a noção de que a expressão “EscolaAustríaca” designa essencialmente uma corrente extinta nosanos trinta do século passado. Isto apesar do notáveldesenvolvimento7 que a Escola Austríaca conheceu nas décadassubsequentes, em particular nos E.U.A., através de autorescomo Israel Kirzner, Murray N. Rothbard, Ludwig M.Lachmann, Gerald O’ Driscoll, Mario J. Rizzo, Roger W.Garrison e Walter Block8.

6 Cf. capítulo 5 do presente livro.7 Desenvolvimento que aliás conduziu à criação de uma categoria

autónoma (B53) na classificação do Journal of EconomicLiterature.

8 Uma análise mais detalhada do processo de ressurgimento daEscola Austríaca pode ser encontrada no capítulo 7 deste livro.

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A especificidade da abordagem austríaca

Ao longo de todo o livro Jesús Huerta de Soto dedicaespecial atenção às características diferenciadoras da EscolaAustríaca, confrontando-as, sempre que possível, de formasistemática com a abordagem neoclássica, quer na sua variantemais keynesiana, quer na variante mais monetarista. Ao fazê--lo, presta um importante serviço a todos os interessados emcompreender a especificidade da tradição austríaca no domínioda Ciência Económica e contribui certamente para um maiscompleto enquadramento dos seus contributos.

Compreender as características distintivas da EscolaAustríaca é tanto mais importante quanto a mesma se adequabem a abordagens multidisciplinares que são hoje em diaparticularmente relevantes. De facto, desde a sua fundaçãopor Carl Menger que a Escola Austríaca se caracteriza pordedicar um elevado grau de atenção ao estudo das instituiçõese das regras que as regulam.

Esta preocupação central com a formação, funcio-namento e evolução das instituições, que contrasta com algumalheamento de grande parte da abordagem económicaneoclássica relativamente a estas questões, deriva do facto dea metodologia austríaca privilegiar o estudo dos processos enão a análise dos estados de equilíbrio e dos hipotéticos desviosque se verifiquem relativamente a eles.

Ao centrar a sua atenção na análise dos processos, aEscola Austríaca atribui especial importância à compreensãodos fenómenos sociais resultantes da interacção entre os

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indivíduos, rejeitando as concepções estritamente maximi-zadoras pela sua incapacidade de abordar de forma integradaa acção humana e as instituições que lhe estão associadas.

Por outro lado, a metodologia essencialmente dedutivada Escola Austríaca não visa excluir ou sequer diminuir aimportância do estudo da história. Pelo contrário, naperspectiva austríaca, um dos mais importantes objectivos dateoria é fornecer as ferramentas intelectuais necessárias àcompreensão da história e, consequentemente, do presente.Um objectivo que só pode ser concretizado se se procurar nãoconfundir o lugar da história com o papel da teoria.

A coerência lógica das teorias é pois condição necessáriapara um correcto entendimento da história. A teoria devefornecer uma conceptualização adequada à construção deuma narrativa histórica que articule consistentemente os factos.A tradição austríaca rejeita simultaneamente o historicismo(com as suas tentativas de fazer derivar a teoria da análisehistórica) e a análise puramente formal que se procura desligarda história ou se limita a servir-se dela para tentar “testar”,através do recurso a métodos quantitativos, as previsões queestabelece.

A Escola Austríaca contemporânea apresenta umprograma de pesquisa plural e com múltiplas frentes deinvestigação que incluem áreas tão importantes como oaprofundamento da teoria do capital e dos mecanismos decoordenação macroeconómica, o desenvolvimento de umateoria da concorrência e da regulação assente no entendimentodos mercados como processos dinâmicos, a aplicação da

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concepção subjectivista à análise dos fenómenos monetáriose dos mercados financeiros e a procura de uma teoria integradado desenvolvimento económico.9

Simultaneamente, a Escola Austríaca forneceinstrumentos teóricos particularmente adequados à análiseeconómica do direito e das instituições, análise essa em quepode, quanto a nós, ser utilizada com grande vantagem emconjunto com a teoria da escolha pública.10

Face a um tão promissor horizonte de pesquisa,esperamos que o actual livro possa contribuir para a divulgaçãoentre nós da Escola Austríaca a qual, não obstante os notáveisesforços de autores como Orlando Vitorino11, José ManuelMoreira12, Pedro Arroja13 e João Carlos Espada14, continua aser, infelizmente, pouco conhecida em Portugal15.

9 O actual programa de pesquisa da Escola Austríaca é abordadode forma mais aprofundada no capítulo 7 deste livro. Para umaexcelente colecção de artigos de diversos autores enquadradosna perspectiva austríaca em que são abordados mais de oitodezenas de tópicos de investigação, cf. Peter J. Boettke (ed.),The Elgar Companion to Austrian Economics (Cheltenham:Edward Elgar, 1994).

10 A este propósito, cf. André Azevedo Alves e José Manuel Moreira,O que é a Escolha Pública? Para uma análise económica dapolítica (Cascais: Principia, 2004), em particular, pp. 91-92.

11 Orlando Vitorino, um dos mais inovadores pensadores da correntedenominada Filosofia Portuguesa, conta entre as suas obras comum livro onde dedicou substancial atenção à Escola Austríaca,Exaltação da Filosofia Derrotada (Lisboa: Guimarães Editores,1983). Vitorino promoveu também a publicação em portuguêsda obra de F. A. Hayek, O Caminho para a Servidão (Lisboa:Teoremas, 1977) com trad. de Maria Ivone Serrão de Moura.

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12 Para além do já citado Hayek e a História da Escola Austríacade Economia (Porto: Edições Afrontamento, 1994), cf. tambémFilosofia e Metodologia da Economia em F. A. Hayek ou aredescoberta de um caminho «terceiro» para a compreensão emelhoria da ordem alargada da interacção humana (Porto:Publicações da Universidade do Porto, 1994), Ética, Economiae Política (Porto: Lello Editores, 1996), A Contas com a ÉticaEmpresarial (Cascais: Principia, 1999) e Ética, Democracia eEstado (Cascais: Principia, 2002).

13 Cf. O Estado e a Economia (Porto: Vida Económica, 1989),Abcissas: Crónicas de Economia Política (Porto: Areal Editores,1993) e Cataláxia: crónicas de economia política (Porto: VidaEconómica, 1993). As três obras reunem crónicas e ensaiosanteriormente publicadas na imprensa.

14 Cf. Social Citizenship Rights: A Critique of F. A. Hayek and Ray-mond Plant (Londres: MacMillan Press, 1996), com trad. portu-guesa de Mariana Pardal Monteiro e Teresa Curvelo: Direitossociais de cidadania: uma crítica a F. A. Hayek e Raymond Plant(Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997).

15 É ainda de salientar a publicação de um texto de Ludwig vonMises, «O Intervencionismo», em Boletim da Faculdade deDireito, 23 (Coimbra, 1947), com tradução e comentário introdu-tório de J. J. Teixeira Ribeiro (referido em José Manuel Moreira,Filosofia e Metologia da Economia em F. A. Hayek ou aredescoberta de um caminho «terceiro» para a compreensão emelhoria da ordem alargada da interacção humana, p. 29), assimcomo também o livro Economia da Oferta (P. E. Edições, 1993)de M. Jorge C. Castela, uma obra dedicada à corrente geralmentedesignada «supply-side economics» que o autor consideraencontrar na escola austríaca uma das suas principais influênciasfundadoras (cf. pp. 267 a 289). Mais recentemente, foi tambémpublicado o estudo O Direito e a Moral no pensamento deFriedrich Hayek (Porto: Publicações Universidade Católica,2000) da autoria de Manuel Fontaine Campos, a partir de umatese com o mesmo título orientada por João Carlos Espada.

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A Escola de Salamanca e as raízes ibéricase católicas do liberalismo

A reduzida divulgação da Escola Austríaca no nossopaís é ainda mais lamentável se tivermos em conta que entreos mais importantes precursores dessa abordagem (e doliberalismo económico em geral) se encontram váriosescolásticos católicos dos Séculos XVI e XVII, pertencentesà chamada Escola de Salamanca16, e que Portugal foi palco daactividade académica de alguns deles17.

Os teóricos da Escola de Salamanca, embora fossemem primeiro lugar teólogos e juristas, forneceram importantescontributos (ainda que de forma não sistemática) à ciência

16 O papel dos teóricos da Escola de Salamanca enquantoprecursores da Escola Austríaca é tratado no capítulo 3 dopresente livro. Embora Schumpeter tenha dedicado considerávelatenção à Escola de Salamanca na sua monumental History ofEconomic Analysis (New York: Oxford University Press, 1954),os principais contributos nesta área devem-se a Marjorie Grice-Hutchinson, que fez investigação sob orientação de Hayek, autoradas obras The School of Salamanca: Reading in SpanishMonetary Theory, 1544-1605 (Oxford: Clarendon Press, 1952)e Early Economic Thought in Spain, 1177-1740 (London: GeorgeAllen & Unwin, 1978).

17 É importante ter em conta que, embora tenha tido origem e centrona Universidade de Salamanca, os teóricos da respectiva escolaleccionaram em várias outras Universidades (como, aliás, eraprática corrente na época), pelo que não é de estranhar que aescola tenha conhecido desenvolvimentos importantes em Alcaláde Henares, Coimbra e Évora.

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económica, sempre em ligação próxima com o estudo da ética.São de destacar os seus contributos para a formação de umateoria subjectiva do valor, para um correcto entendimento danatureza dos preços, salários e lucros, para a importância efundamentação social da propriedade privada e para anecessidade de contenção e equilíbrio das finanças públicas18.Além disso, estes escolásticos tardios, como explica Huertade Soto no capítulo 3 deste livro, realizaram importantescontribuições a nível da teoria monetária e do estudo dos efeitosda inflação, com destaque para a apresentação de um conceitode preferência temporal que antecipa o que viria a serdesenvolvido na teoria austríaca do capital.

O muito reduzido interesse entre nós pela Escola deSalamanca é particularmente flagrante no caso de Luis deMolina (1535-1600), uma das mais importantes figuras daescola cuja formação e actividade académica foi desenvolvidaquase exclusivamente em Portugal. De facto, apesar de ternascido em Cuenca19, Molina, logo em 1553, mudar-se-ia paraCoimbra onde, depois de inscrito na Companhia de Jesus, deu

18 Para um tratamento mais desenvolvido destes aspectos dopensamento da Escola de Salamanca cf. Alejandro A. Chafuen,Faith and Liberty. The Economic Thought of the Late Scholastics(New York: Lexington Books, 2ª ed., 2003). Existe tradução paraCastelhano da 1ª ed., com o título Economía y Ética. Raícescristianas de la economía de libre mercado (Madrid: EdicionesRialp, 1991).

19 Cf. Francisco G. Camacho, «Introducción» in Luis de Molina,La Teoría del Justo Precio (Madrid: Editora Nacional, 1981).

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início aos seus estudos de Filosofia, os quais se prolongariamaté 1558. Dedicou-se depois a estudos de Teologia, primeiroainda na Universidade de Coimbra (1558-61) e seguidamenteem Évora (1561-63). Uma vez concluídos os seus estudossuperiores, Molina regressou a Coimbra como professor deFilosofia, aí permanecendo até 1568, ano em que foi nomeadoprofessor de Teologia em Évora, cidade onde desenvolveu oseu pensamento moral e económico que viria a culminar,anos mais tarde, no seu influente tratado De Iustitia et Iure.Em 1583, o seu estado de saúde obrigou-o a abandonar aleccionação, tendo passado em Lisboa os anos de 1586 a 1591,altura em que, finalmente, regressou à sua cidade natal emEspanha.

É-nos neste âmbito impossível apresentar umaabordagem integrada dos muitos contributos de Molina20 mas,ainda assim, não deixaremos de fornecer dois exemplos dariqueza do seu pensamento.

O primeiro exemplo prende-se com a definição de“preço natural” elaborada por Molina, a qual se aproxima deforma muito acentuada da concepção própria da teoriasubjectiva do valor que esteve na base da denominadarevolução marginalista que teve lugar no Séc. XIX. Vejamos

20 Para um tratamento mais aprofundado da relação entre opensamento de Molina e a Escola Austríaca (e em particular sobrea problemática da ciência média e sua relação com a abordagemposteriormente desenvolvida por Hayek), cf. José ManuelMoreira, op. cit., pp. 44-61.

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então, de que forma define Molina (relembre-se ainda no finaldo Séc. XVI) o “preço natural” e de que forma o distingue deum “preço legal”:

Outro preço é o que as coisas têm por si mesmas,independentemente de qualquer lei humana oudecreto público. Aristóteles e muitos outrosautores chamam a este preço natural. Chamam-lhe assim não porque não dependa em grandemedida da estima com que os homens apreciamumas coisas mais do que outras, como acontececom certas peças preciosas, que às vezes seestimam em mais de vinte mil moedas de ouro emais que muitas outras coisas que, pela suanatureza, são muito melhores e mais úteis; nemtão pouco lhe chamam assim porque esse preçonão flutue e se altere, posto que é evidente que sealtera; mas chamam-lhe natural porque nasce dasmesmas coisas, independentemente de qualquerlei humana ou decreto público, mas dependentede muitas circunstâncias com as quais varia e daafeição e estima que os homens têm às coisassegundo os diversos usos para que servem.21

O segundo exemplo do pensamento de Molina que

21 Luis de Molina, La Teoría del Justo Precio (Madrid: EditoraNacional, 1981), p. 160.

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apresentaremos tem a ver com a sua explicação dos factoresque determinam o valor da moeda:

Coeteris paribus, quanto mais abunda a moedanum lugar tanto menor é o seu valor para comprarcoisas com ela, ou para adquirir aquilo que não émoeda. Assim como a abundância de mercadoriasfaz com que diminua o seu preço quando aquantidade de moeda e o número de comerciantespermanece constante, também a abundância demoeda faz aumentar os preços quando aquantidade de mercadorias e o número decomerciantes permanece constante, até ao pontoem que a mesma moeda perde poder aquisitivo.Assim vemos que, na actualidade, a moeda valeem Espanha muito menos do que valia há oitentaanos, devido à abundância que hoje há dela. Oque antes se comprava por dois compra-se hojepor cinco, seis ou talvez mais. Na mesmaproporção cresceram o preço dos salários, osdotes e o valor das terras, as rendas e todas asdemais coisas. Por isso mesmo vemos que amoeda vale muito menos no Novo Mundo,sobretudo no Perú, do que em Espanha, devido àabundância que há dela. E onde a moeda é menosabundante que em Espanha, vale mais.22

22 Luis de Molina, Tratado sobre los Cambios, ed. Francisco G.Camacho (Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1990), pp. 116--117.

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Como se pode constatar, Molina apresenta umaformulação que se aproxima bastante da teoria quantitiva damoeda posteriormente desenvolvida na ciência económica.É nossa convicção que os dois exemplos apresentadosservem para ilustrar, ainda que naturalmente de formamuito incompleta, a riqueza do pensamento de Molina noque toca a questões económicas e para evidenciar anecessidade de dedicar maior atenção à obra deste eminenteescolástico.

Pensamento social cristão e liberalismo

Esta significativa influência ibérica e católica nasorigens do liberalismo económico assume especial relevânciase tivermos em conta que muitos cristãos, ainda quereconhecendo as evidentes vantagens do sistema liberal a nívelda produtividade e eficiência, continuam a aceitá-lo apenasde forma reticente e sob reserva. De facto, infelizmente, muitada tradição do pensamento social cristão foi, em particulardesde o Séc. XIX, interpretada como estando em oposiçãofrontal ao liberalismo económico, levando a que muitos cristãosinteriorizassem a convicção de que a economia de mercadolivre seria incompatível com a doutrina cristã. Esta atitudeprevalece ainda inclusivamente entre muitos católicos, apesarde esta incompatibilidade ter sido frontalmente negada, porexemplo, na Encíclica Centesimus Annus de 1991 na qual seafirma:

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Voltando agora à questão inicial, pode-se por-ventura dizer que, após a falência do comunismo,o sistema social vencedor é o capitalismo e quepara ele se devem encaminhar os esforços dosPaíses que procuram reconstruir as suaseconomias e a sua sociedade? É, porventura, esteo modelo que se deve propor aos Países doTerceiro Mundo, que procuram a estrada doverdadeiro progresso económico e civil?A resposta apresenta-se obviamente complexa.Se por «capitalismo» se indica um sistema eco-nómico que reconhece o papel fundamental epositivo da empresa, do mercado, da propriedadeprivada e da consequente responsabilidade pelosmeios de produção, da livre criatividade humanano sector da economia, a resposta é certamentepositiva, embora talvez fosse mais apropriado fa-lar de «economia de empresa», ou de «economiade mercado», ou simplesmente de «economialivre». Mas se por «capitalismo» se entende umsistema onde a liberdade no sector da economianão está enquadrada num sólido contexto jurídicoque a coloque ao serviço da liberdade humanaintegral e a considere como uma particular dimen-são desta liberdade, cujo centro seja ético e reli-gioso, então a resposta é sem dúvida negativa.23

23 Cf. Encíclica Centesimus Annus, 42. É aliás de notar, como realçaHuerta de Soto, que há sinais que apontam no sentido de opensamento de Hayek ter tido uma influência significativa naCentesimus Annus.

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Não obstante, o facto é que muitos cristãos se continuama sentir na obrigação moral de apoiar todas as políticasintervencionistas as quais, por não raras vezes negligenciaremas leis económicas, acabam por originar resultados contráriosaos desejados, provocando graves danos ao bem comum.

Por outro lado, a convicção de que as doutrinas cristãs(e a Doutrina Social da Igreja em particular) estavamnecessariamente em oposição ao liberalismo, levou a quemuitos economistas as vissem com suspeita (ou nalguns casosmesmo com hostilidade), encarando-as frequentemente comoum obstáculo ao conhecimento científico e ao desenvol-vimento.

Os ensinamentos da Escola de Salamanca podem,quanto a nós, contribuir precisamente para estabelecer umaponte entre liberalismo e cristianismo, realidades que estãohoje em larga medida afastadas e muitas vezes em oposição.É que, como refere Chafuen24, para os autores da escolásticatardia, o pensamento económico está intimamente ligado aopensamento ético, filosófico e teológico. As teorias por elesestabelecidas visam assim permitir ao homem conformar assuas acções à realidade e às leis naturais e simultaneamenteimpedi-lo de tomar parte em tentativas fúteis e perigosas deprocurar tornar o mundo conforme à sua vontade, ignorandoleis que está para além do seu poder alterar.

24 Alejandro Chafuen, Economía y Ética. Raíces cristianas de laeconomía de libre mercado, p. 26.

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Assim sendo, um mais profundo conhecimento dachamada escolástica tardia e das formas pelas quais a mesmainfluenciou o desenvolvimento das teorias da Escola Austríacapoderá dar um contributo decisivo a dois níveis. Em primeirolugar, poderá contribuir para resolver a aparente contradiçãoque continua a colocar-se para muitos cristãos entre liberalismoe cristianismo25. Em segundo lugar, poderá levar muitoseconomistas a reconhecer que o catolicismo não se constituinecessariamente como um inimigo da economia de mercadoe, em particular, poderá contribuir para pôr em causa a ligaçãoestabelecida por Max Weber entre capitalismo e éticaprotestante26.

Um prometedor caminho de investigação pode assimpassar, como sugere Paul A. Cleveland27, pelo aprofundamento

25 Uma contradição que pode resultar em parte da confusão entreliberalismo económico e liberalismo filosófico.

26 É aliás este o entendimento de Hayek, que sempre se opôs a estatese de Weber e que vai ao ponto de considerar que talvez nãohaja exagero na afirmação de H. M. Robertson segundo a qual“não seria difícil defender que a religião que favoreceu o espíritodo capitalismo foi o ‘jesuítismo’ e não o calvinismo”. Cf. H. M.Robertson, Aspects on the Rise of Economic Individualism(Cambridge, 1933), p. 163; citado em Hayek, Law, Legislationand Liberty, Vol. 2 (London: Routledge, 1998 [1976], p. 179.

27 Cf. Paul A. Cleveland, «Connections Between the AustrianSchool of Economics and Christian Faith: A PersonalistApproach», in Journal of Markets & Morality, Vol. 6, n.º 2,(Acton Institute, 2003): pp. 663-671.

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do estudo das ligações entre a Escola Austríaca e o princípiopersonalista28.

Como exemplos de autores que abordaram o estudo dacompatibilidade entre a economia de mercado e o cristianismosão de referir, em Espanha, Lucas Beltrán29, Rafael Termes,Rafael Rubio de Urquía e Enrique M. Ureña30 e em França,Raoul Audouin31.

Em síntese, face ao quase total desconhecimento entrenós da abordagem austríaca parece-nos que o presente livro,ao proporcionar uma apresentação concisa e rigorosa dosprincipais aspectos da teoria económica da Escola Austríaca,assume particular relevância. Se tivermos adicionalmente emconta as origens ibéricas e católicas de alguns dos maisimportantes precursores da Escola Austríaca essa importânciaserá ainda maior.

28 O princípio personalista que, recorde-se, é um dos três princípiosfundamentais da doutrina social da Igreja, conjuntamente com oprincípio do bem comum e o princípio da subsidiariedade. Cf.D. António dos Reis Rodrigues, Doutrina Social da Igreja:Pessoa, Sociedade e Estado (Lisboa: Rei dos Livros, 1991).

29 Cf. Lucas Beltrán, Cristianismo y economia de mercado (Madrid:Unión Editorial, 1986).

30 Cf. Enrique M. Ureña, El mito del cristianismo socialista: Críticaeconómica de una controversia ideológica (Madrid: UniónEditorial, 1984).

31 Raoul Audouin fundou a revista Le Point de Rencontre, Liberalet Croyant (Paris: Cercle Frédéric Bastiat).

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Esperamos, pois, que a publicação em Portugal destaexcelente obra de Jésus Huerta de Soto possa contribuir paraa divulgação da Escola Austríaca e permitir um maior e melhorconhecimento das suas importantes contribuições e do seupromissor programa de pesquisa, quer junto dos meiosacadémicos, quer junto do restante público interessado porestas matérias.

André Azevedo Alves

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Introdução

O presente livro propõe-se explicar de uma formasintética, mas com a necessária profundidade, o conteúdoessencial e as características diferenciadoras mais importantesda Escola Austríaca de Economia, relativamente ao paradigmaque até agora tem dominado a nossa Ciência. Analisa-setambém a evolução do pensamento da Escola Austríaca desdeas suas origens até ao momento actual, indicando-se de queforma é previsível que as contribuições desta Escola possamtornar mais frutífera a evolução futura da Ciência Económica.

Dado que, de uma forma geral, os elementos essenciaisda Escola Austríaca não são bem conhecidos, no capítulo 1explica-se de maneira comparativa quais são os princípios maisimportantes da concepção dinâmica do mercado defendidapelos austríacos, assim como as substanciais diferenças deabordagem que existem entre o seu ponto de vista e o doparadigma neoclássico que até agora, e apesar das suas

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insuficiências, é o mais estudado na generalidade das nossasuniversidades. No capítulo 2 expõe-se o núcleo essencial datendência coordenadora que, impulsionada pela funçãoempresarial, explica, segundo os austríacos, por um lado, oaparecimento de uma ordem espontânea do mercado e, poroutro, a existência de uma série de leis de tendência cujo estudoconstitui o objecto de investigação da Ciência Económica.No capítulo 3 inicia-se o estudo da evolução da história dopensamento económico relacionado com a Escola Austríaca,partindo do fundador oficial da Escola, Carl Menger, cujasraízes precursoras remontam às contribuições desses notáveisteóricos que foram os membros da Escola de Salamanca doSéculo de Ouro espanhol. O capítulo 4 é dedicado todo ele àfigura de Böhm-Bawerk e à análise da teoria do capital, cujoestudo é um dos elementos que mais falta faz nos programasde teoria económica leccionados nas nossas universidades.Os capítulos 5 e 6 tratam, respectivamente, das contribuiçõesdos dois economistas austríacos mais importantes do séculoXX: Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek. Sem conheceros contributos destes dois teóricos não é possível entendercomo se foi formando a moderna Escola Austríaca, nem aquiloque representa no mundo de hoje. Por último, o capítulo 7dedica-se ao estudo do renascimento da Escola Austríaca que,tendo a sua origem na crise do paradigma dominante, está aser protagonizado por um numeroso grupo de jovensinvestigadores de diversas universidades da Europa e daAmérica. Uma exposição do programa de investigação damoderna Escola Austríaca, com as suas previsíveis

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contribuições para a evolução e futuro desenvolvimento danossa Ciência, juntamente com a resposta aos comentárioscríticos mais comuns que, geralmente fruto do desconhe-cimento e da incompreensão, se lançam contra o ponto de vistaaustríaco constituem a parte final deste livro.

Convém deixar claro que é impossível proceder aqui àexposição de uma visão completa e detalhada de todos osaspectos que caracterizam a Escola Austríaca. Apenas sepretende apresentar aqui um resumo das suas principaiscontribuições, de uma forma clara e sugestiva. Por isso, opresente trabalho não deve considerar-se mais do que umasimples introdução para todos aqueles interessados na EscolaAustríaca que, caso desejem aprofundar algum dos seuselementos concretos, terão que recorrer à bibliografia escolhidaque se inclui no final do livro. Por isso também se limitou ouso de citações, que poderiam ter sido incorporadas no textopara ampliar, ilustrar e clarificar ainda melhor o seu conteúdo.

O interesse prioritário do autor consistiu em apresentarde uma forma atractiva o paradigma austríaco para toda umasérie de potenciais leitores que, presumivelmente poucofamiliarizados com o mesmo, possam a partir da sua leituradecidir-se pelo aprofundamento de uma abordagem que, quasecom toda a certeza, será para eles tão inovadora comoapaixonante.

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1. Princípios essenciaisda Escola Austríaca

Uma das principais carências dos programas de estudodas nossas Faculdades de Economia é que nos mesmos, atéagora, não se tem oferecido aos estudantes uma visão completae integrada dos elementos teóricos essenciais que constituemas constribuições da moderna Escola Austríaca de Economia.No presente capítulo pretende-se cobrir essa importante lacuna,assim como dar uma visão panorâmica dos elementosdiferenciadores essenciais da Escola Austríaca, visão essa queajude a compreender a evolução histórica do seu pensamento,que será exposto nos capítulos posteriores. Para isso, apresenta-se no quadro 1.1., de uma forma clara e sintética, quais são asdiferenças essenciais que existem entre a Escola Austríaca e oparadigma dominante (neoclássico) que, de uma forma geral,é o ensinado nas nossas universidades. Desta maneira serápossível entender de uma forma simples e rápida a diferença

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de pontos de vista entre ambas as abordagens que de seguidaserão analisados com maior detalhe.

Quadro 1.1.Diferenças essenciais entre a Escola Austríaca e a Neoclássica

Pontos decomparação

1. Conceito de1. economia1. (princípio1. essencial):

2. Perspectiva1. metodológica:

3. Protagonista1. dos processos1. sociais:

4. Possibilidade1. de os agentes1. se equivoca-1. rem a priori e1. natureza do1. ganho empre-1. sarial:

5. Concepção da5. informação:

Paradigma austríaco

Teoria da acção humanaentendida como um pro-cesso dinâmico (praxeo-logia).

Subjectivismo.

Empreendedor criativo.

1. 1.

Admite-se a possibilidadede serem cometidos errosempresariais puros que po-deriam ter sido evitadoscom maior perspicácia em-presarial na percepção deoportunidades de lucro.

O conhecimento e a infor-mação são subjectivos, es-tão dispersos e alteram-seconstantemente (criativi-dade empresarial). Distin-ção radical entre conheci-mento científico (objecti-vo) e prático (subjectivo).

Paradigma neoclássico

Teoria da decisão: maxi-mização sujeita a restri-ções (conceito estrito de“racionalidade”).

Estereótipo do individua-lismo metodológico (ob-jectivista).

Homo oeconomicus.

Não se admite que existamerros dos quais alguém sepossa arrepender, uma vezque todas as decisões pas-sadas se racionalizam emtermos de custos e benefí-cios. Os lucros empresa-riais são considerados co-mo a renda de mais um fac-tor de produção.

Pressupõe-se a existênciade informação perfeita (emtermos certos ou probabi-lísticos), objectiva e cons-tante a propósito de fins ede meios. Não se distingueentre conhecimento prático(empresarial) e científico.

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Pontos decomparação

6. Ponto de6. referência:

7. Conceito de1. «concorrência»:

8. Conceito de6. custo:

9. Formalismo:

10. Relação com10. o mundo em-10. pírico:

11. Possibilidades10. de previsão10. específica:

Paradigma austríaco

Processo geral com ten-dência coordenadora. Nãose distingue entre a microe a macroeconomia: todosos problemas económicossão estudados de formainterrelacionada.

Processo de rivalidade em-presarial.

Subjectivo (depende da ca-pacidade empresarial paradescobrir novos fins alter-nativos).

Lógica verbal (abstracta eformal) que permite a con-sideração do tempo subjec-tivo e da criatividade hu-mana.

Raciocínios apriorístico--dedutivos: Separação ra-dical e, quando necessário,coordenação entre teoria(ciência) e história (arte).A história não pode ser uti-lizada para testar as teorias.

Impossível, uma vez que oque vai suceder no futurodepende de um conheci-mento empresarial aindanão criado. Apenas sãopossíveis pattern predic-tions de tipo qualitativo eteórico sobre as conse-quências descoordenado-ras do intervencionismo.

Paradigma neoclássico

Modelo de equilíbrio (geralou parcial). Separação entrea micro e a macroecono-mia.

Situação ou modelo de«concorrência perfeita».

Objectivo e constante (po-de ser conhecido e medidopor uma terceira parte).

Formalismo matemático(linguagem simbólica pró-pria da análise de fenóme-nos atemporais e constan-tes).

Verificação empírica dashipóteses (pelo menos reto-ricamente).

A previsão é um objectivoque se procura de formadeliberada.

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Pontos decomparação

12. Responsável6. pela previsão

13. Estado actual13. do paradi-13. gma:

14. Quantidade6. de “capital

14. humano” in-14. vestido :

15. Tipo de “ca-15. pital huma-15. no” investi-15. do:

16. Contribuições10.mais recentes:

17. Posição rela-17. tiva de dife-17. rentes auto-17. res:

Paradigma austríaco

O empresário.

Notável renascimento nosúltimos 25 anos (especial-mente depois da crise dokeynesianismo e da quedado socialismo real).

Minoritário, mas crescente

Teóricos e filósofos mul-tidisciplinares. Liberaisradicais.

� Análise crítica da coac-� ção institucional (socia-� lismo e intervencionis-� mo).� Teoria da banca livre e� dos ciclos económicos.� Teoria evolutiva das ins-� tituições (jurídicas, mo-� rais).� Teoria da função empre-� sarial.� Análise crítica do con-� ceito de «Justiça Social).

Rothbard, Mises, Hayek,Kirzner

Paradigma neoclássico

O analista económico(engenheiro social).

Situação de crise e mudan-ça acelerada.

Maioritário, mas com si-nais de crescente dispersãoe desagregação.

Especialistas em interven-cionismo económico (pie-cemeal social engineering).Grau de compromisso coma liberdade muito variável.

� Teoria da Escolha Públi-� ca.� Análise económica da fa-� mília.� Análise económica do di-� reito.� Nova macroeconomia� clássica.� Teoria económica da “in-� formação” (economics of� information).� Novos keynesianos.

Coase, Friedman, Becker,Samuelson, Stiglitz

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1.1. A teoria da acção dos austríacos frente à teoria1.1. da decisão dos neoclássicos

Para os teóricos austríacos, a Ciência Económica éconcebida como uma teoria da acção mais do que da decisão,e esta é uma das características que mais os separa dos seuscolegas neoclássicos. De facto, o conceito de acção humanaengloba e supera, em muito, o conceito de decisão individual.Em primeiro lugar, para a Escola Austríaca, o conceitorelevante de acção inclui, não só um hipotético processo dedecisão num enquadramento de conhecimento “dado” sobreos fins e os meios, mas sobretudo, e isto é o mais importante,“a própria percepção do sistema de fins e de meios” (Kirzner,1998: 48) no seio do qual tem lugar a alocação económica queos neoclássicos tendem a estudar com carácter deexclusividade. O importante para os austríacos não é que setenha tomado uma decisão, mas sim que a mesma é levada acabo sob a forma de uma acção humana ao longo de cujoprocesso (que eventualmente pode chegar ou não a concluir--se) se produzem uma série de interacções e actos decoordenação cujo estudo constitui, para os austríacos, o objectode investigação da Ciência Económica. Por isso, para a EscolaAustríaca, a Ciência Económica, longe de ser um conjunto deteorias sobre escolha ou decisão, é um corpus teórico que tratados processos de interacção social, que poderão ser mais oumenos coordenados, dependendo da capacidade demonstradano exercício da acção empresarial por parte dos agentesimplicados.

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Os austríacos são especialmente críticos da concepçãorestrita de economia que tem a sua origem em Robbins e nasua conhecida definição da mesma como ciência que estuda autilização de meios escassos susceptíveis de usos alternativospara a satisfação de necessidades humanas (Robbins, 1932).A concepção de Robbins supõe implicitamente umconhecimento dado sobre os fins e os meios, com o qual sereduz o problema económico a um problema técnico de meraalocação, maximização ou optimização, submetido a restriçõesque se supõe serem também conhecidas. Ou seja, a concepçãode economia em Robbins corresponde ao coração doparadigma neoclássico e pode considerar-se completamentealheia à metodologia da Escola Austríaca tal como ela hoje éentendida. Com efeito, o homem “robbinsiano” é um autómatoou simples caricatura do ser humano que se limita a reagir deforma passiva face aos acontecimentos. Em oposição a estaconcepção de Robbins, há que destacar a postura de Mises,Kirzner e do resto dos economistas austríacos, que consideramque o homem, mais do que alocar meios “dados” a fins também“dados”, procura constantemente novos fins e meios,aprendendo com o passado e usando a sua imaginação paradescobrir e criar (mediante a acção) o futuro. Por isso, para osaustríacos, a economia está integrada dentro de uma ciênciamuito mais geral e ampla, uma teoria da acção humana (e nãoda decisão ou escolha humanas). Segundo Hayek, se estaciência geral da acção humana “precisa de um nome, o termociências praxeológicas, agora claramente definido e

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amplamente utilizado por Ludwig von Mises, parece ser o maisapropriado” (Hayek, 1952a: 24).

1.2. O subjectivismo austríaco frente1.2. ao objectivismo neoclássico

Um segundo aspecto de importância crucial para osaustríacos é o subjectivismo. Para a Escola Austríaca, aconcepção subjectivista é essencial e consiste precisamentena tentativa de construir a Ciência Económica partindo sempredo ser humano real de carne e osso, considerado como agentecriativo e protagonista de todos os processos sociais. Por isso,para Mises, “a teoria económica não estuda coisas e objectosmateriais; estuda os homens, as suas apreciações e,consequentemente, as acções humanas que delas derivam.Os bens, as mercadorias, as riquezas e todas as demais noçõesde conduta não são elementos da natureza, mas sim elementosda mente e da conduta humana. Quem deseje entrar nestesegundo universo deve abstrair-se do mundo exterior,centrando a sua atenção no significado das acçõesempreendidas pelos homens” (Mises, 1995: 111-112). É fácilportanto entender que para os teóricos da escola Austríaca, eem grande medida ao contrário dos neoclássicos, as restriçõesem economia não são impostas por fenómenos objectivos oufactores materiais do mundo exterior (por exemplo, as reservasde petróleo), mas antes pelo conhecimento humano de tipo

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empresarial (a descoberta de um carburador que conseguisseduplicar a eficiência dos motores de explosão teria o mesmoefeito económico que uma duplicação do total de reservasfísicas de petróleo). Por isso, para a Escola Austríaca, aprodução não é um facto físico natural e externo, sendo antes,pelo contrário, um fenómeno intelectual e espiritual (Mises,1995: 169).

1.3. O empresário austríaco frente1.3. ao homo oeconomicus neoclássico

A função empresarial, à qual se dedicará grande partedo capítulo seguinte, é a força protagonista na teoria económicaaustríaca enquanto que, pelo contrário, está ausente na teoriaeconómica neoclássica. A função empresarial é um fenómenopróprio do mundo real (que está sempre em desequilíbrio) quenão tem lugar nos modelos de equilíbrio que absorvem aatenção dos autores neoclássicos. Além disso, os teóricosneoclássicos consideram que a função empresarial é apenasmais um factor de produção que pode ser alocado em funçãodos custos e benefícios esperados, não se dando conta de que,ao analisar o empresário desta forma, caem numa contradiçãológica insolúvel: procurar recursos empresariais em funçãodos seus custos e benefícios esperados implica acreditar quese dispõe hoje de uma informação (valor provável dos seusbenefícios e custos futuros) antes de a mesma ter sido criada

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pela própria função empresarial. Ou seja, a principal funçãodo empresário, como se verá mais adiante, consiste em criar edescobrir informação que antes não existia e, enquanto esseprocesso de criação não se leva a cabo, a mesma não existenem pode ser conhecida, pelo que não há forma humanamentepossível de efectuar com carácter prévio nenhuma decisão dealocação de tipo neoclássico com base nos benefícios e custosesperados.

Por outro lado, é hoje praticamente unânime entre oseconomistas austríacos considerar falaciosa a crença de queo lucro empresarial resulta da simples assunção de riscos.O risco, pelo contrário, não é senão mais um custo do processoprodutivo, que nada tem a ver com o lucro empresarial puroque surge quando um empresário descobre uma oportunidadede ganho que até aí tinha passado despercebida e actuaem conformidade para tirar partido da mesma (Mises, 1995:953-955).

1.4. A possibilidade de erro empresarial puro (austríacos)1.4. frente à racionalização a posteriori de todas as decisões1.4. (neoclássicos)

Não é costume valorizar-se a diferença significativaentre o papel que o conceito de erro desempenha na EscolaAustríaca e na Escola Neoclássica. Para os austríacos, é pos-sível que se cometam erros empresariais “puros” sempre que

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uma oportunidade de lucro permanece no mercado sem serdescoberta pelos empresários. É precisamente a existênciadeste tipo de erros que dá lugar, quando o mesmo é descobertoe eliminado, ao “lucro empresarial puro”. Para os autoresneoclássicos, pelo contrário, nunca existem erros genuínosde tipo empresarial dos quais alguém se deva arrepender aposteriori. Isto é assim porque os neoclássicos racionalizamtodas as decisões que tenham sido tomadas no passado emtermos de uma suposta análise de custo-benefício efectuadasob a forma de uma operação de maximização matemáticasujeita a restrições. Assim se compreende que os lucrosempresariais puros não tenham razão de ser no mundoneoclássico e que estes, quando se mencionam, sejamconsiderados simplesmente como o pagamento pelos serviçosde mais um factor de produção ou como a renda resultante daassunção de um risco.

1.5. A informação subjectiva dos austríacos frente1.5. à informação objectiva dos neoclássicos

Os empresários geram constantemente nova informaçãoque tem um carácter essencialmente subjectivo, prático,disperso e dificilmente articulável (Huerta de Soto, 1992:52-67 e 104-110). Portanto, a percepção subjectiva da infor-mação é um elemento essencial da metodologia austríaca queestá ausente da economia neoclássica, pois esta última tende

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sempre a tratar a informação de uma forma objectiva. A maiorparte dos economistas não se apercebem de que quandoaustríacos e neoclássicos usam o termo informação se estão areferir a realidades radicalmente distintas. Com efeito, paraos neoclássicos a informação é algo objectivo que, tal comoas outras mercadorias, pode ser comprado e vendido nomercado como resultado de uma decisão maximizadora.Esta “informação”, armazenável em diferentes suportes, nãoé de forma alguma a informação em sentido subjectivoanalisada pelos austríacos: conhecimento prático, relevante,subjectivamente interpretado, conhecido e utilizado peloagente no contexto de uma acção concreta. Por isso oseconomistas austríacos criticam Stiglitz e outros teóricosneoclássicos da informação por não terem sido capazes deintegrar a sua teoria da informação com a função empresarial,que é sempre a sua fonte geradora e protagonista. Além disso,para os austríacos, Stiglitz não entende que a informação ésempre essencialmente subjectiva e que os mercados por eleconsiderados “imperfeitos”, mais do que gerar “ineficiências”(no sentido neoclássico), permitem o aparecimento deoportunidades de potenciais lucros empresariais, oportunidadesessas que tendem a ser descobertas e aproveitadas pelosempresários no processo de coordenação empresarial queestes continuamente impulsionam no mercado (Thomsen,1992).

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1.6. O processo empresarial de coordenação dos austríacos1.6. frente aos modelos de equilíbrio (geral e/ou parcial)1.6. dos neoclássicos

Os economistas neoclássicos ignoram usualmente nosseus modelos de equilíbrio a força coordenadora da funçãoempresarial. Com efeito, esta não só cria e transmiteinformação como também, e isto é o mais importante,impulsiona a coordenação entre os comportamentosdesajustados que ocorrem na sociedade. Como se verá nocapítulo seguinte, toda a descoordenação social constitui umaoportunidade de lucro latente até ser descoberta pelosempresários. Assim que o empresário se dá conta dessaoportunidade de lucro e actua para se aproveitar da mesma,esta desaparece e produz-se um processo espontâneo decoordenação, que é o que explica a tendência para o equilíbrioque existe em qualquer economia real de mercado. Além disso,o carácter coordenador da função empresarial é o único quetorna possível a existência da teoria económica como ciência,entendida esta como um corpus teórico de leis de coordenaçãoque constituem os processos sociais.

Os economistas austríacos estão interessados em estudaro conceito dinâmico de concorrência (entendido como umprocesso de rivalidade), enquanto que os economistasneoclássicos se centram exclusivamente nos modelos deequilíbrio que são próprios da estática comparativa(concorrência “perfeita”, monopólio, concorrência

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“imperfeita” ou monopolística). Para os austríacos, portanto,não tem sentido a construção da Ciência Económica tendopor base o modelo de equilíbrio, pressupondo que toda ainformação relevante para construir as respectivas funções deoferta e de procura se encontra “dada”. Os austríacos, pelocontrário, estudam preferencialmente o processo de mercadoque conduziria eventualmente até um equilíbrio que em últimainstância nunca se alcança. Chega-se inclusivamente a falarde um modelo denominado de “big bang social”, que permiteo crescimento sem limite do conhecimento e da civilização deuma forma tão ajustada e harmoniosa (ou seja, coordenada)como seja humanamente possível em cada circunstânciahistórica. Tal sucede porque o processo empresarial decoordenação social nunca pára nem se esgota. Ou seja, o actoempresarial consiste basicamente em criar ou transmitir novainformação que forçosamente há-de modificar a percepçãogeral de objectivos e de meios de todos os agentes implicadosna sociedade. Isto dá lugar à aparição de novos desajus-tamentos que por sua vez originam novas oportunidades delucro empresarial que tendem a ser descobertas e coordenadaspelos empresários; e assim sucessivamente, num processodinâmico que nunca termina e que continuamente se expandee faz avançar a civilização (modelo de “big bang social”coordenado) (Huerta de Soto, 1992: 78-79).

Assim, o problema económico fundamental que secoloca na Escola Austríaca é muito diferente do que o analisadopelos economistas neoclássicos: consiste em estudar o processo

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dinâmico de coordenação social no qual os diferentes sereshumanos geram empresarialmente e de forma continuada novainformação (que, portanto, jamais está “dada”) ao procurar osfins e os meios que consideram relevantes no contexto de cadaacção em que participam, estabelecendo dessa maneira, semse darem conta, um processo espontâneo de coordenação.Para os austríacos, o problema económico fundamental não éde natureza técnica ou tecnológica, como geralmente consi-deram os teóricos do paradigma neoclássico ao suporem queos fins e os meios são “dados”. Para a Escola Austríaca, oproblema económico fundamental não consiste na maximi-zação de uma função objectivo conhecida submetida arestrições também elas conhecidas, sendo, pelo contrário, denatureza estritamente económica: surge quando os fins e osmeios são muitos e competem entre si, sendo que oconhecimento sobre os mesmos não está “dado”, encontrando--se disperso pelas mentes de inúmeros seres humanos queconstantemente o criam e geram ex novo não sendo por issosequer possível conhecer todas as possibilidades e alternativasexistentes, nem a intensidade relativa com a qual se desejatentar alcançar cada uma delas.

É necessário comprrender que mesmo aquelas acçõeshumanas que mais parecem meramente maximizadoras eoptimizadoras possuem sempre uma componente empresarial,uma vez que é preciso que o agente implicado nas mesmasse tenha dado conta previamente de que tal curso de acção(tão autómato, mecânico e reactivo), é o mais conveniente

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dadas as circunstâncias concretas do caso em que se encontra.Ou seja, a concepção neoclássica não é mais do que um casoparticular, relativamente pouco importante, que é englobadoe subsumido na concepção austríaca, a qual é muito maisgeral, rica e explicativa da realidade social.

Para os teóricos da Escola Austríaca não faz sentido aseparação radical em compartimentos estanques entre a microe a macroeconomia que os economistas neoclássicos costumamfazer. Pelo contrário, para os austríacos, os problemas econó-micos devem estudar-se conjuntamente e inter-relacionadosentre si, sem distinguir a parte micro e macro dos mesmos.A radical separação entre os aspectos “micro” e “macro” daCiência Económica é uma das insuficiências mais caracterís-ticas dos modernos manuais introdutórios de EconomiaPolítica, que em vez de proporcionarem um tratamento unitá-rios dos problemas económicos (como constantemente tentamos economistas austríacos), apresentam a Ciência Económicadividida em duas disciplinas distintas (a “micro” e a “macroe-conomia”) que carecem de conexão entre si e que, portanto,podem estudar-se, e de facto estudam-se, separadamente.Como muito bem indica Mises, esta separação tem a suaorigem na utilização de conceitos que, como o nível geral depreços, ignoram a aplicação da teoria subjectiva e marginalistado valor ao dinheiro e continuam ancorados na etapa pré-cientí-fica da economia na qual ainda se tentava efectuar a análiseem termos de classes globais ou agregados de bens, mais doque em termos de unidades incrementais ou marginais dos

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mesmos. Assim se explica como se desenvolveu toda uma“infeliz disciplina” baseada no estudo de supostas relaçõesmecânicas existentes entre agregados macroeconómicos cujaconexão com a acção humana é muito difícil, senão mesmoimpossível, de compreender (Mises, 1995: 482).

Em todo o caso, há que reconhecer que os economistasneoclássicos fizeram do modelo de equilíbrio o seu centro focalde investigação. Nele se supõe que toda a informação está“dada” (seja em termos certos ou probabilísticos) e que existeum ajustamento perfeito entre as diferentes variáveis de cadamodelo. Do ponto de vista da Escola Austríaca, o principalinconveniente da metodologia neoclássica é que, ao supor-sea existência de um ajustamento perfeito entre as variáveis eparâmetros de cada modelo, pode-se chegar muito facilmentea conclusões erróneas quanto às relações de causa-efeito queexistem entre os diferentes conceitos e fenómenos económicos.Desta forma, segundo os austríacos, o equilíbrio actuariacomo uma espécie de véu que impediria o teórico de conseguirdescobrir a verdadeira direcção que existe nas relações decausa e efeito que fazem parte das leis económicas. Para oseconomistas neoclássicos, mais do que leis de tendênciaunidireccionais, o que existe é uma mútua determinação(circular) de tipo funcional entre os diferentes fenómenos, cujaorigem inicial (a acção humana) permanece oculta ou seconsidera não ter interesse.

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1.7. O carácter subjectivo que os custos1.7. têm para os austríacos frente ao conceito1.7. de custo objectivo dos neoclássicos

Outro elemento essencial da metodologia da EscolaAustríaca é a sua concepção subjectiva dos custos. Muitosautores consideram que esta ideia pode ser incorporada semgrande dificuldade dentro do paradigma neoclássicodominante. No entanto, os teóricos neoclássicos apenasincorporam de forma retórica o carácter subjectivo dos custosacabando por o incorporar de formar objectivada nos seusmodelos, ainda que mencionem a importância do conceito de“custo de oportunidade”. Para os austríacos, custo é o valorsubjectivo que o agente atribui aos fins aos quais renunciaquando decide empreender um determinado curso de acção.Ou seja, não existem custos objectivos, uma vez que os mesmosestão continuamente a ser descobertos em cada circunstânciaatravés da perspicácia empresarial de cada agente. Com efeito,podem passar despercebidas muitas possibilidades alternativasque, uma vez descobertas empresarialmente, alterariamradicalmente a concepção subjectiva dos custos por parte doagente em causa. Não existem, portanto, custos objectivos quetendam a determinar o valor dos fins, sendo que na realidadesucede precisamente o contrário: os custos como valoressubjectivos são assumidos (e, portanto, são determinados) emfunção do valor subjectivo que os fins desejados (bens finaisde consumo) têm para o agente. Por isso, para os economistas

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austríacos, são os preços dos bens finais de consumo, comomaterialização no mercado das avaliações subjectivas, quedeterminam os custos nos quais se está disposto a incorrerpara os produzir, e não ao contrário como tão frequentementedão a entender os economistas neoclássicos nos seus modelos.

1.8. O formalismo verbal dos austríacos1.8. frente à formalização matemática dos neoclássicos

As duas escolas têm posições muito diferentesrelativamente à utilização do formalismo matemático naanálise económica. O fundador da Escola Austríaca, CarlMenger, teve o cuidado de assinalar que a vantagem da lingua-gem verbal consistia em esta permitir atingir a essência (daswesen) dos fenómenos económicos, algo que não é possívellevar a cabo com a linguagem matemática. Com efeito, numacarta de 1884 que escreveu a Walras, Menger questionava-se:“Como se poderá alcançar o conhecimento da essência, porexemplo, do valor da renda da terra, do lucro empresarial, dadivisão do trabalho, do bimetalismo, etc., através de métodosmatemáticos?” (Walras, 1965: vol. II, 3). O formalismomatemático é particularmente adequado para descrever osestados de equilíbrio estudados pelos neoclássicos, mas nãopermite incorporar a realidade subjectiva do tempo nem acriatividade empresarial, que são características essenciais dodiscurso analítico dos teóricos da Escola Austríaca. Talvez

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Hans Mayer tenha resumido melhor que ninguém asinsuficiências da utilização do formalismo matemático naeconomia quando escreveu que “em essência, produz-se nocoração das teorias matemáticas do equilíbrio uma ficçãoimanente, mais ou menos camuflada: de facto, todas elasrelacionam, mediante equações simultâneas, magnitudes nãosimultâneas, que apenas surgem numa sequência genético-causal, como se estas existissem juntas em qualquer momento.Desta forma, o ponto de vista estático sincroniza osacontecimentos, quando o que existe na realidade é umprocesso dinâmico; no entanto, não se pode considerar umprocesso genético em termos estáticos sem eliminarprecisamente a sua característica mais importante” (Mayer,1994: 92).

As considerações anteriores explicam as razões pelasquais, para os membros da Escola Austríaca, muitas das teoriase conclusões da análise neoclássica carecem de verdadeirosentido económico. É o caso, por exemplo, a denominada “leida igualdade das utilidades marginais ponderadas pelospreços”, cujos fundamentos teóricos são mais do queduvidosos. Com efeito, esta lei supõe que o agente é capaz deavaliar de forma simultânea a utilidade de todos os bens à suadisposição, ignorando-se que toda a acção é sequencial ecriativa e que os bens não se avaliam todos ao mesmo tempo,igualando a sua suposta utilidade marginal, mas sim um decada vez, no contexto de etapas e acções distintas nas quais acorrespondente utilidade marginal não só pode ser diferente

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como nem sequer é comparável (Mayer, 1994: 81-83). Emsuma, para os austríacos, o uso da matemática na economiatem resultados nefastos porque as mesmas unemsincronicamente magnitudes que são heterogéneas do pontode vista temporal e da criatividade empresarial. Por estamesma razão, para os economistas austríacos, não têm sentidoos critérios axiomáticos de racionalidade utilizados pelos seuscolegas neoclássicos. Com efeito, se alguém prefere A a B e Ba C, pode perfeitamente preferir C a A, sem deixar de ser“racional” ou coerente, bastando para tal que, simplesmente,tenha mudado de opinião (mesmo que a mudança de opiniãose dê durante o centésimo de segundo que dure o seu próprioraciocínio sobre este problema). Para os economistasaustríacos, os critérios neoclássicos de racionalidadeconfundem o conceito de constância com o conceito decoerência (Mises, 1995: 123-124).

1.9. A conexão da teoria com o mundo empírico:1.9. os diferentes entendimentos do conceito de “previsão”

A distinta relação com o mundo empírico e as diferençasquanto às possibilidades de previsão opõem radicalmente oparadigma da Escola Austríaca ao da Escola Neoclássica. Comefeito, para os austríacos, o facto de o “observador” científiconão poder obter a informação subjectiva, que está continua-mente a ser criada e descoberta de forma descentralizada pelos

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agentes-empresários “observados” que protagonizam oprocesso social, fundamenta a sua convicção naimpossibilidade teórica de efectuar testes empíricos emeconomia. Os austríacos consideram que as razões quedeterminam a impossibilidade teórica do socialismo são asmesmas que explicam que, tanto o empirismo como a análisecusto-benefício ou utilitarismo na sua versão mais rígida, nãosejam praticáveis na nossa Ciência. É irrelevante que seja umcientista ou um governante a tentar em vão obter a informaçãoprática relevante em cada caso. Se tal fosse possível, tão fácilseria utilizar essa informação para coordenar a sociedadeatravés de mandatos coactivos (engenharia social própria dosocialismo e do intervencionismo) como para testar empiri-camente as teorias económicas. Assim, pelas mesmas razões,primeiro, pelo imenso volume de informação de que se trata;segundo, pela natureza da informação relevante (disseminada,subjectiva e tácita); terceiro, pelo carácter dinâmico doprocesso empresarial (não se pode transmitir informação queainda não foi gerada pelos empresários no seu constanteprocesso de criação inovadora); e quarto, pelo efeito dacoacção e da própria “observação” científica (que distorce,corrompe, dificulta ou simplesmente impossibilita a criaçãoempresarial de informação), tanto o ideal socialista como oideal positivista ou rigidamente utilitarista são impossíveis deatingir do ponto de vista da Escola Austríaca.

Os argumentos apresentados (que serão analisados commaior detalhe quando explicarmos a história da polémica em

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torno da impossibilidade do cálculo económico socialista, sãotambém aplicáveis para justificar a convicção dos austríacosna impossibilidade teórica de efectuar previsões específicas(ou seja, referentes a coordenadas de tempo e lugar determi-nadas e com um conteúdo empírico concreto) em economia.O que vai acontecer amanhã não pode ser cientificamenteconhecido hoje, uma vez que depende em grande medida deum conhecimento e de uma informação que ainda não foramgerados empresarialmente e que não podem por isso possuir--se hoje. Em economia, portanto, apenas se podem efectuar“previsões de tendência” de tipo genérico, que Hayekdenomina pattern predictions. Estas previsões são de naturezaexclusivamente qualitativa e teórica e referem-se à previsãodos desajustes e efeitos de descoordenação social originadospela coacção institucional (socialismo e intervencionismo) quese exerce sobre o mercado.

Além disso, há que recordar a inexistência de factosobjectivos que sejam directamente observáveis no mundoexterior, a qual deriva da circunstância de, de acordo com aconcepção subjectiva dos austríacos, os objectos deinvestigação na Ciência Económica não serem mais do que asideias que os indivíduos têm sobre o que desejam e fazem.Estas ideias não são nunca directamente observáveis, apenaspodendo ser interpretadas em termos históricos. Parainterpretar a realidade social que constitui a história, é precisodispor de uma teoria prévia, requerendo-se ainda para o efeitoum juízo de relevância não científico (verstehen ou compreen-

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são) que não é objectivo e que pode variar de historiador parahistoriador convertendo a disciplina (a história) numaverdadeira arte.

Finalmente, os austríacos consideram que os fenómenosempíricos são continuamente variáveis, de maneira que nosacontecimentos sociais não existem parâmetros nemconstantes, sendo que tudo são “variáveis”, o que torna muitodifícil, se não impossível, o objectivo tradicional daeconometria, assim como o programa metodológico positivistaem qualquer das suas versões (desde o verificacionismo maisingénuo ao falsificacionismo popperiano mais sofisticado).Frente ao ideal positivista dos neoclássicos, os economistasaustríacos pretendem construir a sua disciplina de uma maneiraapriorística e dedutiva. Trata-se, em suma, de elaborar todoum arsenal lógico-dedutivo a partir de conhecimentos auto--evidentes (axiomas como o próprio conceito subjectivo daacção humana com os seus elementos essenciais que, ousurgem por introspecção da experiência íntima do cientista,ou se considera serem auto-evidentes porque ninguém os podediscutir sem se auto-contradizer (Hoppe, 1995; Caldwell, 1994:117-138). Este arsenal teórico é imprescindível, de acordo comos austríacos, para interpretar adequadamente esse conjuntode complexos fenómenos históricos aparentemente semconexão que constitui o mundo social, assim como paraelaborar uma história do passado ou uma prospecção deeventos futuros (que é a missão própria do empresário) comum mínimo de coerência, de garantias e de possibilidades de

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êxito. Entende-se agora a grande importância que os austríacosem geral atribuem à história como disciplina e à sua distinçãoda teoria económica, relacionando-as adequadamente(Mises, 1975).

Hayek denomina de “cientismo” (scientism) a aplicaçãoindevida do método próprio das ciências da natureza ao campodas ciências sociais (Hayek, 1952a). No mundo natural existemconstantes e relações funcionais que permitem a aplicação dalinguagem matemática e a realização de experiênciasquantitativas em laboratório. No entanto, para os economistasaustríacos, na Ciência Económica, e ao contrário do que sucedeno mundo da física, da engenharia e das ciências naturais, nãoexistem relações funcionais (nem, por isso, funções de oferta,nem de procura, nem de custos, nem de nenhum outro tipo).Recordemos que, matematicamente, e segundo a teoria dosconjuntos, uma função não é mais do que uma correspondênciabiunívoca entre os elementos dos conjuntos denominados“conjunto original” e “conjunto imagem”. Ora, dada a inatacapacidade criativa do ser humano, que continuamente gera edescobre nova informação em cada circunstância concreta emque actua, é evidente que em economia não se verifica nenhumdos três elementos necessários para que surja uma relaçãofuncional: a) não estão dados nem são constantes os elementosdo conjunto origem; b) não estão dados nem são cosntantes oselementos que constituem o conjunto imagem, e c) e este é oelemento mais importante, as correspondências entre oselementos de um e de outro conjunto também não estão dadas,

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uma vez que variam continuamente em resultado da acção eda capacidade criativa do ser humano. De maneira que, nanosa Ciência, e de acordo com os austríacos, a utilização defunções exige a introdução de um pressuposto de constânciana informação que elimina radicalmente o protagonista dequalquer processo social: o ser humano dotado da sua inatacapacidade empresarial criativa. O grande mérito dosaustríacos consiste em ter demonstrado que é perfeitamentepossível elaborar todo o corpus da teoria económica de umaforma lógica e considerando o tempo e a criatividade(praxeologia), ou seja, sem necessidade de utilizar funçõesnem de estabelecer pressupostos de constância que não secoadunam com a natureza do ser humano, que é o verdadeiroe único protagonista de todos os processos sociais queconstituem o objecto de investigação da Ciência Económica.Os teóricos austríacos têm vindo a insistir especialmente nasinsuficiências dos estudos empíricos para promover odesenvolvimento da teoria económica. Até os mais destacadoseconomistas neoclássicos tiveram que admitir que existemalgumas importantes leis económicas (como a teoria daevolução e da selecção natural) que não são empiricamenteverificáveis (Rosen, 1997). Com efeito, os estudos empíricospoderão, quando muito, fornecer alguma informação,historicamente contingente, sobre certos elementos dosresultados dos processos sociais que tiveram lugar na realidade,mas não podem nunca proporcionar informação sobre aestrutura formal desses processos, cujo conhecimento constitui

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precisamente o objecto de investigação da teoria económica.Por outras palavras, as estatísticas e os estudos empíricos nãopodem proporcionar qualquer conhecimento teórico (acreditarno contrário foi precisamente o erro, como adiante se verá,em que caíram os historicistas da Escola Alemã do século XIX,e que hoje em grande medida repetem os economistas da EscolaNeoclássica). Além disso, e como muito bem evidenciouHayek no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel, emmuitas ocasiões, os agregados que são mensuráveis em termosestatísticos carecem de significado teórico e, vice-versa, muitosconceitos com um significado teórico fundamental não sãomensuráveis nem permitem um tratamento empírico(Hayek, 1976b: 9-32).

1.10. Conclusão

As principais críticas que os economistas austríacosfazem aos neoclássicos e que evidenciam os elementos básicosdiferenciadores do seu ponto de vista são os seguintes: emprimeiro lugar, concentrarem-se exclusivamente em estadosde equilíbrio através de um modelo maximizador que assumecomo “dada” a informação de que necessitam os agentes paraas suas funções objectivo e restrições; segundo, a escolha, emmuitos casos arbitrária, de variáveis e parâmetros tanto para afunção objectivo como para as restrições, tendendo a incluiros aspectos mais óbvios e esquecendo outros de grande

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importância, mas cujo tratamento empírico é mais difícil(valores morais, hábitos e tradições, instituições, etc.); terceiro,centrarem-se nos modelos de equilíbrio que tratam com oformalismo da matemática e que ocultam as verdadeiras razõesde causa e efeito; e quarto, elevar ao nível de conclusõesteóricas o que não são mais do que meras interpretações darealidade histórica, que podem ser relevantes em algumascircusntâncias concretas, mas que não se pode considerar comotendo uma validade teórica universal, uma vez que apenas sebaseiam num conhecimento historicamente contingente.

As considerações anteriores não significam que todasas conclusões que até agora surgiram na análise neoclássicasejam erróneas. Uma parte importante delas pode serrecuperada e ser considerada válida. Os teóricos austríacosquerem unicamente realçar que não existe qualquer garantiaquanto à validade das conclusões a que os economistasneoclássicos chegam, de maneira que aquelas que sejamválidas podem ser obtidas de forma mais segura através daanálise dinâmica que os austríacos preconizam. A análisedinâmica dos austríacos tem ainda a virtualidade de permitiridentificar as teorias erróneas (também muito numerosas)pondo em evidência os vícios e os erros que actualmente sãoocultados pelo método empírico baseado no modelo deequilíbrio no qual se fundamentam os economistas doparadigma dominante.

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2. Conhecimento e função empresarial

Neste capítulo vamos explicar o conceito e ascaracterísticas da função empresarial. A empresarialidade temuma importância fundamental na Escola Austríaca, podendoconsiderar-se o eixo em torno do qual gira a análise económicados seus membros. Daí a grande importância de explicar emque consiste a essência da empresarialidade e o papeleconómico desempenhado pelo conhecimento que é geradopelos empresários quando actuam no mercado. Apenas destamaneira será possível compreender a tendência coordenadoraque existe nos processos dinâmicos de mercado, assim comoa evolução histórica do pensamento económico da EscolaAustríaca, o qual será analisado com maior detalhe noscapítulos seguintes.

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2.1. Definição de função empresarial

Para os austríacos, num sentido geral ou amplo, a funçãoempresarial coincide com a própria acção humana. Nestesentido poder-se-ia afirmar que exerce a função empresarialqualquer pessoa que actua para modificar o presente econseguir os seus objectivos no futuro. Ainda que estadefinição possa à primeira vista parecer demasiado ampla eem desacordo com os usos linguísticos actuais, há que ter emconta que a mesma está em plena conformidade com o originalsignificado etimológico do termo empresa. De facto, tanto asexpressões espanhola e portuguesa empresa como as acepçõesfrancesa e inglesa entrepreneur procedem etimologicamentedo verbo latino in prehendo-endi-ensum, que significa desco-brir, ver, perceber, dar-se conta de, capturar; e a expressãolatina in prehensa comporta claramente a ideia de acção, nosentido de tomar, agarrar. Em suma, empresa é sinónimo deacção, sendo que em França já há muito tempo, na Alta IdadeMédia, se utilizava o termo entrepreneur para designar aspessoas encarregadas de efectuar acções importantes,geralmente relacionadas com a guerra, ou de levar a cabo osgrandes projectos relacionados com a construção de catedrais.No castelhano, um dos significados do termo empresa, deacordo com o Diccionario da Real Academia Espanhola, é ode “acção árdua e difícil que se inicia valorosamente”. Desdea Idade Média começou a usar-se o termo para denominar asinsígnias de determinadas ordens de cavalaria que indicavam

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a intenção, sob julgamento, de realizar uma determinada eimportante acção. Vemos assim que o sentido de empresaenquanto acção está necessária e inexoravelmente unido a umaatitude empreendedora, que consiste precisamente emcontinuamente tentar procurar, descobrir ou criar novos fins emeios (tudo isto em consonância com o significado etimológicode in prehendo, que já vimos).

A função empresarial, em sentido estrito, consistebasicamente em descobrir e avaliar (prehendo) as oportu-nidades de alcançar um fim ou, se preferirmos, de conseguiralgum lucro ou benefício, tendo em conta as circunstânciasenvolventes e agindo de modo a aproveitá-las. Kirzner afirmouque o exercício da empresarialidade implica uma especialperspicácia (alertness), ou seja, um contínuo estado de alerta,que torna possível ao ser humano descobrir e aperceber-se doque ocorre ao seu redor (Kirzner, 1998: 48 e 79). Talvez Kirznerutilize o termo inglês alertness por o termo entrepreneurship(“função empresarial”) ser de origem francesa e não remeterimediatamente na língua anglo-saxónica para a ideia deprehendo que tem nas línguas românicas continentais.De qualquer forma, em castelhano, o adjectivo qualificativoperspicaz é muito adequado para a função empresarial, umavez que se aplica, segundo o Diccionario da Real AcademiaEspanhola, “à visão ou perspectiva muito precisa e de longoalcance”. De igual forma, o termo especulador, procedeetimologicamente do latim specula, termo que se utilizava paradesignar as torres do topo das quais os vigias podiam ver à

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distância tudo o que se aproximava. Estas ideias encaixamassim perfeitamente na descrição da actividade que é exercidapelo empresário quando este tem de decidir quais serão as suasacções, estimar o efeito das mesmas no futuro e empreendê--las. O estado de alerta, ainda que seja também aceitável comodescrição do conceito de actividade empresarial por remeterpara a ideia de atenção ou vigilância, parece, no entanto, umaexpressão menos adequada que o adjectivo perspicaz, talvezpor implicar claramente uma atitude algo mais estática.

2.2. Informação, conhecimento e empresarialidade

Não é possível entender a profundidade da natureza dafunção empresarial tal como a Escola Austríaca a considera,sem compreender de que forma a empresarialidade altera ainformação ou conhecimento possuído pelo agente. Por umlado, criar ou aperceber-se de novos fins e meios supõe umamodificação do conhecimento do agente, no sentido de quedescobre nova informação que antes não tinha. Por outro lado,essa descoberta modifica todo o mapa ou contexto deinformação ou conhecimento possuído pelo agente. Deve poiscolocar-se a seguinte questão essencial: Quais as característicasda informação e do conhecimento relevantes para o exercícioda função empresarial? De seguida, vão-se estudar com detalheas seis características básicas do conhecimento empresarialdo ponto de vista da Escola Austríaca: 1) é um conhecimento

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subjectivo de tipo prático, não científico; 2) é um conhecimentoexclusivo; 3) encontra-se disperso pelas mentes de todos osindivíduos; 4) na sua maior parte é um conhecimento tácito e,portanto, não articulável; 5) é um conhecimento que se criaex nihilo, a partir do nada, precisamente mediante o exercícioda função empresarial, e 6) é um conhecimento transmissível,na sua maior parte de forma inconsciente, através decomplexíssimos processos sociais, cujo estudo, segundo osautores austríacos, constitui o objecto de investigação daCiência Económica.

2.3. Conhecimento subjectivo e prático, não científico

Em primeiro lugar, o conhecimento que estamos aanalisar, o mais importante para o exercício da acção humana,é um conhecimento subjectivo de tipo prático e não de naturezacientífica. Conhecimento prático é todo aquele que não podeser representado de uma maneira formal, uma vez que o sujeitoo adquire através da prática, ou seja, da própria acção humanaexercida nos seus contextos correspondentes. Trata-se, comoafirmou Hayek, do conhecimento relevante relativo a todo otipo de circunstâncias particulares quanto às suas coordenadassubjectivas no tempo e no espaço (Hayek, 1972: 51 e 91). Emsuma, trata-se de um conhecimento sobre avaliaçõeshumanas concretas, ou seja, tanto dos fins pretendidos peloagente, como dos fins que ele acredita serem pretendidos por

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outros agentes. Trata-se igualmente de um conhecimentoprático sobre os meios que o agente acredita ter ao seu alcancepara atingir os seus fins, em particular sobre todas ascircunstâncias, pessoais ou não, que o agente considera quepodem ser relevantes no contexto de cada acção concreta.

É preciso referir que devemos esta distinção entre osconceitos de “conhecimento prático” e “conhecimento cientí-fico” a Michael Oakeshott (Oakeshott, 1991: 12 e 15) e que amesma é paralela à distinção hayekiana entre “conhecimentodisperso” e “conhecimento centralizado”, à efectuada porMichael Polanyi entre “conhecimento tácito” e “conhecimentoarticulado” (Polanyi, 1959: 24-25), e à estabelecida por Misesentre o conhecimento relativo a “eventos singulares” e oconhecimento relativo ao comportamento de toda uma “classede fenómenos” (Mises, 1995: 130-137). As abordagens dosdiferentes pontos de vista destes quatro autores aos diferentestipos básicos de conhecimento está resumida no quadro 2.1.

Quadro 2.1.Dois tipos diferentes de conhecimento

Oakeshott

Hayek

Polanyi

Mises

Tipo A Tipo B

Prático (tradicional)

Disperso

Tácito

De “eventos singulares˝

Científico (ou técnico)

Centralizado

Articulado

De “classes˝

ECONOMIA(conhecimentos de tipo B sobre conhecimentos de tipo A)

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As relações entre ambos os tipos de conhecimento sãocomplexas. Todo o conhecimento científico (tipo B) tem umabase tácita não articulável (tipo A). Os avanços científicos etécnicos (tipo B) materializam-se de seguida em novosconhecimentos práticos (tipo A), mais potentes e produtivos.A Ciência Económica seria um conjunto de conhecimentostipo B (científicos) sobre os processos de criação e transmissãodo conhecimento prático (tipo A). Entende-se agora que paraHayek o principal risco da economia como ciência radique nofacto de, por teorizar sobre conhecimentos tipo A, se acrediteque, de alguma forma, os seus praticantes (“científicos daEconomia” ou “engenheiros sociais”) podem conhecer oconteúdo específico dos conhecimentos de tipo A que osseres humanos continuamente criam e manipulam a nívelempresarial. Ou, o que é ainda pior, existe o risco de se ignorarcompletamente o conteúdo específico do conhecimentoprático, como tão correctamente criticou Oakeshott, paraquem o racionalismo, na sua versão mais perigosa, exageradae errónea, consistia precisamente em acreditar “que o que sedenominou conhecimento prático não é sequer conhecimento,ou seja, que no seu sentido mais próprio não existe maisnenhum conhecimento para além do conhecimento técnico”(Oakeshott, 1991: 15).

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2.4. Conhecimento exclusivo e disperso

O conhecimento prático é um conhecimento de tipoexclusivo e disperso. Significa isto que cada indivíduo-agentepossui apenas alguns “átomos” ou “bits” de toda a informaçãogerada e transmitida globalmente a nível social, mas parado-xalmente apenas ele a possui, ou seja, apenas ele a conhece einterpreta de forma consciente. Assim, cada indivíduo queactua e exerce a função empresarial fá-lo de uma maneiraestritamente pessoal e irrepetível, uma vez que tenta alcançarfins e objectivos segundo uma visão e conhecimento do mundoque apenas ele possui em toda a sua riqueza e variedade, e queé irrepetível de forma idêntica em qualquer outro ser humano.Por isso, o conhecimento a que nos estamos a referir não éalgo que esteja dado, que se encontre disponível através dealgum meio material de armazenamento de informação (comojornais, revistas especializadas, livros, estatísticas,computadores, etc.). Pelo contrário, o conhecimento relevantepara a acção humana é um conhecimento puramenteempresarial de tipo prático e estritamente exclusivo, que apenasse “encontra” disseminado nas mentes de todos e cada um doshomens e mulheres que actuam empresarialmente e queimpulsionam a humanidade.

2.5. Conhecimento tácito não articulável

O conhecimento prático é, na sua maior parte, umconhecimento de tipo tácito não articulável. Significa isto que

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o agente sabe como fazer ou efectuar determinadas acções(know how), mas não sabe quais são os elementos oucomponentes do que está a fazer, nem se os mesmos sãoverdadeiros ou falsos (know that). Assim, por exemplo, quandoalguém aprende a jogar golf, não está a aprender um conjuntode normas objectivas de tipo científico que lhe permitamefectuar os movimentos necessários como resultado daaplicação de uma série de fórmulas da física matemática, umavez que o processo de aprendizagem consiste, isso sim, naaquisição de uma série de hábitos práticos de conduta.Podemos igualmente citar, seguindo Polanyi, o exemplo dealguém que aprende a andar de bicicleta, mantendo o equilíbrio,movendo o guiador para o lado para o qual começa a cair ecausando desta forma uma força centrífuga que tende a mantê-lo em cima da bicicleta, tudo isto sem que praticamente nenhumciclista esteja consciente dos princípios físicos nos quais a suahabilidade se baseia. Pelo contrário, o que o ciclista melhorutiliza é o seu “sentido de equilíbrio”, que de alguma formalhe indica de que forma há-de comportar-se em cada momentopara não cair. Polanyi chega mesmo a afirmar que oconhecimento tácito é o princípio dominante de todo oconhecimento (Polanyi, 1959: 24-25). Até o conhecimentomais altamente formalizado e científico é sempre o resultadode uma intuição ou acto de criação, que não são senãomanifestações do conhecimento tácito. O novo conhecimentoformalizado que podemos obter graças às fórmulas, livros,gráficos, mapas, etc., é sobretudo importante porque ajuda a

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reorganizar todo o nosso contexto de informação práticaempresarial a partir de diferentes pontos de vista, cada vezmais ricos e frutíferos, o que permite abrir novas possibilidadespara o exercício da intuição criativa. A impossibilidade dearticular o conhecimento prático manifesta-se não só“estaticamente”, no sentido de que toda a informaçãoaparentemente articulada apenas pode ser interpretada graçasa um conjunto de crenças e conhecimentos prévios nãoarticuláveis, mas também “dinamicamente”, uma vez que oprocesso mental utilizado para levar a cabo qualquer intençãode articulação formalizada é essencialmente, em si mesmo,um conhecimento tácito e não articulável.

Outro tipo de conhecimento não articulável que desem-penha um papel essencial no desenvolvimento da sociedade éo constituído pelo conjunto de hábitos, tradições, instituiçõese normas jurídicas e morais que constituem o direito e tornampossível a própria sociedade. Nós, seres humanos, aprendemosa obedecer a esse conjunto de regras sem que sejamos capazesde teorizar ou explicitar com detalhe o papel específico que écumprido por essas normas e instituições nas diferentessituações e processos sociais em que intervêm. O mesmo sepode dizer em relação à linguagem e também, por exemplo,em relação à contabilidade financeira e de custos, que éutilizada pelo empresário para efectuar o cálculo económicoque guia a sua acção. Esta contabilidade mais não é do queum conjunto de conhecimentos ou técnicas práticas que,utilizado dentro de um determinado contexto de economia de

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mercado, serve como guia de acção aos empresáriosauxiliando-os a alcançar os seus objectivos, mas sem que estes,na sua imensa maioria, sejam capazes de formular uma teoriacientífica da contabilidade nem, muito menos, de explicar deque forma esta contribui para o funcionamento dos com-plicados processos de coordenação que tornam possível a vidaeconómica e social. Pode-se portanto concluir que o exercícioda função empresarial, tal como a consideram os teóricos daEscola Austríaca (capacidade inata para descobrir e avaliaroportunidades de lucro, empreendendo um comportamentoconsciente para as aproveitar), consiste num conhecimentobasicamente de tipo tácito e não articulável.

2.6. O carácter essencialmente criativo2.6. da função empresarial

A função empresarial não exige qualquer meio para serlevada a cabo. Ou seja, a empresarialidade não supõe custoalgum e, portanto, é essencialmente criativa. Este caráctercriativo da função empresarial materializa-se no facto de amesma originar ganhos que, em certo sentido, surgem do nadae que portanto se podem denominar ganhos empresariaispuros. Para obter ganhos empresariais não é pois preciso disporpreviamente de meio algum, sendo que apenas é necessárioexercer bem a função empresarial.

Importa agora realçar que, como consequência de todo

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o acto de empresarialidade, produzem-se três efeitos deextraordinária importância. Em primeiro lugar, a funçãoempresarial cria nova informação que antes não existia. Emsegundo lugar, esta informação transmite-se através domercado. Em terceiro lugar, como consequência do actoempresarial, os agentes económicos implicados aprendem aactuar cada um em função das necessidades dos demais. Estasconsequências da empresarialidade, tal como foram elaboradasanaliticamente pelos autores da Escola Austríaca, são tãoimportantes que merecem ser estudadas com maior detalheuma a uma.

2.7. Criação de informação

Todo o acto empresarial implica a criação ex nihilo deuma nova informação ou conhecimento. Esta criação tem lugarna mente da pessoa que primeiramente exerce a funçãoempresarial. Efectivamente, quando uma pessoa “C” se dáconta de que existe uma possibilidade de lucro, cria-se dentroda sua mente uma nova informação que antes não tinha. Alémdisso, quando “C” empreende a acção e contacta, por exemplo,com “A” e “B”, comprando barato a “B” um recurso que estetem em excesso e vendendo-o mais caro a “A”, que delenecessita com urgência, cria-se igualmente uma novainformação nas mentes de “A” e de “B”. Assim, “A”, porexemplo, apercebe-se de que o recurso de que carecia e tanto

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necessitava para alcançar o seu fim está disponível noutroslugares do mercado em maior abundância do que pensava eque, portanto, pode empreender agora sem problemas a acçãoque não havia iniciado por falta do referido recurso. Por seulado, “B” dá-se conta de que aquele recurso que possuía comtanta abundância, e ao qual não dava grande valor, é muitoprocurado por outras pessoas e que, portanto, deve conservá--lo e guardá-lo uma vez que o pode vender a bom preço.

2.8. Transmissão de informação

A criação empresarial de informação implicasimultaneamente uma transmissão da mesma no mercado.De facto, transmitir a alguém algo é fazer com que esse alguémgere ou crie na sua mente parte da informação que havia sidopreviamente criada ou descoberta por outros seres humanos.No exemplo anterior, não só foi transmitida a “B” a ideia deque o seu recurso é importante e não deve ser desperdiçado, ea “A” a ideia de que pode prosseguir com a persecução do fimque se propunha e que não iniciava por falta do referido recurso,como também, através dos respectivos preços de mercado, quesão um poderoso sistema de transmissão de informação a muitobaixo custo, se comunica gradualmente a todo a sociedade amensagem de que o recurso em questão deve ser guardado eeconomizado, uma vez que há procura para ele e,simultaneamente, que todos aqueles que não empreendam

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acções por pensarem que o recursno não está disponível podemadquiri-lo e prosseguir com os seus planos de actuação. Comoé lógico, a informação relevante é sempre subjectiva e nãoexiste à margem das pessoas que sejam capazes de a descobrirou interpretar, de forma que são sempre os seres humanos quemcria, transmite e compreende a informação. A ideia errónea deque a informação é algo objectivo tem a sua origem naconcepção de que parte da informação subjectiva criadaempresarialmente se materializa “objectivamente” em sinais(preços, instituições, normas, firmas, etc.) que podem serdescobertas e subjectivamente interpretadas por todos nocontexto das suas acções particulares, facilitando-se assim acriação de novas informações subjectivas cada vez mais ricase complexas. No entanto, e apesar das aparências, a transmissãode informação social é basicamente tácita e subjectiva, ou seja,não expressa e não articulada, e é frequentemente muitoresumida uma vez que, de facto, apenas se transmite e captasubjectivamente o mínimo necessário para coordenar oprocesso social. O processo social, por sua vez, permiteaproveitar da melhor maneira possível a limitada capacidadeda mente humana para criar, descobrir e transmitirconstantemente nova informação de tipo empresarial.

2.9. Efeito aprendizagem: coordenação e ajustamento

Finalmente, é preciso destacar a forma como os agentessociais aprendem a agir uns em função dos outros. Assim, por

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exemplo, “B”, em consequência da acção empresarialoriginalmente empreendida por “C”, acaba por não desperdiçaro recurso de que dispunha já que, seguindo o seu própriointeresse, é incentivado a guardá-lo e conservá-lo. “A”, porsua parte, ao dispor do referido recurso, pode agora atingir oseu fim e empreender acção que antes não efectuava. Um eoutro, portanto, aprendem a agir de forma coordenada, ou seja,a modificar e disciplinar o seu comportamento em função dasnecessidades de um outro ser humano. Além disso, aprendemda melhor maneira possível: sem se darem conta de que estãoa aprender e por iniciativa própria, ou seja, voluntariamentee no contexto de um plano no qual cada um persegue os seusfins e interesses particulares. É este, e não qualquer outro, onúcleo do processo, tão maravilhoso como simples e eficiente,que torna possível a vida em sociedade. Deve ainda observar--se que o exercício da empresarialidade por parte de “C” tornapossível, não só uma acção coordenada que antes não existiaentre “A” e “B”, como também que estes últimos concretizemum cálculo económico no contexto das suas respectivas acções,com dados ou informação de que antes não dispunham, e queagora lhes permite tentar alcançar, com muito maispossibilidades de êxito, os seus respectivos fins. Em suma, ocálculo económico, entendido como todo o juízo de estimaçãosobre o valor das diferentes alternativas ou percursos de acção,torna-se possível precisamente graças à informação gerada noprocesso empresarial. Ou por outras palavras: sem o exercíciolivre da função empresarial numa economia de mercado não

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se gera a informação necessária para que cada agente possacalcular ou estimar adequadamente o valor de cada caminhoalternativo de acção. Ou seja, sem função empresarial não épossível o cálculo económico. Esta é uma das conclusões maisimportantes a que se chega através da análise económica daEscola Austríaca, e a mesma constitui o coração do teoremada impossibilidade do cálculo económico socialista, tal comofoi descoberto por Mises e Hayek.

As observações anteriores constituem os maisimportantes e fundamentais ensinamentos da ciência social epermitem concluir que a função empresarial é, sem dúvidaalguma, a função social por excelência, dado que torna possívela vida em sociedade ao ajustar e coordenar o comportamentoindividual dos seus membros. Sem função empresarial não ésequer possível conceber a existência da sociedade.

2.10. O princípio essencial

Do ponto de vista da Escola Austríaca, o que éverdadeiramente importante não é quem exerce concretamentea função empresarial (ainda que isto seja precisamente o maisimportante na prática), mas sim que não existam restriçõesinstitucionais ou legais ao livre exercício da mesma, de formaa que cada homem possa exercer o melhor possível os seusdotes empresariais criando nova informação e aproveitando--se da informação prática de tipo privado que nas circunstâncias

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de cada momento tenha conseguido descobrir. Não é portantomera coincidência o facto de que, de um modo geral, os teóricosda Escola Austríaca sejam, no âmbito político, filósofos liberaisprofundamente comprometidos com a defesa da economia demercado livre de intervencões.

Não cabe ao economista, mas antes ao psicólogo, estudarcom detalhe a origem da força inata do homem que o moveempresarialmente em todos os seus campos de acção. Aqui,apenas interessa realçar o princípio essencial de que o serhumano tende a descobrir a informação que lhe interessa peloque, se existir liberdade quanto à consecução de fins einteresses, estes mesmos funcionarão como incentivos,tornando possível que quem exerce a função empresarialmotivada por esses incentivos perceba e descubracontinuamente a informação prática relevante que é necessáriapara alcançar os fins propostos. Ao contrário, se por qualquerrazão se diminui ou elimina o campo para o exercício daempresarialidade em determinada área da vida social (atravésde restrições de tipo legal, institucional ou tradicional, ouatravés de medidas intervencionistas levadas a cabo peloEstado no campo da economia), então os seres humanos nemsequer considerarão a possibilidade de atingir fins nessas áreasproibidas ou limitadas, pelo que, ao não ser possível o fim,este não funcionará como incentivo, e tal terá comoconsequência que a informação prática necessária para aconsecução do mesmo nunca será descoberta. Além disso, aspessoas afectadas nem sequer terão consciência nestas

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circunstâncias do enorme valor e do grande número de finsque deixam de poder ser atingidos em consequência daimposição de restrições institucionais (intervencionismo ousocialismo).

Por último, há que considerar que cada indivíduo-agentepossui alguns átomos de informação prática que, como jávimos, tende a descobrir e utilizar para atingir um fim.Essa informação, não obstante a sua importância social, só édetida por ele, ou seja, apenas ele a conhece e interpreta deforma consciente. Sabemos já que não nos referimos àinformação que se encontra articulada nas revistasespecializadas, livros, jornais, computadores, estatísticas, etc.A única informação ou conhecimento relevante a nível socialé a que é conhecida de forma consciente, ainda que na maioriados casos apenas tacitamente, por alguém em cada momentohistórico. Assim, o homem, de cada vez que age e exerce afunção empresarial, fá-lo de uma forma característica eexclusiva, ou seja, pessoal e irrepetível, que tem a sua origemna tentativa de atingir objectivos que funcionam comoincentivos e que, nas suas características e circunstânciasparticulares, apenas ele possui. Este processo permite que cadaser humano obtenha conhecimentos ou informações queapenas descobre em função dos seus fins e circunstânciasparticulares que não são repetíveis de forma idêntica emqualquer outro ser humano.

Daqui resulta a enorme importância de não desaproveitara função empresarial de ninguém. Mesmo as pessoas de

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menores recursos, menos consideradas socialmente, ou menosformadas do ponto de vista do conhecimento articulado,possuem com carácter exclusivo pelo menos pequenas parcelasde conhecimento e informação que podem ter um valordeterminante no curso dos acontecimentos sociais. Nestaperspectiva, torna-se evidente o carácter essencialmentehumanista da concepção de empresarialidade que estamos aexplicar e que faz da economia, tal como a mesma é entendidae cultivada pela Escola Austríaca, uma ciência humanista porexcelência.

2.11. Competição e função empresarial

O termo “competição” procede etimologicamente dolatim cum petitio (competição simultânea de reivindicaçõessobre uma mesma coisa que é necessário adjudicar ao seu dono)formado por cum, com, e petere, pedir, atacar, buscar.A competição consiste, portanto, num processo dinâmico derivalidade e não no denominado “modelo de concorrênciaperfeita”, no qual múltiplos oferentes actuam da mesma formae vendem todos ao mesmo preço, ou seja, no qual,paradoxalmente, ninguém compete (Huerta de Soto, 1994:56-58).

A função empresarial, pela sua própria natureza edefinição, é sempre competitiva. Quer isto dizer que, uma vezque seja descoberta pelo agente uma determinada oportunidade

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de lucro e que este actue para a aproveitar, essa oportunidadede lucro tende a desaparecer, de forma que não pode serdetectada e aproveitada por outros agentes. De igual forma, sea oportunidade de lucro apenas é parcialmente descoberta, ouse, tendo sido totalmente descoberta, apenas foi aproveitadaparcialmente pelo agente, parte dessa oportunidade ficarálatente e passível de ser descoberta e aproveitada por outrosagentes. O processo social é, portanto, puramente competitivo,no sentido de que os diferentes agentes rivalizam uns com osoutros, de forma consciente e inconsciente, para detectar eaproveitar antes dos demais as oportunidades de lucro.

Todo o acto empresarial descobre, coordena e eliminadesajustamentos sociais e, em função do seu carácter essencial-mente competitivo, faz com que esses desajustamentos, umavez descobertos e coordenados, já não possam voltar a serdetectados e eliminados por nenhum outro empresário. Poderiapensar-se erroneamente que o processo social movido pelaempresarialidade poderia chegar pela sua própria dinâmica aparar ou desaparecer, assim que a força da empresarialidadetivesse descoberto e esgotado todas as possibilidades de ajustesocial existentes. No entanto, o processo empresarial decoordenação social jamais se detém ou esgota. Isto é assimporque o acto coordenador elementar consiste basicamente emcriar e transmitir nova informação que há-de forçosamentemodificar a percepção geral de objectivos e meios de todos osempresários implicados. Este facto, por sua vez, dá lugar àaparição ilimitada de novos desajustamentos que fazem surgir

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novas oportunidades de lucro empresarial num processodinâmico que nunca tem fim e que faz avançar a civilização.Ou seja, a função empresarial, não só torna possível a vida emsociedade ao coordenar o comportamento desajustado dos seusmembros, como também impulsiona o desenvolvimento dacivilização, ao criar continuamente novos objectivos econhecimentos que se difundem gradualmente por toda asociedade. Além disso, e isto é muito importante, a funçãoempresarial permite que o processo atrás descrito sedesenvolva de forma tão harmoniosa e ajustada quanto sejahumanamente possível em cada circunstância histórica, umavez que os desajustamentos que constantemente se criam àmedida que avança a civilização e aparece nova informaçãoempresarial, tendem por sua vez a ser descobertos e eliminadospela própria força empresarial da acção humana. Ou seja, afunção empresarial é a força que torna a sociedade coesa epossibilita o seu desenvolvimento harmonioso, já que osdesajustamentos que inevitavelmente se produzem nesseprocesso de desenvolvimento tendem a ser igualmentecoordenados pela mesma.

O processo empresarial origina, portanto, uma espéciede contínuo big bang social que permite o crescimentoilimitado do conhecimento. Assim, como já vimos, emalternativa ao modelo de equilíbrio geral ou parcial dosneoclássicos, a Escola Austríaca oferece um paradigmabaseado num “processo dinâmico geral” ou, se preferirmos“big bang social”, em contínua expansão e com tendência para

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a coordenação. Já se chegou a calcular que o limite máximode expansão do conhecimento na Terra é de 10 elevado a 64bits (Barrow e Tipler, 1986: 658-677) pelo que seria possívelaumentar em mais de cem mil milhões de vezes os limitesfísicos de crescimento até agora considerados. Os mesmosautores demonstraram matematicamente que uma civilizaçãohumana com base espacial poderia expandir o seuconhecimento, riqueza e população sem limite. Ambos seapoiam nas principais contribuições da Escola Austríaca emgeral e de Hayek em particular, tendo concluído que forammuitas as incorrecções escritas sobre os limites físicos aocrescimento económico por parte de físicos que ignoravam aeconomia. Uma análise correcta dos limites físicos aocrescimento apenas é possível se tivermos em conta acontribuição de Hayek, segundo o qual o que um sistemaeconómico produz, mais do que objectos materiais, é umconhecimento imaterial (Tipler, 1988: 4-5).

2.12. Conclusão: o conceito de sociedade2.12. para a Escola Austríaca

Em suma, pode concluir-se definindo a sociedade comoum processo (ou seja, uma estrutura dinâmica) de tipoespontâneo (ou seja, não desenhado conscientemente porninguém); muito complexo, pois é constituído por milhões emilhões de pessoas com uma infinita variedade de objectivos,

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gostos, avaliações e conhecimentos práticos, todos eles emcontínua alteração; de interacções humanas (que sãobasicamente relações de intercâmbio que frequentemente sematerializam em preços monetários e se efectuam sempre deacordo com normas, hábitos ou pautas de conduta), movidas eimpulsionadas todas elas pela força da função empresarial,que constantemente cria, descobre e transforma informaçãoou conhecimento, ajustando e coordenando de formacompetitiva os planos contraditórios dos seres humanos, etornando possível a vida em comum de todos eles com umnúmero e uma complexidade e riqueza de matizes e elementoscada vez maiores.

O objecto da Ciência Económica consiste precisamenteem estudar este processo social tal como acabamos de o definir.Assim, os economistas austríacos consideram que o objectivoessencial da economia consiste em analisar a forma como,graças à ordem social espontânea, podemos aproveitar umenorme volume de informação prática que não está disponívelde forma centralizada em nenhum lugar, mas que se encontradispersa ou disseminada na mente de milhões de indivíduos.O objecto da economia consiste em estudar este processodinâmico de descoberta e transmissão de informação que éimpulsionado continuamente pela função empresarial e quetende a ajustar e coordenar os planos dos seres humanos,tornando desse modo possível a vida em sociedade. É este enão outro o problema económico fundamental, pelo quedevemos ser especialmente críticos do estudo do modelo de

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equilíbrio praticado pelos seguidores do dominante paradigmaneoclássico que para Hayek carece de interesse científico, umavez que nele se parte da suposição de que toda a informaçãoestá dada e que, portanto, o problema económico fundamentaljá foi previamente resolvido (Hayek, 1972: 51 e 91).

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3. Carl Menger e os precursores3. da Escola Austríaca

3.1. Introdução

Apesar de existir acordo generalizado quanto ao factode a Escola Austríaca ter nascido em 1871, com a publicaçãodo livro de Carl Menger (1840-1921) intitulado Princípios deEconomia Política (Menger, 1997), na realidade, o principalmérito deste autor consistiu em ter sabido recolher eimpulsionar uma tradição do pensamento de origem católicae europeia continental que se pode fazer remontar até aonascimento do pensamento filosófico na Grécia e, de formaainda mais intensa, até à tradição de pensamento jurídico,filosófico e político da Roma clássica.

Efectivamente, na Roma clássica descobriu-se que odireito é basicamente consuetudinário e que as instituiçõesjurídicas (assim como as linguísticas e as económicas) surgem

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como resultado de um longo processo evolutivo, incorporandoum enorme volume de informação e conhecimentos que supera,e muito, a capacidade mental de qualquer governante, por maissábio e bem intencionado que ele possa ser. Assim, sabemosgraças a Cícero (De republica, II, 1-2), a forma como, paraCatão: “o motivo pelo qual o nosso sitema político foi superiorao de todos os outros países é este: os sistemas políticos dosrestantes países foram criados introduzindo leis e instituiçõesde acordo com o parecer pessoal de indivíduos específicos,tais como Minos em Creta e Licurgo em Esparta… De formadiferente, a nossa república romana não se deve à criaçãopessoal de um homem, mas de muitos. Não foi fundada durantea vida de um indivíduo particular, mas sim durante umasucessão de séculos e gerações. Porque nunca houve no mundoum homem com inteligência suficiente para tudo prever, eporque mesmo se pudéssemos concentrar todos os cérebrosna cabeça de um mesmo homem, lhe seria impossívelconsiderar tudo ao mesmo tempo sem ter acumulado aexperiência que deriva da prática ao longo de um largoperíodo da história”. Como veremos, o núcleo desta ideiaessencial constituirá o ponto fulcral do argumento de Ludwigvon Mises sobre a impossibilidade teórica da planificaçãosocialista, e será conservado e reforçado na Idade Média graçasao humanismo cristão e à filosofia tomista do direito natural,concebido como um corpo ético prévio e superior ao poder decada governo terreno. Pedro Juan de Olivi, São Bernardino deSena e Santo António de Florença, entre outros, teorizaram

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sobre o papel protagonista que a capacidade empresarial ecriativa do ser humano tem como impulsionadora da economiade mercado e da civilização (Rothbard, 1999: 31-209).No entanto, o testemunho principal desta linha de pensamentofoi recolhido, divulgado e aperfeiçoado pelo conjunto degrandes teóricos constituído pelos escolásticos do Século deOuro espanhol os quais, sem qualquer dúvida, deverão serconsiderados como os principais precursores da EscolaAustríaca de Economia.

3.2. Os escolásticos do Século de Ouro espanhol3.2. como precursores da Escola Austríaca

Para Friedrich A. Hayek, os princípios teóricos daeconomia de mercado, assim como os elementos básicos doliberalismo económico, não foram concebidos, comogeralmente se acredita, pelos calvinistas e protestantesescoceses, sendo que, pelo contrário, são o resultado do esforçodoutrinário empreendido pelos dominicanos e jesuítasmembros da Escola de Salamanca durante o Século de Ouroespanhol (Hayek, 1988: 288-289). Hayek chegou mesmo aoextremo de citar dois dos nossos escolásticos, Luís de Molinae Juan de Lugo, no seu discurso de aceitação do Prémio Nobelda Economia em 1974 (Hayek, 1976c: 19-20). Este economistaaustríaco começou a convencer-se da origem católica eespanhola da análise económica austríaca a partir dos anos

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cinquenta, graças à influência do professor italiano BrunoLeoni. Leoni convenceu Hayek de que as raízes da concepçãodinâmica e subjectivista da economia eram de origemcontinental e de que, portanto, deveriam procurar-se na Europamediterrânica e na tradição grega, romana e tomista, mais doque na tradição dos filósofos escoceses do século XVIII (Leoni,1995: 95-112). Além disso, Hayek teve a sorte de, duranteesses anos, ter uma das suas melhores alunas, MarjorieGrice-Hutchinson, que se especializara em latim e literaturaespanhola, levando a cabo, sob a orientação de Hayek, umtrabalho de investigação sobre as contribuições dos escolásticosespanhóis no âmbito da economia, trabalho esse que, com otempo, se converteu num pequeno clássico (Grice-Hutchinson,1952, 1982 e 1995).

Quem foram estes precursores intelectuais da modernaEscola Austríaca de Economia? A maioria deles foramdominicanos e jesuítas , professores de moral e teologia emuniversidades que, como a de Salamanca e a de Coimbra,constituíram os focos mais importantes do pensamento duranteo Século de Ouro espanhol. (Chafuen, 1986). Analisaremosde seguida, de forma sintética, quais foram as suas principaiscontribuições para o que mais tarde seriam os elementosbásicos da análise económica austríaca.

Talvez devamos começar por fazer menção a Diego deCovarrubias y Leyva. Covarrubias (1512-1577), filho de umfamoso arquitecto, chegou a bispo da cidade de Segóvia (emcuja catedral se encontra enterrado), sendo durante vários anos

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ministro do rei Filipe II. Em 1555, Covarrubias expôs melhordo que ninguém até então a essência da teoria subjectiva dovalor, à volta da qual gira todo o enquadramento da análiseeconómica da Escola Austríaca, ao afirmar que “o valor deuma coisa não depende da sua natureza objectiva mas antesda estimação subjectiva dos homens, mesmo que tal estimaçãoseja insensata”; aludindo para ilustrar a sua tese ao facto de“nas Índias o trigo valer mais do que em Espanha porque alios homens o estimam mais, e isso apesar de a natureza dotrigo ser a mesma em ambos os lugares” (Covarrubias, 1604:131). Covarrubias escreveu também um estudo sobre aevolução histórica da diminuição do poder aquisitivo domaravedí, antecipando muitas das conclusões teóricas sobre ateoria quantitativa do dinheiro que posteriormente seriamexpostas por Martín de Azpilcueta e Juan de Mariana, entreoutros. O estudo de Covarrubias incorpora um grande volumede dados estatísticos sobre a evolução dos preços no séculoprecedente àquele em que viveu, e foi publicado em latim como título de Veterum collatio numismatum. Esta obra deCovarrubias é muito significativa, não apenas por ter sidocitada de maneira laudatória em séculos posteriores pelositalianos Davanzati e Galiani, mas sobretudo por ser um doslivros citados por Carl Menger nos seus Princípios deEconomia Política (Menger , 1997: 325).

A tradição subjectivista iniciada por Covarrubias écontinuada por outro notável escolástico, Luis Saravia de laCalle, que é o primeiro a tornar clara a verdadeira relação que

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existe entre preços e custos no mercado, no sentido de que,em todas as situações, são os custos que tendem a seguir ospreços e não o contrário, antecipando-se assim na refutaçãodos erros da teoria objectiva do valor que seria posteriormentedesenvolvida pelos teóricos da escola clássica anglo-saxónica,e que se viria a converter no fundamento da teoria daexploração de Karl Marx e dos seus sucessores socialistas.Assim, Saravia de la Calle, na sua obra Instrucción demercaderes, publicada em castelhano em Medina del Campoem 1544, escreveu que “os que medem o preço justo de umacoisa segundo o trabalho, custos e riscos em que incorre quemproduz a mercadoria cometem um grave erro; porque o preçojusto nasce da abundância ou falta de mercadorias, deempresários e de moeda, e não dos custos, trabalhos e riscos”(Saravia de la Calle, 1949: 53).

Além disso, todo o livro de Saravia de la Calle secentra sobre a função do empresário, que ele denomina“mercader”, seguindo assim a já mencionada tradiçãoescolástica sobre o papel dinamizador do empresário queremonta a Pedro João de Olivi, Santo António de Florençae, principalmente, São Bernardino de Sena (Rothbard, 1999:113-121).

Outra notável contribuição dos nossos escolásticos foia introdução do conceito dinâmico de concorrência (em latim,concurrentium), entendida como o processo empresarial derivalidade que move o mercado e impulsiona o desenvol-vimento da sociedade. Esta ideia, que haverá de converter-se

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no coração da teoria do mercado da Escola Austríaca, contrastaradicalmente com os modelos de equilíbrio de concorrênciaperfeita, monopolística e de monopólio analisados pelosneoclássicos, e levou também os escolásticos a concluir queos preços do modelo de equilíbrio (que eles denominaram“preços matemáticos”), que os teóricos neoclássicos socialistaspretenderam utilizar para justificar o intervencionismo e aplanificação do mercado, nunca poderiam chegar a serconhecidos. Assim, Raymond de Roover atribui a Luis deMolina o conceito dinâmico de concorrência entendida como“o processo de rivalidade entre compradores que tende a elevaro preço”, e que nada tem a ver com o modelo estático de“concorrência perfeita” que, no século XX, os denominados“teóricos do socialismo de mercado” ingenuamenteacreditaram poder ser simulado num regime sem propriedadeprivada (Raymond de Roover, 1955: 169). Apesar disso, éJerónimo Castillo de Bovadilla quem melhor expõe estaconcepção dinâmica da livre concorrência entre empresáriosno seu livro Política para corregidores, publicado emSalamanca em 1585, onde ele afirma que a mais positivacaracterísctica da concorrência é conseguir “emular” oconcorrente (Popescu, 1987: 141-159). Castillo de Bovadillaenuncia ainda a seguinte lei económica, base da defesa domercado por parte de todo o economista austríaco: “os preçosdos produtos baixarão com a abundância, emulação econcorrência de vendedores” (Castillo de Bovadilla, 1985: 2,cap. 4, nº 49).

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Quanto à impossibilidade de os governantes ou osanalistas chegarem a conhecer os preços de equilíbrio e osdemais dados de que necessitam para intervir no mercado oupara elaborar os seus modelos, destacam-se as contribuiçõesdos cardeais jesuítas espanhóis Juan de Lugo e Juan de Salas.O primeiro, Juan de Lugo (1583-1660), questionando-se sobrea determinação do preço de equilíbrio, já em 1643 haviaconcluído que depende de uma tão grande quantidade decircunstâncias específicas que apenas Deus o pode conhecer(“pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum”) (Lugo,1642: vol. II, 312). O segundo, Juan de Salas, em 1617,referindo-se à possibilidade de que um governante possa chegara conhecer a informação específica que dinamicamente se cria,descobre e usa no mercado, afirma que “quas exactecomprehendere et ponderare Dei est non hominum”, ou seja,que apenas Deus, e não os homens, pode compreender eponderar exactamente toda a informação e o conhecimentoque é usada no processo de mercado pelos agentes económicoscom todas as suas circunstâncias particulares de tempo e deespaço (Salas, 1617: 4, nº 6, 9). Como veremos, tanto Juan deLugo como Juan de Salas antecipam, em mais de três séculos,as mais refinadas contribuições dos mais destacadospensadores austríacos (especialmente Mises e Hayek).

Outro dos elementos essenciais do que depois seconverterá na análise económica da Escola Austríaca é oprincípio da preferência temporal, segundo o qual, tudo o restoconstante, os bens presentes são sempre mais valorizados do

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que os bens futuros. Esta doutrina foi redescoberta por Martínde Azpilcurta (o famoso doutor Navarro) em 1556, que porsua vez a tomou de um dos melhores discípulos de São Tomásde Aquino, Giles de Lessines que, já em 1285, havia afirmadoque “os bens futuros não são tão valorizados como os mesmosbens disponíveis de imediato, nem têm a mesma utilidade paraos seus proprietários. Por esta razão, o seu valor de acordocom a justiça há de ser mais reduzido” (Dempsey, 1943: 214).

Os efeitos distorcivos da inflação, entendida como todaa política estatal de crescimento da oferta monetária, foramtambém estudados analiticamente pelos escolásticos. Nesteâmbito, destaca-se o trabalho do padre Juan de Marianaintitulado De monetae mutatione, traduzido para castelhanoposteriormente pelo autor com o título de Tratado y discursosobre la moneda de vellón que al presente se labra en castillay de algunos desórdenes y abusos (Mariana, 1987). Neste livro,publicado pela primeira vez em 1605, Mariana critica a políticaseguida pelos governantes da sua época de baixar de formadeliberada o valor da moeda, embora não utilize o termo“inflação”, desconhecido na altura, explica a forma como osefeitos da mesma são o incremento dos preços e adesorganização geral da economia real. Mariana criticatambém a política de estabelecimento de preços máximos paralutar contra os efeitos da inflação, política que ele consideranão só incapaz de produzir efeitos positivos, mas tambémaltamente danosa para o processo produtivo. Melhora-se assima análise muito mais simplista, por ser exclusivamente

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macroeconómica, efectuada anteriormente por Martín deAzpilcueta em 1556, e antes dele por Copérnico no seu livroMonetae cudendae ratio, onde foi exposta pela primeira vez atípica versão, muito simplificada e mecanicista, da teoriaquantitativa da moeda hoje tão divulgada (Azpilcueta, 1965:74-75).

São também importantes as contribuições dos nossosescolásticos para a teoria bancária (Huerta de Soto, 1997-1998:141-165). Assim, por exemplo, é claríssima a crítica do DoutorSaravia de la Calle ao exercício da banca com reservafraccionária, no sentido de que a utilização em benefíciopróprio mediante concessão de empréstimos a terceiros, dedinheiro que é depositado à vista nos bancos é ilegítima eimplica um pecado grave, doutrina que coincide plenamentecom a que foi estabelecida pelos autores clássicos do direitoromano, e que surge naturalmente da própria essência, causae natureza jurídica do contrato de depósito irregular de dinheiro(Saravia de la Calle, 1949: 180-181, 195-197). Também Martínde Azpilcueta e Tomás de Mercado desenvolveram uma análiserigorosa e muito exigente sobre a actividade bancária que,embora não chegue aos níveis críticos de Saravia de la Calle,inclui um excelente tratamento das exigências que a justiçaimpõe que se observem no contrato de depósito bancário dedinheiro. Uns e outros, portanto, exigem implicitamente que aactividade bancária se exerça com um coeficiente de caixa decem por cento, proposta esta que haverá de converter-se numdos elementos fundamentais da análise austríaca relativa à

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teoria do crédito e dos ciclos económicos (Huerta de Soto,1998). Menos rigorosa e, portanto, mais compreensiva com oexercício da banca com reserva fraccionária, é a análise deLuis de Molina e Juan de Lugo, ainda que, de acordo comDempsey, se estes autores tivessem conhecido detalhadamenteo funcionamento e as implicações teóricas da banca comreserva fraccionária, tal como os mesmos foram desenvolvidospor Mises, Hayek e o resto dos teóricos da Escola Austríaca, oprocesso de expansão do crédito e inflação fiduciária originadopela banca com reserva fraccionária teria sido considerado,pelos próprios Molina, Lesio e Lugo como um vasto e ilegítimoprocesso de usura institucional (Dempsey, 1943: 225-228).

Interessa, não obstante, ressaltar como Luis de Molinafoi o primeiro teórico a salientar que os depósitos e o dinheirobancário em geral, que ele denomina em latim chirographispecuniarum, é parte integrante, da mesma forma que o dinheiroem espécie, da oferta monetária. De facto, Molina expressouem 1597, muito antes de Pennington em 1826, a ideia essencialde que o volume total de transacções monetárias que se efectuanuma feira não poderia ser pago com a quantidade de dinheirometálico que na mesma muda de mãos, se não fosse pelautilização do dinheiro que os bancos geram através do registodos seus depósitos e da emissão de cheques sobre os mesmospor parte dos depositantes. De tal forma que, como resultadoda actividade financeira dos bancos, se cria a partir do nadauma nova quantidade de dinheiro sob a forma de depósitosque é utilizada nas transacções (Molina, 1991: 147).

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Finalmente, o padre Juan de Mariana escreveu outrolivro intitulado Discurso sobre las enfermedades de lacompañia, publicado com carácter póstumo em 1625. Nestelivro, Mariana realiza uma análise puramente austríacarelativamente à impossibilidade de um governo poder organizara sociedade civil com base em ordens coercivas, e isto devidoà falta de informação. De facto, é impossível ao Estado obtera informação de que necessita para dar um conteúdocoordenador às suas ordens, pelo que a sua intervenção tendea criar desordem e caos. Assim, Mariana, referindo-se aogoverno, disse que “é um grande desatino que o cego queiraguiar aquele que vê”, frisando que os governantes “nãoconhecem as pessoas, nem os factos, pelo menos, com todasas circunstâncias que os envolvem, de que depende umadecisão acertada. É forçoso que se caia em muitos e graveserros, e que isso cause descontentamento às pessoas e as levea menosprezar um governo tão cego”; conclui Mariana que “élouco o poder e o mando”, e que quando “as leis são muitas eem demasia, como não se podem preservar todas, nemsequer saber, a todas se perde o respeito” (Mariana, 1768:151-155, 216).

Em suma, os escolásticos espanhóis do nosso Séculode Ouro foram já capazes de articular o que depois viriam aser os princípios mais importantes da escola austríaca deEconomia e, em concreto, os seguintes: primeiro, a teoriasubjectiva do valor (Diego de Covarrubias y Leyva); segundo,a descoberta da relação correcta que existe entre os preços e

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os custos (Luis Saravia de la Calle); terceiro, a naturezadinâmica do mercado e a impossibilidade de alcançar o modelode equilíbrio (Juan de Lugo e Juan de Salas); quarto, o conceitodinâmico de concorrência entendida como um processo derivalidade entre os vendedores (Castillo de Bovadilla e Luisde Molina), quinto, a redescoberta do princípio da preferênciatemporal (Martín de Azpilcueta); sexto, o efeito profundamentedistorcivo que a inflação tem sobre a economia real (Juan deMariana, Diego de Covarrubias e Martín de Azpilcueta);sétimo, a análise crítica da banca exercida com reservafraccionária (Luis Saravia de la Calle e Martín de Azpilcueta);oitavo, a descoberta de que os depósitos bancários são parteda oferta monetária (Luis de Molina e Juan de Lugo); nono, aimpossibilidade de organizar a sociedade através de ordenscompulsivas, por falta da informação necessária para dar umconteúdo coordenador às mesmas (Juan de Mariana), e décimo,a tradição liberal de que toda a intervenção injustificada nomercado constitui uma violação do direito natural (Juan deMariana).

Existem, portanto, razões fundadas para concluir que aconcepção subjectivista e dinâmica do mercado, ainda quetenha sido retomada e definitivamente impulsionada porMenger em 1871, teve início na nossa pátria. A tradição dopensamento económico da Escola Austríaca tem, pois, a suaorigem intelectual em Espanha e mais concretamente numaescola, a de Salamanca, que, da mesma forma que a modernaEscola Austríaca, e em profundo contraste com o paradigma

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neoclássico, se caracteriza sobretudo pelo grande realismo erigor dos seus pressupostos analíticos.

3.3. A decadência da tradição escolástica3.3. e a influência negativa de Adam Smith

Para compreender a influência dos escolásticosespanhóis sobre o posterior desenvolvimento da EscolaAustríaca de Economia é preciso recordar, antes de tudo, queno século XVI, o imperador e rei de Espanha Carlos V enviouo seu irmão Fernando I para ser rei da Áustria. “Áustria”significa, etimologicamente, “parte este do Império”, Impérioque nessa altura compreendia praticamente a totalidade daEuropa continental, com a única excepção importante daFrança, que permanecia isolada e rodeada por forçasespanholas. É assim fácil compreender a origem da influênciaintelectual dos escolásticos espanhóis sobre a Escola Austríaca,e que não foi uma simples coincidência ou um mero caprichoda história, mas que foi o produto de íntimas relações históricas,políticas e culturais que se desenvolveram entre a Espanha e aÁustria a partir do século XVI (Bérenguer, 1993: 133-335).Estas relações haveriam de manter-se durante vários séculos enas mesmas também teve um papel importantíssimo a Itália,como ponte cultural através da qual fluíram as relaçõesintelectuais entre ambos os extremos do Império (Espanha eÁustria). Por tudo isto, existem importantes argumentos para

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defender a tese de que, pelo menos nas suas origens, a EscolaAustríaca é, em última instância, uma escola de tradiçãoespanhola.

De facto, pode afirmar-se que o principal mérito de CarlMenger consistiu em redescobrir e impulsionar esta tradiçãocatólica continental de origem espanhola que, praticamente,estava esquecida e havia caído em decadência comoconsequência, por um lado, do triunfo da reforma protestantee da lenda negra contra tudo o que fosse espanhol e, por outrolado e sobretudo, devido à muito negativa influência que asteorias de Adam Smith e do resto dos seus seguidores da EscolaClássica da Economia tiveram na história do pensamentoeconómico. De facto, como indica Murray N. Rothbard, AdamSmith abandonou as contribuições anteriores centradas nateoria subjectiva do valor, a função empresarial e o interesseem explicar os preços que se verificam no mercado real,substituindo-as a todas pela teoria do valor trabalho, sobre aqual Marx construirá, como conclusão natural, toda a teoriasocialista da exploração. Além disso, Adam Smith concentra--se preferencialmente na explicação do “preço natural” deequilíbrio no longo prazo, um modelo de equilíbrio em que afunção empresarial prima pela sua ausência no qual se supõeque toda a informação necessária já está disponível, pelo quevirá depois a ser utilizado pelos teóricos neoclássicos doequilíbrio para criticar supostas “falhas de mercado” e parajustificar o socialismo e a intervenção do Estado sobre aeconomia e a sociedade civil. Por outro lado, Adam Smith

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impregnou a Ciência Económica de calvinismo, por exemplo,ao apoiar a proibição da usura e ao distinguir entre ocupações“produtivas” e “improdutivas”. Finalmente, Adam Smithrompeu com o laissez-faire radical dos seus antecessoresjusnaturalistas do continente (espanhóis, franceses e italianos)introduzindo na história do pensamento um “liberalismo”muito tíbio e tão empestado de excepções e relativizações quemuitos teóricos “sociais-democratas” de hoje o poderiaminclusivamente aceitar (Rothbard, 1999: 475-518).

A influência negativa que, do ponto de vista da EscolaAustríaca, teve o pensamento da escola clássica anglo-saxónicasobre a Ciência Económica acentua-se com os sucessores deAdam Smith e, em especial, com Jeremy Bentham, queinoculou o bacilo do mais estreito utilitarismo na nossadisciplina, impulsionando com ele o desenvolvimento de todauma análise pseudo-científica de custos e benefícios (que seacredita que possam ser conhecidos), e o surgimento de todauma tradição de “engenheiros sociais” que pretendem moldara sociedade à sua vontade utilizando o poder coercivo doEstado. Em Inglaterra, Stuart Mill culmina esta tendência como seu abandono do laissez-faire e as suas numerosas concessõesao socialismo, e em França, o triunfo do racionalismoconstrutivista de origem cartesiana explica o domínio dosintervencionistas da École Polytechnique e do socialismocientifista de Saint-Simon e Comte (Hayek, 1952a: 143-285).Afortunadamente, e apesar do obscurecedor imperialismointelectual que os teóricos da escola clássica anglo-saxónica

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exerceram sobre a evolução da nossa disciplina, a tradiçãocontinental de origem católica impulsionada pelos nossosescolásticos do Século de Ouro espanhol não foi nuncatotalmente esquecida. Assim, esta corrente doutrinalinfluenciou dois notáveis economistas, um irlandês, Cantillon,e outro francês, Turgot, que podem em grande medida serconsiderados os verdadeiros fundadores da CiênciaEconómica. De facto, Cantillon, por altura do ano de 1730,escreve o seu Ensaio sobre a natureza do comércio em geral,que, segundo Jevons, é o primeiro tratado sistemático deeconomia. Neste livro, Cantillon realça a figura do empresáriocomo motor do processo de mercado e explica ainda que oaumento da quantidade de dinheiro não afecta de imediato onível geral de preços, uma vez que o seu impacto na economiareal se dá por etapas, ou seja, sucessivamente e através de umprocesso que inevitavelmente afecta e distorce os preçosrelativos que surgem no mercado. Trata-se do famoso efeitoCantillon, logo copiado por Hume, e que foi depois retomadopor Mises e Hayek na sua análise sobre a teoria do capital edos ciclos (Cantillon, 1978).

Posteriormente, o marquês D’Argenson em 1751 e,sobretudo, Turgot, muito antes que Adam Smith, já haviamarticulado perfeitamente o carácter disperso do conhecimentoincorporado nas instituições sociais entendidas como ordensespontâneas, e cuja análise se haveria de converter num doselementos essenciais do programa de investigação hayekiano.Assim, Turgot, no seu Elogio de Gournay, já em 1759, concluiu

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que “não é preciso provar que cada indivíduo é o único quepode julgar com conhecimento de causa o uso mais vantajosodas suas terras e do seu esforço. Somente ele possui oconhecimento específico sem o qual até o homem mais sábiose encontraria às cegas. Aprende com os seus intentosrepetidos, com os seus êxitos e com os seus fracassos, e assimvai adquirindo um sentido especial para os negócios que émuito mais engenhoso do que o conhecimento teórico que podeser adquirido por um observador indiferente, porque é impelidopela necessidade”. Refere-se igualmente Turgot, e nesteaspecto segue o padre Juan de Mariana, à “completaimpossibilidade de dirigir através de regras rígidas e de umcontrolo contínuo a multiplicidade de transacções que, paraalém de nunca poderem chegar a ser plenamente conhecidasdevido à sua imensidade, para além disso, dependemcontinuamente de uma multiplicidade de circunstâncias emconstante mudança que não podem controlar-se nem sequerprever-se” (Turgot, 1844: 275, 288).

Mesmo em Espanha, e durante a longa decadência dosséculos XVIII e XIX, a tradição dos nossos escolásticos nãodesapareceu completamente, e isto apesar do enorme complexode inferioridade face ao universo intelectual anglo-saxónicotípico daquela época. Prova disso é que outro autor espanholde tradição católica foi capaz de resolver o paradoxo do valore de enunciar com toda a clareza a lei da utilidade marginalvinte e sete anos antes de Carl Menger publicar os seusPrincípios de Economia Política. Trata-se do catalão Jaime

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Balmes (1810-1848), que durante a sua curta vida se tornouno mais importnate filósofo tomista na Espanha do seu tempo.Assim, em 1844, publicou um artigo intitulado “Verdadeiraideia do valor ou reflexões sobre a origem, natureza e variedadedos preços”, em que ele não só resolveu o paradoxo do valor,como também expôs com toda a clareza a lei da utilidademarginal. Assim, Balmes questiona-se “Como é que uma pedrapreciosa vale mais do que um pedaço de pão, do que umcómodo vestido, e talvez até do que uma saudável e gratavivenda?”; e responde: “não é difícil explicá-lo; sendo o valorde uma coisa a sua utilidade, ou aptidão para satisfazer asnossas necessidades, quanto mais precisa for para a satisfaçãodelas maior será o seu valor; deve-se considerar também quese o número de meios aumenta, diminui a necessidade de cadaum deles em particular, porque podendo-se escolher entremuitos nenhum é indispensável. Aqui está por que razão háuma dependência necessária entre o aumento e diminuição dovalor e a escassez e abundância de uma coisa. Um pedaço depão tem pouco valor, mas é porque tem relação necessáriacom a satisfação das nossas necessidades, porque há muitaabundância de pão, mas diminuam a sua abundância, e o seuvalor rapidamente crescerá, até atingir um qualquer nível,fenómeno que se verifica em tempo de escassez, e que se tornamais palpável em todos os géneros durante as calamidades daguerra numa praça acossada por um muito prolongado assédio”(Balmes, 1949: 615-624). Desta forma, Balmes foi capaz defechar o círculo da tradição continental e deixá-lo preparado

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para que a mesma fosse completada, aperfeiçoada eimpulsionada, poucas décadas depois, por Carl Menger, e peloresto dos seus discípulos da Escola Austríaca de Economia.

3.4. Menger e a perspectiva subjectivista3.4. da Escola Austríaca: a concepção da acção3.4. como um conjunto de etapas subjectivas, a teoria3.4. subjectiva do valor e a lei da utilidade marginal

O jovem Menger, logo desde muito cedo, se deu contade que a teoria clássica da determinação dos preços, tal comohavia sido elaborada por Adam Smith e seus seguidores anglo--saxónicos, deixava muito a desejar. As suas observaçõespessoais sobre o funcionamento do mercado bolsista (durantealgum tempo foi correspondente de bolsa para o WienerZeitung), assim como as suas investigações próprias, levaram--no a escrever aos trinta e um anos de idade, e como nos indicaHayek, num “estado febril de excitação” (Hayek, 1996d: 75),o que haveria de ser o livro que oficialmente deu nascimentoà Escola Austríaca de Economia. Neste livro, o seu autorpretendeu estabelecer os novos fundamentos sobre os quaisele considerava necessário reedificar toda a CiênciaEconómica. Estes princípios seriam, essencialmente, odesenvolvimento de uma ciência económica baseada no serhumano considerado como actor criativo e protagonista detodos os processos e eventos sociais (subjectivismo), assim

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como a elaboração, com base no subjectivismo, e pela primeiravez na história do pensamento económico, de toda uma teoriaformal sobre o aparecimento espontâneo e evolução de todasas instituições sociais (económicas, jurídicas e linguísticas)entendidas como esquemas pautados de comportamento.Todas estas ideias se incorporam no livro intitulado Princípiosde Economia Política, publicado por Menger em 1871, quehaveria de converter-se num dos livros mais influentes nahistória do pensamento económico.

A ideia distintiva mais original e importante dacontribuição de Menger radica, portanto, na tentativa deconstruir toda a economia partindo do ser humano, consideradocomo actor criativo e protagonista de todos os processossociais. Menger considera imprescindível abandonar o estéril“objectivismo” da escola clássica anglo-saxónica, obcecadapela suposta existência de entidades externas de tipo objectivo(classes sociais, agregados, factores materiais de produção,etc.), devendo o cientista da economia situar-se, pelo contrário,sempre na perspectiva subjectiva do ser humano que actua, demaneira a que a referida perspectiva influencie de formadeterminante a forma de elaborar todas as teorias económicas.Hayek, comentando esta nova concepção subjectivista propostapor Menger, chegou mesmo a escrever que “provavelmentenão é exagero afirmar que todos e cada um dos avanços maisimportantes na teoria económica que tiveram lugar durante osúltimos cem anos foram o resultado de uma aplicaçãoconsistente da concepção subjectivista”, acrescentando que o

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subjectivismo “foi impulsionado de forma mais coerente porLudwig von Mises, de maneira que creio que a maioria daspeculiaridades dos seus pontos de vista que inicialmentesurpreendem os seus leitores se devem ao facto de ter aplicadode forma rigorosa o ponto de vista subjectivista muito maisdo que os seus contemporâneos” (Hayek, 1952a: 30n.).

É possível que uma das manifestações maiscaracterísticas e originais deste novo impulso subjectivistaproposto por Menger tenha sido a sua “teoria sobre os benseconómicos de diferentes ordens”. Para Menger, são “benseconómicos de primeira ordem” os bens de consumo, ou seja,aqueles que subjectivamente satisfazem as necessidadeshumanas de maneira directa e, portanto, constituem no contextosubjectivo e específico de cada acção o fim último que o actorpretende alcançar. Para atingir estes fins, bens de consumo oubens económicos de primeira ordem, é preciso passarpreviamente por uma série de etapas intermédias, que Mengerdenomina “bens económicos de ordem superior” (segunda,terceira, quarta e assim sucessivamente), sendo a ordem decada etapa mais elevada conforme a mesma se encontre maisafastada do bem final de consumo. Concretamente, Mengerafirma que “se dispomos dos bens complementares de umaordem superior qualquer, temos que começar por ostransformar em bens de ordem imediatamente inferior e levaradiante, passo a passo, este processo, até os converter em bensde primeira ordem, que já podemos utilizar para a satisfaçãodirecta das nossas necessidades” (Menger, 1997: 121).

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Esta ideia seminal de Menger não é mais do que a lógicaconsequência da sua concepção subjectivista, na medida emque todo o ser humano pretende alcançar um fim que tem paraele um determinado valor subjectivo, e em função deste fim, emotivado pelo seu valor subjectivo, concebe e leva a cabo umprograma de acção constituído por uma série de etapas , queele considera serem necessárias para alcançar o referido fim,etapas que além disso adquirem uma utilidade subjectiva emfunção do valor do fim que o actor espera alcançar graças àutilização dos meios económicos de ordem superior. Isto é omesmo que dizer que a utilidade subjectiva dos meios ou benseconómicos de ordem superior virá determinada em últimainstância pelo valor subjectivo do fim ou bem final de consumoque aqueles meios permitam atingir ou alcançar. Assim, doponto de vista subjectivo do actor, pela primeira vez na CiênciaEconómica, e graças a Menger, teoriza-se com base numprocesso de acção constituído por uma série de etapasintermédias que o actor empreende, leva a cabo e trata deconcluir até alcançar o fim ou bem final de consumo (bemeconómico de primeira ordem) que se propõe.

É que todo o ser humano, ao actuar, pretende alcançardeterminados fins que descobriu, por alguma razão, seremimportantes para ele. Denomina-se por valor a apreciaçãosubjectiva, mais ou menos intensa psiquicamente, que o agenteatribui ao seu fim. Meio é tudo aquilo que o agentesubjectivamente considera ser adequado para atingir o fim.Denomina-se por utilidade a apreciação subjectiva que o

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agente atribui ao meio, em função do valor do fim que o agentepensa que aquele meio lhe permitirá alcançar. Neste sentido,valor e utilidade são as duas faces de uma mesma moeda, jáque o valor subjectivo que o agente dá ao fim que persegueprojecta-se no meio que considera útil para o atingir,precisamente através do conceito de utilidade.

O mais original e importante contributo de Menger paraa Ciência Económica é a concepção subjectivista de cadaprocesso de acção humana e não, como até agora se acreditava,a sua descoberta, independente e em paralelo com Jevons eWalras, da lei da utilidade marginal. Isto assim é porque ateoria subjectiva do valor e a descoberta da lei da utilidademarginal não são mais do que o corolário evidente daconcepção subjectiva do processo de acção que devemosexclusivamente a Menger e que acabamos de expôr. De facto,o ser humano, agindo ao longo de uma série de etapas, avaliaos meios em função do fim que considera que os mesmos lhepermitirão alcançar, efectuando-se a referida avaliação não deuma maneira global ou agregada, mas em função das diferentesunidades intercambiáveis de meios que sejam relevantes nocontexto de cada acção específica. Sendo assim, o agentetenderá a avaliar cada uma das unidades intercambiáveis demeios em função do valor que a última delas tenha na suaescala de avaliação, uma vez que a utilidade que perde ouganha, com a perda de uma unidade ou com o ganho de maisuma unidade, respectivamente, é função do valor que na escalade avaliação individual tenha o fim que pode perder-se ou

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ganhar-se como consequência dessa última unidade. Para aEscola Austríaca, portanto, a lei da utilidade marginal nadatem a ver com a satisfação fisiológica das necessidades nemcom a psicologia, uma vez que é uma lei estritamentepraxeológica (seguindo a terminologia de Mises), ou seja, estáinserida na própria lógica de toda a acção humana, empresariale criativa.

É, portanto, imprescindível “desomogeneizar” a teoriada utilidade marginal tal como foi naturalmente desenvolvidapor Menger, das leis de utilidade marginal que simultaneamenteforam enunciadas por Jevons e Walras. De facto, em Jevons eem Walras a utilidade marginal é um simples enxerto nummodelo matemático de equilíbrio (no caso de Jevons, parcial,e no caso de Walras, geral) em que o processo humano deacção brilha pela sua ausência, e que se mantém inalteradoindependentemente de se introduzir ou não no mesmo a lei dautilidade marginal. Pelo contrário, para Menger, a teoria dautilidade marginal é uma necessidade ontológica, consequênciaessencial da sua própria concepção da acção humana comoum processo dinâmico (Jaffé, 1976: 511-524).

Também não nos devemos surpreender com o facto deo principal fundador da escola neoclássica de Chicago, FrankH. Knight, ter afirmado que a teoria de Menger sobre os benseconómicos de primeira ordem e de ordem superior seja umadas suas contribuições “menos relevantes” (Knight, 1950).Com esta afirmação, Knight põe precisamente em evidênciaas insuficiências teóricas do paradigma neoclássico do

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equilíbrio e, em particular, da escola de Chicago por elefundada, para a qual o processo produtivo é objectivo einstantâneo, o tempo não tem nenhum papel que não sejameramente paramétrico, e a criatividade e incerteza própriasde todo o acto empresarial se encontram eliminadas de raízpelo equilíbrio ricardiano no qual centram as suasinvestigações.

3.5. Menger e a teoria económica das instituições sociais

Os Princípios de Economia Política de Mengerconstituíram um livro muito avançado para o seu tempo: nele,não só se deu entrada ao importante papel que têm na economiareal o conceito de tempo, a ignorância, o conhecimentoempresarial, o erro como algo inseparável da acção humana,os bens complementares que paulatinamente se vão acoplandono processo de mercado e os desequilíbrios e mudançascontínuas que caracterizam qualquer mercado real, como, paraalém de tudo isto, se introduziu toda uma incipiente teoriasobre a origem e a evolução das instituições sociais, queposteriormente Hayek se encarregaria de desenvolver até àssuas últimas consequências.

De facto, deve considerar-se que o segundo contributode Menger consistiu em ter sido capaz de explicar teoricamenteo aparecimento espontâneo e evolutivo das instituições sociaisa partir da própria concepção subjectiva da acção e da

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interacção humanas. Assim, não foi por capricho ou acaso queMenger dedicou os seus Princípios de Economia Política aum dos mais conspícuos historicistas alemães: WilhelmRoscher. É que, na polémica doutrinal entre os partidários deuma concepção evolutiva, histórica e espontânea dasinstituições, representados por Savigny no campo do direito eMontesquieu, Hume e Burke no campo da filosofia e da ciênciapolítica, frente aos partidários da concepção cartesianaestritamente racionalista (representados por Thibaut no campodo direito e por Bentham e os utilitaristas ingleses no campoda economia), Menger acreditava, com a sua contribuição, terdado o suporte teórico definitivo de que necessitavam osprimeiros.

A concepção subjectivista de Menger baseada no serhumano que age explica, através de um processo evolutivoem que actuam incontáveis seres humanos (cada um delesprovido do seu pequeno acervo exclusivo e privativo deconhecimentos subjectivos, experiências práticas, desejos,sensações, etc), o surgimento evolutivo e espontâneo de umasérie de comportamentos ordenados (instituições) que noscampos jurídico, económico e linguístico tornam possível avida em sociedade. Menger descobre que o aparecimento dasinstituições é o resultado de um processo social constituídopor uma multiplicidade de acções humanas e liderado por umasérie de seres humanos, homens e mulheres concretos de carnee osso que, nas suas circunstâncias históricas particulares detempo e lugar, são capazes de descobrir antes dos demais que

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podem atingir mais facilmente os seus fins adoptandodeterminados comportamentos ordenados. Põe-se desta formaem funcionamento um processo descentralizado de tentativae erro no qual tendem a preponderar os comportamentos quemelhor coordenam os desajustamentos sociais, de maneira que,através deste processo inconsciente de aprendizagem eimitação, o avanço iniciado pelos seres humanos mais criativose bem sucedidos nas suas acções se extende e é seguido peloresto dos membros da sociedade. Ainda que Mengerdesenvolva a sua teoria aplicando-a a uma instituiçãoeconómica concreta, a do surgimento e evolução do dinheiro(Menger, 1998: 200-220), também menciona que o mesmoesquema teórico básico pode aplicar-se, sem grandesdificuldades, às instituições jurídicas e também ao surgimentoe evolução da linguagem. O próprio Menger expressa de formaimpecável a nova pergunta em torno da qual pretende elaboraro seu novo programa de investigação científica: “Como épossível que as instituições que melhor servem o bem comume que são mais significativas para o seu desenvolvimentotenham surgido sem a intervenção de uma vontade comum edeliberada para as criar?” (Menger, 1883: 163-165, 182).É que se verifica a paradóxica realidade de aquelas instituiçõesque mais importantes são para a vida do homem em sociedade(linguísticas, económicas, legais e morais) serem“consequências não intencionais das acções individuais” (ouna terminologia de Menger, Unbeabsichtigte Resultante,Menger, 1883: 182), uma vez que não poderiam ter sido criadas

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deliberadamente pelo próprio homem, por este carecer dacapacidade intelectual necessária para assimilar o enormevolume de informação dispersa e dinâmica que as mesmasincorporam, tendo essas instituições progressivamente surgidode forma espontânea e evolutiva do processo social deinteracções humanas que para Menger e para os austríacosconstitui precisamente o campo que deve ser o principal objectode investigação da Ciência Económica.

3.6. A Methodenstreit, ou a polémica sobre os métodos

Grande deve ter sido a frustração causada a Menger pelofacto de o seu contributo não só não ter sido entendido peloscatedráticos da Escola Histórica Alemã, como, para além disso,ter sido por estes considerado como um perigoso desafio aohistoricismo. De facto, em vez de se darem conta de que ocontributo de Menger era o suporte teórico de que necessitavaa concepção evolucionista dos processos sociais, elesconsideraram que o seu carácter de análise abstracta e teóricaera incompatível com o estreito historicismo quepropunham. Surgiu assim a primeira e talvez mais famosapolémica em que se viram implicados os austríacos, aMethodenstreit, que haveria de ocupar as energias intelectuaisde Menger durante várias décadas. Os historicistas da EscolaAlemã encabeçados por Schmoller, da mesma forma do queviria a suceder depois aos institucionalistas americanos da

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escola de Thorstein Veblen, foram vítimas do hiper-realismo,ao negar a existência de uma teoria económica de validadeuniversal, e ao defender a tese de que o único conhecimentoválido era o que podia extrair-se da observação empírica e darecolha de dados de cada caso histórico. Contra eles Mengerescreve o seu segundo livro importante intitulado Investigaçõessobre o método das ciências sociais com especial referência àEconomia Política (Menger, 1883) no qual, partindo deAristóteles, considera que o conhecimento da realidade socialexige duas disciplinas igualmente importantes mas que, apesardo seu carácter complementar, são radical e epistemolo-gicamente distintas. A teoria é, de alguma maneira, a “forma”(no sentido aristotélico) que recolhe as essências dosfenómenos económicos. Esta forma teórica descobre-se porintrospecção, ou seja, por reflexão interior do investigador,que se torna possível pelo facto de a economia ser a únicaciência na qual o investigador tem o privilégio de compartilhara mesma natureza do observado, o que lhe proporciona umvaliosíssimo conhecimento em primeira mão. Além disso, ateoria elabora-se de forma lógico-dedutiva a partir deconhecimentos evidentes do tipo axiomático. Distinta da teoriaé a história, que de alguma maneira seria constituída pela“matéria” (no sentido aristotélico) que se concretiza nos factosempíricos de cada acontecimento histórico. Para Menger,ambas as disciplinas, teoria e história, forma e matéria, sãoigualmente necessárias para conhecer a realidade, mas ele negaenfaticamente que alguma vez se possa extrair a teoria da

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história. Mais correcto seria afirmar que as relações entre umae outra são ao contrário, no sentido de que a história só podeinterpretar-se, ordenar-se e tornar-se compreensível se sedispõe de uma teoria económica prévia. Desta forma,Menger, apoiando-se em posições metodológicas quejá haviam sido intuídas,em grande parte, por J. B. Say,estabelece os fundamentos do que depois se haveria deconverter na metodologia “oficial” da Escola Austríaca deEconomia.

É preciso ainda clarificar que existem pelo menos trêssentidos diferentes para o termo “historicismo”. O primeiro,identificado com a escola historicista do direito (Savigny,Burke) e oposto ao racionalismo cartesiano, é o defendido pelaEscola Austríaca na sua análise teórica sobre o aparecimentodas instituições. O segundo sentido é o da Escola Histórica daEconomia dos professores alemães do século XIX e dosinstitucionalistas americanos do século XX, que negam apossibilidade da existência de uma teoria económica abstractade validade universal, tal como a que defendia Menger edesenvolveram depois dele o resto dos economistas austríacos.O terceiro tipo de historicismo é o que se encontra na base dopositivismo metodológico da escola neoclássica, que pretenderecorrer à observação empírica (ou seja, em última instância,à história) para falsear ou comparar teorias o que, de acordocom Hayek, não é senão uma manifestação mais doracionalismo cartesiano que os austríacos tanto criticam(Cubeddu, 1997: 29-38).

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É curioso notar como Menger e os seus seguidores, nasua defesa da teoria frente aos historicistas alemães, contaramcomo aliados conjunturais com os teóricos do paradigmaneoclássico do equilíbrio e, entre eles, com Walras e Jevonsde entre os marginalistas matemáticos, e com os já neoclássicosAlfred Marshall em Inglaterra e John Bates Clark nos EstadosUnidos. Ainda que os defensores austríacos da tradiçãosubjectivista e dinâmica da análise dos processos de mercadoestivessem conscientes das grandes diferenças que a sua visãotinha comparativamente à destes teóricos do equilíbrio (geralou parcial), em muitas ocasiões consideraram que o objectivode derrotar os historicistas e de defender o correcto statuscientífico da teoria económica justificava a sua aliançatemporária com os teóricos do equilíbrio. O elevado custo destaestratégia só se manifestaria quando, várias décadas depois,nos anos trinta do século XX (“the years of high theory”, nafeliz expressão de Shackle) o triunfo dos defensores da teoriafrente aos historicistas foi interpretado pela maioria doseconomistas como o triunfo da teoria de equilíbrio formalizadamatematicamente, e não da teoria dos processos sociaisdinâmicos que, desde o princípio, Menger e os seus seguidoresse haviam esforçado por desenvolver e impulsionar.

Em todo o caso, e contra as versões mais comuns dosmanuais de economia, que geralmente qualificam aMethodenstreit, ou polémica sobre os métodos, como tendosido um infrutífero desperdício de esforços, consideramos quena mesma se depararam e perfilaram conceptualmente as

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inevitáveis diferenças metodológicas que existem entre asciências da acção humana e as ciências do mundo da natureza,de maneira que as graves confusões que todavia continuam aperdurar hoje neste campo se devem, sem dúvida alguma, aofacto de a maioria dos economistas de profissão não terprestado suficiente atenção às importantes contribuiçõesrealizadas por Menger a propósito desta polémica (Huerta deSoto, 1982).

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4. Böhm-Bawerk e a teoria do capital

4.1. Introdução

O impulso teórico mais importante que teve lugar naEscola Austríaca depois de Carl Menger é devido ao seu maisbrilhante discípulo, Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914),que foi catedrático de Economia Política primeiro emInnsbruck e depois em Viena, chegando a ser ministro dogoverno do Império austro-húngaro em várias ocasiões.Böhm-Bawerk não só contribuiu para o aperfeicoamento edivulgação da teoria subjectiva que devemos originariamentea Menger, como também expandiu notavelmente a suaaplicação ao campo da teoria do capital e do juro. Assim,devemos a Böhm-Bawerk uma obra cimeira, Capital e Juro(1884-1902) que, apesar do seu título, é todo um tratadocompleto de economia em que, ao redor da teoria subjectiva edinâmica dos preços, se constrói o coração da teoria austríaca

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do capital. Afortunadamente, as partes mais importantes destetratado já foram publicadas em espanhol (Böhm-Bawerk; 1986e 1998), pelo que os estudantes do nosso país poderão cobriro tradicional gap dos planos de estudo das faculdades deEconomia, nos quais a análise da teoria do capital, chave paraentender o processo de mercado, brilha pela sua ausência.

Para além de desenvolver a teoria do capital, Böhm--Bawerk criticou de maneira demolidora todas as teoriaspreexistentes sobre o aparecimento do juro, sendoespecialmente acertada a sua análise crítica da teoria marxistada exploração e das teorias que consideram que o juro tem asua origem na produtividade marginal do capital. Além disso,Böhm-Bawerk expôs toda uma nova teoria sobre oaparecimento do juro baseada na realidade subjectiva dapreferência temporal a qual, como já vimos, tem a sua origemnas contribuições do tomista Lessines, posteriormenteredescobertas por Martín de Azpilcueta no final do século XVI.Embora o contributo de Böhm-Bawerk não seja completamenteperfeito no que toca à explicação do juro e, no final, quasesem se dar conta, caia parcialmente nas malhas da teoria daprodutividade marginal do capital que tão brilhantemente haviacriticado no primeiro volume da sua obra, devemos, nãoobstante, a Böhm-Bawerk, a colocação dos alicerces essenciaisde uma teoria do capital e do juro que seria depois depuradadas suas imperfeições e levada até às suas últimasconsequências teóricas por autores como Frank A. Fetter(Fetter, 1977) e Ludwig von Mises (Mises, 1995: 573-693).

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De seguida, veremos os princípios essenciais da teoria docapital tal e qual a mesma foi inicialmente desenvolvida porBöhm-Bawerk e posteriormente aperfeiçoada pelos seusprincipais discípulos.

4.2. A acção humana como conjunto4.2. de etapas subjectivas

Em princípio, pode definir-se a acção humana comotodo o comportamento ou conduta deliberada (Mises, 1995:15). Como já vimos, o homem ao agir, pretende alcançardeterminados fins, que para ele são importantes, utilizandouma série de meios que considera adequados para alcançar oseu fim. Valor e utilidade são conceitos de apreciação psíquica,que se projectam pelo agente relativamente aos fins e aosmeios. Os meios, por definição, hão-de ser escassos, postoque se não fossem considerados escassos pelo agente face aosfins que pretende alcançar, nem sequer seriam tidos em contapor este no momento de agir. Fins e meios não estão “dados”,uma vez que, pelo contrário, são o resultado da essencialactividade empresarial do ser humano, que consisteprecisamente, como já se viu no capítulo 2, em criar, descobrirou, simplesmente, dar-se conta de quais são os fins e os meiosrelevantes para o agente em cada circunstância da sua vida.Assim que o agente acredita ter descoberto quais são os finsque valem a pena, concebe uma ideia dos meios que acredita

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que se encontram ao seu alcance para os atingir, e incorporauns e outros, quase sempre de forma tácita, num plano deactuação, que decide empreender e levar à prática comoresultado de um acto de vontade.

O plano é, portanto, a representação mental de tipoprospectivo que o agente concebe sobre as diferentes etapas,elementos e possíveis circunstâncias que podem estarrelacionadas com a sua acção. É que a acção humanadesenrola-se sempre no tempo, não entendido no seu sentidodeterminista ou newtoniano, ou seja, meramente físico ouanalógico, mas sim na sua concepção subjectivista, ou seja,tal e qual o tempo é subjectivamente sentido e experimentadopelo agente dentro do seu contexto de acção (O’Driscoll eRizzo, 1996: 52-70). O tempo é, portanto, uma categoria daCiência Económica inseparável do conceito de acção humana.Não é possível conceber uma acção que não se efectue notempo, que não dure tempo. Da mesma forma, o agentesente precisamente o decurso do tempo à medida que actua etermina as diferentes etapas do seu processo de acção. A acçãohumana, que visa sempre alcançar um objectivo ou acabar comum mal-estar, ineludivelmente dura tempo, no sentido de queexige a realização e concretização de uma série de etapassucessivas. Portanto, pode concluir-se que o que separa oagente da consecução do seu desejado fim é um período detempo entendido como a série sucessiva de etapas queconstituem o seu processo de acção.

Do ponto de vista prospectivo e subjectivo do agente,

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pode afirmar-se que existe sempre uma tendência a que, àmedida que aumenta o período de tempo que leva uma acção(ou seja, aumenta o número e complexidade de etapassucessivas que a constituem), o resultado ou fim da acção quese pretende alcançar adquire um valor maior para o agente.A demonstração lógica desta lei económica, segundo a qualos processos de acção humana tendem a atingir fins de maiorvalor à medida que a sua duração temporal aumenta, é muitofácil de entender. De facto, se assim não fosse, ou seja, se nãose valorizasse mais o resultado das acções que duram maistempo, estas não seriam de forma alguma empreendidas peloagente, que optaria por acções temporalmente mais curtas.O que separa o agente do fim que pretende alcançar éprecisamente uma determinada duração de tempo (entendidocomo o conjunto de etapas no seu processo de acção), peloque é evidente que o ser humano, em igualdade decircunstâncias, sempre pretenderá atingir os seus fins o maisrapidamente possível, e apenas estará disposto a adiar no tempoa consecução dos mesmos se subjectivamente considerar quedessa forma conseguirá alcançar fins de maior valor.

Quase sem nos darmos conta, demos entrada noparágrafo anterior à categoria lógica da preferência temporal,que estabelece que, ceteris paribus, o agente prefere satisfazeras suas necessidades ou atingir os seus objectivos o maisrapidamente possível. Ou, expresso de outra forma, que entredois objectivos de idêntico valor do ponto de vista subjectivodo agente, este preferirá sempre o objectivo que mais

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proximamente se encontre disponível no tempo. Ou, ainda maisbrevemente, que, em igualdade de circunstâncias, os “benspresentes” são sempre preferíveis aos “bens futuros”. Esta leida preferência temporal não é mais do que outra forma deexpressar o princípio essencial segundo o qual todo o agente,no seu processo de acção, pretende atingir os seus objectivoso quanto antes. A preferência temporal não é, portanto, umacategoria psicológica ou fisiológica, mas antes uma exigênciada estrutura lógica de toda a acção que se encontra inserida namente de cada ser humano. Por isso, a lei de tendência expressamais acima, segundo a qual se empreendem acções de maiorduração por parte dos agentes, pois estes através das mesmasesperam alcançar objectivos de maior valor, e a lei dapreferência temporal que acabámos de enunciar, de acordocom a qual, em igualdade de circusntâncias, são semprepreferíveis os bens mais próximos no tempo, não são senãoduas formas distintas de expressar a mesma realidade.

4.3. Capital e bens de capital

Denominam-se bens de capital as etapas intermédiasde cada processo de acção, subjectivamente consideradas comotal pelo agente. Ou, se se preferir, bem de capital será cadauma das etapas intermédias, subjectivamente consideradacomo tal, nas quais se expressa ou materializa todo o processoprodutivo empreendido pelo agente. Por isso, os bens de capital

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devem sempre ser concebidos num contexto teleológico, emque o fim perseguido e a perspectiva subjectiva do agente emrelação às etapas necessárias para o atingir são os seuselementos definidores essenciais (Kirzner, 1996: 13-122).

Os bens de capital são, portanto, os “bens económicosde ordem superior” sobre os quais já teorizara Carl Mengerou, se se preferir, os factores de produção que se incorporamem cada uma das etapas intermédias de um processo concretode acção. Além disso, os bens de capital aparecem como aconjunção acumulada de três elementos essenciais: recursosnaturais, trabalho e tempo, todos eles combinados ao longo deum processo de acção empresarial criado e empreendido peloser humano.

A condição sine qua non para produzir bens de capital éa poupança, entendida como a renúncia ao consumo imediato.De facto, o agente apenas poderá alcançar sucessivas etapasintermédias de um processo de acção cada vez mais afastadasno tempo se, previamente, tiver renunciado a empreenderacções com um resultado temporal mais próximo, ou seja, setiver renunciado à consecução de fins que satisfazem antesnecessidades humanas e que, portanto, são temporalmente maisimediatos (consumo). Com a finalidade de ilustrar esteimportante aspecto, vamos explicar em primeiro lugar, eseguindo Böhm-Bawerk, o processo de poupança einvestimento em bens de capital que realiza isoladamente umagente individual, por exemplo Robinson Crusoe na sua ilha(Böhm-Bawerk, 1998: 198-221).

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Suponhamos que Robinson Crusoe se encontra recémchegado à sua ilha e que, como único meio de subsistência, sededica à apanha de amoras, que recolhe dos arbustosdirectamente ao seu alcance. Dedicando todo o seu esforçodiário à apanha de amoras, colhe frutos em tal quantidade quepode subsistir e ainda consumir algumas mais do que asestritamente necessárias para sobreviver cada dia. Depois devárias semanas com esse regime, Robinson Crusoe descobreempresarialmente que, se usasse uma vara de madeira comvários metros de comprimento, poderia chegar mais alto elonge, golpear os arbustos com força e conseguir colher asamoras de que necessita com muito maior abundância erapidez. O único problema é que calcula que para encontraruma árvore da qual possa arrancar a vara e prepará-la,retirando-lhe os seus ramos, folhas e imperfeições, pode chegara demorar cinco dias completos, durante os quais teráforçosamente que interromper a recolha de amoras. É preciso,pois, se é que quer proceder à construção da vara, que duranteuma série de dias reduza o seu consumo de amoras, deixandoseparado o remanescente numa cesta, até que disponha de umaquantidade suficiente de modo a permitir-lhe subsistir duranteos cinco dias que prevê que durará o processo de produção davara de madeira. Depois de planificar a sua acção, RobinsonCrusoe decide empreendê-la, para o que, com carácter prévio,deve poupar uma parte das amoras que colhe à mão cada dia,reduzindo nessa quantidade o seu consumo. É claro que istosupõe para ele um sacrifício iniludível, mas ele pensa que o

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mesmo é claramente compensador em relação à ansiada metaque pretende alcançar. E assim, por exemplo, durante dez dias,decide reduzir o seu consumo (ou seja, poupar) acumulandoamoras de sobra numa cesta até alcançar uma quantidade quecalcule ser suficiente para o sustentar enquanto produz a vara.

Com este exemplo, Böhm Bawerk ilustra como todo oprocesso de investimento em bens de capital exige com carácterprévio a poupança, ou seja, a redução do consumo para umnível abaixo do potencial. Quando Robinson Crusoe já temsuficientes amoras poupadas, então, durante cinco dias, dedica--se a procurar o ramo do qual fará a vara de madeira, aarrancá-lo e a aperfeiçoá-lo. Como se alimenta durante os cincodias que dura o processo produtivo de elaborar a vara, e queforçosamente o mantém afastado da apanha diária de amoras?Simplesmente, com as amoras que havia acumulado no cestonos dez dias anteriores durante os quais poupou, passandoalguma fome, a parte necessária da sua produção “manual” deamoras. Desta maneira, se os cálculos de Robinson Crusoeestiverem correctos, decorridos os cinco dias terá à suadisposição a vara (bem de capital), que não é senão uma etapaintermédia que está temporalmente mais afastada (em cincodias de poupança) dos processos de produção imediata deamoras que até então Robinson Crusoe havia vindo aempreender. É importante entender que Robinson Crusoehá-de tentar coordenar da melhor maneira possível o seucomportamento presente em relação ao seu previsívelcomportamento futuro. Assim, concretamente, há-de evitar

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empreender processos de acção excessivamente longos emrelação à poupança que realizou, pois seria trágico que a meiodo caminho de um processo de elaboração de um bem de capitalficasse sem amoras (ou seja, consumisse tudo o que haviapoupado) sem ter alcançado o fim proposto. Igualmente há-deevitar poupar em excesso relativamente às necessidades deinvestimento que terá depois, posto que ao actuar dessa formaestaria a sacrificar desnecessariamente o seu consumoimediato. É precisamente a estimação subjectiva da suapreferência temporal que permite a Robinson Crusoe coordenarou ajustar adequadamente o seu comportamento presenterelativamente às suas necessidades e comportamentos previstosno futuro. O facto de a sua preferência temporal não serabsoluta faz com que seja possível que possa sacrificar partedo seu consumo presente durante uma série de dias com aesperança de tornar possível dessa forma a produção da vara.O facto de a sua preferência temporal não ser nula explica queapenas esteja disposto a dedicar o seu esforço a um bem decapital que possa obter num período limitado de tempo e àcusta de um sacrifício (poupança) realizado durante um númeronão muito elevado de dias. Em todo o caso, é precisocompreender que os recursos reais poupados, inicialmentematerializados nas amoras depositadas na cesta, são o queprecisamente permite que Robinson Crusoe subsista duranteo período de tempo no qual se dedica a elaborar o bem decapital, mantendo-se afastado da recolha directa de amoras.Posteriormente, e de forma paulatina, uns bens de capital (as

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amoras poupadas) são substituídos por outros (a vara demadeira) conforme Robinson Crusoe mistura o seu trabalhocom os recursos naturais através de um processo empresarialque leva tempo e que Robinson Crusoe pode suportar graçasao sustento que lhe proporcionam os bens de consumoinicialmente poupados.

Pois bem, numa economia moderna, na qual existemmúltiplos agentes económicos que desempenhamsimultaneamente diferentes funções, denomina-se capitalistaaquele agente económico cuja função consiste precisamenteem poupar, ou seja, em consumir menos do que cria ou produz,pondo à disposição dos trabalhadores, enquanto dura oprocesso produtivo no qual os mesmos intervêm, os bens deconsumo de que necessitam para a sua subsistência (da mesmaforma que Robinson Crusoe actua como capitalista poupandoamoras que lhe permitem depois manter-se euquanto produz asua vara de madeira). Portanto, o capitalista, ao poupar, libertarecursos (bens de consumo) com recurso aos quais se podemmanter aqueles trabalhadores que se dedicam às etapasprodutivas mais afastadas do consumo final, ou seja, àprodução de bens de capital.

De forma diferente do que ocorria com RobinsonCrusoe, a estrutura dos processos produtivos da economiamoderna é complicadíssima e, do ponto de vista temporal,enormemente prolongada. É constituída por múltiplas etapas,todas elas inter-relacionadas entre si e divididas em múltiplossubprocessos que se desenvolvem nos inúmeros projectos de

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acção que são continuamente empreendidos pelos sereshumanos.

Assim, por exemplo, a estrutura produtiva do processode produção de um automóvel pode considerar-se constituídapor centenas e inclusivamente milhares de etapas que exigemum período de tempo muito prolongado (mesmo de váriosanos), desde o momento em que, por exemplo, se concebe odesenho do veículo (etapa mais afastada do consumo final),passando pela encomenda aos fornecedores dos materiaiscorrespondentes, pelas diferentes linhas de montagem, aencomenda das diferentes peças do motor e de todos osacessórios, e assim sucessivamente, até chegar às etapas maispróximas do consumo, como as de transporte e distribuiçãoaos concessionários, o desenvolvimento de campanhas depublicidade e a exposição e venda ao público (Skousen, 1990).

É claro que, da mesma forma que a diferença entre oRobinson Crusoe “rico” com a vara e o Robinson Crusoe“pobre” sem ela radicava em que o primeiro dispunha de umbem de capital que havia conseguido graças a uma poupançaprévia, a diferença essencial entre as sociedades ricas e associedades pobres não radica em as primeiras dedicarem maisesforço ao trabalho, nem sequer em disporem de maioresconhecimentos de um ponto de vista tecnológico, masbasicamente no facto de as nações ricas possuírem um maioremaranhado de bens de capital empresarialmente beminvestidos, sob a forma de máquinas, ferramentas,computadores, programas informáticos, edifícios, produtos

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semi-elaborados, etc., sendo que tal foi tornado possível graçasà poupança prévia dos seus cidadãos. Acresce ainda que osbens de capital do complexíssimo emaranhado que constitui aestrutura produtiva real de uma economia moderna não sãoperpétuos, uma vez que são sempre transitórios no sentido deque se gastam ou consomem fisicamente ao longo do processoprodutivo ou se tornam obsoletos. Significa isto que o agenteeconómico, se quer manter intacto o seu stock de bens decapital, há-de fazer frente à depreciação e desgaste dosmesmos, e se deseja incrementar ainda mais o número deetapas, alargar os processos e torná-los mais produtivos, serápreciso que acumule poupança num montante superior aomínimo necesssário para fazer frente à estrita quota deamortização, como expressão quantificável da depreciação dosseus bens de capital.

Além disso, como regra geral, e isto é um aspectoimportante a ter em conta na teoria austríaca dos cicloseconómicos, pode afirmar-se que os bens de capital sãodificilmente reconvertíveis e que, quanto mais próximos estãoda etapa final de consumo, mais dificilmente reconvertíveissão. De maneira que se se alteram as circunstâncias, o agentemuda de opinião ou se se apercebe de que cometeu um erro, ébem possível que os bens de capital que havia elaborado atéesse momento sejam de todo inutilizáveis, ou apenas possamser utilizados depois de uma custosa reconversão.

Estamos agora em condições de introduzir o conceitode capital, que é distinto, do ponto de vista económico, do

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conceito de “bens de capital”. De facto, pode definir-se oconceito de capital como o valor a preços de mercado dosbens de capital, valor que é estimado pelos agentes individuaisque compram e vendem bens de capital num mercado livre.Vemos, portanto, que o capital é simplesmente um conceitoabstracto ou um instrumento de cálculo económico, ou seja,uma estimativa ou juízo subjectivo sobre o valor de mercadoque os empresários crêem que os bens de capital terão, e emfunção do qual, constantemente os compram e vendem,tentando conseguir em cada transacção benefíciosempresariais. Se não fosse através dos preços de mercado e daestimação subjectiva do valor capital dos bens que integramas etapas intermédias dos processos produtivos, numasociedade moderna seria impossível estimar ou calcular se ovalor final dos bens que se pretende produzir com os bens decapital compensa ou não o custo em que se incorre nosprocessos produtivos, não sendo sequer possível organizar demaneira coordenada os esforços dos seres humanos queintervêm nos diferentes processos de acção.

Daqui decorre que numa economia socialista na qualnão existam mercados livres nem preços de mercado, aindaque se possa considerar que existem bens de capital, não podepensar-se que exista capital. A ausência de um mercado livree a intervenção coerciva do Estado na economia, queconstituem a essência do socialismo, em maior ou menormedida impossibilitam o exercício da empresarialidade noâmbito dos bens de capital e portanto tendem a gerar

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desajustamentos sistemáticos de tipo intertemporal. É nistoque consiste, precisamente, como veremos mais adiante, aessência do teorema sobre a impossibilidade do cálculoeconómico socialista desenvolvido pelos teóricos da EscolaAustríaca. É que, sem liberdade para exercer a funçãoempresarial, nem mercados livres para os bens de capital emoeda, não é possível que se efectue o necessário cálculoeconómico relativo à extensão horizontal e vertical dasdiferentes etapas do processo produtivo, o que dá lugar a umcomportamento generalizadamente descoordenado quedesestabiliza a sociedade e impede o seu desenvolvimentoharmonioso. Nos processos empresariais de coordenaçãointertemporal assume um papel protagonista um importantepreço de mercado: a saber, o preço dos bens presentesrelativamente aos bens futuros, mais comummentedenominado taxa de juro, que regula a relação entre o consumo,a poupança e o investimento nas sociedades modernas e queabordamos em detalhe no ponto seguinte.

4.4. A taxa de juro

Como já se viu, o ser humano, na sua escala valorativa,valoriza sempre mais, em igualdade de circunstâncias, os benspresentes do que os bens futuros. Não obstante, a intensidadepsíquica relativa da referida diferença de valorização subjectivavaria muito de uns seres humanos para outros, e inclusivamente

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para um mesmo ser humano pode também variar muito aolongo da sua vida em função das suas circuntânciasparticulares. Esta diferente intensidade psíquica da valorizaçãosubjectiva dos bens presentes em relação aos bens futuros,manifesta na escala de cada ser humano que age, dá lugar aque num mercado no qual existam muitos agentes económicos,cada um deles dotado de uma distinta e variável preferênciatemporal, surjam múltiplas oportunidades para efectuarintercâmbios mutuamente benéficos.

Assim, aquelas pessoas que tenham uma baixapreferência temporal, estarão dispostas a renunciar a benspresentes em troca de conseguir bens futuros com um valornão muito maior, e efectuarão trocas entregando os seus benspresentes a outros que tenham uma preferência temporal maisalta e, portanto, valorizem com mais intensidade relativa opresente do que o futuro. O próprio ímpeto e perspicácia dafunção empresarial leva a que em sociedade tenda a determinar--se um preço de mercado dos bens presentes relativamenteaos bens futuros. Pois bem, do ponto de vista da EscolaAustríaca, a taxa de juro é o preço de mercado dos benspresentes em função dos bens futuros.

A taxa de juro, portanto, é o preço determinado nummercado no qual os oferentes ou vendedores de bens presentessão, precisamente, os aforradores, ou seja, todos aquelesrelativamente mais dispostos a renunciar ao consumo imediatoem troca de obter um maior valor de bens no futuro.Os compradores ou aqueles que estão do lado da procura de

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bens presentes são todos aqueles que consomem bens eserviços imediatos (sejam trabalhadores, proprietários derecursos naturais, de bens de capital, ou de qualquercombinação deles). Assim, o mercado de bens presentes e bensfuturos no qual se determina o preço que denominamos taxade juro é constituído por toda a estrutura produtiva dasociedade, onde os aforradores ou capitalistas renunciam aoconsumo imediato e oferecem bens presentes aos proprietáriosdos factores originais de produção (trabalhadores eproprietários dos recursos naturais) e aos proprietários dos bensde capital, em troca de adquirir a propriedade de um valorsupostamente maior de bens de consumo assim que a produçãodos mesmos se complete no futuro. Eliminando o efeitopositivo (ou negativo) dos benefícios (ou perdas) empresariaispuros, esta diferença de valor tende a coincidir precisamentecom a taxa de juro.

É importante entender como os economistas austríacosressaltam que o denominado mercado de crédito, no qual sepodem obter empréstimos pagando a correspondente taxa dejuro, é apenas uma parte, relativamente não muito importante,do mercado geral onde se trocam bens presentes por bensfuturos e que é constituído por toda a estrutura produtiva dasociedade, no contexto da qual os proprietários dos factoresoriginais de produção e dos bens de capital actuam procurandobens presentes e os aforradores actuam oferecendo essesmesmos bens. Portanto, o mercado de empréstimos a curto,médio e longo prazo é apenas um subconjunto desse mercado

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muito mais amplo no qual se trocam bens presentes porbens futuros e a respeito do qual tem um mero papel subsidiárioe dependente, e tudo isto apesar de, do ponto de vistamais popular, o mercado de crédito ser o mais visível eevidente.

Desta forma, no mundo exterior, os únicos valoresdirectamente observáveis são o que poderíamos denominartaxa de juro bruta ou de mercado (coincidente com a taxa dejuro do mercado creditício) e os lucros contabilísticos brutosda actividade produtiva. A primeira é constituída pela taxa dejuro tal e qual a definimos (às vezes também denominada taxade juro originária ou natural), mais um prémio de risco quecorresponde à operação em questão, mais ou menos um prémiopela inflação ou deflação esperada, ou seja, pela diminuiçãoou incremento esperado no poder aquisitivo da unidademonetária na qual se efectuam e calculam as transacções entrebens presentes e bens futuros.

Em segundo lugar, também são directamenteobserváveis no mercado os lucros contabilísticos brutos quese obtêm na actividade produtiva específica dentro de cadaetapa do processo de produção e que tendem a igualar-se àtaxa de juro bruta ou de mercado, tal como foi definida noparágrafo anterior, mais ou menos os benefícios ou perdasempresariais puros. Como em qualquer mercado há umatendência a que os benefícios e perdas empresariaisdesapareçam, em resultado da concorrência entre osempresários, existe, portanto, uma tendência a que os lucros

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contabilísticos de cada actividade produtiva por período detempo tendam a igualar-se com a taxa de juro bruta do mercado.Por isso, é possível que uma empresa, ainda que apresentandolucros contabilísticos, esteja na realidade a incorrer em perdasempresariais, caso estes lucros contabilísticos não alcancem ovalor necessário para superar a componente implícita da taxade juro bruta de mercado aplicada sobre os recursos investidospelos capitalistas no seu negócio durante o exercícioeconómico.

Numa economia moderna, o ajuste entre oscomportamentos presentes e futuros torna-se possívelprecisamente graças à capacidade exercida pela funçãoempresarial no mercado no qual se trocam bens presentes porbens futuros e no qual se fixa, como preço de mercado de unsem função dos outros, a taxa de juro. Desta maneira, quantomaior for a poupança, ou seja, quanto mais bens presentes sevendam e ofereçam, em igualdade de circunstâncias, maisbaixo será o seu preço em termos de bens futuros e, portanto,mais reduzida será a taxa de juro; isto indicará aos empresáriosque existe uma maior disponibilidade de bens presentes paraaumentar a duração e complexidade das etapas do processoprodutivo tornando-as, passe a redundância, mais produtivas.Pelo contrário, quanto menor for a poupança, ou seja, emigualdade de circunstâncias, quanto menos dispostos estejamos agentes económicos a renunciar ao consumo imediato debens presentes, mais alta será a taxa de juro de mercado.Portanto, uma taxa de juro de mercado alta indica que a

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poupança é escassa em termos relativos, e isso é um sinalimprescindível que os empresários terão de ter em conta, paranão alargar indevidamente as diferentes etapas do processoprodutivo, gerando descoordenações ou desajustamentosmuito perigosos para o desenvolvimento sustentável, são eharmonioso da sociedade. Em suma, a taxa de juro indicaaos empresários quais as novas etapas produtivas ou projectosde investimento que podem e devem empreender e quaisnão, para manter coordenados, na medida do huma-namente possível, os comportamentos de aforradores,consumidores e investidores, evitando que as distintas etapasprodutivas sejam demasiado curtas ou se alarguemindevidamente.

A taxa de juro como preço de mercado ou taxa social depreferência temporal joga um papel chave na coordenação docomportamento de consumidores, aforradores e produtores emtoda a economia moderna. E precisamente, a teoria austríacasobre as crises económicas, tal e qual a mesma serádesenvolvida por Mises e Hayek, baseia-se em analisarteoricamente os efeitos que a manipulação monetária da taxade juro tem no que toca a descoordenar o comportamento dosagentes económicos distorcendo gravemente a estruturaprodutiva da sociedade e tornando inevitável o dolorosoreajuste ou reconversão da mesma sob a forma de uma recessãoeconómica.

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4.5. Böhm-Bawerk contra Marshall

Apesar da já comentada aliança conjuntural que tevelugar entre os teóricos e os neoclássicos no curso do debatesobre os métodos ou Methodenstreit, tiveram lugaradicionalmente uma série de debates paralelos de grandeinteresse que foram protagonizados por Böhm-Bawerk aolongo dos últimos anos do século XIX e dos primeiros anosdo século XX.

A primeira destas polémicas é a que Böhm-Bawerkmanteve com Marshall. Böhm-Bawerk censura a Marshall ofacto de ter impedido a plena recepção no mundo anglo-saxãoda revolução subjectivista iniciada por Menger e de, emconcreto, ter tratado de reabilitar o velho objectivismo deRicardo, pelo menos no lado da oferta, para explicar adeterminação dos preços mediante funções de oferta e deprocura. Com efeito, Marshall utilizou a metáfora das famosastesouras que, dotadas de dois braços (a oferta e a procura),fixariam conjuntamente os preços (de equilíbrio) no mercado.De maneira que, assim como se admitia que a procura seriadeterminada basicamente por considerações subjectivas deutilidade, o lado da oferta, para Marshall, seria determinadosobretudo por considerações “objectivas” relativas ao custohistórico (ou seja, “dado” e conhecido) de produção.

Böhm-Bawerk reagiu energicamente contra a doutrinade Marshall, respondendo ao economista inglês que este emúltima instância ignorava que o custo é também um valor

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subjectivo (ou seja, uma apreciação subjectiva dos fins aosquais se renuncia ao agir de determinada forma), e que os custosmonetários não eram senão os preços de mercado dos factoresde produção que em última instância estavam determinadostambém pelas avaliações de utilidade referentes a todos osbens de consumo alternativos que se poderiam produzir comeles, pelo que era inquestionável que não apenas uma, masambas as partes da famosa tesoura de Alfred Marshall tinhama sua base em considerações subjectivas de utilidade(Böhm-Bawerk, 1959: vol. III, 97-115; e 1962a: 303-370).

4.6. Böhm-Bawerk contra Marx

Igualmente importante é a crítica demolidora queBöhm-Bawerk realizou contra a teoria marxista da exploraçãoou da mais valia, que se encontra recolhida no volume I daobra Capital e Juro (Böhm-Bawerk, 1987: 101-201).

Böhm-Bawerk argumenta contra os marxistas, emprimeiro lugar, o facto de que não é verdade que todos osbens económicos sejam produto do factor trabalho. Por umlado, existem os bens da natureza que, sendo escassos e úteispara alcançar fins humanos, constituem bens económicos aindaque não incorporem trabalho algum. Por outro lado, é evidenteque dois bens, mesmo que incorporem uma quantidade idênticade trabalho, podem ter um valor muito diferente no mercadose o período de tempo que dura a sua produção for distinto.

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Em segundo lugar, o valor dos bens é algo subjectivo,pois, como já foi explicado anteriormente, o valor não é senãouma apreciação que o homem realiza ao agir projectando sobreos meios a importância que crê que tenham para alcançar umdeterminado fim. Por isso, bens que incorporem uma grandequantidade de trabalho podem ter um valor muito reduzido, einclusivamente nada valer no mercado, se posteriormente oagente se der conta de que carecem de utilidade para alcançarqualquer fim.

Em terceiro lugar, os teóricos do valor trabalho caemnuma contradição insolúvel e no vício do raciocínio circular,uma vez que se o trabalho determina o valor dos benseconómicos e aquele, por sua vez, se encontra determinado,no que à sua valoração diz respeito, pelo valor dos benseconómicos necessários para o reproduzir e manter acapacidade produtiva do trabalhador, resulta que acabamospor raciocinar circularmente sem que nunca se chegue aexplicar o que é que determina, em última instância, o valor.

Por último, em quarto lugar, para Böhm-Bawerk éevidente que os defensores da teoria da exploraçãodesconhecem de maneira flagrante a lei da preferênciatemporal e, portanto, a categoria lógica de que, em igualdadede circunstâncias, os bens presentes têm sempre um valorsuperior aos bens futuros. Em resultado deste erro pretendemque se pague mais ao trabalhador do que este realmente produz,quando defendem que lhe seja entregue, quando desempenhao seu trabalho, o valor integral de um bem que apenas estará

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produzido depois de um período de tempo mais ou menosprolongado. De modo que apenas há duas opções, ou ostrabalhadores decidem aguardar a duração do processoprodutivo para ficar com a propriedade integral do produtofinal (tal seria o caso das cooperativas), ou podem empregar-se por conta alheia, em cujo caso receberão adiantado o valordescontado, precisamente pela taxa de juro, do valor final doproduto. Mas pretender pagar aos trabalhadores hoje o valorintegral de um produto que apenas estará concluído numamanhã distante é claramente injusto, uma vez que suporiapagar aos trabalhadores um valor muito superior ao queefectivamente tenham produzido.

Finalmente, Böhm-Bawerk, com carácter adicional,escreveu um artigo dedicado a tornar manifestas asinconsistências lógicas e as contradições em que Marx haviacaído ao tentar resolver no volume III de O Capital os erros eas contradições da sua teoria da exploração tal e qual a mesmahavia sido inicialmente desenvolvida no volume I da mesmaobra (Böhm-Bawerk, 1962b: 201-302; 2000).

4.7. Böhm-Bawerk contra John Bates Clark4.7. e o seu conceito mítico de capital

Em geral, a Escola Neoclássica seguiu uma tradição queé prévia à revolução subjectivista e que considera um sistemaprodutivo no qual os diferentes factores de produção dão lugar,

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de uma maneira homogénea e horizontal, aos bens e serviçosde consumo, sem levar em conta a sua situação no tempo e noespaço ao longo de uma estrutura de etapas produtivas denatureza temporal, como tipicamente têm em conta os teóricosda Escola Austríaca. Este enquadramento estático foi escolhidoe levado até às suas últimas consequências por John BatesClark (1847-1938), professor de Economia na Universidadede Columbia em Nova Iorque, cuja enérgica reacçãoanti-subjectivista no campo da teoria do capital e do juro aindahoje em dia continua a ser a base sobre a qual se apoia todo oedifício científico neoclássico-monetarista.

Com efeito, para Clark, a produção e o consumo sãosimultâneos, sem que existam etapas no processo produtivonem a necessidade de esperar tempo algum para obter oscorrespondentes resultados dos processos de produção. Clarkconsidera que o capital é um fundo permanente ou perpétuoque de maneira “automática” gera rendimentos sob a formade juros. Para Clark, quanto maior for este fundo social queconstitui o capital, mais baixa será a taxa de juro, sem queesta seja minimamente afectada pelo fenómeno da preferênciatemporal (Clark, 1893: 302-315; 1895: 257-258; 1907). Alémdisso, e como veremos no capítulo dedicado a Hayek, aconcepção de Bates Clark é a que fielmente seguem Frank H.Knight, Stigler, Friedman e o resto dos teóricos da Escola deChicago.

É fácil darmo-nos conta de que a concepção do processoprodutivo de Clark não é senão uma transposição para o campo

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da teoria do capital da concepção de equilíbrio geral de Walras.Como se sabe, Walras desenvolveu um modelo de economiaem equilíbrio geral descrito através de um sistema de equaçõessimultâneas que pretende explicar a formação dos preços demercado dos diferentes bens e serviços. Na óptica austríaca, aprincipal deficiência da modelização de Walras é que na mesmase inter-relacionam conjuntamente, através de um sistema deequações simultâneas, magnitudes (variáveis e parâmetros) quenão são simultâneas, mas que se sucedem de uma maneirasequencial ao longo do tempo à medida que avança o processoprodutivo movido pelas acções dos agentes que participam nosistema económico. Em suma, o modelo de equilíbrio geralde Walras é um modelo estritamente estático, que relacionaentre si magnitudes heterogéneas do ponto de vista temporal eque não considera o decurso do tempo, descrevendo antes deuma forma sincronizada inter-relações mútuas entre diferentesvariáveis e parâmetros que nunca se dão de forma simultâneana vida real.

Como é lógico, é impossível explicar os processoseconómicos reais utilizando uma concepção da economia quecarece de dimensão temporal e na qual o estudo da génesesequencial dos processos de mercado brilha pela sua ausência.É surpreendente que uma teoria como a defendida por Clarktenha sido, apesar de tudo, a que de maneira mais generalizadase arreigou na Ciência Económica até aos nossos dias, passandoa integrar a maioria dos manuais introdutórios estudados pelosnossos alunos. Com efeito, em quase todos eles se começa

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por explicar o denominado modelo de “fluxo circular dorendimento”, no qual se descreve a interdependência que existeentre a produção, o consumo e os intercâmbios entre osdiferentes agentes económicos (economias domésticas,empresas, etc.), fazendo uma completa abstracção do papelque o tempo desempenha no curso dos acontecimentoseconómicos. Ou seja, neste modelo supõe-se que tudo aconteceao mesmo tempo, uma suposta “simplificação” falsa e quecarece de fundamento, que, além de impedir responder aosprobemas relevantes que ocorrem na economia real, constituium obstáculo quase insolúvel a que estes sejam descobertos eanalisados por parte dos estudiosos da nossa ciência.

Böhm-Bawerk reagiu de imediato frente à posiçãoobjectivista de Clrak e da sua escola. Assim, Böhm-Bawerkqualificou de mítico e mitológico o conceito de capital de Clark,indicando que todo o processo produtivo se leva a cabo nãocomo consequência da participação de um misterioso fundohomogéneo, mas antes como resultado da conjugação de bensde capital concretos que têm de ser previamente concebidos,produzidos, seleccionados e combinados pelos empresáriosno âmbito de um processo económico com duração temporal.Böhm-Bawerk afirmou ainda que, para Clark, o capital é umaespécie de “value jelly”, ou conceito fictício, e advertiu comgrande premonição que a sua utilização haveria de dar lugar aerros fatais no desenvolvimento futuro da teoria económica.Com efeito, Böhm-Bawerk assinala com grande presciênciaque, de preponderar a visão estática e circular de Clark,

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surgiriam de novo inevitavelmente as doutrinas dosubconsumo, já anteriormente refutadas pelos economistas,como de facto acabou por suceder quando apareceram Keynese a sua escola (Böhm-Bawerk, 1895: 113-131).

Böhm-Bawerk considera também equivocadas as teoriasque, como a de Clark, fundamentam o juro na produtividademarginal do capital. Com efeito, para Böhm-Bawerk, osteóricos que acreditam que a taxa de juro é determinada pelaprodutividade marginal do capital não podem explicar, entreoutros aspectos, por que razão a concorrência entre osdiferentes empresários não faz com que o valor presente dosbens de capital no mercado tenda a ser idêntico ao valor doseu correspondente produto esperado, com o qual não restariaqualquer diferencial de valor entre custos e produto ao longodo período de produção. É que, como com todo o acerto indicaBöhm-Bawerk, as teorias baseadas na produtividade não sãosenão um resto da concepção objectivista do valor, de acordocom a qual este seria determinado pelo custo histórico incorridono processo produtivo dos diferentes bens e serviços.Não obstante, os custos são determinados pelos preços e nãoo contrário, como sabemos, pelo menos, desde Luis Saraviade la Calle. Ou seja, incorre-se em custos porque os agenteseconómicos pensam que poderão obter um valor pelos bensde consumo que produzam superior ao desses custos. O mesmosucede relativamente à produtividade marginal de cada bemde capital, que é determinada em última instância pelo valorfuturo dos bens e serviços de consumo que o mesmo ajuda a

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produzir e que, através de um processo de desconto, dá lugarao valor actual de mercado do bem de capital em questão(que nada tem a ver com o seu custo de produção).

O juro, portanto, há-de ter uma existência e géneseautónomas relativamente aos bens de capital que radica, comojá se indicou, nas valorações subjectivas de preferênciatemporal dos seres humanos. É fácil compreender por que razãocaíram os teóricos da escola Clark-Knight no erro de considerarque a taxa de juro é determinada pela produtividade marginaldo capital, simplesmente observando que o juro e aprodutividade marginal do capital se tornam iguais se severificarem as seguintes circusntâncias: primeira, um ambientede equilíbrio perfeito no qual não se produzem alterações;segunda, uma concepção de capital como fundo mítico que seauto-reproduz sozinho, sem necessidade de tomar decisõesempresariais específicas quanto à amortização do mesmo;terceira, uma concepção da produção como um “processo”instantâneo que, portanto, não envolve a passagem do tempo.Verificando-se estas três circunstâncias, tão absurdas comoafastadas da realidade, a renda do bem de capital é sempreigual à taxa de juro. Explica-se agora perfeitamente que osteóricos imbuídos da concepção sincrónica e instantânea docapital se tenham deixado enganar pela igualdade matemáticaentre renda dos bens de capital e juro que se produz com essespressupostos irreais, e a partir daí tenham dado o saltoteoricamente inadmissível de afirmar que é a produtividadeque determina a taxa de juro, e não o contrário, como

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precisamente afirmam os autríacos. Para estes, a maior oumenor produtividade marginal (ou seja, o valor do fluxo futurode rendimentos) apenas determina o preço de mercado de cadabem de capital, que tenderá a igualar-se com o valor actualdescontado (pela taxa de juro) do referido fluxo de rendimentosesperados. Paralelamente, um aumento (ou diminuição) da taxade juro (determinada pela preferência temporal) dará lugar auma diminuição (ou aumento) do valor actual (preço demercado) de cada bem de capital (independentemente de qualtenha sido o custo histórico de produção), através docorrespondente processo de desconto (utilizando a taxa de juro)do fluxo futuro de rendimentos esperados, e precisamenteaté àquele nível em que esta coincida com a taxa de juro(e a necessária quota de amortização) (Böhm-Bawerk, 1986:132-213; Mises, 1995: 624).

Em suma, Böhm-Bawerk, oposto ao hiper-realismo doshistoricistas, denuncia agora o hiporrealismo, ou melhor, aabsoluta falta de realismo da conceptualização estática docapital de Clark e dos seus acólitos. Todo o processo deprodução implica o decorrer do tempo e, antes de alcançar oseu fim, é necessário passar por uma série de etapas que sematerializam num conjunto muito heterogéneo e variável debens de capital que em caso algum se auto-reproduzemautomaticamente, mas que se constituem como resultado deacções empresariais concretas e de uma série de decisões que,se não fossem tomadas, implicariam inclusivamente o consumoe o desaparecimento dos bens de capital existentes.

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Além disso, e como já vimos, para Böhm-Bawerk, opreço dos bens de capital não é determinado pelo seu custohistórico de produção, mas antes pela estimação do valor dasua produtividade futura descontado pela taxa de juro, demaneira que é sempre a produtividade que tende a seguir ataxa de juro (determinada pela preferência temporal) e não ocontrário.

Os economistas neoclássicos acreditam que a taxa dejuro em equilíbrio se determina de forma simultânea pela ofertae pela procura de capital; de maneira que a oferta seriadeterminada por considerações subjectivas relativas àpreferência temporal, enquanto que a procura seria efectuadapelos empresários em função da produtividade marginal docapital (ou seja, tendo por base considerações predominan-temente objectivas). Esta abordagem, que é paralela àdesenvolvida por Marshall para explicar a determinação dospreços no mercado, é rejeitada por Böhm-Bawerk e pelosoutros economistas austríacos que realçam como osempresários procuram fundos actuando como merosintermediários dos trabalhadores e dos proprietários dosfactores de produção (que são quem, em última instância,procura os bens presentes sob a forma, respectivamente, desalários e de rendas) em troca de transferir para os empresáriosa propriedade de um valor, eventualmente superior, de bensfuturos (que apenas estarão disponíveis quando terminar oprocesso produtivo).

Por isso, para os economistas austríacos, ambos os lados,

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tanto a oferta como a procura de bens de capital, sãodeterminados por considerações subjectivas de preferênciatemporal. Esta argumentação, no âmbito da determinação dataxa de juro, é paralela à que Böhm-Bawerk realizou a Marshallquando criticou o seu desejo de manter, pelo menos num doslados do processo de determinação dos preços, a velhaconcepção objectivista e ricardiana da Escola Clássica.

4.8. Wieser e o conceito subjectivo de custo4.8. de oportunidade

Outro teórico da Escola Austríaca frequentemente citadoé Fiedrich von Wieser (1851-1926), cunhado de Böhm-Bawerke também ele catedrático, primeiro em Praga e depois emViena. Devemos a Wieser algumas contribuições cominteresse, entre as quais sobressai o desenvolvimento daconcepção subjectivista do custo de Menger, entendido comoo valor subjectivo que o agente dá aos fins a que renuncia aoagir de determinada forma (conceito subjectivista de custo deoportunidade), assim como a expressão “utilidade marginal”ou “fronteiriça” (grenznutzen, de grenz, “fronteira” e nutzen,“utilidade”) que ele foi o primeiro a utilizar. No entanto, asúltimas investigações vieram tornar manifesto que Wieser eraum teórico mais influenciado pela Escola de Lausana do quepela própria Escola Austríaca. Com efeito, Mises chegou aescrever que “Wieser não foi um pensador criativo e, em geral,

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causou mais danos do que benefícios. Nunca compreendeurealmente o fundamento da concepção subjectivista da EscolaAustríaca, carência esta que o levou a cometer infelizes erros.Assim, a sua teoria da imputação é insustentável. As suas ideiassobre o cálculo do valor justificam a conclusão de que, maisdo que um membro da Escola Austríaca, deve ser consideradoum membro da Escola de Lausana, ou seja, da escola de Walrase de todos aqueles que desenvolveram o conceito de equilíbrioeconómico” (Mises, 1978: 38).

4.9. O triunfo do modelo de equilíbrio4.9. e do formalismo positivista

Até aos anos trinta do século XX, o modelo de equilíbriotinha vindo a ser utilizado pelos economistas mais como umaferramenta intelectual auxiliar que, por contraste, deveriafacilitar a teorização sobre os processos reais de mercado. Noentanto, durante os anos trinta, o equilíbrio deixa de serconsiderado como uma mera ferramenta auxiliar epaulatinamente converte-se no único objecto de investigaçãoconsiderado relevante e de interesse pela maioria doseconomistas. Durante este período, o equilíbrio converte-se,pela mão dos economistas neoclássicos, no centro focal deinvestigação, abandonando-se generalizadamente o interessepor estudar os processos dinâmicos de mercado, pelo que oseconomistas austríacos vão ficando isolados com o seu

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programa de investigação, muitas vezes sem estaremconscientes, eles mesmos, da importante transformação quese está a processar na corrente dominante da disciplina.Assim, Hicks chegou a afirmar que os austríacos, na realidade,não eram uma facção específica, fora da corrente principal daeconomia, uma vez que, até esse período, eles eram a correnteprincipal da economia, sendo que eram os outros (os incipientesneoclássicos cultivadores do equilíbrio) que se encontravamfora do paradigma dominante (Hicks, 1973: 12).

É certo que, durante uma série de anos, a tensão entre oequilíbrio entendido como ferramenta auxiliar ou como centrofocal de investigação se manteve latente. Prova disso é o casode Pareto que, em 1906, reconheceu o carácter meramenteauxiliar do equilíbrio ao afirmar que “a solução do sistema deequações descritivo do equilíbrio na prática se encontrava paralá da capacidade da análise de equilíbrio, sendo neste casonecessária uma troca de papéis, uma vez que as ciênciasmatemáticas não poderiam continuar a ajudar a economiapolítica, devendo, pelo contrário, ser a economia política a virajudar as ciências matemáticas. Por outras palavras, mesmoque todas as equações fossem conhecidas na relaidade, o únicoprocedimento para as resolver seria observar a solução realfornecida pelo mercado” (Pareto, 1906: epígrafe 217).Simultaneamente, na mesma obra, (Pareto, 1906: epígrafe 57),comentando o conceito de curva de indiferença que havia sidointroduzido por Edgeworth, Pareto conclui que, paradeterminar o equilíbrio económico, o processo real de mercado

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e inclusivamente o “ser humano podem desaparecer desde quenos deixe como herança a fotografia dos seus gostosrepresentada pelo correspondente mapa de curvas deindiferença”.

Esta tensão (ou melhor, contradição) entre o realismo eo modelo de equilíbrio ilustra-se de forma ainda mais dramáticase considerarmos a totalidade das obras de Pareto, que, comoé sabido, além de teórico do equilíbrio geral, foi um notávelsociólogo.

Para esta evolução do pensamento económico contribuiutambém o triunfo do panfisicalismo e do monismometodológico inspirados por Schlick, Mach e restantespositivistas do denominado “Círculo de Viena”, que defendiama aplicação do método da Física, com as suas relaçõesfuncionais constantes e experiências de laboratório, a todas asciências, incluindo a Economia. Este objectivo metodológico,que Walras havia previamente declarado abraçar de maneiraexplícita após ler o tratado do físico Poinsot, foi tambémseguido de forma integral e sem qualquer matização porSchumpeter, logo desde 1908, no seu livro Sobre a essência esubstância da economia teórica (Schumpeter, 1908).

Wieser, que pelo menos no âmbito metodológicocontinuava a defender as posições da Escola Austríaca,escreveu uma recensão profundamente crítica dopanfisicalismo de Schumpeter (Wieser, 1911). Concretamente,Wieser critica Schumpeter por ter caído no instrumentalismometodológico (que seria depois adoptado por Milton Friedman

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e pelos positivistas da Escola de Chicago), assim como pelasua tentativa de aplicar à economia o método da física e damecânica (vício que Hayek posteriormente baptizaria com otermo “cientismo”). Especialmente ilustrativo deste vício é ocaso de Leon Walras, que caiu nele depois de ler um tratadodo físico Louis Poinsot, no qual este autor descrevia as diversaspartes dos sistemas físicos interconectadas e em equilíbriodevido à acção de forças contrapostas. Walras conta que leu olivro de Poinsot em poucos dias e decidiu adoptá-lo comomodelo para o seu programa de investigação. O seu objectivo,a partir de então, seria fazer para a economia o mesmo quePoinsot havia feito para o mundo da física e da mecânica(Mirowoski, 1991).

Não é de estranhar que este caminho de investigaçãoparecesse extremamente vicioso aos teóricos da EscolaAustríaca, preocupados em construir uma teoria sobre osprocessos reais e dinâmicos que se dão no mercado e que nuncase encontram em equilíbrio. Além disso, Wieser culpa ospanfisicalistas por não reconhecerem que as leis da economiateórica têm forçosamente de ser genético-causais e nãofuncionais, uma vez que a origem dos fenómenos se conhecepor introspecção e que as relações funcionais são simultâneas,não consideram o fenómeno do tempo nem a criatividadeempresarial e relacionam entre si quantidades heterogéneasdo ponto de vista temporal.

Será todavia necessário esperar pelas contribuições deMises e Hayek para que os teóricos da Escola Austríaca fiquem

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plenamente conscientes do abismo metodológico que os separados seus colegas neoclássicos defensores das teorias doequilíbrio. Esta tomada de consciência teve lugar a propósitode duas outras importantes polémicas nas quais se viramimplicados os austríacos: a polémica sobre a impossibilidadedo socialismo e a polémica entre Hayek e Keynes. Nospróximos capítulos estudaremos com detalhe as principaiscontribuições de Mises e Hayek e a grande importância queestas polémicas tiveram para o posterior desenvolvimento doparadigma austríaco.

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5. Ludwig von Mises e a concepção5. dinâmica do mercado

5.1. Introdução

Ludwig von Mises foi capaz, melhor do que qualqueroutro, de destilar a essência do paradigma iniciado por Mengere de o aplicar a uma série de novos campos no âmbito daeconomia que dariam um impulso definitivo à Escola Austríacano século XX. Com efeito, para Mises, “o que distingue aEscola Austríaca e lhe há-de proporcionar fama imortal éprecisamente o facto de ter desenvolvido uma teoria da acçãoeconómica e não da ‘não acção’ ou ‘equilíbrio económico’”(Mises, 1978: 36). Mises aplicou melhor que ninguém estaconcepção dinâmica do mercado a novas áreas onde não sehavia ainda aplicado o ponto de vista analítico da EscolaAustríaca, impulsionando o seu desenvolvimento no âmbitoda teoria monetária, do crédito e dos ciclos económicos,

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desenvolvendo uma refinada teoria da função empresarialcomo força coordenadora do mercado e depurando osfundamentos metodológicos da Escola e a teoria dinâmicacomo alternativa às concepções baseadas no equilíbrio.Assim, com Mises, a Escola Austríaca recebeu o impulsoteórico definitivo a partir do qual os seus discípulos,encabeçados por Hayek, protagonizaram o importanteressurgimento da Escola Austríaca que se verifica a partir dasúltimas décadas do século XX.

5.2. Breve resenha biográfica

Ludwig Edler von Mises nasceu a 29 de Setembro de1881 na cidade de Lemberg, à época situada no interior doImpério Austro-Húngaro. Actualmente, a cidade natal de Misesdenomina-se Lvov e faz parte da República Independente daUcrânia. O pai de Ludwig formou-se na Escola Politécnica deZurique e foi um importante engenheiro especializado naconstrução de caminhos-de-ferro. Ludwig foi o mais velho detrês irmãos, um dos quais morreu ainda criança e o outro,Richard, veio a tornar-se um matemático e lógico positivistade reconhecida fama, com o qual Ludwig apenas manteve friasrelações pessoais ao longo da sua vida.

Segundo o próprio confessa, Mises converteu-se emeconomista após ler, no Natal de 1903, os Princípios deeconomia política de Carl Menger (Mises, 1978: 33),

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doutorando-se em Direito a 20 de Fevereiro de 1906 eassistindo até 1914 ao seminário de Economia que Eugen vonBöhm-Bawerk mantinha na Universidade de Viena. Misesprontamente sobressaiu como o participante mais brilhantedeste seminário, juntamente com J. A. Schumpeter, a quemMises sempre considerou como um teórico excessivamenteconfuso e frívolo, sempre desejoso de “surpreender” e que,influenciado pelo cientismo neoclássico, havia abandonado atradição da Escola Austríaca.

Em 1906, Mises começou a sua actividade docente,primeiro, durante seis anos, ensinando Economia na Escolafeminina de estudos comerciais de Viena, e depois, a partir de1913 e durante vinte anos, como professor da Universidadede Viena. Em 1934 foi nomeado catedrático de EconomiaInternacional no Instituto Universitário de Altos EstudosInternacionais de Genebra, Suíça, mudando-se, fugindo deHitler, no começo da Segunda Guerra Mundial, para os EstadosUnidos, onde adquiriu a nacionalidade americana e foinomeado professor da Universidade de Nova Iorque, postoque desempenhou até à sua jubilação em 1969.

De 1920 a 1934, Mises organizou e dirigiu um famososeminário de Economia (Privatseminar) no seu gabinete oficialda Câmara de Comércio de Viena, na qual era chefe doDepartamento de Economia e secretário-geral, e através daqual chegou a ter uma significativa influência sobre a políticaeconómica do seu país. Às reuniões deste seminário, quetinham lugar às sextas-feiras de tarde, assistiam não só os

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alunos que estavam a elaborar a sua tese de doutoramento soba direcção de Mises, mas também, e por convite, muitosprestigiados economistas de todo o mundo. Entre eles,frequentaram regularmente as reuniões do seminárioFriedrich A. Hayek, Fritz Machlup, Gotfried von Haberler,Oskar Morgenstern, Paul L M. Rosenstein-Rodan, FélixKaufmann, Alfred Schütz, Richard von Strigl, Karl Menger(o matemático, filho de Carl Menger) e Erich Voegelin, entreos participantes de língua alemã. Oriundos da Grã-Bretanha edos Estados Unidos assistiram, entre outros, Lionel Robbins,Hugh Gaitskell, Ragnar Nurkse, e Albert G. Hart.Posteriormente, e já nos Estados Unidos, Mises refez o seuseminário na Universidade de Nova Iorque, tendo as reuniõeslugar às quintas-feiras de tarde desde o Outono de 1948 até àPrimavera de 1969. Entre os numerosos participantes destasegunda fase, destacam-se Murray N. Rothbard e Israel M.Kirzner.

Ludwig von Mises foi nomeado doutor honoris causapela Universidade de Nova Iorque e, por iniciativa de F. A.Hayek, pela Universidade de Friburgo (Alemanha); foiigualmente distinguido em 1962 com a medalha de honra dasciências e das artes da República de Áustria, e nomeadoDistinguished Fellow da American Economic Association em1969. Mises faleceu na cidade de Nova Iorque no dia 10 deOutubro de 1973 (um ano antes de o seu melhor discípulo,F. A. Hayek, receber o prémio Nobel da Economia pelassuas contribuições para a Ciência Económica), deixando

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publicados 22 livros e centenas de artigos e monografiassobre temas de economia, que foram catalogados ecomentados em dois grandes volumes por Bettina BienGreaves e Robert McGee (Bien Greaves e McGee, 1993,1995).

Mises teve a sorte de poder desenvolver umaextensíssima vida académica ao longo de quase sete décadasdo século XX, chegando a ser reconhecido ainda em vida comoum economista de fama universal (Rothbard, 1985). Assim, jáem 1944, Henry C. Simons o considerava como “o maiorprofessor vivo de Economia”. Por sua parte, Milton Friedman,economista positivista da Escola de Chicago, nada suspeitode simpatia com as posições teóricas de Mises, referiu-se aele pouco tempo depois da sua morte em 1973 como “um dosgrandes economistas de todos os tempos” (Mises, 1995: 1).Outro prémio Nobel da Economia, Maurice Allais, escreveuque Mises foi “um homem de uma excepcional inteligênciacujas contribuições para a Ciência Económica foram todas elasde primeira ordem” (Allais, 1989: 307). Finalmente, Robbins,recordando Mises na sua autobiografia intelectual, conclui que“não compreendo como alguém que não esteja cego porpreconceitos de tipo político e leia as contribuições deMises para a economia e, em particular, o seu magistral tratadode economia intitulado A Acção Humana, não se aperceba deimediato da sua grande qualidade nem experiencie umestímulo intelectual da mais elevada ordem” (Robbins,1971: 108).

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5.3. A teoria da moeda, do crédito5.3. e dos ciclos económicos

Desde o início da sua vida académica, quando começoua assistir ao seminário de Böhm-Bawerk, Mises deu-se contade que era necessário, por um lado, estender a aplicação daconcepção subjectivista da economia elaborada por Mengerao âmbito da moeda e do crédito, e por outro, analisar os efeitosque as manipulações monetárias e creditícias têm sobre aestrutura de bens de capital, tal como a mesma havia sidoestudada por Böhm-Bawerk. Assim, Mises, em 1912, aostrinta e um anos de idade, publica a primeira edição do seulivro A teoria da moeda e do crédito (Mises, 1997), que empouco tempo se torna o principal tratado de teoria monetáriana Europa continental.

Esta primeira contribuição seminal de Mises no âmbitomonetário constituiu um grande passo em frente e fez avançaro subjectivismo e a concepção dinâmica da Escola Austríacaaplicando-os ao campo da moeda e fundamentando o seu valorcom base na teoria da utilidade marginal. Além disso, Misessolucionou, pela primeira vez, o aparentemente insolúvelproblema da circularidade de raciocínio que até então se pensouque existisse relativamente à aplicação da teoria da utilidademarginal à moeda. Com efeito, o preço ou poder aquisitivo damoeda é determinado pela sua oferta e procura; a procura demoeda, por sua vez, é efectuada por seres humanos que sebaseiam, não na utilidade directa proporcionada pela moeda,

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mas antes em função, precisamente, do seu poder aquisitivo.Pois bem, Mises resolveu este aparente raciocínio circularatravés do seu teorema regressivo da moeda (Mises, 1995:491-500). De acordo com este teorema, a procura de moeda édeterminada, não pelo poder aquisitivo de hoje (o queimplicaria o referido raciocínio circular), mas antes peloconhecimento que os agentes formam baseando-se na suaexperiência sobre o poder aquisitivo que a moeda teve ontem.Por sua vez, o poder aquisitivo de ontem é determinado poruma procura de moeda que se formou tendo por base oconhecimento existente anteontem relativamente ao seu poderaquisitivo. E assim sucessivamente, até chegar àquelemomento da história no qual, pela primeira vez, umadeterminada mercadoria (ouro ou prata) começou a ter tambémprocura como meio de troca. Constata-se, portanto, que oteorema regressivo da moeda não é senão uma aplicaçãoretroactiva da teoria de Menger sobre o aparecimento evolutivoda unidade monetária.

Como já se referiu, A teoria da moeda e do créditorapidamente se tornou a obra de referência no campomonetário, sendo utilizada como tal nas principaisuniversidades da Europa continental. Devido a só tersido traduzida para inglês em meados dos anos trinta, estaobra teve, lamentavelmente, pouca influência no mundoanglo-saxónico. Assim, por exemplo, o próprio Keynesreconheceu que “teria feito mais referências ao trabalhode Mises e Hayek se os seus livros, que apenas conheço

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por referências de imprensa, tivessem aparecido quando omeu próprio pensamento estava nas suas primeiras fases dedesenvolvimento e se o meu conhecimento de alemão nãofosse tão pobre (em alemão, apenas consigo entenderclaramente o que já sei, de forma que as ideias novasestão para mim inacessíveis devido ao idioma)” (Keynes,1996: 181).

O livro de Mises incluiu também, ainda que de maneiraincipiente, o desenvolvimento de uma notabilíssima teoria dosciclos económicos, que mais tarde viria a ser conhecidauniversalmente com a denominação de “teoria austríaca dociclo económico”. Com efeito, Mises, aplicando as teoriasmonetárias da Currency School às teorias subjectivistas docapital e do juro de Böhm-Bawerk (que já anteriormentecomentámos), deu-se conta de que a criação expansiva decréditos e depósitos sem a correspondente poupança efectiva(meios fiduciários) – originada por um sistema bancáriobaseado num coeficiente de reserva fraccionária dirigido porum banco central – não só gerava um crescimento cíclico edescontrolado da oferta monetária, como também, aomaterializar-se na criação ex nihilo de créditos a taxas de juroartificialmente reduzidas, inevitavelmente dava lugar a um“alargamento” artificial e insustentável dos processosprodutivos, que tendiam assim a tornar-se de forma indevidaexcessivamente intensivos em capital.

Segundo Mises, a amplificação de todo o processoinflacionário através da expansão creditícia, mais cedo ou mais

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tarde, de forma espontânea e inexorável, haverá deinverter-se, originando uma crise ou recessão económica naqual os erros induzidos a nível do investimento se tornarãomanifestos e surgirá uma paragem maciça e a necessidade deliquidar e realocar todos os recursos erroneamenteinvestidos. Para eliminar o aparecimento recorrente de ciclosbancários, Mises propõe o estabelecimento de um sistemabancário com um coeficiente de caixa de cem por cento dosdepósitos bancários à vista, concluindo o seu livro com aseguinte afirmação: “É evidente que a única forma deeliminar a influência humana sobre o sistema creditício ésuprimir toda a ulterior emissão de meios fiduciários. A ideiabásica da lei de Peel mantém a sua vigência, devendo-seincluir a emissão de crédito sob a forma de saldos bancáriosna proibição legislativa de uma maneira ainda mais completado que na Inglaterra do seu tempo… Seria um erro suporque a moderna organização do câmbio terá que continuar aexistir. Ela carrega em si mesma o gérmen da sua própriadestruição; o desenvolvimento dos meios fiduciáriosconduzirá inevitavelmente à sua falência” (Mises, 1997:377-379).

O desenvolvimento por Mises da teoria do ciclo tornouainda possível que, pela primeira vez, se integrassem osaspectos “micro” e “macro” da teoria económica, que até entãose haviam mantido separados por se acreditar ser impossívelaplicar a teoria da utilidade marginal à moeda, e desenvolver--se portanto toda a teoria monetária com base em conceitos

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agregados como o nível geral de preços e outros. Além disso,Mises proporcionou o instrumental analítico capaz de explicaros fenómenos recorrentes de expansão e recessão queafectam os mercados intervencionados desde que existe omoderno sistema bancário com reserva fraccionária, incluindoas grandes recessões inflacionárias dos anos setenta e arecente crise financeira e económica dos mercados asiáticos(Huerta de Soto, 1998: 375-392). Não é de estranhar, portanto,que Mises tenha sido o principal impulsionador da criação doInstituto Austríaco de Conjuntura Económica, à frente do qualcolocou como director, num primeiro momento, F. A. Hayek,e que este Instituto tenha sido o único capaz de prever oadvento da Grande Depressão de 1929, como o resultadoinexorável dos desmandos monetários e creditícios dos“felizes” anos vinte que se seguiram à Primeira Guerra Mundial(Skousen, 1993: 247-284). Além disso, é preciso ressaltarcomo Mises e os seus discípulos depuraram a sua teoria dosciclos em paralelo com a sua análise sobre a impossibilidadedo socialismo, que comentaremos de seguida. De facto, podeconsiderar-se que a teoria austríaca das crises não é mais doque uma aplicação particular da teoria sobre os efeitosdescoordenadores da intervenção governamental noscampos fiscal, creditício e monetário, que origina sempredescoordenação sistemática (intra e inter-temporal) a nível daestrutura produtiva real da economia.

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5.4. O teorema da impossibilidade do socialismo

A terceira grande contribuição de Mises consiste na suateoria sobre a impossibilidade do socialismo.

Para Mises, tal impossibilidade, a partir da óptica dosubjectivismo austríaco, é algo evidente, e se os autoresneoclássicos não se deram conta da mesma, tal deveu-se,basicamente, ao erróneo posicionamento metodológico queseguiam nas suas investigações e, em concreto, ao facto deterem modelizado estados de equilíbrio supondo disponíveltoda a informação necessária para tal: “A falácia de que umaordem racional na gestão económica é possível no âmbito deuma sociedade baseada na propriedade pública dos meios deprodução tem a sua origem na errónea teoria do valorformulada pelos economistas clássicos e deve a sua persistênciaà incapacidade de muitos economistas modernos paracompreender e levar até às suas últimas consequências oteorema fundamental da teoria subjectiva. […] Na verdade,foram os erros destas escolas que fizeram prosperar as ideiassocialistas.” Mises (1995: 250).

Para Mises, se a fonte de todos os desejos, valorações econhecimentos se encontra na capacidade criativa do serhumano, todo o sistema que se baseie no exercício da coacçãoviolenta contra a livre actuação humana, como é o caso dosocialismo, e em menor medida do intervencionismo, impediráo surgimento na mente dos agentes individuais dainformação necessária para a coordenação da sociedade.

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Mises deu-se conta de que o cálculo económico, entendidocomo todo e qualquer juízo estimativo sobre o resultado emtermos de valoração dos diferentes cursos alternativos de acçãoque se abrem ao agente, exige dispor de uma informação emprimeira-mão e torna-se impossível num sistema que, como osocialista, se baseia na coacção e impede, em maior ou menorgrau, o intercâmbio voluntário (no qual se materializam,descobrem e criam as valorações individuais) e a livreutilização da moeda entendida como meio de intercâmbiovoluntária e comummente aceite.

O conceito e análise do cálculo económico, e a suaimportância no âmbito da teoria económica, constituem umdos aspectos essenciais do pensamento misesiano. Talvez oprincipal mérito de Mises neste campo radique em ter sabidoestabelecer em termos teóricos qual a conexão que existe entreo mundo subjectivo das valorações individuais (ordinal) e omundo externo das estimativas de preços de mercado fixadosem unidades monetárias (mundo cardinal próprio do cálculoeconómico). A “ponte” entre um e outro mundo torna-sepossível sempre que se verifica uma acção de troca interpessoalque, movida pelas distintas valorações subjectivas das partes,se materializa num preço monetário de mercado ou relaçãohistórica de intercâmbio em unidades monetárias que tem umaexistência real quantitativa determinada e que pode serposteriormente utilizada pelo empresário como uma preciosafonte de informação para estimar a evolução futura dosacontecimentos e tomar decisões (cálculo económico).

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Torna-se, pois, evidente que se a livre acção humana forimpedida pela força, as trocas interpessoais voluntárias não severificarão, destruindo-se assim a ponte ou conexão que osmesmos supõem entre o mundo subjectivo da criação deinformação e das valorações directas (ordinal) e o mundoexterno dos preços (cardinal), impossibilitando-se desta formatotalmente o cálculo económico (Rothbard, 1991: 64-65).

Portanto, conclui Mises, onde não existir liberdade demercado, preços de mercado livre e/ou moeda, não é possívelefectuar qualquer cálculo económico “racional”, entendendopor racional o cálculo efectuado dispondo da informaçãonecessária (não arbitrária) para o levar a cabo.

As ideias essenciais de Mises sobre o socialismo foramsistematizadas e incluídas no seu grande tratado crítico sobreeste sistema social, cuja primeira edição se publicou em alemãoem 1922, sendo posteriormente traduzido para inglês, francêse, finalmente, para espanhol, com o título de Socialismo(Mises, 1989).

O Socialismo de Mises foi uma obra que tambémalcançou uma extraordinária popularidade na Europa e queteve, entre outras consequências, o resultado de fazer com queteóricos com a dimensão de F. A. Hayek, inicialmente umsocialista fabiano, Wilhem Röpke e Lionel Robbins mudassemde opinião após a sua leitura e se convertessem ao liberalismo.Além disso, esta obra implicou o lançamento da terceira grandepolémica (depois da Methodenstreit e da polémica sobre oconceito de capital) na qual se viram envolvidos os teóricos

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da Escola Austríaca: a polémica sobre a impossibilidade docálculo económico socialista. Esta polémica está entre osdebates mais importantes que tiveram lugar na história dopensamento económico, durou várias décadas e foi crucial paraimpulsionar e depurar os diferentes aspectos distintivos daEscola Austríaca de Economia. Além disso, hoje em diareconhece-se de forma generalizada, inclusivamente pormuitos antigos teóricos socialistas, que o debate sobre aimpossibilidade do socialismo foi ganho pelos membros daEscola Austríaca. Assim, por exemplo, Robert L. Heilbronerchegou a afirmar que “Mises estava correcto […] O socialismofoi a grande tragédia deste século” (Heilbroner, 1990:1110-1111). Também os discípulos de Oskar Lange, Brus eLaski, acabaram por afirmar que Lange e os teóricos socialistas“nunca tiveram êxito no momento de dar uma resposta aodesafio dos austríacos” (Brus e Laski, 1985: 60; Huerta deSoto, 1992).

É importante sublinhar que o argumento de Mises sobrea impossibilidade do socialismo é um argumento teóricorelativo ao erro intelectual que está presente em qualquer ideiasocialista, uma vez que não é possível organizar a sociedadeatravés de mandatos coercivos, dada a impossibilidade de oórgão de controlo obter a informação de que necessitaria parao efeito. O argumento de Mises é, portanto, um argumentoteórico sobre a impossibilidade prática do socialismo. Ou, sepreferirmos, é um argumento teórico por antonomásia, umavez que a teoria não é senão uma análise abstracta, formal e

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qualitativa da realidade, mas que nunca deve perder o seu nexocom a mesma, devendo pelo contrário ser tão relevante quantopossível para a compreensão dos casos e processos que severificam no mundo real. É, portanto, completamenteincorrecto pensar que a análise de Mises se referia àimpossibilidade do socialismo desde o ponto de vista domodelo formal de equilíbrio ou “lógica pura da escolha”, comomuitos e prestigiados autores neoclássicos, incapazes dedistinguir entre “teoria” e análise do equilíbrio, equivoca-damente acreditaram. Com efeito, já o próprio Mises, em 1920,muito cuidadosamente se havia ocupado de negar expressa-mente que o seu teorema fosse aplicável ao modelo deequilíbrio, o qual, por pressupor na sua enunciação que toda ainformação necessária estará disponível, faz com que oproblema económico fundamental colocado pelo socialismose considere, por definição, resolvido ab initio e, portanto,passe despercebido para o teórico neoclássico. Segundo Mises,pelo contrário, o problema radica no facto de o órgão decontrolo, ao emitir uma decisão a favor ou contra um deter-minado projecto económico, carecer da informação necessáriapara saber se actua ou não de forma correcta, pelo que nãopode efectuar cálculo ou estimação económica alguma. Se sesupõe que o órgão de controlo dispõe de toda a informaçãonecessária e que, além disso, não se verificam alterações, éevidente que não se coloca nenhum problema de cálculoeconómico, uma vez que se considera à partida que talproblema não existe. Assim, Mises escreveu que “a economia

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em estado de equilíbrio pode existir em cálculo económico,dado que em tais circunstâncias os eventos económicos serepetem de forma recorrente; e se supomos que o ponto departida de uma economia socialista coincide com o estado finalde uma economia competitiva, seria possível conceber umsistema socialista de produção racionalmente controlado doponto de vista económico. No entanto, esta possibilidade temapenas um carácter conceptual, dado que o estado de equilíbrioé impossível de atingir na vida real onde a informaçãoeconómica está em constante alteração, pelo que o modeloestático não é mais do que um pressuposto teórico sem qualquerconexão com as circunstâncias que se verificam na vida real”(Mises, 1935: 109).

O argumento de Mises é, portanto, um argumento denatureza teórica e sobre a impossibilidade lógica do socialismo,mas considerando uma teoria sobre a acção humana e sobreos processos sociais, dinâmicos e espontâneos de tipo real quea mesma origina, e não uma teoria construída sobre a acçãomecânica exercida num contexto de equilíbrio perfeito porseres “omniscientes”, tão pouco humanos quanto afastadosda realidade. Como Mises melhor clarificou no seu livro sobreo socialismo “na sociedade estacionária não existe qualquerproblema por resolver que necessite do cálculo económico,porque o que teria de ser resolvido já o foi antes, por hipótese.Se quisermos empregar expressões muito difusas, efrequentemente um pouco erróneas, podemos afirmar que ocálculo económico é um problema da economia dinâmica e

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não da economia estática” (Mises, 1989: 120-121).Esta afirmação de Mises encaixa com perfeição em toda atradição da Escola Austríaca, tal como a mesma foi iniciadapor Menger, desenvolvida posteriormente por Böhm-Bawerk,e impulsionada na sua terceira geração pelo próprio Mises.Não é, portanto, de estranhar que, não sendo preciso emequilíbrio efectuar qualquer cálculo económico, apenas tenhamsido capazes de descobrir o teorema da impossibilidade docálculo económico socialista os cultivadores de uma escolaque, como a Austríaca, desde sempre centraram o seu programade investigação científica na análise teórica dos processosdinâmicos de tipo real que se verificam no mercado, e não nodesenvolvimento de modelos de equilíbrio mecanicistas maisou menos parciais ou gerais.

Portanto, para todos aqueles teóricos neoclássicos que,como os da Escola de Chicago, identificam a teoria com aanálise estática dos modelos de equilíbrio, o socialismo nãoparece colocar qualquer problema teórico, na medida em quepressupõem nos seus modelos que toda a informação necessáriajá se encontra disponível. Assim, a título de exemplo, podemosmencionar mais uma vez o fundador da Escola de Chicago,Frank H. Knight, que chegou inclusivamente a afirmar que “osocialismo é um problema político que deve ser discutido emtermos de sociologia social e política, mas em relação ao quala teoria económica tem relativamente pouco a dizer” (Knight,1938: 267-268). No mesmo erro caíram os economistassocialistas neoclássicos, como Oskar Lange e seus seguidores

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(Lippincot, Dickinson, Durbin, Taylor, Lerner), quandoargumentaram que a análise económica do equilíbrio“demonstrava” que Mises estava “equivocado”, uma vez queo sistema de equações simultâneas de Walras demonstrava queexistia uma solução para o problema de coordenaçãoeconómica que Mises havia formulado. Nenhum destesteóricos do equilíbrio compreendeu em que consistia o desafiode Mises e Hayek, e não se deram conta de que, ao não adoptara posição dinâmica destes últimos, os problemas teóricos queeles haviam descoberto passavam totalmente despercebidos.Talvez em nenhum outro campo da Ciência Económica setenham manifestado melhor os devastadores efeitos que ametodologia neoclássica e positivista teve ao impossibilitarque teóricos de grande valia fossem capazes de apreciar osproblemas de verdadeiro interesse que existem no mundoeconómico real.

5.5. A teoria da função empresarial

A consideração do ser humano como protagonistainelidível de todo o processo social constitui a essência daquarta contribuição essencial de Mises no campo da CiênciaEconómica. Com efeito, Mises dá-se conta de que a Economia,que em princípio teria surgido centrada em torno de um idealtipo histórico no sentido de Max Weber (o homo oeconomicus),por via da concepção subjectivista de Menger, se generaliza e

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converte em toda uma teoria geral sobre a acção e interacçãohumanas (praxeologia, na terminologia de Mises).As características e implicações essenciais da acção einteracção humanas constituem o objecto básico deinvestigação e são estudadas detalhadamente no abrangentetratado de economia escrito por Mises e intitulado,precisamente, A Acção Humana (Mises, 1995). Misesconsidera que toda a acção tem uma componente empresariale especulativa, desenvolvendo uma teoria da funçãoempresarial, entendida como a capacidade do ser humano paracriar e dar-se conta das oportunidades subjectivas de lucro oubenefício que surgem à sua volta, actuando em consequênciapara as aproveitar.

Assim, Mises manifesta de forma expressa que oelemento essencial da função empresarial radica na suacapacidade criativa: “Apenas a mente humana, que dirige aacção e a produção, é criativa” (Mises, 1995: 169). Na mesmalinha, Mises critica duramente as falácias populares queconsideram que o lucro empresarial deriva da simples assunçãode riscos, quando o risco apenas dá lugar a um custo adicionaldo processo produtivo que nada tem a ver com o lucroempresarial (Mises, 1995: 953-954). Também se refere à ideia,essencialmente errónea, de que a função empresarial seja umfactor de produção relacionado com a gestão que pode sercomprado e vendido no mercado como consequência de umadecisão de maximização. Pelo contrário, para Mises, “paratriunfar no mundo dos negócios não é necessário ter qualquer

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título académico. As escolas e faculdades preparam gentesubalterna para o desempenho de funções rotineiras mas nãoproduzem empresários; não se pode ensinar a ser empresário.Um indivíduo torna-se empresário sabendo aproveitaroportunidades e preenchendo vazios” (Mises, 1995: 380).

A teoria de Mises sobre a função empresarial foi muitodesenvolvida, em anos mais recentes, por um dos seus maisbrilhantes alunos, Israel M. Kirzner, catedrático de Economiana Universidade de Nova Iorque, e cujas contribuições teremosoportunidade de comentar no capítulo 7.

A capacidade empresarial do ser humano, não só explicaa sua constante busca e criação de nova informação a propósitode fins e de meios, como também é a chave para entender atendência coordenadora que surge no mercado de formaespontânea e contínua quando sofre intervenções de formacoactiva. É esta capacidade coordenadora da funçãoempresarial que torna possível a elaboração de um corpuslógico de teoria económica sem necessidade de incorrer nosvícios da análise “cientista” (matemática e estatística) que,baseada em pressupostos de constância, provém do mundoalheio da Física e restantes Ciências Naturais, das quais é umacópia de fraca qualidade (Mirowski, 1991).

5.6. O método da economia política: teoria e história

Mises foi o teórico da Escola Austríaca que de formamais sistemática e integrada abordou as questões

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metodológicas da economia política. De acordo com Mises,as ciências sociais ou, se preferirmos, as ciências da acçãohumana, dividem-se em dois grandes ramos: a praxeologia(teoria geral da acção humana, cujo ramo mais desenvolvidoé a Economia) e a história. O âmbito da praxeologia é aaplicação da categoria conceptual de “acção humana”. A teoriaeconómica constrói-se assim de forma apriorística e dedutivaa partir do conceito e categoria de acção. Esta tarefa é levadaa cabo partindo de um reduzido número de axiomasfundamentais que estão incluídos no próprio conceito de acção.O mais importante de todos eles é a própria categoria de acçãono sentido de que os homens escolhem de forma exploratóriaos seus fins e procuram meios adequados para os atingir, tudoisto segundo as suas próprias escalas de valor. Outro axiomadiz-nos que os meios, sendo escassos, serão primeiramentedestinados à consecução dos fins mais altamente valorados eapenas depois à satisfação das restantes necessidades, que sãomenos urgentemente sentidas (“lei da utilidade marginaldecrescente”). Em terceiro lugar, temos o axioma de que entredois bens de características idênticas, disponíveis emmomentos distintos do tempo, o bem mais prontamentedisponível é sempre preferido (“lei da preferência temporal”).Outros elementos essenciais do conceito de acção humana sãoque a acção se desenvolve sempre no tempo, que o tempo éescasso, e que as pessoas actuam com a finalidade de passarde um estado a outro que lhes proporcione maior satisfação.

Baseando-se em raciocínios lógico-dedutivos quepartem destes axiomas, Mises constrói a teoria económica

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centrada nos problemas existentes na vida real e introduzindono lugar adequado da correspondente cadeia de raciocínioslógico-dedutivos os factos relevantes da experiência. Assim,os factos da experiência, que são conhecidos e interpretados àluz da teoria da acção humana, são reutilizados posteriormentesob a forma de “pressupostos” para construir teoremas maisrelevantes para a vida real.

Assim, para Mises, a experiência é utilizada única eexclusivamente para dirigir a curiosidade do investigador atédeterminados problemas. A experiência diz-nos o quedeveríamos investigar, mas não nos indica o caminhometodológico que devemos seguir para procurar o nossoconhecimento. Em todas as circunstâncias, segundo Mises,há que ter sempre bem claro que: em primeiro lugar, não épossível conhecer qualquer fenómeno da realidade se esta nãofor interpretada previamente com recurso aos conceitos eteoremas da acção humana; e em segundo lugar, que apenas opensamento, e em caso algum a experiência, pode dirigir ainvestigação no sentido das hipotéticas classes de acçõeshumanas e problemas que, sem nunca se terem dado nopassado, pode conceber-se, por algum motivo, que é possívelque venham a ser relevantes no futuro.

O segundo grande ramo das ciências da acção humanaé a história. A história não é senão a recolha e estudo sistemáticodos factos referentes à experiência e à acção humana. A históriatrata portanto do conteúdo concreto da acção humana nopassado.

Assim, o historiador tem de desenvolver a sua disciplina

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dispondo previamente de um corpo teórico que lhe permitainterpretar a realidade. Além disso, necessita de um juízoespecial de relevância (Verstehen ou compreensão) que lhepermita avaliar quais os aspectos que tiveram mais peso nosfactos do passado que estuda, juízo de relevância esse queconverte a sua disciplina numa verdadeira arte.

Estes juízos valorativos de compreensão são tambémutilizados pelos agentes de cada vez que têm de realizar umaprevisão sobre a evolução do contexto de acção concreto emque estão inseridos. No entanto, em economia, de acordo comMises, não é possível realizar previsões “científicas”, ou seja,semelhantes às que se efectuam no âmbito das ciências danatureza. As leis da economia são puramente lógico-dedutivas,apenas sendo por isso possível estabelecer previsões denatureza “qualitativa”, que nada têm a ver com as previsõeslevadas a cabo no âmbito da física ou da engenharia.Em consequência, em economia, não é possível fazer de formaprecisa previsões sobre a evolução de dados concretos. É certoque cada indivíduo, na sua vida quotidiana, se vê forçadoconstantemente a planear a sua acção e a actuar tendo em contadeterminadas crenças sobre o modo de evolução futura dosacontecimentos. Para realizar tais “previsões”, cada indivíduoutiliza os seus conhecimentos teóricos, com os quais interpretaos factos da realidade imediata e, utilizando sempre acompreensão (ou seja, o seu conhecimento sobre ascircunstâncias particulares da situação em que se encontra),“prevê” o que acredita ser a evolução mais provável dosacontecimentos que podem afectar a sua acção.

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A incerteza em que se encontra o ser humanorelativamente aos factos futuros é, portanto, muito grande;apenas pode minimizá-la (sem nunca chegar a anulá-la) sepossuir bons conhecimentos teóricos e uma profundaexperiência sobre os juízos de valor e as motivações que levamos homens a realizar determinadas acções e a exercerdeterminados comportamentos. É por isso que há determinadaspessoas melhor preparadas que outras para planearempresarialmente a sua acção futura. Em concreto, oempresário é todo aquele que actua tendo em conta o queacredita ser a evolução futura dos acontecimentos. Nestesentido, de acordo com Mises, todos somos empresários, umavez que todos os homens empreendem todos os dias acçõestendo em conta o que acreditam possa vir a suceder no futuro.É pois característico do homem em geral, dotado de uma inatacapacidade empresarial, realizar previsões sobre a evoluçãodos acontecimentos concretos, utilizando para o efeito os seusconhecimentos teóricos e a sua experiência. Mas nenhumeconomista pode, de forma alguma, enquanto cientista, efectuarqualquer previsão concreta, ou seja, de natureza quantitativa,geográfica e temporalmente determinada. Se o economista seempenha em levar a cabo tais previsões, abandonaimediatamente o campo científico da Economia passando asituar-se no campo humano e empresarial da previsão.Para Mises, querer forçar a Economia a fornecer previsõescientíficas semelhantes às proporcionadas pelas CiênciasNaturais implica um desconhecimento crasso do mundo emque vivemos e da natureza humana em geral, assim como uma

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errónea concepção metodológica da Ciência Económica(Mises, 1995: 142).

5.7. Conclusão

Ludwig von Mises é considerado o mais importanteeconomista da Escola Austríaca no século XX. Mises teve omérito de ser o autor do mais importante tratado sistemáticode Economia escrito no interior da Escola, no qual sãodesenvolvidas com detalhe todas as principais contribuiçõespor si efectuadas para a Ciência Económica. O título dessaobra é Acção Humana, cuja primeira versão em alemão foiescrita quando Mises ensinava em Genebra, por altura do inícioda Segunda Guerra Mundial. A primeira edição em inglês foipublicada em 194932. Desde então, a obra, com cerca de milpáginas, foi a traduzida para vários outros idiomas, sendo umdos tratados mais amplamente citados a propósito de temas deeconomia em geral, da metodologia da Ciência Económica e,em particular, da análise económica do socialismo.

32 N. do T.: Human Action: A Treatise on Economics (YaleUniversity, 1949). A edição espanhola a que correspondem asreferências feitas neste livro é La acción humana: Tratado deeconomía. (Madrid, 1995). Existe tradução para português, daresponsabilidade de Donald Stewart Jr., e publicada no Brasilpelo Instituto Liberal sob o título Acção Humana (Rio de Janeiro,1990).

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6. F. A. Hayek e a ordem espontânea6. do mercado

6.1. Introdução biográfica

F. A. Hayek foi uma das figuras intelectuais maisimportantes do século XX. Filósofo multidisciplinar, grandepensador liberal e prémio Nobel da Economia em 1974, Hayekproduziu uma amplíssima obra que tem actualmente umagrande influência nos mais variados âmbitos, não sóeconómicos, mas também filosóficos e políticos.

Hayek nasceu a 8 de Maio de 1899 no seio de umafamília de académicos e altos funcionários, na qual a vidaintelectual e universitária era muito valorizada. Apesar disso,o jovem Hayek não foi um estudante brilhante: uma grande edesordenada curiosidade intelectual impediam-no de seconcentrar com aplicação nas suas disciplinas favoritas.Segundo confissão do próprio, se tomava apontamentos, não

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conseguia compreender o que escutava e, incapaz de reter namemória as explicações dos seus professores, via-se obrigadoa reproduzir ex-novo e com grande esforço os raciocínios quedesejava expor. Como referiu no seu artigo “Dois tipos demente” (Hayek, 1978b: 50-56), Hayek sempre atribuiu a suafrutífera capacidade intelectual precisamente ao processomental que o caracterizava, aparentemente desordenado eintuitivo, e que tanto contrastava com a mente de outrosteóricos da Escola Austríaca que, como Böhm-Bawerk ou opróprio Mises, dominavam absolutamente a sua matéria e eramcapazes de a expor por escrito e verbalmente com grande rigore clareza.

Terminada a Primeira Guerra Mundial, e após regressarda frente (onde Hayek contraiu malária e aprendeu algumitaliano), ingressou na Universidade de Viena, à época umambiente de intensa discussão intelectual sem paralelo nomundo (uma análise rigorosa da razão de este fenómeno se terdado na Viena do pós-guerra está ainda por aparecer). Durantealgum tempo, Hayek pensou ser estudante de psicologia e,muitos anos mais tarde, viria mesmo a publicar um livro sobrepsicologia intitulado The sensory order (Hayek, 1952b), ondeestabelece os fundamentos da sua concepção epistemológica.Hayek acabaria no entanto por se decidir pelas CiênciasJurídicas e Sociais, especializando-se em Economia Políticasob a direcção de Friedrich von Wieser, porventura o maisconfuso e ecléctico representante da segunda geração da EscolaAustríaca de Economia.

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Como afirmou o próprio Hayek, nessa época, as suasideias políticas não se diferenciavam muito das do resto dosseus companheiros: era um socialista “fabiano” que, seguindoos passos do seu mestre Wieser, pensava que a benignaintervenção do Estado seria capaz de melhorar a ordem social.Foi a leitura da obra Socialismo, publicada por Mises em 1922,que levou a que Hayek abandonasse os ideais socialistas quehavia abraçado na sua juventude. A partir de então, e graças auma recomendação de Wieser, Hayek começou a colaborar deforma próxima com Mises no âmbito profissional. Primeiro,no Gabinete de Reparações de Guerra dirigido pelo próprioMises, e depois, como director do Instituto Austríaco do CicloEconómico que Mises havia fundado. No âmbito académico,Hayek passou a ser um dos participantes mais assíduos eprodutivos do seminário de teoria económica que Misesquinzenalmente promovia em Viena.

É importante realçar que Hayek deve ao contacto comMises o ponto de partida de quase tudo o que fez em termosde teoria económica.

Assim, graças a Mises, Hayek abandonou grande parteda nefasta influência de Wieser e retomou o tronco fundamentalda concepção austríaca da economia, que tendo tido origemem Menger, e tendo sido enriquecida por Böhm-Bawerk, eraagora defendida por Mises frente às veleidades dos teóricospositivistas, como Schumpeter, ou mais próximos do modelode equilíbrio, como Wieser. As relações entre Mises e o seudiscípulo Hayek foram, no entanto, de alguma forma, curiosas.

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Por um lado, de grande admiração e respeito. Mas por outro,de algum distanciamento, dependendo das épocas e dascircunstâncias. Deve-se notar uma certa ênfase de Hayek emrealçar a independência intelectual relativamente a um mestreque, no entanto, e como reconhecia o próprio Hayek, acabavaquase sempre por ver as suas teses suportadas pela própriaevolução da realidade.

A partir de 1931, e graças a outro discípulo de Mises,Lionel Robbins, Hayek ocupou uma cátedra na London Schoolof Economics até 1949, passando desta forma a ser o principalexponente em língua inglesa das contribuições da EscolaAustríaca de Economia. Hayek sempre se caracterizou pormanter uma extrema cortesia académica com todos os seusopositores, aos quais nunca atribui má fé mas apenas errosintelectuais. Assim ocorreu, por exemplo, nas suas polémicascom os teóricos socialistas, com Keynes e com Knight e aEscola de Chicago, a todos os quais se opôs não só em questõesmetodológicas (Hayek chegou a afirmar que, depois da TeoriaGeral de Keynes, o livro mais perigoso para a CiênciaEconómica tinha sido Ensaios sobre Economia Positiva, deMilton Friedman), mas também em teoria monetária, do capitale dos ciclos (Hayek, 1997a:139-140). Jamais teve uma palavrade lamento ou de reprovação, nem sequer quando foi objectode injustos e furiosos ataques por parte de Keynes, ou quandofoi vetado pelos membros do departamento de Economia deChicago, cuja arrogância os impediu de aceitar a entrada de“um teórico da Escola Austríaca” nas suas fileiras (felizmente,

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Hayek foi admitido – sem salário oficial, uma vez que a suaremuneração foi paga por uma fundação privada – nodepartamento de Pensamento Social e Moral dessa mesmaUniversidade, no seio do qual Hayek pôde escrever a suamonumental obra Os fundamentos da liberdade (Hayek,1998a).

Hayek não teve muita sorte no âmbito pessoal. Em 1949destroçou a sua família quando decidiu divorciar-se para secasar com um amor impossível da sua primeira juventude:uma sua prima que, por um mal-entendido, se casou com outrohomem e a quem, já viúva, reencontrou por acaso quando foivisitar os seus familiares vienenses após a Segunda GuerraMundial. O custo que esta decisão teve para Hayek e para asua família foi enorme. Os seus amigos ingleses, encabeçadospor Robbins, abandonaram-no, e o desgosto do divórcioaparentemente terá custado a vida à sua primeira mulher (aindaque este seja um tema tabu, sobre o qual Hayek e aqueles quelhe eram mais próximos nunca quiseram discutir). A verdadeé que Hayek apenas se reconciliou com Robbins muitos anosdepois, por altura do casamento do seu filho Laurence,vendo-se obrigado a “exilar-se” nos Estados Unidos duranteos anos cinquenta e parte dos anos sessenta. Além disso,durante esses anos, Hayek começou a sofrer de gravesproblemas de saúde: primeiro, problemas de metabolismo queo deixaram extremamente magro e débil; depois, uma perdacrescente de audição que o viria a tornar um intelectual atécerto ponto distante a nível do contacto pessoal; por último,

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agudos e recorrentes ataques de depressão deixavam-noprostrado e intelectualmente improdutivo durante longosperíodos. Assim, no prólogo de Direito, legislação e liberdade,Hayek declara que, em alguns momentos, chegou a pensarque os problemas de saúde o impediriam de concluir esta obra(Hayek, 1976a: 7). Não se sabe até que ponto estas durasexperiências pessoais reforçaram em Hayek a convicção daimportância que os comportamentos morais têm para preservara vida individual e social do ser humano, mas ao notar a ênfaseque Hayek dá a este tema nas suas obras, fica-se com aimpressão de que este aspecto das suas ideias foi desenvolvidopor alguém que sabia muito bem, por experiência própria eem primeira mão, do que estava a falar.

Todos estes problemas de saúde (física e mental)desapareceram, quase milagrosamente, quando Hayek recebeuo Prémio Nobel de Economia em 1974, no ano seguinte aofalecimento de Ludwig von Mises. A partir de então, sentiu-sea sair do seu isolamento académico e iniciou uma frenéticaactividade que o levou a viajar por todo o mundo apresentandoas suas ideias e escrevendo vários livros mais (o último dosquais, The Fatal Conceit, foi publicado quando contava jáquase noventa anos de idade). De facto, a entrega do PrémioNobel a Hayek em 1974 pode ser considerada o factorimpulsionador do notável ressurgimento da Escola Austríacade Economia que hoje em dia se verifica em todo o mundo.

Hayek quis sempre manter-se à margem da actividadepolítica. Mais ainda, considerava incompatíveis o papel do

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intelectual, que tinha que fazer da verdade científica areferência orientadora da sua vida, e o papel do político,constantemente obrigado a submeter-se à vontade da opiniãopública de cada momento, para conseguir votos (Hayek, 1995a:41-43). Por isso, considerava que, com o tempo, seriammuito mais produtivos os esforços dirigidos a convenceros intelectuais (daí o seu empenho na criação da MontPelerin Society) ou a alterar o estado da opinião pública(Hayek dissuadiu Anthony Fisher de entrar na política,convencendo-o de que seria muito mais útil criar o Institute ofEconomic Affairs e, mais tarde, a Atlas Research Foundationpara expandir o ideário liberal por todo o mundo). De modoque, sem as iniciativas estratégicas tomadas por Hayek, é difícilconceber que se pudessem ter produzido as mudanças naopinião pública e no âmbito intelectual que conduziram à quedado muro de Berlim e à revolução liberal-conservadora queteve lugar nos Estados Unidos de Reagan e na Inglaterra deMargaret Thatcher, e que tanta influência continuam a ter emtodo o mundo.

Finalmente, abordaremos a relação de Hayek com areligião. Baptizado como católico, desde jovem abandonou aprática religiosa e se tornou agnóstico. Não obstante, com opassar dos anos, foi compreendendo cada vez melhor o papelchave que a religião desempenha para estruturar ocumprimento das normas de conduta que fundamentam asociedade e, em particular, a importância que os teólogosespanhóis do Século de Ouro tiveram enquanto precursores

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da moderna ciência económica e social. Em 1993, o pensadorcatólico Michael Novak surpreendeu o mundo intelectualquando tornou pública a extensa conversa pessoal que o papaJoão Paulo II e Hayek mantiveram antes do falecimento desteúltimo em 1992. Existem sinais inequívocos da grandeinfluência que o pensamento de Hayek teve na encíclicaCentesimus annus e, em particular, nos seus capítulos 31 e 32(Novak, 1993a e 1993b). Nunca saberemos se este agnósticodeclarado que foi Hayek, nos últimos momentos da sua vida,chegou a dar os passos necessários para compreender e aceitaresse ser supremo “antropomórfico que superava, em muito, asua capacidade de compreensão”. O que se pode, no entanto,assegurar é que Hayek compreendeu como ninguém os riscosda deificação da razão humana e o papel central que a religiãotem para os evitar, de tal forma que, como ele próprio indicana última frase que escreveu no seu último livro, “desta questãopode depender a sobrevivência da nossa civilização” (Hayek,1997b: 369).

6.2. Investigações sobre o ciclo económico:6.2. a descoordenação inter-temporal

Hayek dedicou as primeiras décadas da sua actividadeacadémica ao estudo dos ciclos, seguindo a linha teóricainiciada por Mises, mas realizando uma série de contribuiçõespróprias de grande importância, de tal forma que o principal

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motivo declarado pela Academia sueca para lhe atribuir oprémio Nobel de 1974 foi precisamente o seu trabalho noâmbito da teoria dos ciclos, realizado durante os anos trintado século XX.

É importante realçar que quando Hayek chegou aInglatera em 1931 dispunha de instrumentos analíticos muitosuperiores aos dos seus colegas ingleses em geral e ao deKeynes em particular. Hayek dominava a teoria do capital deBöhm-Bawerk e compreendia perfeitamente a falta de sentidoteórico do suposto “paradoxo da poupança ou frugalidade”.De facto, de acordo com a teoria de Böhm-Bawerk, todo oaumento da poupança deprime o consumo e portanto tende afazer diminuir o preço relativo dos bens de consumo. Por umlado, isto dá lugar ao que Hayek denominou de “efeitoRicardo”, que consiste na maior procura de bens deinvestimento motivada pelo aumento dos salários reais que éprovocado, coeteris paribus, pela diminuição do preço dosbens de consumo gerada pela poupança. Por outro lado,verifica-se um aumento relativo dos lucros empresariais nasetapas mais afastadas do consumo, cujos produtos tendem ater um maior valor num contexto em que as taxas de juro sereduzem em consequência da maior abundância de poupança.O resultado combinado de todos estes efeitos é um alargamentoda estrutura produtiva, que se torna mais capital-intensivagraças ao financiamento permitido pelos recursos reaisaforrados em maior quantidade (Hayek 1996b: 85-134).O problema coloca-se, segundo Hayek, quando a manipulação

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monetária sob a forma de expansão creditícia produzida pelosistema bancário, sem um aumento prévio da poupança, põe àdisposição dos empresários novos recursos financeiros, queestes dedicam ao investimento como se a poupança dasociedade tivesse aumentado, quando de facto assim nãosucedeu. Desta forma, produz-se um alargamento dosprocessos de investimento, motivado pela diminuição artificialda taxa de juro, que não poderá manter-se a longo prazo.O importante para Hayek são, portanto, as variações que ocrescimento monetário induz sobre os preços relativos (maisconcretamente, sobre os preços das distintas etapas dos bensde capital e sobre os preços dos bens de consumo), fenómenoeste que tende a ser obscurecido e ignorado pela teoriaquantitativa da moeda, que apenas se fixa nos efeitos que asvariações monetárias têm sobre o nível geral dos preços.

Hayek deu-se conta de que durante os anos vinte sehavia iniciado de forma deliberada, por parte da ReservaFederal dos Estados Unidos, uma enérgica política de expansãocreditícia tendente a neutralizar os efeitos “deflacionários” queo grande aumento da produtividade estava a originar duranteesse período. Assim, embora não se tenha verificado umcrescimento significativo dos preços dos bens de consumodurante esse período, alimentou-se um grande crescimentomonetário e uma importante bolha financeira que mais cedoou mais tarde haveria de rebentar, tornando manifestos osgraves erros de investimento cometidos. Assim, segundoHayek, as políticas de estabilização monetária num contexto

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de diminuição dos preços originado por um aumento geral daprodutividade estão condenadas a produzir uma gravedescoordenação intertemporal entre as decisões dosinvestidores e os consumidores que, mais cedo ou mais tarde,haverá de transformar-se numa recessão económica.Estas ideias foram expostas por Hayek no seu artigo sobre“O equilíbrio intertemporal dos preços e os movimentos novalor da moeda” que foi publicado em 1928 (Hayek, 1996a:126-176). A aplicação desta análise aos acontecimentos daépoca permitiu a Hayek prever a Grande Depressão, quecomeçou em Outubro de 1929, e que ele sempre consideroucomo o resultado do processo de expansão creditícia artificialque a Reserva Federal levou a cabo ao longo da década anterior(Huerta de Soto, 1998: 334-340).

Posteriormente, em 1931, Hayek publicou aquele que étalvez o seu mais importante e famoso livro no âmbito da teoriados ciclos, Preços e produção: uma explicação das crises daseconomias capitalistas (Hayek, 1996c). Neste breve eimportante livro, Hayek expõe já, com grande detalhe analítico,de que forma a expansão creditícia não assente num incrementoprévio da poupança voluntária causa distorções na estruturaprodutiva, tornando-a artificialmente demasiado capitalintensiva e dando lugar a que, inexoravelmente, tenham quese vir a manifestar os erros cometidos através de uma recessão.

Com efeito, para Hayek, as alterações monetárias nuncasão neutras e afectam sempre muito negativamente a estruturade preços relativos. Quando se cria uma determinada nova

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quantidade de moeda, sob a forma de crédito, esta entra semprena economia por um ponto concreto. Começa por ser gastaem determinados bens de capital e serviços produtivos e apenasdepois, lentamente, vai estendendo os seus efeitos ao resto daestrutura produtiva. Isto implica que determinados preços, osdos bens de capital mais afastados da etapa final do consumo,serão afectados antes de outros (os preços dos bens maispróximos do consumo final), modificando-se, consequente-mente, a alocação de recursos ao longo da estrutura produtiva.De facto, graças ao aparecimento de novos meios fiduciárioscriados pelo sistema bancário, determinados empresários queteriam sofrido perdas obtêm lucros, e muitos trabalhadores,que não teriam encontrado trabalho em determinados sectores,são facilmente empregados nos mesmos.

De uma forma geral, o novo dinheiro chega ao mercadoatravés de uma redução artificial das taxas de juro (abaixo doseu nível “natural”), no âmbito de uma política de claraexpansão creditícia. A redução relativa da taxa de desconto eas maiores facilidades creditícias tendem, logicamente, a fazeraumentar as despesas de investimento relativamente àsdespesas de consumo, distorcendo os indicadores que guiamos empresários, e em particular a taxa de rentabilidade relativado capital investido em cada uma das etapas em que, para osaustríacos, está dividida a estrutura de produção.

Em consequência das reduzidas taxas de juro, aparecemcomo lucrativos investimentos que antes não o eram.O aumento relativo das despesas de investimento faz, por sua

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vez, aumentar o preço dos factores produtivos, o que tende alevar à adopção de métodos de produção mais capitalintensivos, verificando-se ainda um incremento da procura derecursos naturais. Simultaneamente, reduzem-se os lucrosrelativos nas indústrias de bens de consumo, onde osrespectivos custos aumentam paulatinamente, sem que omesmo ocorra relativamente aos preços. Inicia-se assim umatransferência de factores produtivos das indústrias maispróximas do consumo para os sectores mais intensivos emcapital. Para que a nova estrutura produtiva, mais capitalintensiva, produza resultados essa transferência deve continuardurante um período de tempo bastante prolongado. SegundoHayek, é preciso ter em conta que uma máquina cuja utilidadedepende da disponibilidade de outros bens de capital que sãonecessários para o seu uso, torna-se inútil se por falta derecursos estes bens complementares nunca chegarem a serproduzidos.

No entanto, mais cedo ou mais tarde, a procura de bensde consumo começa a aumentar, como resultado do incrementodas rendas monetárias recebidas pelos proprietários dosfactores de produção, que por sua vez é motivado pelo novodinheiro injectado no sistema económico pela banca que vaigradualmente chegando aos referidos proprietários. Não háqualquer razão para que os consumidores tenham alterado deforma significativa a proporção em que, inicialmente,distribuíam os seus rendimentos monetários entre benspresentes e futuros, pelo que, salvo o hipotético caso em que a

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totalidade do novo dinheiro criado pelo sistema bancário sejapoupada pelos agentes económicos (situação praticamenteimpossível), tende a produzir-se uma alta generalizada no preçorelativo dos bens de consumo motivada por: a) o efeito naturalda chegada de novas disponibilidades monetárias ao sector debens de consumo, cuja procura aumenta, e b) pelo facto de ofluxo da oferta de bens de consumo logicamente tender adiminuir com o tempo, não só porque são retirados recursosdos sectores temporalmente mais próximos do consumo, mastambém porque uma grande parte dos mesmos é dedicada ainvestimentos que apenas muito tempo depois amadureceriame começariam a produzir resultados.

A alta dos preços relativos que agora se produz no sectordos bens de consumo força efeitos totalmente opostos aos jádescritos, que inicialmente tem a expansão creditícia: os lucrosdas indústrias mais próximas ao consumo começam aaumentar, enquanto que diminuem em termos relativos oscorrespondentes aos sectores de bens de investimento. Os bensde capital que começaram a ser produzidos tendo em menteuma estrutura produtiva muito capital intensiva terão de sereadaptar, se tal for possível, a outra que o é em menor grau(e que é, portanto, mais trabalho intensiva, como é lógico sese tiver em conta que a alta de preços dos bens de consumocorresponde a uma redução dos salários reais). Genericamente,inicia-se a transferência dos factores produtivos doinvestimento para o consumo, verificando-se grandes perdasnos sectores mais capital intensivos (construção, estaleiros

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navais, indústrias de alta tecnologia, informática etelecomunicações, etc.), que apenas seriam rentáveis combaixas taxas de juro e que se constata agora terem sidodesenvolvidas em excesso. Em suma, torna-se inevitável achegada de uma recessão económica por falta de suficientesrecursos reais para completar alterações na estrutura produtivaque eram demasiado ambiciosas, e que foram empreendidaserroneamente por culpa do financiamento excessivamentefacilitado que foi permitido pela expansão creditíciaartificialmente iniciada pela banca. Esta recessão manifesta--se externamente pela existência de um excesso de produçãonos sectores de bens de investimento e por uma escassezrelativa da mesma nos sectores mais próximos do consumo.

Hayek insiste que as recessões são basicamente crisesoriginadas por um excesso relativo da procura de bens deconsumo ou, se preferirmos, da escassez de poupança, quenão é suficiente para completar os investimentos mais capitalintensivos que foram empreendidos de forma errónea.A situação originada pela expansão creditícia seria semelhanteà da de uns imaginários habitantes de uma ilha perdida que,tendo empreendido a construção de uma enorme máquinacapaz de satisfazer completamente as necessidades dapopulação, tivessem esgotado todas as suas poupanças e capitalantes de a terminar e não tivessem outro remédio senãoabandonar a sua construção, dedicando-se com toda a suaenergia a procurar o seu alimento diário, sem contar comnenhum capital útil para o efeito.

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A existência, portanto, de “capacidade ociosa” emmuitos processos produtivos durante a recessão (masespecialmente nos mais afastados do consumo, por exemplonas indústrias de construção, nas de bens de capital,telecomunicações e sistemas informáticos) de forma algumaprova, segundo Hayek, que exista um excesso de capital ouque o consumo seja insuficiente. Pelo contrário, esse facto éum sintoma de que não podemos utilizar na sua totalidade ocapital fixo existente, porque a procura actual de bens deconsumo é tão urgente que não podemos permitir-nos o luxode produzir o capital circulante necessário para pôr emmovimento e aproveitar essa capacidade ociosa.

Hayek, portanto, leva até às últimas consequências ateoria do capital de Böhm-Bawerk e a análise dos ciclos deMises, ao explicar de que forma o intervencionismo monetárioproduz uma generalizada descoordenação temporal entre asdecisões dos agentes económicos investidores e consumidores.Explica-nos também que a recessão não é mais do que umaetapa de saudável reajustamento económico que não se devetentar evitar, mas apenas facilitar, acabando com toda aposterior expansão creditícia ou fomento artificial do consumoe deixando que as forças do mercado gradualmente voltem aestabelecer uma estrutura produtiva mais de acordo com osverdadeiros desejos dos agentes económicos (Huerta de Soto,1998: 213-272).

A análise de Hayek sobre a teoria dos ciclos económicosfoi posteriormente completada na sua obra Profits, interest and

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investment, teorizando a existência de factores de produçãoinutilizados (Hayek, 1939). Hayek foi elaborando eaperfeiçoando toda esta análise em paralelo com as polémicasque manteve sobre teoria monetária, do capital e dos cicloscom Keynes e com os teóricos da Escola de Chicago, as quaissão abordadas no ponto que se segue.

6.3. Polémicas com Keynes e a Escola de Chicago

Não é de estranhar que Hayek, desde o princípio, setenha oposto aos teóricos da tradição neoclássica que, face àsua incapacidade para aplicar a teoria da utilidade marginal àmoeda e à sua falta de uma adequada teoria do capital, seempenharam em enfrentar os problemas da época com umavisão exclusivamente macroeconómica.

Assim, Hayek manifestou em primeiro lugar a suaradical objecção à teoria quantitativa da moeda, defendidapelos economistas neoclássicos em geral e pela Escola deChicago em particular, pois, “dada a sua índole macroeco-nómica, fixa-se apenas no nível geral de preços e padece deuma substancial incapacidade para descobrir os efeitos queuma expansão dos meios de pagamentos disponíveis produzsobre a estrutura relativa dos preços. Não contempla, por isso,as consequências mais graves do processo inflacionário: oerróneo investimento de recursos e a geração de umacorrespondente desocupação laboral” (Hayek, 1976b: 68-69).

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Hayek retomou igualmente a polémica queBöhm-Bawerk e Clark mantiveram sobre o conceito de capital.Assim, na sua Teoria pura do capital (Hayek, 1946) e no seuartigo “A mitologia do capital” (Hayek, 1936: 199-2228),criticou o fundador da Escola de Chicago, Frank Knight, porse empenhar em manter a concepção mítica do capital, comofundo homogéneo que se auto-reproduz espontaneamente,ignorando desta forma a estruturação por etapas do processoprodutivo e eliminando o papel do empresário no que toca aimpulsionar continuamente a criação, coordenação emanutenção ou não dessas mesmas etapas. Segundo Hayek, aconcepção de Knight é muito perigosa, na medida em que,obcecado pelo equilíbrio, acaba por apoiar as erróneas teoriasdo “subconsumo” e, indirectamente, as prescrições keynesianaspara incrementar de forma artificial a procura efectiva sem terem conta as graves distorções que isso provoca sobre a estruturamicroeconómica da produção social.

No entanto, a polémica mais importante foi a que Hayekmanteve com Keynes ao longo dos anos trinta (Hayek, 1996b).Hayek iniciou a sua crítica em duas extensas recensões dolivro de Keynes Tratado sobre a moeda, que apareceu emInglaterra quando Hayek acabava de chegar, no início dos anostrinta. Keynes, por sua parte, respondeu com um furioso ataqueao livro Preços e produção de Hayek, desencadeando-se umapolémica entre ambos na qual se perfilaram alguns dos aspectosmais importantes da teoria monetária e dos ciclos e que hoje,já desmantelado o “vendaval” keynesiano, seria preciso

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retomar ali, precisamente onde Keynes e Hayek a deixaramno final dos anos trinta. Em concreto, Hayek critica Keynespelo seu enfoque macroeconómico e por carecer de umaadequada teoria do capital que conceba a estrutura produtivapor etapas, tal como Böhm-Bawerk a havia explicado.Além disso, critica Keynes por ter caído no grosseiro mito do“subconsumo” e, especificamente, por não entender que éperfeitamente possível ganhar dinheiro produzindo umdeterminado bem cuja procura decresça, desde que se invistaem diminuir os seus custos de produção, adquirindo mais bensde capital e, portanto, gerando uma estrutura produtiva maiscapital intensiva em cujas etapas mais afastadas do consumose empregam factores de produção que se libertam das etapasmais próximas ao mesmo sempre que se verifica um aumentoda poupança.

Além disso, para Hayek, a “medicina” keynesiana parasair da Grande Depressão não era mais do que “pão para hojee fome para amanhã”. De facto, todo o incremento artificialda procura agregada provocará graves distorções na estruturaprodutiva e apenas poderá gerar um emprego precário que, aprazo, se revelará estar dedicado a actividades não rentáveis eque portanto dará origem a um desemprego ainda maior.Para Hayek, as manipulações fiscais e monetárias aconselhadaspor keynesianos e monetaristas geram graves distorções nacoordenação intertemporal do mercado. Por isso, Hayek éfavorável a padrões monetários rígidos e contrário aonacionalismo monetário e às taxas de câmbio flexíveis que

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tanto Keynes como os teóricos da Escola de Chicagoadvogavam. Num outro notável livro, intitulado Nacionalismomonetário e estabilidade internacional (Hayek, 1995b), Hayekdemonstra como as taxas de câmbio flexíveis induzem efacilitam graves distorções reais na estrutura produtiva, as quaisgeram inevitavelmente recessões que não se verificariam casose mantivessem taxas de câmbio fixas. De acordo com Hayek,as taxas de câmbio flexíveis dificultam o papel coordenadordo mercado e induzem inúteis distorções de origem monetáriano processo real de alocação dos recursos.

Com a finalidade de ilustrar ao leitor as grandesdiferenças de paradigma que existem entre a abordagemaustríaca de Hayek e a abordagem macroeconómica dekeynesianos e monetaristas, resumem-se de seguida as mesmasno quadro 6.1.

Quadro 6.1.Duas formas distintas de conceber a economia

Escola Austríaca

1. O tempo desempenha um papel1. essencial.

2. O “capital” é concebido como um2. conjunto heterogéneo de bens de2. capital que constantemente se2. gastam e é preciso reproduzir.

3. O processo produtivo é dinâmico e2. está desagregado em múltiplas2. etapas de tipo vertical.

Escola Neoclássica(monetaristas e keynesianos)

1. A influência do tempo é ignorada.

2. O capital é concebido como um fun-2. do homogéneo que se auto-reproduz2. sozinho.

3. Concebe-se uma estrutura produtiva2. em equilíbrio, unidimensional e ho-2. rizontal (fluxo circular do rendi-2. mento).

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4. A moeda afecta o processo modi-4 . ficando os preços relativos.

5. Explica os fenómenos macroeco-2 . nómicos em termos microeconó-2 . micos (variações nos preços rela-2 . tivos).

6. Dispõe de uma teoria sobre as cau-4 . sas institucionais das crises econó-4. micas que explica o seu carácter4 . recorrente.

7. Dispõe de uma elaborada teoria do7. capital.

8. A poupança desempenha um papel8. protagonista e determina uma mu-8. dança longitudinal na estrutura8. produtiva e o tipo de tecnologia a8. utilizar.

9. A procura de bens de capital varia9. em direcção contrária à procura9. de bens de consumo. Todo o inves-9. timento exige poupança e, portan-9. to, uma diminuição temporária do9. consumo.

10. Supõe-se que os custos de produ-10. ção são subjectivos e não estão10. dados.

11. Considera-se que os preços de11. mercado tendem a determinar os11. custos de produção, e não o con-11. trário.

12. Considera-se a taxa de juro como12. um preço de mercado, determina-12. do por valorações subjectivas de12. preferência temporal, que se utili-12. za para calcular o valor actual do

4. A moeda afecta o nível geral de4. preços. Não se consideram altera-4. ções nos preços relativos.

5. Os agregados macroeconómicos4 . impedem a análise das realidades4. microeconómicas subjacentes.

6. Carece de uma verdadeira teoria4. dos ciclos. As crises produzem-se4. por causas exógenas.

7. Carece de uma teoria do capital.

8. A poupança não é importante. O8. capital produz-se lateralmente8. (mais do mesmo) e a função de8. produção é fixa e dada pelo estado8. em que se encontra a tecnologia.

9. A procura de bens de capital varia9. na mesma direcção da procura de9. bens de consumo.

10. Os custos de produção são objec-10. tivos, reais e consideram-se dados.

11. Considera-se que os custos histó-11. ricos de produção tendem a deter-11. minar os preços de mercado.

12. Considera-se que a taxa de juro12. tende a estar determinada pela pro-12. dutividade ou eficiência marginal12. do capital. A taxa de juro é con-12. cebido como a taxa interna de

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12. fluxo futuro de rendimentos para12. o qual tende o preço de mercado12. de cada bem de capital. A manipu-12. lação da taxa de juro pelos bancos12. centrais e a banca com reserva12. fraccionária geram ciclos recor-12. rentes de expansão (artificial) e re-12. cessão.

12. retorno que iguala o fluxo espera-12. do de rendimentos com o custo12. histórico de produção dos bens de12. capital (que se considera dado e12. invariável). Acredita-se que, no12. curto prazo, a taxa de juro é um12. fenómeno essencialmente mone-12. tário.

6.4. O debate com os socialistas e a crítica6.4. à engenharia social

Desde a edição, em 1935, da colecção de ensaios sobrea impossibilidade lógica do socialismo intitulada Collectivisteconomic planning (Hayek, 1975), Hayek participou de formaassídua ao lado de Mises no debate sobre a impossibilidadedo cálculo económico socialista, com uma série de ensaios etrabalhos, recentemente publicados na íntegra em espanhol(Hayek, 1998b). A ideia essencial de Hayek, e que está naorigem do título do último livro que escreveu, A presunçãofatal, é que o socialismo constitui um erro fatal de orgulhointelectual ou, se preferirmos, de arrogância científica. Hayekatribui nos seus escritos um sentido muito amplo ao termo“socialismo”, incluindo não só o denominado “socialismo real”(ou seja, o sistema baseado na propriedade pública dos meiosde produção), mas também, genericamente, todas as tentativassistemáticas de desenhar ou organizar, total ou parcialmente,mediante medidas coactivas de “engenharia social”, qualquerárea do emaranhado de interacções humanas que constituem

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o mercado e a sociedade. O socialismo, entendido desta formatão ampla, é, de acordo com Hayek, um erro intelectual porqueé logicamente impossível que aquele que deseja organizar ouintervir na sociedade possa ter acesso e utilizar o conhecimentonecessário para levar a cabo o seu desejo voluntarista de“melhorar” a ordem social. De facto, de acordo com Hayek, asociedade não é um sistema “racionalmente organizado” poruma mente ou grupo de mentes humanas, sendo, pelo contrário,uma ordem espontânea, ou seja, um processo dinâmico emconstante evolução, que resulta da contínua interacção demilhões de seres humanos, mas que não foi nem nunca poderáser desenhado de forma consciente ou deliberada por nenhumindivíduo.

A essência do processo social, tal como Hayek oentende, é constituída por informação ou conhecimento, detipo estritamente pessoal, subjectivo, prático e disperso, quecada ser humano, nas suas circunstâncias particulares de tempoe lugar, vai descobrindo e gerando em todas as acções queempreende para alcançar os seus fins e objectivos particulares.Para que seja possível descobrir e transmitir empresarialmenteo enorme volume de informação ou conhecimento práticonecessário para a manutenção e desenvolvimento da civilizaçãoactual, é imprescindível que o ser humano possa conceberlivremente os fins e proceder à descoberta dos meiosnecessários para os atingir sem nenhum tipo de entraves e,especialmente, sem ser coagido ou violentado de formasistemática ou institucional. Torna-se assim evidente em que

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sentido o socialismo, independentemente do seu tipo ou grau,é, para Hayek, um erro intelectual. Por um lado, porque todoaquele que pretenda, utilizando a coacção institucional,“melhorar” ou organizar uma determinada área da vida social,não poderá nunca aceder ao enorme volume de informaçãoprática e dispersa que se encontra distribuída pelas mentesdos milhões de indivíduos que hão de ser sujeitos às suas ordens(e essa incapacidade deve-se aos limites da capacidade decompreensão, ao volume da informação e, sobretudo, aocarácter tácito, inarticulável e dinâmico do tipo deconhecimento prático relevante para a vida em sociedade).Por outro lado, a utilização sistemática da coacção e daviolência, que constituem a essência do socialismo, impediráque o homem persiga livremente os seus fins, e portantoimpossibilitará que estes funcionem como incentivo àdescoberta e produção da informação prática necessária paratornar possível o desenvolvimento e coordenação da sociedade.

De acordo com Hayek, e pelas mesmas razões pelasquais o socialismo é um erro intelectual e uma impossibilidadelógica, as instituições mais importantes para a vida emsociedade (morais, jurídicas, linguísticas e económicas) nãoforam criadas deliberadamente por ninguém. Essas instituiçõessão o resultado de um longo processo de evolução no qualmilhões de seres humanos de sucessivas gerações foramcolocando, cada um deles, o seu pequeno “grão de areia” deexperiências, desejos, conhecimentos, etc., origiando dessaforma uma série de pautas repetitivas de comportamento

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(instituições) que, por um lado, surgem do próprio processode interacção social e, por outro, o tornam possível.Estas pautas repetitivas de comportamento, ou normas deconduta no sentido material, constituem um mundo intermédioentre o instinto biológico, que a todos nos influencia, e o mundoexplícito da razão humana. É um mundo intermédio porque,apesar de essas normas de conduta serem, sem dúvida,resultado da acção humana, elas incorporam um volume deinformação, experiências e conhecimentos tão grande queultrapassam em muito qualquer mente ou razão humana, queé, portanto, incapaz de criar, conceber ou desenhar ex novoesse tipo de instituições.

As pautas de conduta que tornam possível o surgimentoda civilização parecem ao longo de um processo evolutivo noqual aqueles grupos sociais que previamente desenvolveramo esquema de normas e comportamentos próprios dointercâmbio comercial voluntário e pacífico (e que integram oesquema de normas e instituições que constituem o direito depropriedade) vão absorvendo e preponderando sobre osrestantes grupos humanos, comparativamente mais atrasados,dada a sua estrutura mais primária ou tribal. Os socialistas,portanto, de acordo com Hayek, erram gravemente ao pensarque as emoções e atitudes próprias dos pequenos gruposprimários (e que se baseiam nos princípios de solidariedade,altruísmo e lealdade) possam ser suficientes para manter aordem extensiva de cooperação social que constitui a sociedademoderna. Com efeito, os princípios de solidariedade e

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altruísmo podem ser utilizados nos grupos primáriosprecisamente porque existe no interior dos mesmos umconhecimento profundo sobre as necessidades e característicasde cada participante. Porém, tentar extrapolar estes princípiosde solidariedade e altruísmo, próprios de um grupo tribal, àordem extensiva de cooperação social, na qual interagem ecooperam milhões de indivíduos que não se conhecem nempoderão alguma vez chegar a conhecer-se entre si, apenasresultaria no desaparecimento da civilização, na eliminaçãofísica da maior parte do género humano e no retorno a umaeconomia de subsistência de tipo tribal.

O contributo inovador de Hayek consistiu, basicamente,em ter evidenciado que a ideia original de Ludwig von Misesrelativa à impossibilidade do cálculo económico socialista nãoé mais do que um caso particular do princípio mais geral daimpossibilidade lógica da engenharia social ou do“racionalismo construtivista ou cartesiano”, o qual se baseiana ilusão de considerar que o poder da razão humana é muitosuperior ao que esta realmente tem. Cai-se assim na fatalarrogância “cientista”, que consiste em acreditar que nãoexistem limites quanto ao desenvolvimento futuro dasaplicações da técnica ou engenharia social. Hayek define“cientismo” como a aplicação indevida do método próprio daFísica e das Ciências da Natureza ao campo das ciênciassociais, e ao longo dos anos quarenta e princípio dos anoscinquenta escreveu uma série de artigos que posteriormente,em 1952, surgiram sob a forma de livro com o título The

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counter-revolution of science (Hayek, 1952a). Neste livro,Hayek analisa criticamente e de forma demolidora oracionalismo positivista que tem as suas raízes em Comte eSaint-Simon, assim como o rígido utilitarismo que teve a suaorigem em Bentham e que pressupõe um contexto no qual ainformação relativa aos benefícios e aos custos de cada acçãoé conhecida e torna possível a tomada de decisões com baseem critérios de maximização. Infelizmente, por essa mesmaaltura33, foi publicada a obra de Milton Friedman Ensaios sobreeconomia positiva (Friedman, 1967), que alcançou uma grandepopularidade e deu um renovado ímpeto ao uso da metodologiapositivista na nossa ciência. Não obstante o livro de Hayekem grande medida antecipar, contestar e criticar os pontos maisimportantes da obra de Friedman, o próprio Hayekposteriormente chegou a manifestar que “uma das afirmaçõesque mais frequentemente fiz em público é que uma das coisasde que mais me arrependo é nunca ter criticado os Ensaiossobre economia positiva de Milton Friedman, que emcerto sentido é um livro igualmente perigoso” (Hayek, 1997a:139-140). Talvez esta afirmação surpreenda aqueles queidentificam Hayek com o liberalismo da Escola de Chicagosem se darem conta das profundíssimas diferençasmetodológicas que existem entre os teóricos austríacos e os

33 N. do T.: A primeira edição, em inglês, da obra Essays in PositiveEconomics de Milton Friedman data de 1953, publicada pela TheUniversity of Chicago Press.

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membros da Escola de Chicago. O próprio Hayek, em outraocasião, clarificou ainda mais estas diferenças metodológicasrelativamente a Friedman e aos neoclássicos da seguintemaneira: “Friedman é um arqui-positivista que acredita quenada deve entrar na argumentação científica a menos que tenhasido provado de forma empírica. A minha posição é quesabemos demasiados detalhes empíricos sobre a economia,de maneira que a nossa tarefa consiste em ordenar esseconhecimento empírico. Dificilmente se necessita em algumcampo de nova informação empírica. A nossa grandedificuldade e desafio consiste em “digerir” o que já sabemos.Não somos muito sábios por dispormos de informaçãoestatística excepto pelo facto de podermos ganhar algumainformação sobre as circunstâncias específicas do momento.No entanto, em termos de teoria, não acredito que os estudosempíricos nos levem a sítio algum. O monetarismo de MiltonFriedman e o keynesianismo têm muito mais em comum entresi do que eu tenho com qualquer um deles. A Escola de Chicagopensa essencialmente em termos “macroeconómicos”.Dedicam-se a análises em termos de agregados e médiasestatísticas, como a quantidade total de moeda, o nível geralde preços, o emprego total, e todas essas magnitudes estatísticasem geral. Tomemos como exemplo a teoria quantitativa deFriedman. Já escrevi há mais de quarenta anos que tenhoobjecções muito fortes à teoria quantitativa porque consideroque é apenas uma aproximação muito grosseira da realidadeque deixa de fora da análise muitos elementos importantes.

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Parece-me lamentável que um homem da sofisticação deMilton Friedman não utilize a teoria simplesmente como umaprimeira aproximação, acreditando, pelo contrário, que amesma constitui o elemento teórico mais importante. De formaque é realmente nos aspectos metodológicos onde, em últimainstância, mais diferimos” (Hayek, 1993: 129-130).

Por último, importa referir que a análise crítica de Hayeksobre a economia do equilíbrio se iniciou com dois artigosseminais publicados nos anos trinta e quarenta, um com o títulode Economics and knowledge (1937) e outro intitulado Theuse of knowledge in society (1945). Nestes trabalhos, Hayekarticula a conclusão a que havia chegado no seu debate comos teóricos neoclássicos socialistas, no sentido de que esteseram incapazes de entender a impossibilidade do socialismoporque os modelos de equilíbrio geral em que se baseavamtinham por pressuposto que toda a informação necessáriarelativa às variáveis e parâmetros das equações simultâneasque o constituíam já estava “dada”. Hayek torna claro que, aocontrário do que afirma este pressuposto da teoria económicado equilíbrio, na vida real tal informação nunca está “dada”,sendo que vai sendo descoberta e criada passo a passo pelosempresários através de um processo dinâmico que é o quedeveria constituir o objecto de estudo dos economistas.Por isso, de forma natural, Hayek abandona o conceito deconcorrência perfeita neoclássica e propõe, seguindo a tradiçãoaustríaca de origem escolástica, um modelo dinâmico deconcorrência entendida como um processo de descoberta de

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informação, ideia esta que articula em dois importantestrabalhos: The meaning of competition, de 1946 (Hayek, 1948:92-106) e Competition as a discovery procedure, de 1968(Hayek, 1978a: 179-190).

6.5. Direito, legislação e liberdade

A partir de 1949, ano em que Hayek abandona a LondonSchool of Economics e se muda para a Universidade deChicago, dá-se uma mudança importante no seu programa deinvestigação. Com efeito, a partir dessa altura, Hayek dedica--se prioritariamente ao estudo dos condicionamentos jurídicose institucionais de toda a sociedade livre, relegando assim parasegundo plano as suas investigações mais estritas de teoriaeconómica. Hayek deixou de interessar-se pela discussãoeconómica teórica tal como a mesma se foi colocando duranteos anos cinquenta e sessenta em torno dos conceitosmacroeconómicos derivados da “revolução keynesiana” edecidiu esperar que passasse a tempestade “cientifista”,continuando entretanto com o trabalho de investigaçãorelacionado com o surgimento e evolução das instituições queCarl Menger havia iniciado. Fruto do seu esforço durante astrês décadas subsequentes foram dois livros de umaimportância capital: Os fundamentos da liberdade (Hayek,1998a) e a trilogia Direito, legislação e liberdade (Hayek,1988).

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Seria impossível expor aqui todas as contribuiçõeshayekianas no campo da teoria jurídica e política, tarefa quede resto já foi levada a cabo por Paloma de la Nuez, num estudocuja leitura se recomenda (Nuez, 1994). Podemos no entantoafirmar que existe uma unidade e concatenação lógica evidenteentre os contributos de Hayek no âmbito da teoria económicae e o trabalho que levou a cabo no âmbito da teoria do direitoe da teoria política. Com efeito, para Hayek, o socialismo, aobasear-se na agressão institucionalizada e sistemática contra aacção humana exercida mediante uma série de ordens oumandatos coercivos, implica o desaparecimento do conceitotradicional de lei, entendida como uma série de normas gerais(ou seja, aplicável a todos por igual) e abstractas (pois apenasdelimitam um amplo campo de actuação individual sem preverqualquer resultado concreto do processo social). Desta forma,as leis em sentido material são substituídas por um “direito”espúrio, constituído por um conglomerado de ordens,regulamentos e mandatos de tipo administrativo nos quais seespecifica qual deverá ser o comportamento concreto de cadaser humano. Assim, na medida em que o intervencionismoeconómico se expanda e desenvolva, as leis em sentidotradicional deixam de funcionar como normas de referênciapara o comportamento individual, passando o seu papel a serdesempenhado pelas ordens ou mandatos coercivos queemanam do orgão directivo (tenha este sido democraticamenteeleito ou não) e que Hayek denomina de “legislação”, poroposição ao conceito genérico de “direito”. A lei perde assim

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o seu âmbito de aplicação prática, que fica reduzido àssituações, regulares ou irregulares, às quais não cheguede forma efectiva a incidência directa do regime interven-cionista.

Por outro lado, e como efeito secundário de grandeimportância, os indivíduos, ao perderem a referência que a leiem sentido material constitui, vão modificando a suapersonalidade e perdendo os hábitos ou costumes de adaptaçãoàs normas gerais de carácter abstracto, processo através doqual, gradualmente, assimilam cada vez pior e respeitam cadavez menos as normas tradicionais de conduta. Uma vez quedesrespeitar o mandato é, em muitas ocasiões, uma exigênciaimposta pela própria necessidade de sobreviver e, em outras,uma manifestação do êxito da função empresarial corrompidaou pervertida que o socialismo tende a gerar, o incumprimentoda norma passa a ser considerado, do ponto de vista geral dapopulação, mais como uma louvável manifestação do engenhohumano que se deve buscar e fomentar do que como umaviolação de um sistema de normas que prejudica a vida emsociedade. Assim, o socialismo incita a violar a lei, esvazia amesma de conteúdo e corrompe-a, desprestigiando-acompletamente a nível social, e fazendo com que os cidadãos,consequentemente, percam todo o respeito por ela.

Segundo Hayek, a prostituição do conceito de lei queacabamos de explicar é inexoravelmente acompanhada emparalelo por uma prostituição do conceito e da aplicação dajustiça. A justiça, no seu sentido tradicional, consiste na

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aplicação, de forma igual a todos, das normas abstractas deconduta de tipo material que constituem o direito privado e odireito penal. Não é, portanto, por acaso que a justiça serepresenta de olhos vendados, uma vez que a justiça deve serantes de mais cega, no sentido de que não deve deixar-seinfluenciar no momento de aplicar o direito “nem pelas dádivasdo rico nem pelas lágrimas do pobre” (Levítico, cap. 19,versículo 15). O socialismo, ao corromper sistematicamente oconceito tradicional de direito, modifica também estaconcepção tradicional de justiça. Com efeito, no sistemasocialista, a “justiça” consiste antes de mais na avaliaçãoarbitrária, realizada pelo orgão político-directivo ou pelo juíz,com base na impressão mais ou menos emotiva produzida nosmesmos pelo “resultado final” e concreto do processo socialque se acredita perceber num determinado instante, e queintrepidamente se procura organizar a partir de cima recorrendoa mandatos coercivos. Não são já, portanto, comportamentoshumanos que são julgados, mas sim o “resultado” percebidodos mesmos, de acordo com um conceito espúrio de “justiça”,a que junta o qualificativo de “social” com a finalidade de otornar mais atractivo para aqueles que sofrem com ele.Do ponto de vista da justiça tradicional, não existe nada maisinjusto do que o conceito de justiça social, uma vez que estese baseia numa visão, impressão ou avaliação dos “resultados”dos processos sociais independentemente de qual tenha sido ocomportamento individual de cada indivíduo relativamente àsnormas do direito tradicional.

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Para Hayek, a função do juíz no direito tradicional é deíndole meramente intelectual, não devendo este deixar-seinfluenciar nem pelas suas inclinações emocionais nem pelasua avaliação pessoal das implicações da sentença sobre cadaparte. Se, como acontece no socialismo, se impede a aplicaçãoobjectiva do direito e se permite a tomada de decisões jurídicascom base em impressões mais ou menos subjectivas eemotivas, desaparece toda a segurança jurídica e os indivíduoscomeçam a dar-se conta de que qualquer pretensão podealcançar amparo judicial desde que se consiga impressionarfavoravelmente a um julgador. Em consequência, cria-se umfortíssimo incentivo para litigar o qual, associado à situaçãocaótica criada pelo emaranhado de mandatos coercivos cadavez mais imperfeitos e contraditórios, coloca os juízes em talsituação de sobrecarga que o seu trabalho se torna cada vezmais insuportável e ineficiente. Assim, dá-se um processo deprogressiva decomposição que apenas termina com a virtualdesaparição da justiça no seu sentido tradicional, assim comodos juízes, que passam a ser simples burocratas ao serviço dopoder político, encarregues de controlar o cumprimento dosmandatos coercivos que deles emanam.

No quadro 6.2. apresentam-se de forma sistematizadaas mais importantes diferenças no que concerne à opostaincidência sobre os conceitos e aplicação do direito e da justiçaque existem, segundo Hayek, entre o processo espontâneobaseado na função empresarial e na livre interacção humana eo sistema de organização baseado no mandato e na coacçãoinstitucional.

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Processo social espontâneoBaseado na função empresarial(interacção social não baseada

na agressão)

1. A coordenação social produz-se1. espontaneamente, graças à função1. empresarial que continuamente1. descobre e elimina os desajusta-1. mentos sociais, os quais dão ori-1. gem a oportunidades de lucro (or-1. dem espontânea).

2. O protagonista do processo é o ho-1. mem, que actua e exerce a função1. empresarial criativa.

3. Os vínculos de interacção social3. são de tipo contratual, e as partes3. implicadas trocam bens e serviços3. de acordo com normas jurídicas de3. tipo material (lei).

4. Prepondera o conceito tradicional4. de lei em sentido material, enten-4. dida como norma abstracta de4. conteúdo geral, que se aplica a to-4. dos por igual sem ter em conta4. qualquer circunstância particular.

5. As leis e instituições que tornam5. possível o processo social não fo-5. ram criadas de forma deliberada,5. sendo antes de origem evolutiva e

Socialismo(Agressão sistemática e institucional

contra a função empresariale a acção humana)

1. Tentativa de imposição da coorde-1. nação social a partir de um nível1. superior de forma deliberada e1. coerciva através de mandatos, or-1. dens e regulamentos coactivos que1. emanam do poder (ordem hierár-1. quica - de hieros, sagrado, e ar-1. chein, mandar - e organizada).

2. O protagonista do processo é o go-1. vernante (democrático ou não) e1. o funcionário (a pessoa que actua1. segundo as ordens e os regula-1. mentos administrativos emanados1. do poder)

3. Os vínculos de interacção social1. são de tipo hegemónico, em que1. uns mandam e outros obedecem.1. Se estamos perante uma “demo-1. cracia social”, as “maiorias” exer-1. cem coacção sobre as “minorias”.

4. Prepondera o mandato ou regula-4. mento que, independentemente da4. sua aparência de lei formal, é uma4. ordem específica de conteúdo con-4. creto que manda fazer determina-4. das coisas em circunstâncias par-4. ticulares e que não se aplica a to-4. dos por igual.

5. Os mandatos e regulamentos são5. emanações deliberadas do poder5. organizado, altamente imperfeitas5. e erróneos, dada a situação de inul-

Quadro 6.2.

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5. consuetudinária, e incorporando5. um enorme volume de experiên-5. cias e informação prática acumu-5. lada ao longo de sucessivas ge-5. rações.

6. O processo espontâneo torna6. possível a paz social, pois cada6. agente, dentro dos limites da lei,6. se aproveita do seu conhecimento6. prático para tentar atingir os seus6. fins particulares, cooperando pa-6. cificamente com os demais e dis-6. ciplinando espontaneamente o seu6. comportamento em função dos6. outros seres humanos que perse-6. guem fins distintos.

7. A liberdade é entendida como a7. ausência de coacção ou agressão7. (tanto institucional como não sis-7. temática).

8. Prepondera o sentido tradicional8. de justiça, que supõe aplicar a lei8. material de forma igual para todos,8. independentemente dos resultados8. concretos que se produzam no8. processo social. A única igualdade8. que se procura é a igualdade pe-8. rante a lei, aplicada por uma justi-8. ça cega face às diferenças particu-8. lares entre os homens.

9. Preponderam as relações de tipo9. abstracto, económico e comercial.9. Os conceitos espúrios de lealdade,9. “solidariedade” e ordem hierár-9. quica não são tidos em conta. Ca-9. da agente disciplina o seu compor-9. tamento com base nas normas de9. direito material e participa de uma

5. trapassável ignorância em que o5. poder sempre se encontra relativa-5. mente à sociedade civil.

6. Exige que um fim ou conjunto de6. fins prepondere e se imponha a to-6. dos através de um sistema de man-6. datos e regulamentos. Gera violên-6. cia social e conflitos irresolúveis6. e intermináveis, que assim impe-6. dem a paz social.

7. A “liberdade” é entendida como o7. poder de atingir os fins concretos7. que se desejem em cada momento7. (mediante um simples acto de von-7. tade, mandato ou capricho).

8. Prepondera o sentido espírito de8. “justiça nos resultados” ou “justiça8. social”, entendida como igualdade8. nos resultados do processo social,8. à margem de qual tenha sido o8. comportamento (correcto ou não8. do ponto de vista do direito tradi-8. cional) dos indivíduos implicados8. no mesmo.

9. Prepondera o político na vida9. social e os nexos básicos são de ti-9. po “tribal”: a) lealdade ao grupo e9. ao seu chefe; b) respeito pela or-9. dem hierárquica; c) ajuda ao “pró-9. ximo” conhecido (“solidariedade”)9. e esquecimento e inclusivamente9. desprezo para os “outros” seres hu-

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9. ordem social universal, não exis-9. tindo para ele nem “amigos”, nem9. “inimigos” mas tão só múltiplos9. seres humanos, a maior parte deles9. desconhecidos, com os quais se9. interage de forma mutuamente9. satisfatória e cada vez mais ampla9. e complexa (sentido correcto do9. termo solidariedade).

9. manos mais ou menos desconhe-9. cidos, membros de outras “tribus”,9. que são receados e considerados9. como “inimigos” (sentido espúrio9. e míope do termo “solidariedade”).

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7. O renascimento da Escola Austríaca

7.1. A crise da análise de equilíbrio7.1. e do formalismo matemático

As três décadas que vão desde o fim da Segunda GuerraMundial até 1975 são as do triunfo da denominada “sínteseneoclássica-keynesiana” e do formalismo matemático daanálise de equilíbrio no âmbito da nossa disciplina. Com efeito,a análise de equilíbrio passa a ser dominante no campo daCiência Económica, havendo no entanto que constatar queexistem duas grandes correntes no que se refere ao uso que,durante este período, os economistas fazem da noção deequilíbrio.

O primeiro grupo é o liderado por Samuelson que, apósa publicação dos seus Fundamentos da análise económica(Samuelson, 1947), se converteu em pioneiro, juntamente comHicks, na elaboração da síntese neoclássica-keynesiana.

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Samuelson aceita explicitamente a teoria de Lange e de Lernersobre a possibilidade do socialismo de mercado (Samuelson,1947: 217 e 232), aceitando portanto, sem reservas, a posiçãoque estes autores neoclássicos haviam adoptado face ao desafiolançado pelo teorema da impossibilidade do socialismodescoberto por Mises. Samuelson apresenta como seu objectivoexplícito a reconstrução da Ciência Económica utilizando alinguagem matemática, o que o leva a efectuar múltiplospressupostos simplificadores que excluem dos seus modelosa maior parte da riqueza e da complexidade que têm osprocessos reais de mercado. Desta forma, pouco a pouco, omeio usado para a análise (o formalismo matemático) começoua confundir-se com a mensagem, de tal maneira que a clarezasintáctica se passou a alcançar à custa do conteúdo semânticodas diferentes análises económicas, chegando-se até aoextremo de negar o estatuto científico às teorias mais realistasou à economia literária (Boettke, 1997: 11-64).

Os teóricos deste primeiro grupo, a que também sejuntaram Kenneth Arrow, Gerard Debreu, Frank Hahn e, maisrecentemente, Joseph Stiglitz, aceitam o modelo de equilíbriocompetitivo em termos normativos, como o ideal de que aeconomia deveria aproximar-se, de tal forma que sempre queconstatam que a realidade não coincide com o equilíbrio emconcorrência perfeita, pensam ter conseguido identificar uma“falha de mercado”, que justificaria prima facie a intervençãodo Estado com a finalidade de “empurrar” a realidade nosentido do ideal representado pelo modelo de equilíbriogeral.

Frente a este primeiro grupo, constitui-se dentro da

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corrente dominante um segundo grupo de economistas formadopor teóricos do equilíbrio que, apesar disso, são partidários daeconomia de mercado. Este conjunto de economistasagrupa-se, basicamente, em torno da Escola de Chicago e tementre os seus principais representantes autores como MiltonFriedman, George Stigler, Robert Lucas e Gary Becker,segundo os quais o ponto de vista económico seria constituído,exclusivamente, pelo modelo de equilíbrio, pelo princípio damaximização e pelo pressuposto de constância.

A reacção destes economistas, que apesar de seremteóricos do equilíbrio defendem a economia de mercado frenteà teoria das “falhas de mercado” do primeiro grupo, consisteem manter a tese de que o modelo de equilíbrio descreve deforma muito aproximada a realidade, assim como em explicitar,seguindo os postulados da escola da Escolha Pública, que, emtodo o caso, as falhas do sector público seriam superiores àsque se poderiam identificar no sector privado.

Os teóricos da Escola de Chicago acreditam que destamaneira se imunizam do ataque dos teóricos das falhas demercado e pensam que demonstram com a sua análise quenão é necessária a intervenção do estado na economia. Paraeles, se a realidade é muito parecida com o equilíbriocompetitivo, então o mercado real é eficiente no sentidoparetiano e não é preciso intervir no mesmo; especialmentese, como efectivamente acontece, a acção combinada depolíticos, votantes e burocratas também não está isenta degraves falhas.

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A verdade é que, do ponto de vista da concepçãodinâmica do mercado da Escola Austríaca, as posições deambos os grupos da corrente dominante são muito criticáveis.

Assim, e relativamente aos modelos elaborados pelosteóricos da Escola de Chicago, os austríacos salientam queneles todo o “trabalho” é feito pelos pressupostos de partida:equilíbrio, maximização e constância. Os austríacosargumentam que antes de concluir que a realidade está muitoproxima do modelo de equilíbrio, os teóricos de Chicagodeveriam desenvolver uma teoria sobre o processo real demercado que explicasse de que forma este tende para oequilíbrio, se é que tal coisa sucede na realidade. Ou seja, aopensar que o equilíbrio competitivo descreve muito de pertoa realidade, os teóricos de Chicago pecam por ser utópicos edeixam desnecessariamente muitos flancos abertos aos seusoponentes ideológicos do primeiro grupo que são, em certosentido, mais realistas.

No entanto, também os teóricos neoclássicos das falhasde mercado cometem, do ponto de vista da Escola Austríaca,importantes erros. De facto, este grupo de teóricos passa porcima dos efeitos dinâmicos de coordenação que, impulsionadospela função empresarial, existem em qualquer mercado real.Pensam que, de alguma forma, é possível uma aproximaçãoao ideal de equilíbrio geral através da intervenção do estado,como se os planificadores pudessem chegar a utilizar umainformação de que nunca podem dispor na realidade. Para osaustríacos, em vez de pecarem por ser utópicos, os teóricos

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das falhas de mercado erram pela razão oposta, ou seja, porpensar que o mundo é muito pior do que efectivamente é narealidade. De facto, ao concentrarem-se nas suas análises noequilíbrio, mesmo que seja apenas como ponto de referência,passam por cima do processo real de coordenação que existeno mercado e não se dão conta de que o desiquilíbrio que tantocriticam, mais do que uma imperfeição ou falha do mercado,é efectivamente a mais natural característica do mundo real eque, em todo o caso, o processo real de mercado é melhor doque qualquer outra alternativa humanamente alcançável.

Assim, e prescindindo por agora da análise da escolada Escolha Pública, os principais problemas teóricos que oseconomistas austríacos identificaram no grupo de teóricos dasfalhas de mercado são: em primeiro lugar, não terem em contaque as medidas de intervenção que preconizam para aproximaro mundo real do modelo de equilíbrio podem afectar muitonegativamente, como de facto sucede, o processo empresarialde coordenação que se desenrola no mundo real; e em segundolugar, pressuporem que o responsável pela intervenção públicapode dispor de uma informação muito superior à queteoricamente se pode conceber que alguma vez poderia obter.

A proposta dos teóricos da Escola Austríaca consiste,portanto, em superar ambas as análises de equilíbrio (a daEscola de Chicago e a dos teóricos das falhas de mercado),recentrando a investigação no âmbito da nossa ciência noprocesso dinâmico de coordenação empresarial que,eventualmente, conduziria a um equilíbrio que, no entanto, na

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vida real nunca se pode alcançar. Desta forma se substituiria ocentro focal de investigação que actualmente é o modelo deequilíbrio pela análise diâmica constituída pelo estudo dosprocessos de mercado, evitando-se assim as graves carênciasque afectam ambas as correntes da escola neoclássica.

Dois exemplos, um no âmbito da microeconomia e outrono âmbito da macroeconomia, podem ajudar a clarificar aproposta dos economistas austríacos neste sentido.

O primeiro exemplo refere-se ao modernodesenvolvimento da teoria da informação que, na sua versãoda Escola de Chicago, parte do trabalho seminal de Stiglersobre “The economics of information” (stigler, 1961).Stigler e os seus seguidores da Escola de Chicago concebem ainformação de uma forma objectiva, ou seja, como umamercadoria que se compra e vende no mercado em termos decustos e benefícios. Reconhecem que há ignorância no mundoreal, mas afirmam que, todavia, a ignorância que existe é onível “óptimo” de ignorância, uma vez que a busca de novainformação, objectivamente considerada, apenas cessa quandoo seu custo marginal supera o seu benefício marginal.

Os teóricos das “falhas de mercado”, liderados porGrossman e Stiglitz, em consonância com a abordagem queos caracteriza, desenvolvem uma análise económica sobre ainformação bem distinta. Para eles, o mundo real encontra-senum equilíbrio ineficiente no qual detectam a seguinte “falha”:como os agentes económicos pensam que os preços transmiteminformação de forma eficiente, produz-se um efeito de free

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rider, em resultado do qual os agentes económicos abdicamde adquirir privadamente a informação adicional de quenecessitam porque esta é custosa. Para estes teóricos, aconclusão é óbvia: o mercado tende a produzir um volumeineficientemente baixo de informação, o que justificaria aintervenção do Estado a esse nível sempre que os benefíciosdessa intervenção superassem os respectivos custos (Grossmane Stiglitz, 1980).

Como já foi demonstrado no início deste livro, do pontode vista da Escola Austríaca, o principal problema com ambasas abordagens é que tratam a informação como algo objectivo,ou seja, como se a informação se encontrasse “dada” em algumsítio determinado (ainda que por vezes não se saiba onde).Os austríacos, contrariamente a ambas as abordagens da EscolaNeoclássica, consideram que a informação ou o conhecimentoé sempre algo subjectivo que não pode estar dado, uma vezque é continuamente criado ou gerado pelos empresáriosquando se dão conta de uma oportunidade de lucro, ou seja,da existência, na constelação constantemente em mudança depreços de mercado, de desajustamentos ou descoordenaçõesque tenham passado despercebidos. Isto faz com que não sejapossível considerar em termos de custos e benefícios ainformação empresarial, dado que o seu valor não é conhecidoenquanto a mesma não for descoberta empresarialmente.Consequentemente, se é impossível efectuar tal avaliaçãomaximizadora em termos de custos e benefícios, toda a análiseda informação da Escola de Chicago cai pela base.

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Por outro lado, desde que não se impeça ou dificulte olivre exercício da função empresarial, não se pode considerarque a informação gerada no mercado está abaixo do que seriaeficiente, uma vez que não existe qualquer padrão decomparação que permita determinar se a informação real queo mercado cria e utiliza é inferior ou não ao suposto volume“óptimo” de informação. È aqui directamente aplicável toda aanálise sobre a impossibilidade teórica do socialismodesenvolvida pelos austríacos, no sentido de que o orgão decontrolo nunca poderá superar a capacidade criativa eempresarial dos agentes económicos que são os protagonistasdos processos de mercado. Como vimos, já há muito tempo opadre Juan de Mariana nos indicou que não devemos acreditarque o cego possa guiar os que vêem (mesmo que estes últimostenham algumas imperfeições na sua visão).

O segundo exemplo que vamos apresentar refere-se àsdiferentes hipóteses teóricas sobre o mercado de trabalho.Como é bem conhecido, os teóricos da Escola de Chicago danova macroeconomia clássica atacaram frontalmente airracionalidade implícita na hipótese keynesiana referente aocarácter supostamente rígido à baixa dos salários. Segundo aEscola de Chicago a ignorância que existe no mercado está aum nível “óptimo” por definição. Ou seja, se alguém estádesempregado, esse facto deve-se a que prefere continuar àprocura de um trabalho melhor em vez de aceitar o que se lheoferece, pelo que se conclui que não pode nunca existirnenhum tipo de desemprego involuntário num mercado real.

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Nesta perspectiva, se se observam ciclos económicos queafectam o emprego, eles serão causados por uma sucessão dealterações não antecipadas na oferta monetária que impedemos agentes de distinguir claramente entre as variações de preçosrelativos que têm uma causa real subjacente e as variações donível geral de preços causadas pela inflação (Lucas, 1977);ou, mais simplesmente, devido à repentina aparição de choquesexternos de oferta ou de tipo real (Kydland e Prescott, 1982).

Pela sua parte, os novos keynesianos (Shapiro e Stiglitz,1984; Salop, 1979), desenvolveram diversos modelos deequilíbrio com desemprego que resultam da actividademaximizadora dos agentes que operam num contexto no qualse verifica a denominada “hipótese do salário de eficiência”.De acordo com esta hipótese, considera-se que não é aprodutividade que determina os salários, mas sim os saláriosque determinam a produtividade. Ou seja, os empresários, paranão desmotivar os seus empregados, manteriam salários deequilíbrio demasiado altos que não seriam capazes de“esvaziar” o mercado de trabalho. Pois bem, mais uma vez,do ponto de vista da concepção dinâmica do mercadodesenvolvida pela Escola Austríaca, ambas as abordagens sãoaltamente criticáveis. De facto, considerar, como fazem osteóricos de Chicago, que todo o desemprego é “voluntário” éde um enorme irrealismo, uma vez que tal afirmação supõeque, em qualquer momento considerado, já se produziu oprocesso real de coordenação em que consiste o mercado eque, portanto, já foi alcançado o estado final de repouso

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descrito pelo modelo de equilíbrio. No entanto, o mercadoreal encotra-se continuamente numa situação de“desequilíbrio” e, mesmo na ausência de restriçõesinstitucionais (leis de salário mínimo, intervenções sindicais,etc.), é possível que múltiplos trabalhadores que desejariamempregar-se com determinados empresários concretos (evice-versa) permaneçam desempregados e nunca cheguem aconhecer-se entre si, ou, ainda que se cheguem a conhcer,deixem passar a oportunidade mutuamente vantajosa de firmarum contrato laboral, simplesmente por falta de suficienteperspicácia empresarial.

Por outro lado, e referindo-nos agora aos teóricos da“hipótese do salário de eficiência”, considerar que, na ausênciade restrições legais ou sindicais, as situações de desempregoinvoluntário manter-se-ão indefinidamente devido à existênciade “salários de eficiência”, choca frontalmente com o desejoempresarial de empregados e empregadores de obter benefíciose evitar perdas. Com efeito, se exigem um salário demasiadoelevado e não encontram emprego, os trabalhadores tenderãoa baixar as suas aspirações; e se, como empresários,determinados agentes económicos pagam em excesso aos seustrabalhadores para os manter satisfeitos, e se dão depois contade que poderiam contratar talentos parecidos ou melhores porsalários inferiores, seguramente que acabarão por decidirmudar de estratégia, ou ver-se-ão forçados a tal, se queremsobreviver no mercado. E tudo isto sem mencionar que osnovos keynesianos esquecem nas suas análises os graves

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efeitos que tem sobre o emprego a intervenção estatal sobre omercado de trabalho entendido como um processo dinâmico.

Na perspectiva da Escola Austríaca, o ciclo económiconão é nem um fenómeno plenamente externo, comodefenderiam os teóricos de Chicago (ou seja, produzido pormudanças não antecipadas, choques reais, etc.), nem totalmenteendógeno, como acreditam os keynesianos (ou seja, resultadode vários tipos de rigidez nominal ou real, da hipótese do saláriode eficiência, etc.). Para os austríacos, como já sabemos, ociclo económico é melhor descrito como resultando da acçãode algumas instituições monetárias e creditícias (a banca comreserva fraccionária coordenada por um banco central) que,ainda que hoje se considerem típicas do mercado, não surgiramda sua evolução natural, tendo pelo contrário sidocoercivamente impostas a partir do exterior e gerando atravésda sua actuação graves desajustamentos no processo decoordenação intertemporal do mercado (Huerta de Soto, 1998).

Pode portanto concluir-se que a concepção dinâmicado mercado desenvolvida pelos teóricos da Escola Austríacalima as imperfeições e suaviza as conclusões extremas a quechegam as duas correntes do equilíbrio (a de Chicago e a dosnovos keynesianos), proporcionando à análise uma dose derealismo que evita os graves erros teóricos de políticaeconómica que têm a sua base em ambas as referidas correntesdo pensamento neoclássico.

Não é por isso de estranhar que se considere que aCiência Económica dos nossos dias, dominada pelo

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formalismo matemático dos teóricos do equilíbrio de ambasas abordagens, está a atravessar uma profunda crise. Esta crisedeve-se, basicamente, aos seguintes motivos: primeiro, apredominante preocupação dos teóricos com os estados deequilíbrio, que nada têm a ver com a realidade, mas que são osúnicos que é possível analisar recorrendo a métodosmatemáticos; segundo, o esquecimento total, ou o estudo apartir de uma perspectiva incorrecta, do papel quedesempenham os processos dinâmicos de mercado e aconcorrência que tem lugar na vida real; terceiro, a insuficienteatenção prestada ao papel que desempenham no mercado ainformação subjectiva, o conhecimento e os processos deaprendizagem; quarto, o uso indiscriminado de agregadosmacroeconómicos e a omissão por ele implicada do estudo dacoordenação entre os planos dos agentes individuais queparticipam no mercado. Todas estas razões explicam a faltade entendimento da actual Ciência Económica relativamenteaos problemas mais importantes da vida económica real donosso tempo e, consequentemente, a situação de crise e decrescente desprestígio em que hoje se encontra, em grandemedida, a nossa disciplina. Os motivos mencionados têm todoseles uma causa comum: a falta de realismo nos pressupostos ea tentativa de aplicar a metodologia própria das ciênciasnaturais a um campo que lhe é totalmente estranho: o campodas ciências da acção humana. É precisamente a actual situaçãode crise da disciplina que explica, pelo menos em parte, oimportante ressurgimento que a Escola Austríaca teve a partir

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de 1974, sendo capaz de apresentar um paradigma alternativo,muito mais realista, coerente e frutífero, para a reconstruçãoda nossa Ciência.

7.2. Rothbard, Kirzner e o ressurgimento7.2. da Escola Austríaca

A atribuição do prémio Nobel da Economia em 1974,ou seja, no ano seguinte ao da morte de Mises, ao seu maisbrilhante discípulo, F. A. Hayek, juntamente com o crescentedescrédito da teoria macroeconómica keynesiana e dasprescrições intervencionistas, que se tornou evidente a partirda recessão inflaccionária dos anos setenta, deu um renovadoimpulso internacional ao desenvolvimento doutrinal da Escolaaustríaca (Kirzner, 1987: 148-150).

Neste renascimento da Escola austríaca tiveram umpapel protagonista dois dos alunos mais brilhantes que Misesteve nos Estados Unidos: Murray N. Rothbard e Israel M.Kirzner.

Rothbard nasceu em Nova Iorque em 1926 no seio deuma família de emigrantes judeus oriunda da Polónia.Doutorou-se na Universidade de Columbia, em Nova Iorque,onde estudou apadrinhado pelo seu vizinho, o famosoeconomista arthur Burns. Por coincidência, teve contacto como seminário que Ludwig von Mises mantinha na época naUniversidade de Nova Iorque, convertendo-se pouco depois

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num dos seus mais jovens, brilhantes e prometedoresdiscípulos. Com o passar dos anos, Rothbard chegou a sercatedrático de Economia na Universidade Politécnica de NovaIorque e, mais tarde, professor emérito de Economia naUniversidade de Nevada em Las Vegas, até ao seuinesperado falecimento no dia 7 de Janeiro de 1995.Rothbard foi um dos pensadores mais coerentes, multidis-ciplinares e tenazes da Escola Austríaca e da fundamentaçãojusnaturalista do liberalismo económico. Deixou escritos maisde vinte livros e centenas de artigos, entre os quais se destacamimportantes obras de história económica, como America’sGreat Depression (Rothbard, 1975), e importantes trabalhosde teoria económica, entre os quais ressaltam o seu tratado deeconomia intitulado Man, Economy, and State (Rothbard,1993) e Power and Market (Rothbard, 1977). Por último,recentemente, a editora Edward Elgar publicou emInglaterra dois volumes com uma antologia dos seus maisimportantes artigos sobre teoria económica intitulada The Logicof Action (Rothbard, 1977: vols. I e II). A Edward Elgar publi-cou também em Inglaterra os dois volumes da sua momu-mental obra póstuma sobre a História do pensamentoeconómico do ponto de vista da escola austríaca, que foirecentemente traduzida para castelhano (Rothbard, 1999;2000).

Por seu lado, Israel M. Kirzner nasceu em Inglaterraem 1930 e após várias vicissitudes familiares acabou porestudar gestão de empresas na Universidade de Nova Iorque.

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Também devido a uma casualidade (faltavam-lhe algunscréditos para completar a sua licenciatura e decidiu assistir aoseminário leccionado pelo professor que tivesse maispublicações, resultando que esse era Mises), entrou emcontacto com o grande austríaco e converteu-se também emassíduo participante do seminário misesiano na Universidadede Nova Iorque. Além disso, Kirzner deu-se conta de que asua vocação se encontrava no ensino chegando a ser catedráticode Economia na própria Universidade de Nova Iorque, cargode que se jubilou recentemente. Kirzner especializou-se nodesenvolvimento da concepção dinâmica e empresarial e noestudo das suas consequências coordenadoras no mercado,tendo sido autor de vários livros importantes sobre este tema,entre os quais se destacam Concorrência e empresarialidade(Kirzner, 1998), Perception, opportunity and profit (Kirzner,1979) e Discovery and the capitalist process (Kirzner, 1985).Kirzner explorou também as implicações que tem, nocampo da ética social, a sua concepção dinâmica daempresarialidade num livro que foi publicado em espanholcom o título de Creatividad, capitalismo e justicia distributiva(Kirzner, 1995). Finalmente, devemos a este autor umelevado número de artigos sobre a teoria económica austríacaem geral e sobre a função empresarial em particular, tendosido capaz de elaborar nos mesmos uma visão dosprocessos de mercado impulsionados pela empresarialidademuito sugestiva e aperfeiçoada e que, em grande medida, jáfoi exposta no capítulo 2 do presente livro.

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O recente renascimento da Escola Austríaca está a serprotagonizado por um numeroso grupo de jovens teóricos dediversas universidades dos Estados Unidos e da Europa. Entreas universidades americanas destacam-se a Universidade deNova Iorque (com Mario J. Rizzo e Israel M. Kirzner), aGeorge Mason University (com Peter J. Boettke, DonaldLavoie e Karen Vaughn) e a Auburn University (ondetrabalham os professores Roger Garrison, Joseph T. Salerno eHans Hermann Hoppe), trabalhando ainda em outrasinstituições economistas austríacos tão importantes como JorgGuido Hülsman, Gerald P. O’Driscoll, Lawrence White eGeorge Selgin, entre outros. Na Europa importa destacar osprofessores Stephen Littlechild e Norman P. Barry, daUniversidade de Buckingham; os professores William J. Keizere Gerrit Meijer na Holanda; o professor Raimundo Cubedduem Itália; os professores Pascal Salin e Jacques Garello emFrança; o professor José Manuel Moreira, da Universidade deAveiro em Portugal; e em Espanha, um crescente grupo deprofessores e investigadores interessados na Escola Austríacaque, conscientes da grande responsabilidade académica ecientífica acarretada pelo reconhecimento da origem espanholada Escola (que já expusemos no capítulo 3), está a consolidar--se rapidamente no nosso país (entre os quais se destacam osprofessores Rubio de Urquia, José Juan Franch, ÁngelRodríguez, Oscar Vara, Javier Aranzadi del Cerro, etc.).

Nos últimos vinte e cinco anos multiplicaram-se aspublicações de livros e monografias de autores da Escola

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Austríaca de Economia, existindo desde há vários anos duasrevistas científicas especializadas nas quais os mesmospublicam o resultado das suas investigações: The QuarterlyJournal of Austrian Economics, publicado trimestralmente pelaTransaction Publishers nos Estados Unidos, e a Review ofAustrian Economics, que é publicada duas vezes por ano pelaKluwer Academic Publishers na Holanda.

Por último, são regularmente levados a cabo diversoscongressos e encontros internacionais onde se discutemvivamente as contribuições contemporâneas mais polémicase inovadoras da moderna Escola Austríaca de Economia e àsquais assistem professores e investigadores de todo o mundoespecializados na mesma.

7.3. O actual programa de investigação7.3. da Escola Austríaca

A queda do muro de Berlim e a consequente crise dosocialismo real está a ter um profundo impacto sobre oparadigma neoclássico até agora dominante e, de forma maisgeral, sobre a forma de fazer ciência económica. Pareceevidente que algo de fundamental falhou na Economiaenquanto ciência quando um acontecimento tão importantecomo este não pôde ser adequadamente previsto e analisadopreviamente pelo paradigma neoclássico. Felizmente, graçasao duro golpe recebido, estamos actualmente em condições

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de avaliar correctamente a natureza e dimensão dos errosteóricos do paradigma neoclássico, que até agora têm emgrande medida impedido os economistas de apreciar einterpretar com a necessária clareza os acontecimentos maisimportantes do mundo social. Além disso, não será precisocomeçar a partir do zero a reconstrução da Ciência Económica,uma vez que grande parte dos instrumentos analíticosnecessários já foram elaborados e aperfeiçoados pelos teóricosda Escola Austríaca, precisamente em consequência da suanecessidade de explicar, defender e depurar as suas posiçõesao longo dos sucessivos debates que os têm oposto aosdefensores do paradigma cientista desde a fundação dessaEscola.

Apesar de não ser possível enumerar aqui todas as áreasda nossa disciplina afectadas pela actual situação, nem muitomenos desenvolver com detalhe o novo conteúdo das mesmasque pode ser levado a cabo graças aos contributos da EscolaAustríaca, podemos, não obstante, a título de exemplo e semcarácter exaustivo, mencionar algumas delas.

Em primeiro lugar, destacaremos a teoria da coacçãoinstitucional, que surge como uma generalização da análiseaustríaca do socialismo. Efectivamente, já anteriormente secomentou de que forma todo o acto empresarial supõe adescoberta de nova informação, a sua transmissão através domercado e a coordenação dos comportamentos desajustadosdos seres humanos, tudo isto de uma maneira evolutiva eespontânea que torna possível a vida em sociedade. Assim,

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torna-se evidente que o exercício sistemático e institucionalda coacção que o socialismo e o intervencionismo requeremimpede, em maior ou menor medida, não só a criação e atransmissão da informação, mas também, o que é ainda maisgrave, o desenvolvimento do processo espontâneo decoordenação dos comportamentos desajustados dos sereshumanos e, portanto, a sobrevivência coordenada do processosocial. Abre-se assim todo um novo campo de investigaçãopara analisar os desajustamentos provocados pelointervencionismo económico em todas as situações onde omesmo se exerce, sendo esta uma das áreas mais promissoraspara o futuro trabalho de investigação dos estudiosos da nossadisciplina.

Em segundo lugar, é preciso abandonar a teoriafuncional da determinação dos preços e substituí-la por umateoria dos preços que explique como estes se formamdinamicamente em resultado de um processo sequencial eevolutivo movido pela força da função empresarial; ou seja,pelas acções humanas dos agentes implicados, e não pelaintersecção de curvas ou funções mais ou menos misteriosasmas em todo o caso carentes de existência real, uma vez que ainformação de que hipoteticamente se necessita para conhecere desenhar as mesmas nem sequer existe na mente dessesagentes.

Em terceiro lugar, há que mencionar o desenvolvimentoda teoria austríaca da concorrência e do monopólio, que exigeo abandono das teorias estáticas sobre os mercados que

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constam da generalidade dos actuais manuais de Economia, ea sua substituição por uma teoria da concorrência entendidacomo um processo dinâmico de rivalidade puramenteempresarial, que torna irrelevantes e inexistentes os supostosproblemas de monopólio entendidos no seu sentido tradicionale fixa a sua atenção nas restrições institucionais ao livreexercício da empresarialidade em qualquer área demercado. Um importante corolário de política económica daanálise austríaca sobre a concorrência e o monopólio é areconsideração de toda a política e legislação anti-trust que,em grande medida, na óptica austríaca, acaba por serprejudicial ou redundante (Kirzner, 1998-1999: 67-77;Armentano, 1972).

Em quarto lugar, a teoria do capital e do juro foitambém, como já vimos atrás, profundamente afectada pelaconcepção subjectivista da Escola Austríaca. É essencial quea teoria do capital volte a integrar os programas de estudo dasfaculdades de Economia de maneira a que se superem as actuaisinsuficiências da concepção macroeconómica que passa porcima dos processos microeconómicos de coordenação que sedesenrolam na estrutura produtiva do mundo real.

Em quinto lugar, talvez a teoria do dinheiro, do créditoe dos mercados financeiros seja o desafio teórico maisimportante que se coloca à nossa ciência num futuro próximodo ponto de vista da Escola Austríaca. Uma vez coberto o“gap” teórico que representava a análise do socialismo, ocampo mais desconhecido e simultaneamente mais importante

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é o monetário, onde todavia imperam a coacção sistemáticados bancos centrais, os erros metodológicos e a confusãoteórica. As relações sociais nas quais está envolvido o dinheirosão geralmente as mais abstractas e difíceis de entender já queo conhecimento gerado pelas mesmas é vasto e muitocomplexo, o que faz com que a intervenção nesta área seja, delonge, a mais danosa e prejudicial e, em última instância, sejaa responsável directa pelo aparecimento regular e sucessivodas recessões económicas (Huerta de Soto, 1998).

A teoria do crescimento e do subdesenvolvimentoeconómico, baseada no equilíbrio e em agregadosmacroeconómicos, virou as costas ao único verdadeiroprotagonista do processo: o ser humano com a sua perspicáciae capacidade criativa empresarial. É por isso preciso reconstruirtoda a teoria do crescimento e do subdesenvolvimento,eliminando os elementos justificativos da coacção institucionalque até agora a tornaram prejudicial e estéril e centrando-a noestudo teórico dos processos de descoberta das oportunidadesde desenvolvimento que permanecem por explorar por faltado imprescindível elemento empresarial, que é, sem dúvidaalguma, a chave para ultrapassar o subdesenvolvimento.

Algo semelhante pode afirmar-se em relação àdenominada economia do bem-estar que, fundamentada nofantasmagórico conceito paretiano de eficiência, se tornouirrelevante e inútil, já que exige para a sua operacionalizaçãoum enquadramento estático e de plena informação que jamaisse encontra na vida real. A eficiência, mais do que dos critérios

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paretianos, depende e há-de vir definida em termos dacapacidade da função empresarial para coordenar de formaespontânea os desajustamentos que surgem nas situações dedesequilíbrio (Cordato, 1992).

A teoria dos bens “públicos” foi desde sempreconstruída nos termos estritamente estáticos do paradigma doequilíbrio, pressupondo-se que as circunstâncias quedeterminam a denominada “oferta conjunta” e a “não rivalidadeno consumo” estão dadas e não vão sofrer alterações.Na perspectiva da teoria dinâmica da função empresarial,qualquer aparente situação de bem público cria uma claraoportunidade para ser descoberta e eliminada através dacriatividade empresarial nos âmbitos jurídicos e/outecnológicos. Assim, na perspectiva da Escola Austríaca, oconjunto de bens públicos tende a esvaziar-se, desaparecendoassim uma das justificações mais frequentemente utilizadaspara defender a intervenção estatal em muitas áreas sociais noâmbito da economia.

É também oportuno fazer referência ao programa deinvestigação que os teóricos austríacos têm vindo a desenvolverno campo da escola da Escolha Pública e da denominadaanálise económica do direito e das instituições, campos deinvestigação que tentam actualmente desembaraçar-se danefasta influência exercida pelo modelo estático baseado naplena informação. O uso desse modelo estático motivou, nocampo neoclássico, uma análise pseudo-científica de muitasnormas, tendo por base pressupostos metodológicos idênticos

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aos que anteriormente se havia tentado utilizar para justificaro socialismo os quais deixam de lado a análise dinâmica eevolutiva dos processos sociais de tipo espontâneo gerados eimpulsionados pela empresarialidade. Para os teóricos daEscola Austríaca, é evidentemente contraditório pretenderanalisar as normas e as regras jurídicas tendo por base umparadigma que, como o neoclássico, pressupõe umenquadramento estático e a existência de informação perfeita(quer seja em termos exactos ou probabilístico) quanto aosbenefícios e custos derivados das mesmas. Com efeito, se talinformação existisse, as regras e as normas não seriam sequernecessárias e poderiam substituir-se mais eficazmente porsimples mandatos. Se há algo que justifica e explica oaparecimento evolutivo do direito, é precisamente ainescapável ignorância em que o ser humano se vêconstantemente imerso.

A teoria da população recebeu também um impulsorevolucionário pela mão das contribuições dos teóricosaustríacos em geral e de Hayek em particular. De facto, paraos austríacos, o homem não é um factor homogéneo deprodução, uma vez que está dotado de uma inata capacidadecriativa de tipo empresarial, pelo que o crescimento dapopulação, em vez de constituir um travão ao desenvolvimentoeconómico, é simultaneamente o motor e uma das condiçõesnecessárias para que o mesmo se leve a cabo. Já foi atédemonstrado que o desenvolvimento da civilização implicauma sempre crescente divisão horizontal e vertical do

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conhecimento prático que apenas é possível se em paralelo aoavanço da civilização se verificar um incremento no númerode seres humanos que seja capaz de suportar o volumecrescente de informação prática que se utiliza a nível social(Huerta de Soto, 1992: 80-82). Estas ideias foram, por suavez, desenvolvidas por outros estudiosos de influênciaaustríaca, como Julian L. Simon, que as aplicaram à teoria docrescimento demográfico dos países do Terceiro Mundo e àanálise dos efeitos económicos positivos da imigração(Simon, 1989 e 1994).

Finalmente, no campo da análise teórica da justiça eda ética social, as contribuições dos economistasaustríacos estão a assumir uma grande importância. Assim,por exemplo, destacam-se, não só a análise crítica de Hayekao conceito de justiça social incorporada no volume II deDireito, legislação e liberdade, mas também a já citada obrade Kirzner sobre Criatividade, capitalismo e justiçadistributiva, na qual se demonstra que todo o ser humano temdireito aos resultados da sua própria criatividade empresarialnuma análise que aperfeiçoa e completa a efectuadapreviamente na mesma linha por Robert Nozick (Nozick,1988). Por último, um dos mais brilhantes discípulos deRothbard, Hans Hermann Hoppe, elaborou com êxito umajustificação apriorística do direito de propriedade e do mercadolivre, partindo do critério habermasiano de que a argumentaçãopressupõe a existência e o respeito prévio pela propriedade

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sobre o próprio corpo e os atributos pessoais, de onde sededuz de forma lógica toda uma teoria sobre o mercado livree o capitalismo (Hoppe, 1989), que vem complementar ajustificação jusnaturalista da liberdade exposta porRothbard no seu já clássico tratado sobre A ética da liberdade(Rothbard, 1995).

Poderiam mencionar-se muitos outros campos deinvestigação nos quais se poderá aplicar de maneira muitovantajosa o programa da nova Escola Austríaca masesperamos que, com a breve referência realizada às áreasmencionadas, já se tenha conseguido ilustrar suficientementeo caminho que a Ciência Económica deverá seguir nofuturo, uma vez depurada dos vícios teóricos e metodológicosque até agora, em grande medida, a têm afectado. Aincorporação do ponto de vista austríaco de uma formageneralizada acabará por dar lugar a uma ciência social aoserviço da humanidade muito mais realista, ampla, rica eexplicativa.

7.4. Resposta a alguns comentários críticos

De seguida, será apresentada resposta a algunscomentários críticos que habitualmente se efectuam aoparadigma austríaco e que, acreditamos carecerem defundamento. As críticas mais comuns que se efectuam aosaustríacos são as seguintes:

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A) “As duas abordagens (austríaca e neoclássica) não seA) excluem, sendo até complementares”

Esta é a tese defendida por aqueles autores neoclássicosque desejam manter uma posição ecléctica e não abertamenteoposta à Escola Austríaca. Os austríacos consideram que, emgeral, esta tese não é mais do que uma infeliz consequênciado nihilismo próprio do pluralismo metodológico, segundo oqual todos os métodos são válidos e o único problema daCiência Económica consiste em escolher o método maisadequado para cada problema concreto. Contra esta tese, osautores austríacos argumentam que a mesma não é senão umatentativa de imunizar o paradigma neoclássico face àspoderosas críticas que lhe são feitas pela metodologia austríaca.A tese da compatibilidade teria fundamento se o métodoneoclássico (baseado no equilíbrio, na constância e numaconcepção estreita de optimização e racionalidade)correspondesse à forma real como os seres humanos actuam enão tendesse, como acreditam os austríacos, a viciar em grandemedida qualquer análise teórica. Daí a grande importância dereelaborar as conclusões teóricas neoclássicas, mas seguindoa metodologia subjectivista e dinâmica dos austríacos, com afinalidade de evidenciar quais são as conclusões teóricasneoclássicas que devem ser abandonadas por incorporaremvícios na respectiva análise. Não é concebível que sejapossível incorporar no paradigma neoclássico realidadeshumanas que, como a empresarialidade criativa, superam em

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muito o seu esquema conceptual de categorias. A tentativa deforçar a colocação dentro do espartilho neoclássico dasrealidades subjectivas do ser humano estudadas pelosaustríacos conduz necessariamente ou à caricaturizaçãodas mesmas, ou ao saudável abandono da abordagemneoclássica, superado pelo esquema conceptual mais realista,complexo, rico e explicativo que é próprio do ponto de vistaaustríaco.

B) “Os austríacos não deveriam criticar os neoclássicos porB) utilizar pressupostos simplificadores que ajudam aB) entender a realidade”

Face a esta crítica, tão frequentemente utilizada, oseconomistas austríacos argumentam que uma coisa é que umpressuposto seja simplificador e outra, muito distinta, é que opressuposto seja completamente irrealista. O que os austríacoscriticam aos neoclássicos não é a natureza simplificadora dosseus pressupostos, mas sim, precisamente, o facto de essespressupostos serem contrários à realidade empírica de comose manifesta e actua o ser humano (de maneira dinâmica ecriativa). É, portanto, o irrealismo (e não a simplificação)grosseiro dos pressupostos neoclássicos que tende, do pontode vista austríaco, a pôr em perigo a validade das conclusõesteóricas que os neoclássicos acreditam alcançar na análise dosdiversos problemas de economia aplicada a cujo estudo sededicam.

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C) “Os austríacos falham no momento de formalizar as suasC) proposições teóricas”

Este é, por exemplo, o único argumento contra a EscolaAustríaca exposto por Stiglitz no seu recente tratado críticosobre os modelos de equilíbrio geral (Stiglitz, 1994: 24-26).Já explicámos anteriormente as razões pelas quais a maioriados economistas austríacos se revelaram, desde o início,muito receosos relativamente ao uso da linguagemmatemática na nossa ciência. Para os economistas austríacos,o uso do formalismo matemático é mais um vício do que umavirtude, uma vez que é uma linguagem simbólica que se temvindo a construir de acordo com as exigências do mundodas ciências naturais, da engenharia e da lógica, camposonde o tempo subjectivo e a criatividade empresarial nãoestão presentes, pelo que tende a ignorar as característicasmais essenciais da natureza do ser humano que é oprotagonista dos processos sociais que os economistasdeveriam estudar.

Para os matemáticos, fica o desafio de responder (sealguma vez tal for possível) concebendo e desenvolvendo todauma nova “matemática” que seja capaz de permitir aconsideração e a análise da capacidade criativa do ser humanocom todas as suas implicações, sem recorrer, portanto, aospostulados de constância que procedem do mundo da física epor impulso dos quais se têm desenvolvido todas as linguagensmatemáticas que conhecemos até agora. Na nossa opinião, não

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obstante, a linguagem científica ideal para analisar estacapacidade criativa é precisamente aquela que os próprios sereshumanos têm vindo a criar de forma espontânea na suaquotidiana actividade empresarial e que se materializa nosdiferentes idiomas e linguagens verbais que hoje imperam nomundo.

D) “Os austríacos produzem muito poucos trabalhos de tipoD) empírico”

Esta é a crítica mais comum que os empiristas fazem àEscola Austríaca. Apesar de os austríacos darem umaextraordinária importância ao papel da história, reconhecemque o âmbito da sua actividade científica se desenrolanum campo muito distinto: o da teoria, que é precisoconhecer com carácter prévio antes de proceder à suaaplicação à realidade ou de a ilustrar com factos históricos.Os austríacos consideram, pelo contrário, que existe umexcesso de produção de trabalhos empíricos e uma escassezrelativa de estudos teóricos que sejam capazes de nospermitir entender e interpretar o que acontece na realidade.Além disso, os pressupostos metodológicos da EscolaNeoclássica (equilíbrio, maximização e constância depreferências), ainda que aparentemente facilitem arealização de estudos empíricos e o “confronto” dedeterminadas teorias, ocultam em muitas ocasiões quais sãoas relações teoricamente correctas, pelo que podem conduzir

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a graves erros teóricos e de interpretação do que na realidadeestá a suceder em cada momento ou circunstância concreta dahistória.

E) “Os austríacos renunciam à previsão no âmbito daE) Economia”

Já vimos como os teóricos austríacos são muitohumildes e prudentes a respeito das possibilidades deprever cientificamente o que ocorrerá no futuro no âmbitoeconómico e social. Preocupam-se mais em construir umesquema ou arsenal de conceitos e leis teóricas que permitaminterpretar a realidade e ajudem os seres humanos queactuam (empresários) a tomar decisões com maiorespossibilidades de êxito. Apesar de as “previsões” dos austríacosserem apenas qualitativas e se efectuarem em termosestritamente teóricos, dá-se o paradoxo de que, na prática, aoempregarem pressupostos de análise muito mais realistas(processos dinâmicos e de criatividade empresarial), as suasconclusões e teorias, em comparação com as elaboradas pelaEscola Neoclássica, aumentam, e muito, as possibilidades defazer “previsões” com êxito no âmbito da acção humana.Dois exemplos do que afirmamos são a previsão do colapsodo socialismo real que está implícita na análise misesiana sobrea impossibilidade do socialismo, bem como a previsão daGrande Depressão de 1929 efectuada pelos austríacos.Curiosamente, nenhum destes dois importantíssimos

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acontecimentos históricos foi previsto pelos economistasneoclássicos.

F) “Os austríacos carecem de critérios empíricos para validarF) as suas teorias”

De acordo com esta crítica, que é frequentementerealizada por aqueles empiristas afectados pelo complexo doapóstolo São Tomé segundo o qual “se não vejo, não creio”,apenas recorrendo à realidade empírica se pode verificar deforma segura quais as teorias económicas que não sãocorrectas. Como já vimos, este ponto de vista ignora que emeconomia a “evidência” empírica nunca é incontroversa umavez que se refere a fenómenos históricos de natureza complexaque não permitem a experimentação laboratorial, na qual seisolam os fenómenos relevantes e se mantêm constantes todosos demais aspectos que possam exercer alguma influênciasobre a análise. Ou seja, as leis económicas são sempre leisceteris paribus, enquanto que na realidade jamais se verificaeste pressuposto de constância. De acordo com os austríacos,a validação das teorias é perfeitamente possível de serefectuada mediante a contínua depuração de vícios nacorrespondente cadeia de raciocínios lógico-dedutivos, aanálise e revisão das diferentes ligações do processo dedesenvolvimento lógico-dedutivo das diferentes teorias e autilização do máximo cuidado quando, chegado o momentode aplicar as teorias à realidade, há que avaliar se os

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pressupostos das mesmas se verificam ou não no caso históricoconcreto que está sob análise. Dada a estrutura lógica uniformeda mente humana, esta contínua actividade de validaçãopropsota pelos austríacos é mais do que suficiente para chegara um acordo intersubjectivo entre os diferentes protagonistasdo trabalho científico, acordo que, no entanto, e apesar dasenganosas aparências, é na prática muito mais difícil dealcançar em relação aos fenómenos empíricos os quais, dadoo seu carácter muito complexo, são sempre susceptíveis degerar as mais diversas e contraditórias interpretações.

G) “A acusação de dogmatismo”

Esta é uma acusação que, em grande medida, e graçasao notável renascimento da Escola Austríaca nos últimos anose à sua melhor compreensão por parte dos economistas, está aser felizmente cada vez menos utilizada. Apesar disso, nopassado, foram muitos os economistas neoclássicos que caíramna fácil tentação de desqualificar globalmente todo oparadigma austríaco, acusando-o de ser “dogmático”, semsequer estudar com detalhe os seus diferentes aspectos nemprocurar contestar as críticas que o mesmo apresentava.

Bruce Caldwell, entre outros, foi especialmente críticocom esta atitude neoclássica que consiste em desvalorizar enem sequer considerar as posições dos metodólogos austríacos,qualificando-a mesmo de dogmática e anti-científica echegando à conclusão de que essa atitude é totalmente

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injustificável do ponto de vista científico. Assim, e criticandoa postura de Samuelson face aos austríacos, Caldwellquestiona-se: “Quais serão as razões que estão por trás destaquase anti-científica resposta à praxeologia? Desde logodenotam um receio de natureza prática: o capital humano damaioria dos economistas ver-se-ia drasticamente reduzido eficaria obsoleto se a praxeologia se tornasse operativa nadisciplina de uma forma geral. Mas a principal razão pela qualse rejeita a metodologia de Mises não é tão pragmática.Sinteticamente, a preocupação dos austríacos com os‘fundamentos últimos’ da Ciência Económica deve parecerdesprovida de sentido, senão até perversa, a todos aqueleseconomistas que disciplinadamente aprenderam a suametodologia a partir de Friedman e que portanto estão certosde que os pressupostos não importam e de que a previsão é omais importante... Independentemente dos motivos, estareacção contra a praxeologia por parte do paradigma dominantefoi dogmática e, na sua essência, anti-científica” (Caldwell,1994: 118-119).

Na realidade, paradoxalmente, a arrogância e odogmatismo radicam na forma habitual de os economistasneoclássicos apresentarem o que consideram ser o ponto devista mais característico da economia, quando se centramexclusivamente sobre a base dos princípios do equilíbrio, damaximização e da constância das preferências. Desta maneira,pretendem arrogar-se o monopólio da concepção do que é ounão “económico” impondo a lei do silêncio a outras concepções

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alternativas que, como a representada pelos austríacos, lhesdisputam o campo de investigação científica com umparadigma mais rico e realista. Esperamos que, para o bem dodesenvolvimento futuro da nossa disciplina, este dogmatismoencoberto (recorde-se, por exemplo, o caso de Becker, 1995)vá definitivamente desaparecendo.

7.5. Conclusão: uma avaliação comparativa7.5. do paradigma neoclássico

Para os economistas neoclássicos, em consonância coma essência do seu posicionamento metodológico, a avaliaçãodo êxito comparativo dos diferentes paradigmas só pode serefectudada em termos estritamente empíricos e quantitativos.Assim, por exemplo, consideram que é um critériodeterminante do “êxito” de um determinado ponto de vistametodológico o número de praticantes da Ciência que oseguem. Também se referem frequentemente à quantidade deproblemas concretos que aparentemente foram “solucionados”em termos operativos pela abordagem em causa. No entanto,o argumento “democrático” relativo ao número de cientistasque seguem um determinado paradigma é muito poucoconvincente (Yeager, 1997: 153, 165). Não se trata apenas daconstatação de que na história do pensamento humano,incluindo as ciências naturais, em muitas ocasiões a maioriados cientistas terem estado equivocados, mas também do facto

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de que, no âmbito da economia, somos confrontados com oproblema adicional de a evidência empírica não ser nuncaincontroversa, pelo que as doutrinas erróneas não sãoimediatamente identificadas e rejeitadas.

Quando as análises teóricas baseadas no equilíbriorecebem uma aparente confirmação empírica, mesmo que ateoria económica subjacente esteja errada, podem passar porválidas durante períodos muito prolongados de tempo e, aindaque no final se venha a tornar manifesto o erro ou vício teóriconelas incluído, como as análises foram efectuadas em relaçãocom a solução operativa de problemas históricos concretos,quando estes perdem actualidade o erro teórico cometido naanálise passa despercebido ou fica oculto para a maioria dospessoas.

Se acrescentarmos ao anteriormente exposto que atéagora existiu (e presumivelmente continuará a existir no futuro)uma ingénua mas importante e efectiva procura por parte demuitos agentes sociais (sobretudo autoridades públicas, líderessociais e cidadãos em geral) de previsões concretas e deanálises empíricas e “operativas” relacionadas com asdiferentes medidas de política económica e social que podemser tomadas, é compreensível que tal procura (da mesma formaque a procura de horóscopos e previsões astrológicas) tenda aser satisfeita no mercado por uma oferta de “analistas” e“engenheiros sociais” que dão aos seus clientes aquilo queestes querem obter com uma aparência de respeitabilidade elegitimidade científicas.

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No entanto, como oportunamente indica Mises, “aaparição do economista profissional é uma consequência dointervencionismo, e actualmente ele não é mais do que umespecialista que procura descobrir as fórmulas que permitamao governo intervir melhor na vida mercantil. São peritos emmatéria de legislação económica, legislação que na realidadeapenas visa perturbar o funcionamento do mercado livre”(Mises, 1995: 1027). Preteder que o comportamento dosmembros de uma profissão de especialistas em intervençãoseja, em última instância, o juiz definitivo sobre um paradigmaque, como o austríaco, metodologicamente retira legitimidadeàs medidas de intervenção que preconizam, é algo que mostraa falta de sentido do argumento “democrático”. Se além dissotivermos em conta que no âmbito da economia, ao contráriodo que acontece no campo da engenharia e das ciênciasnaturais, mais do que um avanço continuado, se produzempor vezes importantes retrocessos e erros que demoram muitotempo a ser identificados e corrigidos, então não é possívelaceitar como critério definitivo de êxito o número de soluçõesoperativas aparentemente bem sucedidas, uma vez que o quehoje parece “correcto” em termos operativos pode amanhãrevelar-se baseado em formulações teóricas erradas.

Em alternativa aos critérios empíricos de êxito,propomos um critério qualitativo. De acordo com este critério,um paradigma terá tido tanto mais êxito quanto maior for onúmero de desenvolvimentos teóricos correctos e deimportância para a evolução da humanidade a que tenha dado

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origem. Nesta perspectiva é evidente que a abordagemaustríaca supera claramente a neoclássica. Os austríacos foramcapazes de elaborar uma teoria sobre a impossibilidade dosocialismo que, se tivesse sido tida em conta a tempo, teriaevitado enormes sofrimentos ao género humano. Além disso,a histórica queda do socialismo real veio ilustrar e tornarmanifesta a relevância e veracidade da análise austríaca. Algode semelhante aconteceu, como já se referiu, em relação àGrande Depressão de 1929, e também em muitos outroscampos nos quais os austríacos desenvolveram a sua análisedinâmica sobre os efeitos descoordenadores provocados pelaintervenção do estado. Assim, por exemplo, no âmbitomonetário e creditício, no campo da teoria dos cicloseconómicos, na reelaboração da teoria dinâmica daconcorrência e do monopólio, na análise da teoria dointervencionismo, na articulação de novos critérios deeficiência dinâmica que substituem os critérios paretianos, naanálise crítica do conceito de “justiça social” e, em suma, namelhor e superior compreensão do mercado como processode interacção social movido pela força empresarial. Todos estesexemplos de importantes êxitos qualitativos da abordagemaustríaca contrastam com as graves carências e insuficiências(ou fracassos) da abordagem neoclássica, entre as quais sedestaca a sua confessa incapacidade de reconhecer e preverem tempo útil a impossibilidade teórica e as prejudiciaisconsequências do sistema económico socialista. Assim, oneoclássico da Escola de Chicago Sherwin Rosen acabou por

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reconhecer que “o colapso da planificação centralizada nadécada passada foi uma surpresa para a maioria de nós” (Rosen,1997: 139-152). Outro economista surpreendido foi o próprioRonald H. Coase, para quem “nada do que tinha lido ou sabiasugeria que o colapso do sistema socialista iria ocorrer” (Coase,1997: 45).

Alguns economistas neoclássicos, como Mark Blaug,foram particularmente corajosos e finalmente declararam a sua“apostasia” do modelo de equilíbrio geral e do paradigmaestático neoclássico-walrasiano concluindo que “de forma lentae extremamente relutante fui chegando à conclusão de que osteóricos da Escola Austríaca estavam certos e de que nósestávamos errados” (Blaug e De Marchi, 1991: 508). Maisrecentemente, o próprio Blaug voltou a referir-se ao paradigmaneoclássico, relativamente à sua aplicação para justificar osistema socialista, como algo “tão ingénuo do ponto de vistaadministrativo que até suscita o riso. Apenas aqueles queestavam embriagados na teoria do equilíbrio estático e deconcorrência perfeita poderiam aceitar semelhante tolice.Fui um dos que aceitaram esta concepção quando eraestudante nos anos cinquenta e hoje não posso deixar de mesurpreender com a minha própria falta de perspicácia” (Blaug,1993: 1571).

O que parece claro é que se desejamos vencer a inérciaprovocada pela constante procura social de previsões correctas,de receitas de intervenção e de estudos empíricos, que sãofacilmente aceites apesar de incorporarem importantes vícios

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teóricos, será preciso continuar a alargar e aprofundar noâmbito da nossa Ciência a abordagem subjectivista propostapela Escola Austríaca. Por isso, a Methodenstreit da EscolaAustríaca prosseguirá enquanto os seres humanos continuarema preferir as doutrinas que os satisfazem em cada circunstânciaconcreta às que são teoricamente correctas e enquantopreponderar essa tradicional soberba ou fatal arrogânciaracionalista do ser humano que o leva a supor que dispõe, emcada circunstância histórica concreta, de uma informaçãomuito superior à que realmente pode chegar a ter (Hayek,1997b).

Face a estas perigosas tendências do pensamentohumano, que tenderão a aflorar de forma recorrente, apenasdispomos da metodologia muito mais realista, frutífera ehumanista que tem vindo a ser desenvolvida pelos teóricos daEscola Austríaca que, esperamos, haverá de ter umaimportância cada vez maior no futuro da economia.

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