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Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro Inconstitucionalidade da Penhora do Bem de Família do Fiador nos Contratos de Locação à Luz do Direito Civil-Constitucional Flavia Caroline Silva Oliveira Rio de Janeiro 2009

Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro ... · concedida em contrato de locação, ... que o fiador sofra a perda de seu singular imóvel residencial. Trata-se de questão

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Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

Inconstitucionalidade da Penhora do Bem de Família do Fiador nos Contratos de Locação à Luz do Direito Civil-Constitucional

Flavia Caroline Silva Oliveira

Rio de Janeiro 2009

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FLAVIA CAROLINE SILVA OLIVEIRA

Inconstitucionalidade da Penhora do Bem de Família do Fiador nos Contratos de Locação à Luz do Direito Civil-Constitucional

Artigo Científico apresentado à Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, como exigência para obtenção do título de Pós-Graduação. Orientadores: Profª. Néli Fetzner Prof. Nelson Tavares Profª. Mônica Areal

Rio de Janeiro 2009

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INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO À LUZ DO DIREITO CIVIL-CON STITUCIONAL

Flavia Caroline Silva Oliveira

Graduada pela Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Advogada. Pós-graduanda em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.

Resumo: a Constituição da República, seu art. 6º, insere o direito à moradia como um direito fundamental do indivíduo. No entanto, o art. 3°, VII, da Lei n° 8.009/90 excepciona a regra da impenhorabilidade do bem de família legal dos fiadores por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação, de sorte a suprimir-lhes o patrimônio mínimo, indispensável a uma vida digna. Tal norma, contudo, foi considerada constitucional pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental de constitucionalidade e esse entendimento vem se consolidando na jurisprudência dos Tribunais estaduais. O cerne do trabalho é, pois, demonstrar o equívoco da decisão do STF, defendendo-se a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal.

Palavras-chaves: Bem de Família, Penhora, Fiança Locatícia.

Sumário: 1- Introdução. 2- Breve histórico. 3- Do direito fundamental à moradia. 4- Da autonomia privada. 5- Do equilíbrio do mercado imobiliário. 6- Da colisão entre o princípio da autonomia privada e o direito fundamental à moradia. 7- Conclusão. Referências.

1- INTRODUÇÃO

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A discussão quanto à constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador eclodiu

com o advento da EC n° 26/2000, que inseriu o direito à moradia como um direito social, dentre

os direitos fundamentais de segunda geração, no rol do art. 6º da Constituição da República.

Nessa linha, surge a seguinte indagação: teria sido recepcionado pela EC n° 26/2000 o art. 3º,

VII, da Lei n° 8.009/90, que excepciona a regra da impenhorabilidade do bem de família no caso

de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação?

O bem de família consiste no único imóvel residencial do indivíduo ou da entidade

familiar e, por conseguinte, recebe proteção especial do ordenamento jurídico brasileiro, que

assegura sua impenhorabilidade para o pagamento de dívidas contraídas por seus proprietários. A

impenhorabilidade do bem de família legal foi introduzida pela Lei n° 8.009/90 com o escopo de

salvaguardar o patrimônio mínimo do indivíduo, garantindo-lhe uma sobrevivência digna.

O sistema jurídico pátrio adota o princípio da responsabilidade patrimonial do devedor,

não admitindo sua responsabilização pessoal, nos termos do art. 591 do Código de Processo

Civil. Dessa forma, celebrado um contrato de locação, em regra, a garantia da satisfação do

direito de crédito do locador recai sobre o patrimônio do locatário, figurando o seu bem de

família como exceção.

Entretanto, haja vista o risco de inadimplência do locatário e de sua insuficiência

patrimonial para arcar com o pagamento das dívidas advindas do contrato de locação celebrado, é

corriqueiro que os locadores exijam um reforço da garantia de adimplemento dos aluguéis pelo

locatário. Tradicionalmente, opta-se pela celebração de um contrato de fiança locatícia, por meio

do qual o fiador assume a condição de co-responsável pelo inadimplemento de seu afiançado

(locatário).

Sobre o contrato de fiança locatícia, todavia, passou a incidir a regra da

impenhorabilidade do bem de família do devedor, abrangendo, nesse caso, tanto o devedor

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principal quanto o fiador. Por isso, a garantia do locador, resultante de tal contrato acessório,

restou enfraquecida, uma vez que, no caso de inadimplência do locatário, o locador não poderia

excutir o único imóvel residencial do devedor nem de seu fiador. Diante de tal contexto, passou-

se a exigir que a garantia fidejussória concedida em contrato de locação fosse prestada por fiador

proprietário de mais de um imóvel.

Considerando que na atual conjuntura social em que se vive poucas são as famílias

proprietárias de mais de um imóvel e que os fiadores são, em sua maioria, pessoas de média ou

baixa renda, tal exigência resultou em intensa retração no mercado de locação predial, o que

levou o legislador a incluir o inciso VII ao art. 3º da Lei n° 8.009/90. Assim, por questões de

política imobiliária, excepciona-se a regra da impenhorabilidade do bem de família e admite-se

que o fiador sofra a perda de seu singular imóvel residencial.

Trata-se de questão com enorme cunho social, uma vez que se busca proteger o direito de

moradia de uma ampla classe de pessoas, interessadas na locação, mas em detrimento de igual

direito conferido aos fiadores proprietários de um único imóvel, com fulcro nos princípios

norteadores das relações contratuais da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda.

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a necessidade de modificação do

hodierno entendimento jurisprudencial sobre a matéria, haja vista não corresponder a um

problema tão simplório, cuja aplicação da letra fria da lei seja suficiente para solucioná-lo. Ao

contrário, o tema envolve colisão entre direitos fundamentais dos indivíduos, como os direitos à

dignidade da pessoa humana, à moradia, ao mínimo existencial (tutela do patrimônio mínimo) e,

por isso, tal matéria demanda uma reflexão mais acurada da doutrina e jurisprudência.

Busca-se, pois, sob o prisma do Direito Civil-Constitucional, analisar a norma do art. 3º,

VII, da Lei nº 8.009/90, em face dos princípios constitucionais da isonomia e razoabilidade, do

direito fundamental à moradia e dos princípios gerais do direito contratual da liberdade de

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contratar e do pacta sunt servanda, devendo ser estudada a forma de interação desses distintos

valores albergados pelo sistema constitucional, por meio da moderna técnica da ponderação de

interesses.

Para tanto, a metodologia a ser empregada no trabalho ora proposto será,

fundamentalmente, a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, que apresenta como suporte teórico

básico a Constituição da República Federativa do Brasil, normas infraconstitucionais (a exemplo

da Lei n° 8.009/90 e do Código Civil Brasileiro de 2002), doutrina e jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

2- BREVE HISTÓRICO

O contrato de fiança, disciplinado pelos arts. 818 a 839 do CC/02, corresponde a um

negócio jurídico acessório, unilateral, formal, personalíssimo, de adesão e, em regra, gratuito,

destinado, especificamente, à proteção do direito creditício de terceiro e, por conseguinte, inclui-

se como uma das espécies de caução. A legislação inquilinária (Lei n° 6.649/79 e art. 37 da Lei

n° 8.245/91) sempre arrolou a fiança como uma das modalidades de garantia locatícia, sendo

esta, ressalte-se, a espécie preferencial de garantia do cumprimento das obrigações assumidas

pelo locatário.

Com a edição da Lei n° 8.009/90, que, em seu art. 1º, caput, apregoa a impenhorabilidade

do bem de família por qualquer espécie de dívida, ou seja, do único imóvel do devedor que nele

reside com sua família, surgiu uma aguda retração no mercado imobiliário. Com efeito, a

principal garantia de satisfação do direito de crédito dos locadores, em geral, recai sobre o

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patrimônio do fiador (garantia fidejussória). No entanto, a Lei n° 8.009/90 subtraiu, em parte, tal

garantia, uma vez que o fiador proprietário de um único bem imóvel passou a figurar como

garantidor inidôneo do ponto de vista econômico, na medida em que se encontrava acobertado

pela impenhorabilidade legal de seu bem de família.

Desta feita, os locadores passaram a exigir que a fiança locatícia fosse prestada por

fiadores proprietários de, no mínimo, dois imóveis, o que resultou em inevitável colapso no

mercado de locação predial, especialmente para as classes de média e baixa renda.

No intuito de solucionar esse impasse, o legislador inseriu o inciso VII ao art. 3º da Lei n°

8.009/90, por meio do art. 82 da Lei n° 8.245/91 (Lei do Inquilinato), incluindo dentre as

exceções à impenhorabilidade legal do bem de família a obrigação decorrente de fiança

concedida em contrato de locação.

Assim, retornou-se à milenar sistemática dos contratos privados que permite que o fiador

venha a ofertar seu único bem imóvel como garantia do adimplemento do locatário, ainda que

isso lhe prive de um mínimo patrimônio para sua subsistência. Sem dúvida, um retrocesso na

proteção dos direitos individuais do fiador.

A partir da Emenda Constitucional nº 26/2000, que ampliou o rol de direitos fundamentais

sociais do art. 6º da Constituição da República, incluindo o direito à moradia, grande parte da

doutrina e jurisprudência passou a sustentar a não recepção do inciso VII do art. 3º da Lei n°

8.009/90 pela nova redação do art. 6º da CRFB, com fundamento, primordialmente, nos

princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, bem como na necessidade de que a lei

seja aplicada em atenção aos fins sociais a que se dirige e as exigências do bem comum.

Em 2006, a matéria foi levada à apreciação pelo plenário do Supremo Tribunal Federal

por meio de controle incidental de constitucionalidade. Assim, no julgamento do RE 407.688/SP,

de 08/02/2006, o plenário do STF, por maioria, reconheceu a recepção norma do inciso VII do

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art. 3º da Lei n° 8.009/90 pelo art. 6º da Constituição da República e, conseqüentemente, a

constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação. Tal

posicionamento se baseou em quatro argumentos principais, a saber, (i) a proteção ao direito à

moradia do locatário; (ii) a vinculação voluntária do fiador aos ônus impostos pelo contrato de

fiança enquanto livre exercício de sua autonomia privada; (iii) a manutenção do equilíbrio do

mercado imobiliário; e (iv) a ausência de incompatibilidade entre o direito social à moradia e a

exceção à impenhorabilidade prevista no art. 3º, inciso VII, da Lei n° 8.009/90.

Ressalte-se que três eminentes ministros votaram no sentido da inconstitucionalidade do

art. 3º, VII, da Lei n° 8.009/90, a saber, Eros Grau, Carlos Brito e Celso de Mello. Ademais, há

recentes precedentes do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, prolatados pela

Sexta Câmara Cível, a exemplo da Apelação Cível nº 2008.001.02173 e do Agravo de

Instrumento nº 2008.002.13467, também pela inconstitucionalidade.

Não obstante, a matéria se encontra pacificada nos Tribunais Superiores e já foi, até

mesmo, objeto de súmula do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por meio do

enunciado nº 63 do TJ/RJ, segundo o qual "cabe a incidência de penhora sobre imóvel único do

fiador de contrato de locação, Lei nº 8.009/90 (art. 3º, VII) e Lei nº 8.245/91”.

De fato, o entendimento no sentido da constitucionalidade da penhora do bem de família

do fiador em contrato de locação passou a ser adotado pelos Tribunais de Justiça dos Estados e

vem predominando até o presente momento, mas com o qual não concordamos. Confira-se o

porquê.

3- DO DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA

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O ponto nodal da discussão reside na colisão entre direitos fundamentais, que

correspondem ao conjunto de direitos subjetivos institucionalmente reconhecidos e positivados

na Constituição de determinado Estado, essenciais para que o indivíduo viva com dignidade.

Consoante doutrina constitucionalista contemporânea, os direitos fundamentais revelam

uma dúplice dimensão ou perspectiva, na medida em que podem ser considerados tanto como

direitos subjetivos individuais (dimensão subjetiva), quanto elementos objetivos fundamentais da

sociedade (dimensão objetiva).

Os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos individuais, relacionam-se à

possibilidade que tem o seu titular de exercer judicialmente seu direito a ações negativas ou

positivas do Estado e de particulares, as quais foram outorgadas pelas normas consagradoras do

direito fundamental em questão. Desta feita, a dimensão subjetiva faz-se presente tanto nos

direitos de defesa quanto nos direitos a prestações, dentre os quais se enquadram os direitos

sociais e, por conseguinte, o direito fundamental à moradia.

Por sua vez, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais se refere (i) ao caráter de

normas de competência negativa para os poderes públicos, ao qual se contrapõe a acepção do

direito fundamental como direito subjetivo de defesa do indivíduo contra o Estado; (ii) à

utilização dos direitos fundamentais como critério de interpretação e configuração do

ordenamento jurídico, que corresponde ao efeito irradiante dos direitos fundamentais sobre todo o

direito infraconstitucional; e (iii) ao dever estatal positivo de tutela dos direitos fundamentais.

Além disso, é corriqueira a classificação dos direitos fundamentais em “gerações”. Tal

expressão conduz à equívoca noção de que cada classe teria sucedido a anterior, de sorte que se

apresenta mais técnico tratá-las como categorias ou espécies de direitos fundamentais. No

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entanto, feita a devida ressalva, não há razão para deixar de utilizar a terminologia consagrada

pelo uso.

Assim é que se reconhecem (i) direitos fundamentais de primeira geração, também

denominados direitos de defesa ou normas de competência negativa; (ii) direitos fundamentais de

segunda geração, igualmente denominados direitos a prestações ou direitos sociais, econômicos e

culturais; e (iii) direitos fundamentais de terceira geração ou direitos difusos e coletivos. A

doutrina costuma relacionar as três gerações de direitos fundamentais com o lema da revolução

francesa de liberdade, igualdade e fraternidade, respectivamente.

Os direitos fundamentais de segunda geração surgem com a evolução do Estado de

Direito de modelo liberal-burguês para o Estado Democrático e Social de Direito. Compreendem

os direitos que buscam assegurar uma igualdade real e efetiva (igualdade substancial) e atuam

como instrumentos destinados à redução ou supressão das desigualdades, razão pela qual

pressupõem um comportamento positivo do Estado, mediante a adoção de políticas públicas.

Dentre os direitos fundamentais de segunda geração se encontram o direito à saúde, à educação, à

previdência, à assistência social, ao lazer e o direito à moradia, que configura um direito social a

um mínimo vital.

A moradia, embora se consolide materialmente em um imóvel, não se realiza,

exclusivamente, no direito de propriedade. Ao contrário, trata-se de um valor de conceito amplo

que abarca a segurança de um abrigo digno, salutar e que promova o deleite de seus ocupantes, de

forma a concretizar a existência com dignidade dos indivíduos.

O direito fundamental à moradia adequada emana do princípio da dignidade da pessoa

humana, mas tem como sua essência a igualdade substancial. O respeito à dignidade humana

constitui pressuposto para a efetividade dos direitos humanos fundamentais.

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O princípio da dignidade da pessoa humana, elencado pelo art. 1º da Constituição da

República como fundamento do Estado Democrático de Direito, visa a assegurar ao indivíduo o

mínimo indispensável para uma existência digna, no qual se inclui, inegavelmente, o direito a um

teto que abrigue o indivíduo e sua família das adversidades da vida e lhes conceda um mínimo de

conforto e proteção. Dessa forma, busca-se a tutela do patrimônio mínimo, que configura um

pressuposto de efetividade do direito constitucional à moradia e conduz à concretização do

princípio da igualdade substancial.

O mínimo existencial corresponde a um direito fundamental às condições materiais

básicas da vida e ostenta tanto uma dimensão positiva – relacionada aos direitos prestacionais –

quanto uma dimensão negativa – relativa aos direitos de defesa –, por meio da qual se impede a

prática de atos pelo Estado ou por particulares que subtraiam do indivíduo tais condições

materiais indispensáveis para uma existência digna.

O Egrégio Supremo Tribunal Federal alicerça a constitucionalidade da norma do inciso

VII do art. 3º da Lei n° 8.009/90, dentre outros fundamentos, na proteção ao direito à moradia do

locatário. Ainda que se reconheça a astúcia desse discurso, na realidade, ele busca prestigiar a

garantia do direito de crédito do locador em desprestígio ao direito fundamental à moradia e ao

princípio da dignidade da pessoa humana do fiador.

No entanto, a decisão do STF também realiza uma ponderação entre os direitos

fundamentais à moradia do locatário e do fiador, de sorte que o direito do primeiro prepondera

sobre o segundo. Nesse caso, protege-se o acesso à habitação do locatário, resguardando seu

direito à moradia, em detrimento do direito de propriedade e de moradia do fiador, o que atenta

contra o princípio da isonomia material, uma vez que é dispensado tratamento desigual a

indivíduos que possuem igual direito constitucional à moradia.

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Com efeito, o princípio da isonomia pode ser analisado em seu duplo aspecto: igualdade

formal e igualdade material ou substancial. A igualdade não deve ser observada apenas como a

eqüidade de todos perante a lei, introduzida como direito fundamental de primeira geração, mas,

sobretudo, como forma tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de

sua desigualdade, máxima que surgiu com o reconhecimento do direito social, de segunda

geração.

Ressalte-se que o locatário inadimplente, na hipótese de também ser proprietário de outro

imóvel, tem o seu bem resguardado pela impenhorabilidade do bem de família do devedor,

prevista no art. 1º da Lei n° 8.009/90, ainda que – em exemplo dado pelo ministro Eros Grau –

descumpra sua obrigação de pagar os aluguéis, no intuito de poupar para pagar prestações

devidas em razão da aquisição da casa própria. Afigura-se, pois, incontroversa a existência de

manifesta violação ao princípio da isonomia substancial, haja vista a desigualdade de tratamento

dispensado ao devedor principal (locatário-afiançado) e o fiador (mero responsável).

Além disso, sendo o contrato de fiança de natureza acessória, o fiador deveria possuir os

mesmos benefícios do credor do contrato principal, na eventualidade de exercer seu direito de

regresso, o que, todavia, não acontece. Enquanto o locador pode executar o singular imóvel

residencial do fiador que, em regra, apenas possui responsabilidade subsidiária, este, ao exercer

seu direito de regresso em face do locatário, devedor principal, não pode penhorar seu único bem

imóvel, em razão da impenhorabilidade do bem de família deste, pois se sub-roga nos direitos do

locador. Tal situação, de certo modo, inviabiliza que o fiador atue regressivamente, infringindo-

se, mais uma vez, o princípio constitucional da isonomia.

A transgressão ao princípio constitucional da isonomia se torna ainda mais evidente

quando se compara a situação do fiador com a do locador ou investidor do ramo imobiliário. Isso

porque, com vistas a fornecer garantias ao locador, o legislador passou a admitir a penhora do

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bem de família do fiador que, frise-se, figura apenas como responsável patrimonial e não como

devedor.

Não obstante, enquanto o fiador sofre a execução do imóvel que lhe serve de abrigo e de

sua família, para satisfazer o direito de crédito do locador, este continua residindo tranqüilamente

no imóvel de sua propriedade, permanecendo o bem locado em seu acervo patrimonial, podendo

ser objeto de nova locação. O maior prejuízo que o locador pode sofrer consiste na redução ou

perda do lucro resultante do investimento realizado.

Portanto, impende reconhecer a falha ínsita ao primeiro argumento apresentado para

defender a constitucionalidade do art. 3º, VII, da Lei n° 8.009/90, uma vez que o direito

fundamental à moradia do locatário não pode ser visto de forma isolada no ordenamento jurídico,

bem como não pode se sobrepor ao mesmo direito constitucionalmente assegurado ao fiador. Tal

raciocínio privilegia a proteção daquele que tem o dever e desprestigia aquele que só assumiu a

responsabilidade por liberalidade, o que importa em afronta direta ao princípio da isonomia

substancial.

4- DA AUTONOMIA PRIVADA

Outro dos argumentos apresentados por eminentes ministros do Egrégio Supremo

Tribunal Federal, para a recepção do art. 3º, VII, da Lei n° 8.009/90, é a vinculação do fiador aos

ônus resultantes de sua livre manifestação de vontade de contratar, como expressão dos

princípios da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda, ou princípio da força obrigatória

dos contratos.

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Com a devida vênia, entende-se que tal argumento é, de plano, indefensável pelos

mesmos fundamentos empregados para rechaçar a tese da proteção do direito à moradia do

locatário, a saber, violação ao princípio constitucional da isonomia substancial.

Consoante entendimento do STF, o fiador, que figura como mero responsável do débito

do locatário, vincula-se ao cumprimento da obrigação, podendo sofrer a perda de seu bem de

família, simplesmente porque teria manifestado livremente a sua vontade de contratar e, por

conseguinte, deve se sujeitar aos ônus resultantes da contratação.

A perplexidade que emana dessa argumentação é que o locatário, assim como o fiador,

também celebrou voluntariamente o contrato de locação, exercendo a sua liberdade contratual e

assumindo a obrigação de arcar com o pagamento dos aluguéis. No entanto, diversamente do

fiador, não poderá sofrer a perda de seu bem de família, se inadimplir a sua obrigação. Ora, se

ambos contrataram de forma livre, porque somente o fiador acaba se vinculando aos ônus

resultantes de sua livre manifestação de vontade de contratar se, na verdade, o locatário é quem

figura como devedor principal da obrigação?

Evidencia-se, pois, que o argumento da autonomia da vontade do fiador apresenta,

também, uma clara violação ao princípio da igualdade substancial, razão pela qual deve ser

rejeitado. Não obstante, este não é o motivo basilar pelo qual a tese da vinculação do fiador aos

ônus resultantes de sua livre manifestação de vontade de contratar não merece prosperar, como

será demonstrado a seguir.

É cediço que a autonomia privada, outrora princípio regedor das relações jurídicas

privadas, teve sua autoridade limitada pelo denominado dirigismo contratual, sendo ainda mais

atenuada com o processo de constitucionalização do Direito Civil. A preponderância da

autonomia da vontade somente pode ser observada à luz dos parâmetros do ultrapassado modelo

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individual liberal do direito civil, que possuía como pressuposto lógico a igualdade meramente

formal.

Com a introdução dos conceitos de intervencionismo e dirigismo contratual e, sobretudo,

com a evolução da doutrina civil-constitucionalista, o Direito se despiu do caráter exclusivamente

individualista para conjugar o interesse individual com o interesse da coletividade. Assim,

passaram a preponderar princípios de maior cunho social e que apregoam valores constitucionais,

como os princípios da função social dos contratos, da socialidade, da dignidade da pessoa

humana e da igualdade substancial.

Com efeito, a função social é uma condicionante imposta à liberdade contratual. É nesta

ótica que o art. 421 do novo Código Civil determina que a liberdade de contratar deve ser

exercida “em razão e nos limites da função social do contrato”.

Nesse sentido, aliás, proclama o enunciado nº 24 do Conselho da Justiça Federal,

elaborado na I Jornada de Direito Civil, segundo o qual “a função social do contrato, prevista no

art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou

reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse

individual relativo à dignidade da pessoa humana”.

A noção de função social convoca o intérprete a buscar em valores sociais novos

horizontes de aplicação dos clássicos princípios orientadores do direito dos contratos. Dessa

forma, além da liberdade individual, passam a integrar a axiologia contratual a justiça, a

igualdade, a solidariedade, e demais valores que, sob a visão civil-constitucional, são essenciais à

tutela da dignidade humana no âmbito da ordem econômica.

Da mesma forma, o princípio da socialidade reflete a preponderância dos valores

coletivos sobre os individuais, sem prejuízo, porém, do valor fundamental da pessoa humana.

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Assim, com a evolução do Direito Civil, o princípio da autonomia privada acaba

sucumbindo perante os princípios da função social dos contratos, da dignidade da pessoa humana,

da socialidade e ao direito fundamental à moradia, uma vez que o indivíduo somente possuirá

uma vida digna se dispuser de um teto que abrigue e proteja sua família, de modo que nem

mesmo sua vontade manifestada em momento anterior pode afastar esse essencial grau de

proteção.

O instituto do bem de família, protegido pelos arts. 1711 a 1722 do CC/02 e pela Lei n°

8009/90, constitui um clássico exemplo de tutela da garantia do patrimônio mínimo e do direito

fundamental à moradia. Com efeito, o direito de propriedade, protegido pelo instituto do bem de

família, configura o instrumento de realização de direitos sociais do indivíduo.

Pode ser traçado um paralelo entre o instituto do bem de família e o disposto no art. 548

do Código Civil de 2002 que, ao considerar nula a doação universal, busca a tutela do patrimônio

mínimo do indivíduo e a realização do princípio da dignidade da pessoa humana. Em ambos os

casos, pretende-se evitar a redução do indivíduo ao estado de miserabilidade que comprometa sua

subsistência e a mínima dignidade.

Tais exemplos demonstram que a releitura das normas de direito privado à luz da

Constituição-Cidadã resultou em forte tendência à adoção do fenômeno denominado

despatrimonialização do Direito Civil. Isso porque a Constituição da República se encontra mais

voltada para a proteção da dignidade humana em relação ao patrimônio, ou seja, preponderam na

Constituição questões existenciais e personalistas em detrimento de questões patrimoniais.

Diante desse contexto, a norma que autoriza a penhora do único bem imóvel, bem de

família, do fiador representa um verdadeiro anacronismo no hodierno Direito Civil brasileiro que

busca, sob o prisma constitucional, a proteção do indivíduo em detrimento da patrimonialização

do direito. Ora, de um lado, o ordenamento jurídico proíbe a doação de todos os bens do

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indivíduo, com vistas à proteção de seu patrimônio mínimo, concretização do direito fundamental

à moradia e em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana; de outro, autoriza a penhora

do único bem imóvel do fiador, suprimindo-lhe o direito constitucional à moradia e a uma

existência digna, bem como o reduzindo a uma situação de miserabilidade.

Evidencia-se, pois, que, no atual cenário do Direito Civil-Constitucional, não há mais

espaço para normas que somente priorizem o direito de crédito, de natureza essencialmente

patrimonial, com base na autonomia da vontade das partes. Tal visão unilateral dos princípios

informadores dos contratos pode consistir em vilipêndio de um direito existencial, como o direito

constitucional à moradia.

Ademais, no contrato de fiança locatícia, o fiador sequer exerce com plenitude a sua

autonomia privada, visto que a livre manifestação de vontade de contratar consiste não somente

na liberdade de aderir ou não ao contrato, mas, sobretudo, na liberdade de discussão das cláusulas

contratuais. Sendo a fiança locatícia uma modalidade contratual, em regra, de caráter adesivo ou

standard, não confere ao fiador – que é o contratante mais fraco – qualquer possibilidade de

discutir suas cláusulas contratuais que, em geral, são extremamente restritivas de seus direitos e

lhe impõem condições, excessivamente, onerosas e desvantajosas, de que são exemplos: (i)

renúncia ao benefício de ordem; (ii) assunção da responsabilidade até a entrega das chaves,

dentre outras.

Acrescenta-se, ainda, o fato de que, no atual contexto social, na grande maioria das vezes,

o fiador é pessoa juridicamente hipossuficiente e pouco ou nada letrada, que assume a posição de

garantidor, desconhecendo a possibilidade de seu único bem imóvel ser objeto de penhora, com

vistas ao pagamento de alugueres do locatário-devedor inadimplente. Com efeito, a realidade

social brasileira demonstra que mais de um terço da população é composta por analfabetos ou

analfabetos funcionais que, por conseguinte, não têm compreensão do resultado prático de seus

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atos. A situação é ainda mais agravada porque a imensa maioria dos contratos de locação sequer

prevê uma expressa indicação do imóvel do fiador como garantia, carecendo de transparência o

negócio jurídico.

O contrato de fiança locatícia resulta, portanto, em flagrante desequilíbrio contratual,

sendo o fiador a parte mais prejudicada, pois realiza o negócio jurídico por um ato de pura

liberalidade, decorrente, em sua maioria, da existência de laços de amizade ou parentesco com a

pessoa do afiançado, e ainda se submete ao risco de sofrer a penhora e execução de seu bem de

família, no caso de eventual inadimplência do locatário-devedor.

À guisa de conclusão parcial, cumpre deduzir que o argumento da vinculação do fiador

aos ônus de sua manifestação de vontade de contratar colide com os princípios regedores do atual

ordenamento jurídico pátrio, bem como vai de encontro à garantia do mínimo existencial do

fiador, porque (i) o princípio da autonomia da vontade também é aplicável ao locatário, embora

este tenha resguardada a tutela ao seu bem de família, do que resulta manifesta transgressão ao

princípio da igualdade substancial; (ii) há frontal violação aos princípios informadores do Direito

Civil contratual da função social do contrato e da socialidade; e (iii) a manifestação da autonomia

da vontade do fiador não é plena, uma vez que tal contrato acessório possui a natureza de

contrato de adesão, não conferindo a este o direito de discutir todas as condições do ajuste.

5- DO EQUILÍBRIO DO MERCADO IMOBILIÁRIO

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O fundamento decisivo para a declaração de constitucionalidade do art. 3°, VII, da Lei n°

8.009/90 pelo Supremo Tribunal Federal foi, indubitavelmente, a preservação do equilíbrio do

mercado imobiliário.

O pleno do STF embasou tal argumento, fundamentalmente, em questões de política

imobiliária, no intuito de reduzir a dificuldade de acesso ao mercado de locação predial por parte

dos candidatos a locatários, uma vez que um dos fatores mais agudos de retração se relaciona à

ausência ou insuficiência de garantias contratuais eficientes e de baixo custo exigíveis pelos

locadores. Em verdade, a decisão pela constitucionalidade da penhora do bem de família do

fiador teve como escopo primordial a política regulatória do mercado de locações prediais

urbanas.

Isso porque a impenhorabilidade do bem de família do fiador dificulta, ainda mais, o

acesso ao mercado de locação predial, uma vez que o pretenso locatário terá que encontrar algum

parente ou amigo que assuma a responsabilidade da dívida por ele contraída – o que, por si só, já

configura uma árdua tarefa – e, sobretudo, que seja proprietário de mais de um imóvel.

O STF defende a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em

benefício da ampla classe de pessoas interessadas na locação de imóveis residenciais, haja vista

ainda não terem realizado o sonho da casa própria. Não percebe, todavia, que tal medida não se

afigura eficaz para a solução do problema da crise do mercado imobiliário, gerando um

verdadeiro ciclo vicioso. Com efeito, no intuito de conceder o direito à habitação aos pretensos

locatários, autoriza-se a execução do bem de família do fiador que, uma vez desprovido de seu

único imóvel, passa a engrossar a fila dos candidatos à locação predial.

Não é só. O argumento da maioria dos ministros do STF de que a impenhorabilidade do

bem de família do fiador acarretará grave impacto no mercado das locações prediais não tem o

19

poder de afastar a aplicação de preceitos constitucionais, sobretudo o princípio da dignidade da

pessoa humana e o direito fundamental à moradia.

A solução para a crise do mercado imobiliário não pode esbarrar nos direitos

fundamentais dos indivíduos, sob pena de se deparar com a inconcebível situação concreta, que

ora se apresenta: uma senhora idosa, de 82 anos de idade, assistida pela Defensoria Pública,

sofreu a penhora e execução de seu único imóvel – uma humilde casinha no subúrbio do Rio de

Janeiro – em virtude da assunção de responsabilidade, como fiadora, pelos eventuais débitos

decorrentes de contrato de locação celebrado por um sobrinho.

O STF, no papel de guardião da Constituição da República e, por conseguinte, dos

direitos e garantias fundamentais por ela assegurados, não pode admitir que situações como essa

se perpetuem. Vislumbrada a possibilidade de violação do direito constitucional à moradia de um

único cidadão, deve-se buscar outra solução para a retração do mercado de locação predial, que

se afigure menos degradante ao ser humano do que a perda do seu patrimônio mínimo.

A incursão do Poder Judiciário na política habitacional do Estado deve ser admitida com

ressalvas. De um lado, o direito à moradia exige do Estado, dentro dos limites orçamentários e

regulatórios a que está sujeito, a adoção de políticas públicas tendentes à maximização do acesso

à moradia. De outro, não cumpre ao Poder Judiciário se imiscuir em questões de políticas

públicas econômicas, sob pena de assumir o inaceitável papel de Administrador Público.

Incumbe, pois, ao Poder Executivo a adoção das medidas adequadas à implementação das

políticas públicas necessárias para que seja assegurado a cada cidadão o direito fundamental à

moradia.

Contudo, devem ser encontradas alternativas mais apropriadas à preservação do equilíbrio

do mercado imobiliário do que a possibilidade de penhora do bem de família do fiador, como, por

exemplo, a viabilização do acesso dos indivíduos a financiamentos bancários para a construção

20

da habitação própria. Outra hipótese seria o investimento no seguro-fiança, de forma a torná-lo

mais atrativo (menos oneroso) para o locatário e protetivo ao direito de crédito do locador, uma

vez que, inegavelmente, configura modalidade mais democrática de garantia.

Ressalte-se que o ministro Cezar Peluso, relator do Recurso Extraordinário n°

407.688/SP, de 08/02/2006, paradigma na presente matéria, reconhece, em seu voto, que são

“várias, se não ilimitadas, as modalidades ou formas pelas quais o Estado pode, definindo-lhe o

objeto ou o conteúdo das prestações possíveis, concretizar condições materiais de exercício do

direito social à moradia”.

Embora o Poder Judiciário não deva se imiscuir em questões de políticas públicas,

também não pode fechar os olhos para a adoção de medidas, pelos demais poderes do Estado,

violadoras de direitos e garantias fundamentais do indivíduo, sobretudo do princípio da dignidade

da pessoa humana. É dever dos magistrados controlar a realização dos direitos sociais pelo

governo, bem como, caso seja necessário, complementá-la e corrigi-la.

O princípio da separação dos poderes (art. 2º da Constituição da República) somente será

concretizado de maneira ideal se instituída uma espécie de diálogo institucional ou constitucional

entre os poderes estatais. Desta feita, não compete ao Poder Judiciário determinar, por exemplo, a

construção gratuita de habitações, com vistas a realizar o direito constitucional à moradia, porque

estaria interferindo nas decisões estritamente políticas do Poder Executivo. Contudo, o Poder

Judiciário deve realizar o controle de legalidade, objetivo e transparente, da alocação de recursos

públicos por meio das políticas governamentais, questionando-as, sempre que for necessário, e

atuando em conjunto com a atividade investigatória do Ministério Público.

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6- DA COLISÃO ENTRE O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA E O DIREITO

FUNDAMENTAL À MORADIA

O quarto principal fundamento utilizado pelo Supremo Tribunal Federal para decidir pela

constitucionalidade do art. 3°, VII, da Lei n° 8.009/90 se relaciona à ausência de

incompatibilidade entre a exceção à impenhorabilidade do bem de família, prevista no referido

dispositivo legal, e o direito social à moradia.

Com efeito, o relator do RE 407.688, de 08/02/2006, ministro Cezar Peluso, mediante

juízo de ponderação, sustenta esse ponto de vista sob o fundamento de que os direitos

fundamentais não possuem caráter absoluto e, por conseguinte, em determinadas situações, nada

obsta que um direito fundamental ceda o passo em prol da afirmação de outro, também em jogo

numa relação jurídica concreta. Como a decisão de prestar fiança configura expressão da

liberdade de contratação, o cidadão pode pôr em risco, por livre e espontânea vontade, um direito

fundamental social que lhe é assegurado pela Constituição.

Não obstante a autoridade do argumento, a existência de incompatibilidade com a ordem

constitucional é manifesta. Com efeito, a norma do art. 3°, VII, da Lei n° 8.009/90 (i) não se

sustenta diante do crivo da proporcionalidade a que se submete a ponderação dos valores

constitucionais incidentes no caso; (ii) atinge o núcleo intangível do direito à moradia; e (iii)

configura um retrocesso social.

Em primeiro lugar, cumpre asseverar que todas as normas infraconstitucionais buscam seu

fundamento de validade na Constituição da República e devem com ela ser compatíveis, sob pena

de nulidade ou não recepção.

22

Assim, considerando-se que o direito fundamental à moradia possui previsão

constitucional (art. 6º da CRFB), trata-se de norma hierarquicamente superior à regra

infraconstitucional que prevê a possibilidade de penhora do bem de família do fiador de relação

locatícia (Lei nº 8.009/90), de sorte que a evidente contradição entre elas resulta na irrefutável

invalidade desta última.

Contudo, o objeto primordial deste capítulo não reside na mera antinomia entre a regra

legal e a Lei Maior, mas no conflito entre valores albergados em princípios constitucionais. Essas

normas, a despeito de possuírem idêntica hierarquia normativa ou jurídica, apresentam

diversificada hierarquia axiológica ou valorativa, figurando os direitos fundamentais no topo

dessa cadeia axiológica e, por conseguinte, como as normas mais relevantes de todo o

ordenamento jurídico.

Pelo princípio da unidade da constituição, sendo o ordenamento jurídico um conjunto de

normas que aspira harmonia e coerência, o intérprete deve, por meio de uma interpretação

sistemática, buscar a harmonização das tensões e contradições entre as normas constitucionais, o

que normalmente é realizado pela aplicação do raciocínio silogístico da subsunção ou pela

conhecida técnica da ponderação de interesses.

Nas situações que envolvam colisões entre princípios ou direitos fundamentais, a

aplicação da subsunção se afigura insuficiente, uma vez que existem normas de igual hierarquia

indicando soluções distintas, embora não seja possível o aproveitamento de apenas uma delas, em

função do princípio da unidade da Constituição. Como tal princípio nega a existência de

hierarquia jurídica entre as normas constitucionais, deve-se assegurar a aplicação harmônica das

normas em colisão, não sendo possível o descarte de uma delas.

Nesses casos, necessária é, pois, a ponderação de interesses ou valores, consistente em

uma técnica de decisão jurídica aplicável para a solução de casos complexos, em relação aos

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quais o raciocínio silogístico se mostra insuficiente. Por isso, deve ser utilizada a técnica da

ponderação para que se decida acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma

inserta no inciso VII do art. 3º da Lei n° 8.009/90, haja vista a dificuldade de compatibilização

entre a tutela efetiva do direito fundamental à moradia e a preservação da autonomia privada da

pessoa humana, sendo que ambas as normas gozam de proteção constitucional, nos artigos 6º e

170 da Carta Magna, respectivamente.

A técnica da ponderação é aplicada por meio de três etapas: (i) identificação das normas

relevantes para a solução do caso, bem como das eventuais colisões existentes entre elas; (ii)

seleção dos fatos relevantes, examinando a sua interação com os elementos normativos; (iii)

atribuição de pesos às normas em conflito, a fim de determinar o peso específico das normas no

caso concreto e, por conseguinte, quais delas devem preponderar.

Todo esse processo intelectivo é norteado pelos princípios da razoabilidade e

proporcionalidade, com vistas a promover a máxima concordância prática entre os direitos em

disputa, preservando-se o núcleo essencial destes direitos.

O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade – termos aqui empregados como

sinônimos – é fruto da conjugação da doutrina norte-americana do devido processo legal

substantivo com a doutrina alemã da proporcionalidade. Tal princípio busca a imposição de

limites a leis ou atos administrativos que restrinjam direitos ou garantias fundamentais, tendo

sido utilizado como instrumento de ponderação entre valores constitucionais contrapostos, dentre

os quais se encontram as colisões de direitos fundamentais.

Barroso (2009) decompõe o princípio da proporcionalidade em três subprincípios:

adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. O subprincípio da adequação

consiste na idoneidade da medida para produzir o resultado visado, isto é, a medida adotada pelo

legislador/administrador deve ser apta a concretizar a finalidade a qual se destina.

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Por sua vez, o subprincípio da necessidade impõe a adoção do meio menos gravoso entre

os igualmente aptos para o atingimento da mesma finalidade, ou seja, o que menos restringe o

direito fundamental colidente.

Já o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito determina a existência de uma

relação de custo-benefício entre o que se perde e o que se ganha com a adoção da medida. Vale

dizer, deve ser realizada uma ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para

examinar se a medida é vantajosa.

Por meio de uma análise do princípio da razoabilidade, chega-se à inevitável conclusão de

que a norma do art. 3º, VII, da Lei n° 8.009/90, embora aparentemente seja adequada para o fim

almejado, uma vez que, de certa forma, amplia-se a garantia do locador e, por conseguinte,

facilita-se o acesso ao mercado imobiliário, consiste em medida desnecessária e desproporcional.

A desnecessidade da medida se relaciona ao fato de que a penhora do bem de família do

fiador, a toda evidência, não se enquadra como o meio menos gravoso para se alcançar a

finalidade almejada, qual seja, a facilitação do acesso à habitação para a ampla classe de pessoas

não proprietárias de bem imóvel e interessadas na locação. A caução e o seguro-fiança, por

exemplo, apresentam-se como meios alternativos viáveis e muito menos lesivos ao patrimônio do

fiador, uma vez que a este será assegurada uma vida digna, sem a possibilidade de ser reduzido

ao estado de miserabilidade.

A medida adotada pelo legislador também não atende ao requisito da proporcionalidade

em sentido estrito, visto que o que se perde – direito fundamental à moradia, ao patrimônio

mínimo, dignidade da pessoa humana, direito de propriedade, violação aos princípios da

isonomia e da função social do contrato – apresenta uma relevância inegavelmente superior ao

que se ganha – maior garantia ao direito de crédito do locador e, consequentemente, a facilitação

do acesso ao mercado de locações prediais urbanas.

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Ademais, conforme mencionado, busca-se, por meio da técnica da ponderação, a

otimização entre os direitos colidentes, preservando-se o núcleo essencial deles e almejando dar

concretude ao valor máximo do ordenamento jurídico, que é a dignidade da pessoa humana.

Assim, quando da aplicação da ponderação, nenhum dos direitos fundamentais em conflito pode

ser extirpado, mas apenas atenuado, a fim de que prepondere aquele direito que possui maior

peso específico no caso concreto.

Pelo princípio da proteção do núcleo essencial, qualquer restrição legislativa sobre o

núcleo intangível de um direito fundamental deve ser considerada inconstitucional. Assim,

diante de tal princípio, a norma do inciso VII do art. 3º da Lei nº 8.009/90 é manifestamente

inconstitucional, pois quando o legislador excepciona a regra da impenhorabilidade do bem de

família do fiador – garantidor em contrato de locação – está adentrando no núcleo intangível do

direito fundamental à moradia do fiador, que é o seu patrimônio mínimo.

Além disso, por meio do referido dispositivo legal, o legislador atribui maior peso

específico ao direito fundamental ao crédito em detrimento do direito fundamental à moradia e do

princípio basilar do Estado Democrático de Direito, que é o princípio da dignidade da pessoa

humana, por questões meramente econômicas, de política imobiliária.

Por fim, a exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família, na hipótese de fiança

prestada em contrato de locação, configura um retrocesso social, em função do qual deve ser

repelida. A reserva de justiça outorgada pela Constituição a todo o ordenamento jurídico proíbe a

supressão de uma norma infraconstitucional concretizadora de uma norma constitucional de

eficácia limitada, de modo a garantir a plena fruição dos direitos fundamentais sociais. O

princípio da vedação ao retrocesso visa, pois, conferir maior eficácia aos direitos sociais

prestacionais, como é o caso do direito fundamental à moradia.

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Nessa linha, a partir do momento em que o legislador, por meio da Lei n° 8.009/90,

instituiu a impenhorabilidade do bem de família do devedor, de forma a resguardar o direito

social à moradia, não pode, pura e simplesmente, suprimi-la para o fiador em contrato de locação,

sob pena de violação ao princípio da proibição de retrocesso social.

7- CONCLUSÃO

Depreende-se de todo o exposto, de forma cristalina, a inconstitucionalidade do inciso

VII, do art. 3º da Lei n° 8009/90, haja vista o fato de violar diversos princípios e valores

esculpidos na Constituição da República, como os princípios da dignidade da pessoa humana, da

isonomia, da vedação do retrocesso e da função social dos contratos, bem como por infringir

direitos fundamentais do indivíduo, a exemplo dos direitos à moradia, à vida digna, ao patrimônio

mínimo ou mínimo existencial.

Há posicionamento doutrinário – do qual se diverge – no sentido da inconstitucionalidade

condicionada da norma do art. 3º, VII, da Lei n° 8.009/90, como sustenta Alice Carli (2009, p.

165), para quem a validade do referido dispositivo legal encontra-se condicionada “à existência

de um bem excedente do fiador, isto é, um bem que esteja fora do espectro de seu patrimônio

mínimo, um bem que não lhe sirva de abrigo, como é o caso do bem de família legal”. Entretanto,

não há que se discutir a constitucionalidade da penhora de imóvel do fiador que não lhe serve de

moradia e, por conseguinte, não integra o seu mínimo existencial. O denominado bem exógeno

pode ser penhorado e executado pelo locador-credor, uma vez que não se trata de bem de família.

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A inconstitucionalidade da norma reside exatamente na possibilidade de penhora do bem

de família do fiador para o pagamento de dívidas de seu afiançado. Assim, se outro bem do fiador

– diverso do bem de família – é objeto de penhora, inexiste, realmente, qualquer

inconstitucionalidade, pois não estará sendo violado o direito fundamental à moradia do fiador

nem mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, a norma do art. 3º, VII,

da Lei n° 8.009/90, que excepciona a regra da impenhorabilidade do bem de família para admitir

a penhora do único imóvel do fiador, em virtude de obrigação decorrente de fiança concedida em

contrato de locação, deve ser considerada inconstitucional.

Consoante a visão mais humanista e personalista da doutrina do direito civil, observada

sob o prisma constitucional, espera-se que o Poder Legislativo revogue a norma do inciso VII do

art. 3º da Lei n° 8.009/90, ou que o Supremo Tribunal Federal reveja, de forma acurada, sua atual

posição, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal e, por

conseguinte, a sua nulidade, retirando-o do ordenamento jurídico pátrio.

Considerar constitucional a norma do art. 3º, VII, da Lei n° 8.009/90 é admitir a

prevalência do direito de crédito do locador em detrimento dos direitos fundamentais à moradia e

a uma vida digna, do fiador. Tais direitos, todavia, são axiologicamente distintos e, sob a ótica da

constitucionalização do Direito Civil e da despatrimonialização do direito, o direito de crédito do

locador demonstra evidente fragilidade. Ademais, a impenhorabilidade do bem de família do

fiador, como garantia do direito ao patrimônio mínimo, não invalida o direito de crédito do

locador, mas apenas lhe impõe contornos.

Ressalte-se que a tese ora defendida, embora ainda minoritária na jurisprudência, também

tem sido proclamada por doutrinadores de escol, propagadores da doutrina civil-

constitucionalista, como Cristiano Chaves de Farias, Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Edson Fachin,

Luiz Paulo Vieira de Carvalho, entre outros.

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