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REJANE TRINDADE RODRIGUES ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM SANT’ANNA DO PARANAHYBA, SUL DE MATO GROSSO (1828-1888) DOURADOS 2017

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REJANE TRINDADE RODRIGUES

ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM SANT’ANNA DO

PARANAHYBA, SUL DE MATO GROSSO (1828-1888)

DOURADOS – 2017

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REJANE TRINDADE RODRIGUES

ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM SANT’ANNA DO

PARANAHYBA, SUL DE MATO GROSSO (1828-1888)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História da Faculdade de Ciências

Humanas da Universidade Federal da Grande

Dourados (UFGD) como parte dos requisitos para a

obtenção do título de Mestre em História.

Área de concentração: História, Região e

Identidades.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Maria Celma Borges.

DOURADOS – 2017

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

R696e Rodrigues, Rejane Trindade.

Escravidão e liberdade em Sant‟Anna do Paranahyba, sul de

Mato Grosso. / Rejane Trindade Rodrigues. – Dourados, MS:

UFGD, 2017.

103f.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Celma Borges.

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da

Grande Dourados.

1. Sant‟Anna do Paranahyba. 2. Liberdade. 3.

Documentos Oficiais. 4. Escravizados. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central – UFGD.

©Todos os direitos reservados. Permitido a publicação parcial desde que citada a

fonte.

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REJANE TRINDADE RODRIGUES

ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM SANT’ANNA DO

PARANAHYBA, SUL DE MATO GROSSO (1828-1888)

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD

Aprovada em______de______________de________.

BANCA EXAMINADORA:

Presidente e orientador:

Maria Celma Borges (Dr.ª, UFGD) ___________________________________________

2º Examinador:

Sedeval Nardoque (Dr., UFMS) ______________________________________________

3º Examinador:

Paulo Roberto Cimó Queiroz (Dr., UFGD) _____________________________________

Membro suplente:

Eudes Fernando Leite (Dr., UFGD) ___________________________________________

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A memória e luta da minha avó, Maria

Aparecida de Amorim Rodrigues.

Ao Lucas Manuel, por toda doçura no olhar.

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AGRADECIMENTOS

Escolhi duas palavras para sintetizar o período de mestrado: gratidão e desafio.

Sem dúvidas elas permearam todo o processo que resultaram este trabalho. Com certeza

estas duas palavras fazem todo o sentido nesta dissertação orientada pela professora

Maria Celma Borges. Ela sabe, como ninguém, desafiar-nos em cada propositura de

leituras e, em meio a tantos caberia e explique, desafia-nos em cada “pito” também a

falar da vida, teorias e sujeitos. Resta agradecer infinitamente cada momento em que a

professora acreditou mais em mim do que eu mesma. Agradecer a humanidade que a

professora enxerga nas relações históricas e sociais. A busca por uma vida que alie a

teoria e a prática seria mais difícil se a professora Celma não estivesse em minha vida,

tamanha é a admiração, eterna gratidão...

O trajeto não seria o mesmo se não fosse a companhia da Mel. O percurso foi

desafiador. Foram dias de chuvas e muitos buracos na estrada. A rota entre Nova

Andradina e Dourados para as aulas reforçaram muitas coisas e desfizeram tantas

outras. Acredito que foi um desafio conviver com minha vaidade e início de mestrite.

Mel foi sensível em perceber primeiro algumas (talvez muitas) de minhas fraquezas.

A vida é um desafio, ainda mais quando temos que cuidar de outra vida, mas ela

se faz possível em cada refazer. O apoio da minha família foi incondicional: meu pai,

minha tia, meus irmãos, tio Deil e meus avôs, e ao Vinicius que de uma forma ou de

outra se fez presente neste processo de construção da pesquisa. Obrigada.

Durante este processo, devo meus melhores dias aos meus amigos Bruno e

Guilherme, que me receberam num dos momentos mais desafiadores da vida. Não me

questionaram em nenhum momento e mostram, cotidianamente, que o amor é possível

em suas diferenças. Agradeço imensamente ao Guilherme pela paciência, cuidado e

amor pela correção desse texto. Jorge, meu amigo doce, agradeço por todo cuidado

despendido ao Lucas e por me ouvir quando nem eu mesma conseguia. Agradecida

também ao Wesley, a irmandade que a vida acadêmica me presenteou, e ao Didão, o

ariano que amo. Agradeço cafés, músicas, cuidados e amor.

Depois do mestrado, e já suspeitando durante a graduação, fiquei certa de que

títulos são importantes e resultados são almejados, mas que, em meio a tudo isso, as

maiores conquistas são construídas no cotidiano, nos bares, nas esquinas, nos cafés, na

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biblioteca, nas músicas, filmes e series. O importante fica no coração e na memória. O

papel que vai para a gaveta ou para o quadro na parede serve-nos para atualizar o lattes.

Agradeço as amigas brechozeiras e historiadoras Letícia e Cristhiany por

acreditarem em todos os sonhos e caminharem comigo durante esse tempo, escutarem

minhas lamurias e estarem por perto sempre, o espaço Elas por Elas é sem dúvida um

resultado dessa cumplicidade.

A academia é importante, sobretudo em tempos de ódio, de fragilidade política

e econômica. Ter nível superior em um país do qual 14% da população adulta consegue

alcança-lo, déficit devido a inúmeros fatores, o mínimo que devo fazer é reconhecer

meu privilégio. Privilégio que obtive desde o início da graduação. Não temos certezas

dos rumos que o país politicamente irá tomar, chegar até aqui, passando por faculdades

públicas e de qualidade, soa, infelizmente, como privilégio na conjuntura atual. Neste

sentido, os programas de governo que fomentam a pesquisa nacional devem ser

agradecidos pelo comprometimento financeiro aos alunos e professores pesquisadores.

Obrigada. Que tantos outros alunos possam futuramente colocar em seus

agradecimentos o auxílio financeiro recebido.

A pesquisa apresentada é resultado de todos que de alguma forma passaram pela

minha formação acadêmica e humana. Pontuo o agradecimento a todos os professores

que contribuíram para minha formação. Registro meu agradecimento ao Professor

Lourival dos Santos e a Maria Lima pelo comprometimento com a história e os modos

de ensiná-la. A participação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas

(NEABI) contribuiu imensamente em questões pontuais dessa pesquisa.

Gratidão ao professor, Fortunato por todas as manhãs e tardes de descontração e

compreensão, sempre a falar dos astros, da vida e tudo que parecia incompreensível

sobre o universo e sua complexidade se tornava de simples compreensão com sua

leveza. Gratidão

Agradeço aos professores Paulo Cimó e Sedeval Nardoque por terem aceito

participar da banca de qualificação e levantaram questões fundamentais para conclusão

deste trabalho. O professor Cimó, com toda sua humildade e sabedoria me fez repensar

as formas de me colocar no texto. Com as considerações do professor Sedeval foi

possível entender outros espaços da pesquisa em história.

A todos que passaram, que chegaram e a todos que virão: gratidão.

Por fim e pra sempre: abraçar e agradecer.

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Dei um laço no espaço

Pra pegar um pedaço

Do Universo que podemos ver

Com nossos olhos nus

Nossas lentes azuis

Nossos computadores luz

(Caetano Veloso)

Todo que não encontra um tudo

A vagar procura pulsar

Tanto distante que errante

No tocante sereno a silenciar

Desconhecido outrora a lhe completar

Então conhecido

A produzir o insano o presente

Questão de pouca idade

Ao futuro a lucidez

Tempo e polidez

O agora a balbuciar deveras um copo cheio a orar

Maço-descaso-escasso-cansaço...

(Wesley David).

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RESUMO

O objetivo principal desta pesquisa centrou-se na análise da história da liberdade e da

escravidão no contexto do Império (1828-1888), na Província de Mato Grosso,

especialmente em Sant‟Anna do Paranahyba. Todavia, inicialmente foi necessário

abordar os povos originários Cayapó, os caminhos e resistências por eles traçados frente

aos conquistadores do lugar, para em seguida discutir o objeto específico. No referido

recorte temporal, o foco se voltou para a escravidão em Sant‟Anna, a partir do trabalho

com os processos-crimes, evidenciando as formas de resistência em busca pela

liberdade, ao envolver, além dos escravizados, vários sujeitos, como agregados,

camaradas e fazendeiros. Assim, buscou-se compreender como as práticas costumeiras

de liberdade, a exemplo das cartas de alforria, foram vivenciadas, tanto pelo processo de

legalização quanto por outras ações vividas no cotidiano e no extraordinário (crimes,

fugas e etc.) culminando na Lei de 1871, a Lei do Ventre Livre, e na abolição oficial,

em 1888. Os indícios de liberdade e resistência são analisados à luz das práticas dos

agentes sociais, encontradas em diversas fontes como: relatórios de Província,

processos-crimes, correspondências oficiais entre os presidentes da Província e os

poderes locais e as cartas de liberdade; as quais evidenciam experiências tecidas tanto

no cotidiano de Sant‟Anna do Paranahyba e seus arredores, quanto nas ações

extraordinárias.

PALAVRAS-CHAVE: Sant‟Anna do Paranahyba. Liberdade. Documentos Oficiais.

Escravizados

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ABSTRACT

The main objective of this research focused on the analysis of the history of freedom

and slavery in the context of the Empire (1828-1888), in the Province of Mato Grosso,

especially in Sant' Anna do Paranahyba. However, initially it was necessary to approach

the native peoples of Cayapó, the paths and resistances they drew against the conquerors

of the place, and then discuss the specific object. In the mentioned temporal cut, the

focus turned to the slavery in Sant‟ Anna, starting from the work with the criminal

proceedings, evidencing the forms of resistance in search of the freedom, by involving,

besides the enslaved, several subjects, as aggregates, comrades and farmers. Thus, it

was sought to understand how the customary practices of liberty, like the letters of

manumission, were experienced both by the process of legalization and by other actions

lived in the daily and extraordinary (crimes, escapes, etc.) culminating in the Law of

1871, known as "Free Birth Law", and in the official abolition in 1888. The evidence of

this work of freedom and resistance is analyzed in the light of the practices of social

agents, found in various sources such as: Province reports, criminal proceedings,

official correspondence between the presidents of the Province and the local powers and

nevertheless the letters of freedom; which evidence experiences woven both in the daily

life of Sant' Anna do Paranahyba and its surroundings, as well as in extraordinary

actions.

KEYWORDS: Sant‟Anna do Paranahyba. Freedom. Official documents. Enslaved.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS

Ilustração I: Limites da localidade em estudo no contexto de 1850 .............................. 31

Tabela I: Tipologias de documentos na coletânea Como se de ventre livre nascido

fosse(...) ........................................................................................................................... 73

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APMT – Arquivo Público de Mato Grosso (Cuiabá)

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

FUNDECT – Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e

Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul.

UCDB – Universidade Católica Dom Bosco

UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados

UFMS – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

USP – Universidade de São Paulo

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SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS .................................................................. 11

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS .................................................................. 12

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 14

CAPÍTULO I – RESISTÊNCIA DOS CAYAPÓ NAS TERRAS DE SANT’ANNA

DO PARANAHYBA E ARREDORES ........................................................................ 29

1.1. Espaços de resistência dos povos originários Cayapó: estradas e conflitos ............. 30

1.2. Relatórios de Província e os Cayapó no cotidiano e trabalho em Sant‟Anna do

Paranahyba....................................................................................................................... 41

CAPÍTULO II – ESCRAVIDÃO EM SANT’ANNA DO PARANHYBA A

PARTIR DOS PROCESSOS-CRIMES ...................................................................... 49

2.1. Negros/as escravizados/as e os espaços de trabalho e resistência: os limites

documentais ..................................................................................................................... 49

2.2. Mortes e Fugas em busca pela liberdade .................................................................. 58

2.3. Processos-crimes, camaradas e a violência em Sant‟Anna do Paranahyba .............. 63

CAPÍTULO III – “PELOS BONS SERVIÇOS A MIM PRESTADOS”: DAS

PRÁTICAS COSTUMEIRAS À LEGALIDADE DE ALFORRIAR ...................... 68

3.1. “Está livre sob a condição de me servir”: as liberdades condicionais e suas

definições ......................................................................................................................... 68

3.2. “Por agires a mim com ingratidão”: entre revogações e resistências ....................... 76

3.3. A Lei do Ventre Livre e as condições legais da alforria: cartas de liberdade, leis e

processos .......................................................................................................................... 80

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 95

FONTES ......................................................................................................................... 98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 99

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INTRODUÇÃO

Há tempos que os documentos oficiais estão presentes no oficio do historiador.

Todavia, é marcante a definição e meios de utilização destes documentos pelos

historiadores da Escola Metódica. Dito isto, entendemos e utilizamos – como será

explicitado a posteriori – os documentos oficiais em outras perspectivas, mas

acreditamos ser necessário uma reflexão sobre as contribuições metodológicas advindas

do “positivismo1” acerca de tais fontes, as quais influenciaram a historiografia do século

XX.

Na tentativa de anular o cientificismo, a neutralidade e a busca objetiva pela

realidade do passado, as Escolas (BURKE, 1992) posteriores à metódica as relegaram

um papel marginalizado. O modo como era realizado o trabalho com os documentos

pelos historiadores da Escola Metódica era entendido pelos precursores dos Annales,

sobretudo da história problema, como um método a ser superado. Entretanto,

acreditamos, a partir das leituras de Certeau (1982), não ser possível partir de uma

lógica de superação dos processos de construção da narrativa historiográfica, uma vez

que as teorias e métodos respondem, de alguma forma, ao contexto e localidade de

produção, ou seja, a uma necessidade política intrínseca às relações de poder do período

de construção, pois as teorias e métodos possuem uma história cheia de especificidades,

problemáticas e lacunas. Acreditamos que talvez sejam as lacunas, tais como as

especificidades e os problemas, também cabíveis de questionamento.

A Europa no contexto do século XIX, principalmente países como a Alemanha –

em que teve origem a Escola Metódica – e a França – onde a Escola Metódica fora

fortemente difundida – passavam por transformações na ordem social, econômica e

política. Ambos estes países se encontravam em consolidação da Revolução Industrial

(HOBSBAWM, 1996).

De acordo com Reis (2004), a Escola Metódica, neste contexto, sofreu

influências de vários autores, entre eles August Comte, Leopold Von Ranke, Fustel de

Coulanges, Fagnies, dentre outros, em um momento em que se discutiam as

1 Positivismo é utilizado longe de qualquer carga pejorativa cabível de questionamento, que tentamos

fazer ao longo do texto.

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possibilidades da história se tornar uma ciência, devido também ao crescimento das

ciências da natureza.

Obras como Introdution aux études historiques, de Langlois e Seignobos,

demonstraram o rigor e a disciplina que o historiador deveria possuir para a construção

da narrativa, baseando-se em documentos entendidos como herdeiros de realidades

universais. Os documentos eram selecionados com rigor e, devido a “perfeição” da

documentação, muitos historiadores acreditavam que apenas reconstituir as informações

da documentação oficial bastaria para “se ter” reconfigurada a realidade direta e

objetiva em busca do que “realmente aconteceu”.

Reis (2004), ao analisar a Escola Metódica, entende, sobretudo a partir de

Ranke, que os historiadores ligados a essa vertente acreditavam que a história deveria

ser neutra e totalmente imparcial, do mesmo modo que as ciências da natureza. Havia a

extrema valorização do método e a construção da narrativa dependia da meticulosidade

do historiador com os documentos. Neste sentido, entendemos que a principal

contribuição da Escola Metódica2 à historiografia é pensar o método de análise e a

relação do historiador com os documentos como crucial à narrativa. As mudanças

ocasionadas pelos Annales (BLOCH, 2001) são no sentido de se pensar a história como

história problema por meio do questionamento e ampliação na compreensão do que

seriam as fontes3.

Ao pensarmos nas teses sobre o conceito de história de Walter Benjamim

(1987), entendemos que a história desses sujeitos, historicamente evidenciados à

margem, deve ser escovada a contrapelo. É preciso atentar aos indícios, aos detalhes

mais corriqueiros para conseguirmos desprender dos documentos oficiais o discurso e a

vida para além do entendimento das autoridades políticas e judiciais.

Na historiografia do Brasil, os documentos oficiais do Império, em diversas

localidades, foram/são utilizados, sobretudo para a compreensão da vida dos sujeitos

escravizados, de outros pobres e de libertos no século XIX. Pesquisas que objetivam

analisar o cotidiano, as relações de poder e convívio recorrem invariavelmente a esse

tipo de documentação para a construção da narrativa histórica.

2 Cabe ressaltar que o processo descrito não ocorreu de modo linear, ainda que o século XIX esteja

marcado pelo positivismo outras coisas aconteciam em concomitância, como, por exemplo, as produções

de Michelet, Marx, Hegel, entre outros, assim como ainda há/houve, após 1929, produções baseadas na

perspectiva da Escola Metódica. 3 Utilizamos o termo fontes por entendermos a ampliação de possibilidade de indícios utilizados à

construção da história para além de documentos escritos oficiais. Há, a partir dos Annales, outras

possibilidades para se compreender o passado.

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Lara e Mendonça (2006) entendem que, a partir de 1980, diversos pesquisadores

passaram a investigar o passado por meio da análise dos documentos oficiais,

objetivando, sobretudo, compreender a visão escrava da escravidão. De acordo com as

autoras, esses documentos, especialmente os processos-crimes, “tornaram-se fontes

importantes capazes de permitir o acesso ao interior das fazendas e do cotidiano das

relações entre senhores e escravos” (2006, p. 10).

As pesquisas associadas à história social no Brasil – principalmente a partir da

década de 1980 –, ao pensarem em questões acerca do trabalho escravo e das relações

que permeavam e constituíam o universo dessa categoria de trabalho, marcaram a

reviravolta no fazer e pensar a história da escravidão. Uma vez que, de acordo com

Machado (1998), essas novas produções questionaram trabalhos anteriores que

construíram a ideia cristalizada de um sujeito escravo, débil, suscetível e extremamente

submisso à violência dos sistemas de escravidão.

Esta autora entende que os historiadores, desde então, buscavam novas

tendências historiográficas que compreendessem os escravizados como sujeitos dos

processos históricos. De acordo com Machado (1998), para essa abertura às novas

problemáticas e compreensão dos sujeitos históricos, a história social teve fundamental

importância, especialmente no arcabouço teórico, possibilitando subsídios para (re)

pensar os mundos dos escravizados. Nessa perspectiva, os historiadores se depararam

com novos desafios, como o de:

Reavaliar as fontes documentais disponíveis sob uma perspectiva. Se

durante muito tempo a crença na inexistência de fontes adequadas

para a recuperação da escravidão no Brasil desestimulou a pesquisa

documental, hoje os estudiosos redescobrem nos arquivos e cartórios

os instrumentos necessários para o avanço do conhecimento a respeito

da escravidão no Brasil (MACHADO, 1988, p. 114).

Essa redescoberta dos arquivos e das fontes judiciais possibilitou a aproximação

da História com o campo do Direito, compartilhando também da História política. Lara

e Mendonça (2006) consideram que nesse contexto o Direito passou a ser entendido

como produto social, sendo as leis e códigos jurídicos presentes nesse campo resultante

das relações em sociedade, possuindo, portanto, suas especificidades na compreensão

espaço-temporal.

A historiografia brasileira, neste contexto, de acordo com Machado (1998),

passou a ter como preocupação de pesquisa a compreensão da família escrava, a

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reorganização da vida escrava, as relações entre senhores e escravos, bem como o

mundo no contexto do pós-abolição, entre vários outros temas.

Paulatinamente, as noções de princípios jurídicos do direito foram inseridas na

discussão da história social da escravidão. Neste sentido, trabalhos como os de Fausto

(2001), Machado (1988, 1994), Chalhoub (1990), Grinberg (2011), Wissenbach (1990),

Mattos (1998), Slenes (1999) apontam possibilidades metodológicas e definições

teóricas acerca dessa aproximação. Pautados numa discussão acerca do social, os

autores possuem concepções para além das normas e do discurso jurídico.

Preocupados em compreender a concepção dos escravos sobre a escravidão e a

liberdade, esses historiadores conseguiram, por meio da análise dos documentos

oficiais, adentrar as fazendas, ao cotidiano e às relações mais próximas entre senhores,

escravos e demais sujeitos, cada vez com mais frequência:

[...] os aspectos referentes à definição e aplicação das leis, à

composição e funcionamento das instituições judiciárias, à atuação de

profissionais da justiça (advogados, juízes), à definição de doutrinas,

passaram a interessar os historiadores sociais. Mais que uma

investigação sobre as origens e concepções e doutrinas jurídicas,

pretendia compreender o modo como diferentes direitos e noções de

justiça se haviam produzido e como havia entrado em conflito ao

longo da história brasileira (LARA; MENDONÇA, 2006, p. 11).

Neste sentido, os autores vinculados à história social da escravidão, que

propõem a aproximação entre História e Direito tendo como premissa a compreensão

das definições judiciais para além dos tribunais, são fundamentais para a discussão dos

processos-crimes e de outros documentos oficiais, tanto na perspectiva teórica quanto

metodologicamente.

As leis, de certa forma, dentro das análises historiográficas, são compreendidas

como um reforço nas relações estabelecidas entre os grupos de conflito, que se utilizam

do aparato jurídico, muitas vezes como forma ideológica para legitimar sua dominação,

numa constante luta entre dominadores e dominados. Porém, fizemos uso das

considerações de E. P. Thompson, na obra Senhores e Caçadores (1987) para entender a

constituição das leis e seus vários prismas sociais. O autor compreende que a

constituição das leis não é “reflexo” nem tão pouco síntese das relações existentes em

uma sociedade, pois ainda que exprima questões sociais pujantes, considera que essas

leis “massacram” e “mistificam” a realidade. De acordo com o autor:

A lei considerada como instituição (os tribunais, como seu teatro e

procedimentos classistas) ou pessoas (os juízes, os advogados, os

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18

Juízes de Paz), pode ser muito facilmente assimilada à lei da classe

dominante. Mas nem tudo o que está vinculado „a lei‟ submete-se a

essas regras e instituições. A lei também pode ser vista como

ideologia ou regras e sanções especificas que mantêm uma relação

ativa definida (muitas vezes um campo de conflito) com as normas

sociais; e por fim, pode ser vista simplesmente em termos de sua

lógica, regras e procedimentos próprios - isto é, simplesmente

enquanto lei. E não é possível conceber nenhuma sociedade complexa

sem lei (THOMPSON, 1987, p. 351).

A partir de referenciais teóricos como Thompson (1987, 1981), Benjamin (1987),

entre outros, não é possível considerar as leis simplesmente como retrato da dominação

de um grupo sobre o outro. Mesmo que tenham sido pensadas por um grupo de domínio

político e econômico, a compreensão da lei perpassa a sua elaboração, possibilitando

talvez que mesmo os grupos que não produziram tais leis encontrem brechas nos marcos

legais para reforçar seu papel na sociedade e no movimento da história.

A partir desses e de outros textos e por meio da leitura das fontes foi possível

questionar: Quais as possibilidades de utilização dos documentos oficiais para a

construção de uma narrativa histórica que privilegie os escravizados em Sant‟Anna do

Paranahyba, no Sul da Província de Mato Grosso, no século XIX? Em meio a tantos

documentos, quais deles selecionar para a construção dessa narrativa?

O primeiro contato com a documentação, ainda na graduação, foi no intuito de

registrar, sem um recorte temporal especifico, documentos relativos a Sant‟Anna do

Paranahyba que correspondessem aos anos de 1828 a 1899. Ao fazer a leitura da

documentação para a elaboração do relatório final de Iniciação Cientifica em 2013,

houve – entre tantos temas possíveis de se trabalhar – a repetição e afirmação quanto as

mudanças e dificuldades de controle escravo, da burocracia de matrículas, e os rumos

econômicos de Sant‟Anna de Paranahyba e do Brasil Império em relação ao trabalho em

condição de escravidão após a instauração da lei 2.040, de 21 de setembro de 1871.

A partir dessa percepção na documentação, e a curiosidade de entender o

processo de efetivação da lei na região de Sant‟Anna do Paranahyba, levantamos

perguntas de como seria o cotidiano, as relações de trabalho e a busca pela liberdade dos

sujeitos escravizados dessa localidade, após a lei 2.040. O que mudava nas práticas

escravistas do lugar após esta lei? A lei garantia a liberdade? Quais acordos? Existiriam

relações de compadrio e de poder presentes neste universo e envolvendo esta lei? O que

as cartas de liberdade asseguravam aos escravizados? Cometiam crimes contra os

senhores? Quais? As fugas seriam um desses crimes?

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São vários os documentos que apresentam indícios das mudanças ocasionadas

pela lei, como matrículas de escravos, inventários, processos-crimes, cartas de

liberdade, entre outros. Todas essas tipificações de documentos são entendidas como

documentos oficiais, porém, cada uma possui sua lógica de construção, suas

dificuldades, métodos de análise e, por sua vez, uma natureza enquanto fonte histórica,

portanto requerem do pesquisador tratamento específico.

Ao percebermos esta problemática, foi necessária a leitura de textos

historiográficos que versassem sobre teoria e metodologia, no sentido de orientação do

procedimento histórico, ou seja, teórico-metodológico no trabalho com esta temática. A

partir das considerações de Certeau (1982)4 estabelecemos um caráter técnico para a

seleção e separação das fontes que viriam compor a construção da narrativa apresentada

como dissertação. Assim foi realizada uma separação por categoria de fontes, em vista

do recorte temporal e temático.

Selecionamos três caixas de processos criminais do Arquivo do Tribunal de

Justiça de Mato Grosso do Sul. Sendo elas a caixa 115, 116 e 117. Essas caixas foram

selecionadas, a primeiro momento, devido a sua temporalidade que correspondia ao

recorte temporal proposto na pesquisa.

No segundo momento, os documentos dessas caixas foram digitalizados e

fichados. No fazer do fichamento percebemos as tipologias dos crimes, em quais tipos

de crimes os escravizados eram mencionados, as relações entre escravizados, senhores e

pobres livres. No total, há quarenta processos-crimes digitalizados. Estão disponíveis

para consulta no Arquivo do Tribunal da Justiça em Campo Grande sessenta e dois

documentos. Muitos, desses vinte e dois que não se encontram em formato digital, estão

com a qualidade das folhas em decomposição, esfarelando-se, o que impossibilitou o

manuseio tornando o trabalho com esse tipo de documentação sempre um desafio.

O processo-crime apresenta um caso de tensão e de conflito, que levou os

agentes sociais a buscarem a justiça para resolver determinados problemas, por isso é

sempre um desafio o trabalho com esse tipo de documentação. Para facilitar no processo

de escrita, algumas subdivisões temáticas foram criadas, como por exemplo: processos

4 “Em história, tudo começa com um gesto de separar, reunir, de transformar em „documentos‟ certos

objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade,

ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes

objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e seu estatuto. Este gesto consiste em isolar um corpo.

Como se faz em física, e em “desfigurar” as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas

de um conjunto, proposto a priori [...]” (1982, p. 81).

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que tratassem de fugas, morte do proprietário de escravos, estupro e outras questões que

os próprios documentos apontassem.

Grinberg (2011) aponta algumas questões que nos fazem pensar o trabalho com

os processos-crimes de acordo com nossas delimitações espaço-temporais. Segundo a

autora, o processo-crime é constituído, basicamente, a partir de uma queixa ou

denúncia. A partir de então começava a abertura das investigações, nas quais o

subdelegado de polícia ou o Juiz de Paz, dependendo do contexto, elencará as

testemunhas até o momento que os oficiais da justiça julgassem ser necessário para

chegar a “verdade” do fato exposto, constituindo o processo, condenando e

sentenciando um culpado ou mesmo o absolvendo.

De acordo com Machado (1994), o processo-crime primeiramente apresenta ao

historiador o crime. Os autos criminais abordam diversos aspectos da vida dos sujeitos

envolvidos no fato, sejam réus ou vítimas, como, por exemplo, relações de amizade,

compadrio; adversidades e características acerca da nacionalidade, idade, profissão.

“Porém, é o evento criminoso que condiciona as confissões e revela-se como o fio

condutor do documento, emprestando significado à pluralidade dos fatos registrados”

(1994, p. 83).

Grinberg (2011) salienta ainda que, ao analisar os processos-crimes, é preciso

considerar qual é o entendimento de crime no contexto histórico e o que ele significa

para os agentes em análise: “no caso dos processos criminais, é fundamental ter em

conta o que é considerado crime em diferentes sociedades e como se dá, em diferentes

contextos e temporalidade, o andamento de uma investigação criminal, no âmbito do

poder judiciário” (2011, p. 122).

A partir de tais documentos é possível considerar algumas possibilidades para se

apreender o modo de vida dos sujeitos ali testemunhados e por mais tentadora que seja a

vontade de incriminar alguém, achar um culpado, desnudando a vontade maniqueísta de

julgar o bem ou o mal, a história nos desafia. Pois, o intuito ao analisar os processos-

crimes, assim como a análise de toda fonte para a construção da narrativa histórica “não

é o de encontrar „a verdade‟ dos fatos, como fora o objetivo dos juízes e outras

representações policiais do contexto, mas a forma como as versões foram construídas

para, quiçá, chegar o mais próximo possível de „tais verdades‟ e ainda questionar como

as „verdades‟ foram construídas (LÉLIS; RODRIGUES, 2011, p. 183).

As cartas de liberdade e as matrículas de escravos também compõem o corpo

documental da pesquisa, sobretudo a coletânea: Como se de ventre livre nascido fosse.

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Sob a organização de Yara Penteado, em 1993, o Ministério da Cultura, em parceria

com a Fundação Cultural dos Palmares e Governo do Estado de Mato Grosso do Sul,

lançou a coletânea com cartas de liberdade, revogações, hipotecas e escrituras de

compra e venda de escravos com o recorte temporal de 1838-1888, correspondente a

documentos envolvendo localidades no atual Estado de Mato Grosso do Sul.

As cartas de liberdade enquanto fontes possibilitam uma diversidade de

informações como, por exemplo, as características dos senhores de escravos, condição

física, aspectos de doenças dos escravos, valores, sendo possível também fazer a análise

da cultura material do período. Cabe destacar que as alforrias não eram concessões

feitas apenas pelo “bondoso senhor”, mas também pela resistência dos escravizados5.

Muitos senhores em todo o Império concediam a liberdade a seus escravos, mesmo

antes da Lei 2.040, de 1871, em ações realizadas, muitas vezes, de modo costumeiro, as

quais possuem diferentes compreensões, se relacionadas ao momento histórico e as suas

especificidades.

De acordo com Mattoso (2009) e Schwart (2001) são práticas costumeiras

aquelas baseadas nas relações pessoais, como de parentesco ou mesmo afinidade entre

senhores e escravizados. Além disso, os senhores detentores de escravos criavam um

mercado paralelo, pois havia o interesse em expedir a carta de alforria ao escravo se

houvesse a possibilidade de substituição da mão de obra ou mesmo para prendê-lo nas

redes da situação sob condição. Era muito comum, antes da Lei do Ventre Livre, que as

cartas possuíssem caráter condicional. Essas condições poderiam ser das mais diversas,

desde servir até a morte do senhor, por determinado período, ou cumprir algum

trabalho, por determinado tempo.

Camargo (2015), ao analisar também a coletânea Como se de ventre livre

nascido fosse, constou que em Sant‟Anna do Paranahyba: “das 52 alforrias encontradas,

7 são incondicionais, 37 com prestação de serviço por determinado período ou até a

morte do senhor, 7 com pagamento feito ou a ser feito pelo escravo e uma na qual a

escrava deveria continuar com o senhor (CAMARGO, 2015, p. 154).

5 Escolhemos a utilização do conceito escravizado, por entender que há uma dominação sociocultural que

coloca os diversos agentes em condição de trabalho escravo, uma vez que ao dizer negro escravo

colocamos a condição de escravo como inerente ao povo negro, dentro de um campo léxico-semântico

que naturaliza e acomoda psicologicamente a condição da escravidão. Ver mais em: AULETE, Caldas.

Dicionário contemporâneo da língua portuguesa Aulete digital, 2011. Disponível em: Versão digital do

dicionário Caldas Aulete. BUENO. Francisco da S. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua

portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1966

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Chalhoub (1990), ao estudar as últimas décadas da escravidão no Rio de Janeiro,

proporciona-nos subsídios para compreender que a carta de liberdade não é algo

designado apenas pelo senhor, já que “numa sociedade escravista, a carta de alforria que

um senhor concede a seu cativo dever ser também analisada como o resultado dos

esforços bem-sucedidos de um negro no sentido de arrancar a liberdade a seu senhor”

(CHALHOUB, 1990, p. 23).

As 52 cartas de alforria foram responsáveis por registrar a possível libertação de

114 escravos, tendo em vista que o senhor poderia se utilizar de um mesmo documento

para libertar mais de um escravo. O número pode parecer inexpressivo diante de outras

localidades do Império, porém são os poucos números que revelam as características

singulares do processo de escravidão e liberdade em Sant‟Anna do Paranahyba.

As cartas de liberdade são fragmentos, testemunhos de história de ex-

escravizados que ao longo de sua vida cursaram estratégias em busca da liberdade, seja

no bom comportamento, na negociação ou ainda na formação de pecúlio. Ainda é

possível perceber nestas cartas a concepção dos senhores de escravos acerca da

liberdade e qual era a função do liberto, levantando-nos problemáticas para pensarmos

na construção dos discursos e imaginários no interior dessas cartas, no espaço em

questão.

Ao pensarmos especificamente os métodos de trabalho com os documentos

oficiais, deparamo-nos com várias problemáticas, sobretudo quanto a definição do que

seria a metodologia e a teoria da pesquisa. A separação entre métodos e teoria não é

algo fácil de fazermos, e também acreditamos que não seja o desejável. Todavia,

algumas considerações de como lidar com as fontes, passíveis de análise, devem ser

destacadas, o que implica também uma discussão teórica. De certa maneira, nossas

escolhas teóricas e metodológicas buscaram agir de forma convergente no percurso da

pesquisa, e dizem muito a respeito do que entendemos do tempo, do espaço, das

relações estabelecidas entre os sujeitos, de nossos valores e concepções de mundo.

Da documentação disponível são várias as fontes em que, como vítimas ou réus,

como bens arrolados ou como baderneiros6, os escravizados possuem relevante

destaque. A partir das considerações de Lucien Febvre (1989), ao dizer que “quando os

documentos abundam, ele resume, simplifica, põe em destaque isto, apaga aquilo”,

6 Este termo aparece no Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso, Estevão Vieira de

Rezende, enviado à Assembleia Legislativa Provincial em primeiro de março de 1840. Cuiabá: Tipografia

Provincial, 1840.

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entendemos a necessidade de construir uma “intenção precisa” de uma problemática a

resolver “uma hipótese de trabalho a verificar” (1989, p. 19).

As pesquisas vinculadas à escravidão na localidade em questão ainda são

demasiadamente novas. A historiadora Moura (2008), ao estudar a escravidão e a

resistência no sul do Mato Grosso nos séculos XVIII e XIX, ressalta que sempre houve

um desinteresse sobre o tema da escravidão na parte sul e que, embora crescente, as

discussões acerca da escravidão na província de Mato Grosso ficaram, em sua maioria,

centradas na parte norte. De acordo com Moura:

Ao pesquisar a história do atual estado de Mato Grosso do Sul, nota-se

indiscutível desinteresse pelo estudo de seu passado escravista,

embora as teorias e imagens do passado não pareçam totalmente

eliminadas. Isso retrata na raríssima produção acadêmica no estado

sobre o passado dos africanos e nativos escravizados (2008, p. 31).

Segundo Moura (2008), um dos motivos para esta centralidade é que houve

muitos trabalhadores escravos na região norte da Província, nos trabalhos com as minas,

o que exigia um grande contingente de trabalhadores e nesse sentido os registros e

indícios são maiores no sentido quantitativo. A autora também destaca a centralidade da

documentação, ou seja, as regulamentações para a Província estavam centradas em

Cuiabá, sua antiga capital.

A singularidade nas pesquisas históricas se torna válida a partir do momento em

que entendemos que uma região faz parte de um todo, mas compreendendo suas

peculiaridades históricas, culturais, econômicas e sociais. Neste sentido, ao estudar a

província de Mato Grosso no século XIX, devemos compreender o contexto maior das

relações sociais em que ela estava inserida7.

Quando propomos uma pesquisa com o recorte regional do sul da Província de

Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, propomos estudar a singularidade dessa

localidade, entretanto não foi possível desconsiderar Mato Grosso como um todo, pois

fez-se necessário compreender as relações interprovinciais e, sobretudo, a relação norte

e sul, ao longo da história.

Após a instauração da Lei Complementar de nº 31, de 11 de outubro de 1977,

que separava então legalmente norte e sul, Corrêa (1969) destaca que houve uma

situação curiosa na historiografia regional e apesar da separação legal, não é possível

7 Para a compreensão das ações dos escravos ver BRAZIL, Maria do C. Fronteira negra – Dominação,

violência e resistência escrava em Mato Grosso 1718-1888. Rio Grande do Sul: Universidade de Passo

Fundo, 2002.

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desvincular a região sul do seu passado mato-grossense. O Instituto Histórico e

Geográfico de Mato Grosso do Sul- IHG/MS, criado em 1978, nasce com o objetivo de

propiciar uma identidade ao novo Estado de Mato Grosso do Sul. Neste sentido, não

mediu esforços no intuito de construir uma história “positiva” afastada de seu passado

escravista, reforçando uma identidade desvinculada da exploração escravista encontrada

na região norte. Entretanto, trabalhos extremamente significativos, desde a constatação

de Moura, foram apresentados – mas ainda há muito a se pesquisar- para a compreensão

das relações de trabalho, economia e poder estabelecidos no estudo da parte sul da

Província de Mato Grosso, no caso, em Sant‟Anna do Paranahyba. Cabe destacar o

papel da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e da Universidade Federal

de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, (UFMS-CPTL), como instituições

promovedoras de boa parte das produções recentes acerca de Sant‟Anna do Paranahyba.

Uma vez que as pesquisas em destaque são em sua maioria de alunos do Programa de

Pós-graduação de mestrado em História e de professores das respectivas instituições8.

O trabalho de mestrado de João Antônio Botelho Lucídio (1993), realizado na

Universidade Federal Fluminense é um dos primeiros a tratar da região, com o título:

Nos confins do Império um deserto de homens povoado por bois: a ocupação do

Planalto Sul Mato Grosso, 1830-1870, tem por objetivo compreender o modo de

organização da vida material dos sujeitos que ocuparam a região do planalto ao sul da

província de Mato Grosso. Com um número ínfimo de documentos para a análise, haja

vista não ter tido acesso aos processos criminais e aos inventários, Lucídio apoiou-se

nos relatórios de viajantes, nos relatórios de província e na literatura a fim de tecer sua

narrativa e apresentar características da produção e inserção econômica do sul de Mato

Grosso numa economia de exportação. Este trabalho de Mestrado pode ser considerado

o precursor das abordagens que viriam na década seguinte e nas posteriores, devido a

sua profundidade de abordagem.

No ano de 2003, Maria Madalena Dib Mereb Greco, em trabalho de conclusão

de curso na UCDB, apresentou a pesquisa com o título: Acordo e convenção: uma 8 Os trabalhos realizados por Maria Celma Borges desde 2009, no projeto de pesquisa sob o título: Pobres

livres, escravos e povos originários: trabalho, cultura, violência e resistência do sul ao norte do Mato

Grosso, contribui para pesquisas de iniciação cientifica que geram projetos maiores apresentados à pós-

graduação. Além disso, no pós-doutoramento na Universidade Federal Fluminense, Borges apresentou

apontamentos importantes para pensarmos os pobres da terra no contexto de 1828-1860. Sobretudo as

relações estabelecidas de resistência e negociação dos Cayapó frente aos desmandos dos representantes

do poder local. Dos trabalha de graduados, no Campus de Três Lagoas, da Universidade Federal de Mato

Grosso do Sul, cabe destaque os trabalhos de Camargo (2010) e o de Silva (2014), defendidos como

dissertação de mestrado no programa de pós-graduação da UFGD.

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interpretação dos contratos de casamentos no século XIX em Sant’Anna de Paranayba.

Embora seja um trabalho inicial, apresenta dados relevantes acerca do cotidiano e das

práticas estabelecidas na localidade, sobretudo por pensar o lugar ocupado pelas

mulheres nos documentos oficiais e na literatura produzidas sobre Sant‟Anna do

Paranahyba.

No trabalho de Camargo, intitulado O sertão de Santana de Paranaíba: um

perfil da sociedade Pastoril-Escravista no Sul do Antigo Mato Grosso (1830-1888), de

acordo com a autora, os objetivos “nasceram da necessidade de analisar a ocupação da

região, as relações de trabalho, a estrutura de dominação, ocupação de terras, a cultura

material, e, sobretudo a presença de trabalhadores escravizados no material empírico

consultado” (2010, p. 30).

Em sua tese de Doutorado, defendida na Unesp/Assis, Camargo (2015) tem

como objetivo principal analisar as relações entre negros escravizados e senhores na

região de Sant‟Anna de Paranaíba, com o recorte temporal de 1828-1888, pelas datas

corresponderem respectivamente ao início da ocupação de Sant‟Anna e à data da

Abolição do trabalho escravo no Império.

A dissertação de mestrado de Silva é oriunda dos projetos iniciados na

graduação. Sob o título Pobres livres em Sant’Anna do Paranahyba-século XIX, o

trabalho objetiva analisar os homens e mulheres pobres e livres que viveram na

localidade, tendo como recorte temporal o século XIX (SILVA, 2014, p. 7).

O interesse em pesquisar a região de Sant‟Anna do Paranahyba é encontrado em

trabalhos também fora do eixo UFGD-UFMS. Cabe destacar, neste sentido, a tese de

Marcos Hanemann (2012) defendida na Universidade de São Paulo (USP). Intitulada O

povo contra os seus benfeitores: aplicação da lei penal em Sant’Ana de Paranaíba,

Mato Grosso (1859-1889), o autor objetiva analisar as possibilidades e a aplicabilidade

do código penal, discutindo o cotidiano da sociedade em questão e seu relacionamento

com o poder judiciário, por meio dos processos criminais.

Mesmo não tendo como recorte espacial principal a localidade de Sant‟Anna de

Paranahyba, pensando a província do Mato Grosso, trabalhos de Brazil (2002), Queiroz

(2008), Volpato (1987), Cancian (2006), Divino Sena (2010) e Araújo (2005) são

leituras importantes para compreendermos as questões apresentadas neste trabalho.

Como dito posteriormente, o pré-projeto apresentado à seleção do mestrado

tinha por objetivo principal compreender as mudanças e dificuldades após a instauração

da lei 2.040, de 21 de setembro de 1871. No processo de digitalização e separação dos

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documentos encontramos, de fato, repetições e fontes que tratavam desta problemática.

Entretanto, não o suficiente para a realização da dissertação em tempo hábil, sendo

necessária uma análise documental mais apurada no Arquivo Público de Mato Grosso -

Cuiabá, no qual os documentos do período do Império se encontram em fase de

organização, o que demandaria mais tempo do pesquisador no encontro desses

vestígios.

O objetivo inicial era tratar da Lei do ventre livre e suas interpretações e

ressignificações em Sant‟Anna do Paranahyba, porém durante a pesquisa percebemos

que o trabalho se apresentaria frágil, com muito mais suposições, possibilidades de

realidade do que propriamente evidências por falta de um conjunto de fontes que

possibilitasse responder os questionamentos levantados no anteprojeto. Cabe destacar

que a interpretação de nossa problemática não se reduziu à compreensão da escrita da

história somente a partir dos documentos oficiais, mas para a pesquisa eles foram fontes

primordiais e indispensáveis.

Febvre (1989) aponta que o trabalho do historiador consiste em criar, com a

utilização de técnicas e métodos, os objetos de sua observação “tarefa singularmente

árdua porque descrever o que se vê, ainda vá: o difícil é ver o que é preciso descrever”

(FEBVRE, 1989, p. 19).

O que é a construção da narrativa histórica? É talvez responder perguntas. Mas

como elaborar tais perguntas? Se não temos perguntas, não temos objetivos para a

construção da narrativa histórica (FEBVRE, 1989, p. 20). Construímos as perguntas e

depois vamos aos fatos? Ou a partir dos fatos elaborados surgem as perguntas? O

primeiro contato seria com as fontes e depois surgiriam questionamentos? Ou surgem

inquietações e vamos às fontes? Até que ponto a imaginação e a invenção fazem parte

do oficio do historiador? Toda narrativa histórica é construção? Se o historiador

constrói, ele foge da verdade?

Veyne (2008, p. 210) entende que “a história é, em essência, conhecimento por

meio de documentos”, porém a construção da narrativa histórica insere-se numa lógica

para além dos próprios documentos, pois o documento não é o próprio evento. Não é

possível, dessa maneira, reconstruir a realidade como de fato ocorreu, na medida em

que sempre apresentamos uma possível explicação a partir da documentação disponível

do período em análise. Embora a construção da narrativa histórica não seja a verdade

única e absoluta dos eventos ocorridos, a pesquisa em história parte de algo que

realmente aconteceu. Ao definir características de conceitualização histórica, White

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(2008) questiona a ideia da diferenciação que fora feita entre história e ficção, uma vez

que se entendia, especialmente no século XIX, “que o historiador „acha‟ suas estórias,

ao passo que o „ficcionista‟ as inventa”. Contudo, White (2008) ressalta que o processo

de “invenção” também faz parte do trabalho do historiador, pois este seleciona e atribui

aos eventos da crônica uma hierarquia de significância, evidenciando alguns eventos e

excluindo outros, para a construção da narrativa histórica, colocando em forma de

enredo uma “possível explicação do real”.

A partir das possibilidades de interpretação histórica, respeitando os

documentos, e neles as histórias de cada sujeito descrito, o trabalho apresentado busca

apresentar as formas de buscar a liberdade em Sant‟Anna do Paranahyba, passando

então pela discussão da Lei do Ventre Livre. Seguindo esta direção entendemos que a

construção da história se faz no processo de leitura teórica, leitura das fontes e o que se

traçava no início poderia ir mudando ao logo da jornada de construção do texto. Nesse

exercício de análise a dissertação está dividida em três capítulos.

O primeiro capitulo intitulado Resistência dos Cayapó9 nas terras de

Sant’Anna do Paranahyba e arredores objetiva apresentar os espaços que os

indígenas ocupavam no imaginário e no processo de resistência frente ao não índio. O

capítulo sugere problematizações acerca das relações tecidas entre os senhores e os

escravizados, a presença indígena durante o afazendar-se dos sujeitos entrantes e a

composição do quadro populacional de Sant‟Anna do Paranahyba no contexto do século

XIX, ressaltando aspectos de sua ocupação, produção e locais de trabalho dos

escravizados, homens, mulheres e crianças e a relação estabelecida face aos senhores de

terras e de gente.

Para esta discussão, deu-se a leitura, sobretudo, dos Relatórios de Província e os

processos-crimes que envolvem escravos, como vítimas, réus ou testemunhas

informantes. Também foram utilizadas outras fontes como a literatura, os relatos de

viagens e os documentos da Coletoria provincial, no intuito de compreender as relações

pessoais e comerciais estabelecidas nos espaços de Sant‟Anna do Paranahyba.

No segundo capítulo, sob o título Escravidão em Sant’Anna do Paranahyba a

partir dos processos-crimes, objetivamos discutir as possibilidades e dificuldades de

analisar os processos-crimes para a compreensão da vida escrava em Sant‟Anna do

9 Observamos que em toda a dissertação será utilizada a palavra Cayapó e não Kayapó, como sugere

usualmente a terminologia linguística, haja vista ser a forma como esses povos aparecem na

documentação pesquisada. Desse modo, partimos dos indícios encontrados nas fontes para a

determinação do uso da palavra.

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Paranahyba. Neste capítulo, utilizamos os processos-crimes em que os escravizados

aparecem, sejam como vítimas, réus ou testemunhas. Pensamos, nessa perspectiva, nos

limites de imaginação que um historiador pode se utilizar quando os documentos nos

faltam.

No terceiro capítulo intitulado “Pelos bons serviços a mim prestados”: das

práticas costumeiras à legalidade de alforriar objetivamos discutir as cartas de

liberdade contidas na coletânea Como se do ventre livre nascido fosse. Esta fonte

apresenta as cartas de liberdade dos anos 1838-1888. A proposta foi a de analisar o

modo como a alforria acontecia antes do marco judicial de 21 de setembro de 1871, ou

seja, antes, mesmo das cartas de liberdade serem oficializadas. Outro aspecto que

pretendemos abordar referiu-se à relação entre senhores de escravos e poder político

provincial.

Utilizamo-nos de referenciais teóricos, como: Chalhoub (2010) e Wissenbach

(1998) para pensar na relação estabelecida para obtenção da carta de alforria, uma vez

que antes de 1871 a liberdade era obtida, como apontam os documentos, pela “bondade

do senhor”, deixando velada a participação do escravo nas negociações que antecediam

a elaboração do documento, participação essa que deixou indícios em outros

documentos passiveis de cruzamento, como, por exemplo, os processos-crimes e

inventários. As cartas antes da promulgação da lei poderiam ser revogadas e a

reescravização era permitida. Desse modo, partindo das leituras de Grinberg (2011)

pretendemos estudar como esse processo ocorreu em Sant‟Anna do Paranahyba.

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CAPÍTULO I

RESISTÊNCIA DOS CAYAPÓ NAS TERRAS DE SANT’ANNA

DO PARANAHYBA E ARREDORES

Corta extensa e quase despovoada zona da parte sul oriental da vastíssima

província de Matto Grosso a estrada que da villa de Sant‟Anna do

Paranahyba vai ter ao sitio abandonado da Camapoam. Desde aquella

povoação, assente próxima ao vértice do ângulo em que confinam os

territórios de S. Paulo, Minas Gerais, Goyaz e Matto Grosso até o rio

Sucuriú, isto é, no desenvolvimento de muitas dezenas de léguas, anda-se

commodamente de habitação em habitação mas ou menos chegada uma da

outra; raream depois as casas mais e mais, e caminha-se largas horas, dias

inteiros, sem ver nem morada nem gente (TAUNAY, 1922, p. 19).

Visconde de Taunay, ao passar pela região que priorizamos para o estudo, por

volta de 1867, registrou o quanto raream as casas e as gentes de Sant‟Anna do

Paranahyba, evidenciando escassez populacional, a partir de seu olhar do “homem de

fora”, e deixando indícios do modo de vida dos “sertanejos”, das relações tecidas, da

natureza do local, do “acolhimento dos moradores”, “do calor intenso”, “dos campos

diversos e do capim crescido”, em contraste com as proporções territoriais da

localidade.

Pelas terras de Sant‟Anna do Paranahyba estabeleceu-se uma população e

economia baseadas na pecuária, mas ainda no cultivo de roças, com a produção de

gêneros alimentícios no interior das fazendas, tendo a mão de obra escrava como base

fundamental para seu desenvolvimento.1 É neste espaço de poucos escravos e poucos

senhores (FERREIRA, 2005) que focaremos nossa análise, com o olhar, nesse primeiro

momento, para os povos originários2 que habitavam aquelas terras, assim como para o

modo como se deu a ocupação e conquista dos entrantes a partir de 1829.

1 Ver em: CAMARGO, Isabel Camilo de. O Sertão de Santana de Paranaíba: um perfil da sociedade

pastoril-escravista no Sul do Antigo Mato Grosso (1830-1888). Dissertação (Mestrado em História).

Universidade Federal da Grande Dourados, 2010. 2 Sobre esta questão, consultar : ALMEIDA, R. H. O Diretório dos índios: um projeto de civilização no

Brasil do século XVIII. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997. CUNHA, M.C. (org)

Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade

de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992. MONTEIRO, J.M. O desafio da história indígena

no Brasil. In: SILVA, A. L. GRUPIONONI, L.D.B. (orgs).

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Ilustração 1: Limites da localidade em estudo no contexto de 1850.

Fonte: SILVA, Cassia Queiroz da. Pobres livres em Sant’Anna do Paranahyba – século XIX –

Dourados, MS: UFGD, 2014, p.57

Desse modo, apresentamos os espaços de trabalho, os conflitos e as formas de

resistência dos pobres da terra, especialmente dos povos originários Cayapó, para, nos

outros dois capítulos, enfatizar a questão da escravidão e da liberdade, foco central do

trabalho.

1.1 Espaços de resistência dos povos originários Cayapó: estradas e conflitos

A história da ocupação de terras, ou para recorrer a Derrotas, de Joaquim

Francisco Lopes (2007), o afazendar-se nas terras do sul do Mato Grosso, se deu por

meio de inúmeros conflitos. Entre eles os conflitos oriundos do contato entre os sujeitos

que em Sant‟Anna do Paranahyba chegavam e os povos originários, entre outros pobres

da terra existentes na localidade. O objetivo do capítulo é, sobretudo, pensar nas formas

de resistência dos povos originários no processo de ocupação deste território e quais as

estratégias lançadas pelas autoridades locais e imperiais para controlar as ações dos

Cayapó, com o olhar voltado para as formas de resistência e sobrevivência a esse

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cenário. A questão indígena é uma preocupação presente nos relatórios dos presidentes

de província. A partir dos indícios deixados nestes documentos, procura-se encontrar

esses sujeitos tão marginalizados nos discursos oficiais. Nesse processo conflituoso, tão

marcadamente notado até o tempo presente – por meio das disputas de demarcação de

terras – observamos as tentativas de inserir esses sujeitos ao cotidiano de trabalho nas

fazendas, roçados e em outros lugares em Sant‟Anna de Paranahyba, bem como as

políticas imperiais que pensavam na catequese como meio para “civilidade” dos povos

originários.

A organização da sociedade santanense tinha por base fundamental, de acordo

com Lucídio, a geração de renda do trabalho com a pecuária: “era a pecuária bovina

quem determinava a estrutura fundiária e as áreas a serem ocupadas” (1993, p. 23).

As características geográficas e hidrográficas de Sant‟Anna do Paranahyba

foram favoráveis para a ocupação dos grupos de família que chegaram a partir de 1829.

Os sujeitos entrantes de Minas Gerais e São Paulo começaram a se deslocar para esta

região em busca de solo fértil, águas, dentre outras condições que garantissem a

ocupação e permanência na terra por meio de uma agricultura de autoconsumo e da

pecuária. No entanto, essa ocupação não ocorreu de forma amena.

De acordo com Camargo (2010), as famílias dos Garcia Leal, juntamente com os

Lopes, possibilitaram o que a autora considera de onda migratória de colonização para

o sul de Mato Grosso. Salienta ainda que estas famílias foram atraídas para esse local

pelas condições do solo, pastagens e pela água; condições vistas como ideais para a

criação de gado e para o cultivo de plantações, afora o posicionamento geográfico de

fronteiras, consideradas privilegiadas, fazendo divisas com a província de São Paulo,

província de Minas Gerais e a província de Goiás.

Esta autora também considera que, embora existam algumas contradições e

dúvidas acerca dos limites de Sant‟Anna do Paranahyba3, esta localidade pode ser

entendida, no tempo presente, de acordo com Campestri (2006), como parte da região

leste do estado de Mato Grosso do Sul: “Sant‟Anna do Paranahyba compreenderia os

atuais municípios de: Paranaíba, Inocência, Aparecida do Taboado e Três Lagoas”.

3 O Documento de 1850 – Da delegacia de governo (Arquivo de Cuiabá – MT) institui: “a demarcação da

Freguesia de Sant‟Anna do Paranahyba, apontando como limites: [...] o rio Paraná desde a foz no rio

pardo até a do Paranahyba, o mesmo Paranahyba até a barra do Correntes, o alvo do mesmo rio das

Correntes até as suas cabeceiras, uma linha tirada destas do rio Cayapó do Sul, o mesmo Cayapó do Sul, o

principal e mais meridional braço do Araguaya até as suas fontes, uma linha tirada dali as cabeceiras mais

(?) do rio Pardo e este último rio até o Paraná”.

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Lucídio (1993) também considera a importância da natureza para a ocupação

dessas terras, porém entende que outros fatores são fundamentais para compreender o

processo de colonização. Destaca como exemplo o movimento conhecido por Rusga4,

que ocorreu em 1834, em Cuiabá, e que motivou novos povoadores a abrirem fazendas

“principalmente nos vales da Taboca e do rio Negro”, encontrando-se a partir de 1850

com os entrantes que partiram de Sant‟Anna do Paranahyba.

Este autor ainda utiliza o conceito de clã para definir os grupos de famílias que

chegaram às terras de Sant‟Anna, sendo eles: os Garcia Leal, Souza, Lopes, Barbosa e

Pereira, os primeiros a comandar a entrada com objetivo de afazendar-se no sul da

província de Mato Grosso. A família dos Garcia ficou notoriamente conhecida no

contexto e sua influência política fora considerada tamanha, sobretudo pelos

memorialistas, atribuindo à região ocupada por essas famílias a denominação de sertões

dos Garcias. Podemos supor então que a predominância desta família nesse lugar

sobrepunha-se aos outros grupos de familiares. Talvez pela quantidade de escravos que

possuíam e da experiência política já adquirida em sua província natal.

Assim, as famílias que foram aqui se instalando, com o passar dos processos e

movimentos de expansão e contração das fronteiras, ficaram conhecidas na

historiografia tradicional e por meio dos memorialistas como os pioneiros, os

desbravadores dos sertões desabitados. Entretanto, não se pode esquecer que a Região

de Sant‟Anna era habitada primordialmente pelos índios Cayapó do grupo linguístico

Jê. Esses sujeitos ficam por vezes silenciados nas pesquisas regionais, quando são

narrados os feitos memoráveis dos grandes pioneiros vistos como aqueles que tiveram

papel fundamental na estrutura econômica e social da constituição da sociedade

santanense.

Os povos originários, juntamente com os demais pobres livres e sujeitos

escravizados abriram estradas, construíram casas, plantaram, colheram, trabalharam na

constituição de milícias particulares e também resistiram à opressão do “grande”

colonizador. Como salienta Martins, ao estudar a história e conceito de deslocamento e

fronteira: “é uma história de destruição. Mas, é também uma história de resistência, de

revolta, de protesto, de sonho e de esperança” ( MARTINS, 1979, p. 45).

4 Sobre Rusga, ver mais em: AGUIAR, Patrícia Figueiredo. “Restabelecendo a ordem”: uma operação

disciplinar na província de Mato Grosso, no pós 30 de maio de 1834 (Rusga). Revista eletrônica

Documento e Monumento. NDIHR, Vol. 17- n1- JUL-2016. UFMT-Cuiabá

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As famílias mineiras vieram para o sul de Mato Grosso no intuito de encontrar

grandes faixas de terras “vazias” e devolutas. Mesmo que as terras não estivessem tão

vazias assim, a família dos Garcia Leal, entre outras, conseguiu firmar seu poderio pelo

poder e status que a propriedade designava no período. Camargo (2010) ressalta que no

período de 1822 a 1850, entre o fim do sistema que dividia a terra em Sesmaria e a Lei

de Terras de 1850, esta família se fixou na região alcançando proximidade com os

demais representantes provinciais e ocupando cargos de representatividade política. Os

comportamentos dos sujeitos, as relações comerciais e de trabalho desta região estavam

diretamente relacionados a uma região fronteiriça, escravocrata e latifundiária.

Até 1850 o domínio da terra era comprovado por seu uso, porém a lei de nº

601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras, instituía “ordem” ao

processo de ocupação dos territórios, chegando ao fim os sistemas de sesmaria e posse.

Em relação ao teor da Lei de Terras é interessante retomar a própria Lei, em

suas cláusulas e incisos, ao entender por terras devolutas:

Art. 3º São terras devolutas:

§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional,

provincial, ou municipal.

§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo

legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do

Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do

cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.

§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões

do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas

por esta Lei.

§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não

se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.5

A Lei de Terras garantia que somente mediante compra as terras devolutas

deveriam ser apropriadas. Como ressalta Fabrini (2008), criou-se uma nova lógica

capitalista de relação com a terra: “Enquanto a mão-de-obra era escrava, as terras

estavam livres, mas com a Lei de Terra de 1850, e a abolição da escravatura um pouco

mais tarde, as terras ficaram “escravizadas” através da propriedade privada capitalista”

(2008, p. 55). Esta questão é ressaltada por José de Souza Martins, em sua obra O

cativeiro da terra. Ao discutir a relação entre terra e capitalismo, este autor afirma que:

“Num regime de terras livres o trabalho tinha que ser cativo; num regime de trabalho

livre, a terra tinha que ser cativa” (1979, p. 32).

5 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L0601-1850.htm>. Acesso em 01/03/2017

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Entretanto, a concepção que ressalta que a Lei de Terras de 1850 veio para

assegurar o direito do grande fazendeiro na exploração da terra é criticamente analisada

por Motta (1998). A autora entende que não é possível partir de uma única matriz

explicativa para a compreensão dos acontecimentos que desencadearam a produção da

lei. Desse modo, a autora sugere que a Lei seja problematizada a fim de que os seus

limites possam ser apreendidos, assim como de que forma o poder dos fazendeiros foi

se sobrepondo aos direitos legais e morais dos brancos pobres, dos posseiros, dos

agregados e dos demais pobres livres.

A partir de uma concepção thompsoniana, a autora evidencia que as leis não

podem ser compreendidas simplesmente pela dicotomia: fazendeiros x pobres livres;

entre quem manda e quem obedece, mas sim por quem resiste, pois a construção de leis

reflete tensões e conflitos sociais, oriundos de lutas que vão muito além da imposição.

Motta (1998) assinala que a lei é reflexo de um contexto e período histórico que

atendem demandas de determinados sujeitos do momento, que podem trazer

repercussões até o presente, como é o caso da Lei de 1850. A autora chama atenção para

o fato de que a Lei de Terras não cabe mais e não coube no período de sua constituição

como explicação total dos limites para o acesso à terra no cenário da questão agrária no

Brasil do século XIX. Entretanto, ao compreendermos que as leis são tecidas no amago

das relações sociais e são histórica e socialmente construídas, podemos compreender

suas consequências sobre a luta pela terra dos séculos XX e XXI.

Afirma Motta ( 1998) que a Lei que garante o acesso à terra foi discutida por

longos onze anos antes de ser confusa e contraditoriamente implantada. A partir de

então, várias interpretações surgiram de uma mesma Lei, o que nos mostra que a Lei de

Terras teve várias interpretações que diferem entre si. Interpretações que ora se

contradizem ora se completam, sendo que cada sujeito interpreta de acordo com os

direitos que almeja, como ressalta Marcia Motta:

Por essa perspectiva, é possível pensarmos que as interpretações

também têm uma história e que elas podem ser confundir no confronto

dos sujeitos sociais diversos. Assim, não são apenas os pobres de os

pobres de hoje que aprenderam a lidar com o emaranhamento das leis,

mas os pequenos posseiros, agregados e arrendatários de outrora já

haviam aprendido a defender legal ou juridicamente seus direitos a

terra ocupada. Assim, os conflitos de terra no Brasil foram e são

permeados por lutas diversas: pela história das ocupações, pela

interpretação das normas legais, pelo direito à áreas ocupada e mais

[...] (1998, p. 21).

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A ocupação da terra por meio da formação de grandes propriedades, do

afazendar-se, e amparada nos princípios desta Lei e dos interesses particulares atrelados

ao público, impediu, no sul de Mato Grosso, o surgimento do reconhecimento das

posses de pequenos agricultores e culminou no processo de acúmulo de terras em mãos

de poucas famílias, algo que é possível perceber atualmente e que se tornou um

impedimento à reforma agrária, no tempo presente. Entretanto, não se pode negar a

resistência dos sujeitos, pobres e livres, em meio às plantações e extensões de terras de

pastagem, tal como em meio às médias e pequenas propriedades. Esses homens e

mulheres, plantando, ainda que o mínimo para garantir a sua sobrevivência e de sua

família, resistiam dia após dia ao que era verticalmente imposto.

A Lei de Sesmarias no período colonial garantia o monopólio da terra e os

produtos desenvolvidos nos melhores solos eram destinados à exportação. As atividades

dos produtos que abasteciam a colônia eram realizadas, em sua maior parte, por

posseiros que trabalhavam em pequenas lavouras à parte da grande produção. Essas

atividades eram realizadas ainda por outros pobres livres, assim como pelos sujeitos

escravizados que, em determinados casos, tinham a permissão de produzir alimentos

para seu autoconsumo nos domingos e nos dias santos, desde que seu trabalho não fosse

afetado. Independente do tipo de produção e de quem produzia, uma parcela dos

produtos era destinada ao proprietário da terra, garantindo a sua posse e o que mais nela

fosse produzido.

Queiroz (2008) considera que no decurso do século XIX, o processo de

conquista e o povoamento ocorrido em Sant‟Anna do Paranahyba alterou

significativamente o olhar administrativo e os interesses econômicos dos poderes da

província para esta parte sul, fazendo despontar o Sul de Mato Grosso, sobretudo

Sant‟Anna do Paranahyba, como local propício à exportação:

Tratava-se, por certo, de uma economia pobre e frágil, na medida em

que ela se centrava na „exportação‟ de gado bovino magro (o qual,

depois de engordado nas invernadas mineiras, seguia para o abate nos

centros urbanos do Sudeste, especialmente o Rio de Janeiro). Mesmo

assim, o novo povoado de Santana do Paranaíba logo se converteu no

nó ideal de um novo sistema de comunicações, que começou a tomar

forma ainda na primeira metade do século XIX. De fato, o

povoamento não-índio do sertão dos Garcia parecia tonar viável, aos

olhos dos grupos dirigentes da província, a abertura de um novo

caminho terrestre entre Cuiabá e o Sudeste- caminho esse que,

passando, por Paranaíba, seria muito mais curto que o anterior, que

seguia por Goiás. Foi efetivamente aberto, ainda na década de 1830, o

chamado „caminho do Piquiri‟, ligando Cuiabá diretamente a Santana

do Paranaíba [...] (QUEIROZ, 2008, p. 35).

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O mesmo autor ressalta que devido sua “posição” considerada estratégica pelos

dirigentes portugueses, e por ser um território de “ligação” entre o Sudeste e as Zonas

Auríferas, o Sul do Mato Grosso passa a ser visto como uma “fronteira econômica”.

Destaca ainda que um dos motivos para a colonização da região na terceira década do

século XIX estava inserido num contexto maior, que culminou em transformações

fundamentais em todo o Império, quando, no início daquele século, deu-se a vinda da

família Imperial para o Rio de Janeiro, momento em que:

O aumento das necessidades de abastecimento dessa cidade, bem

como a expansão da monocultura cafeeira no vale do Paraíba,

repercutiram, como se sabe, sobre todo o interior da colônia, levando,

por exemplo, a uma expansão da pecuária bovina em direção aos

territórios situados cada vez mais a oeste (QUEIROZ, 2010, p. 113).

Queiroz considera esse movimento como frente de expansão que atraiu para o

Sul de Mato Grosso sujeitos de diversas províncias, sobretudo as de Minas Gerais e de

São Paulo. Muitos senhores de terras e de escravos vieram com suas famílias atrás de

maiores riquezas e novas terras, trazendo nas malas não só o desejo do estabelecimento

e domínio sobre o território que “descobrissem”, mas também negros, camaradas,

modos de vida e de escravizar, fundamentados na sua estrutura de família patriarcal que

foi impingida as populações que viviam nas terras „descobertas‟.

Entendemos frente de expansão na perspectiva sociológica apontada por José de

Souza Martins, ao assinalar que: “Tipicamente, a frente de expansão foi constituída de

populações ricas e pobres que se deslocavam em busca de terras novas para desenvolver

suas atividades econômicas” (1979, p. 43).

Embora trabalhando numa temporalidade considerada recente para história, ao

definir pontos de conflitos e alteridade nos espaços de fronteira alcançados pela frente

de expansão, Martins (1979) nos possibilita compreender o processo de contato entre os

senhores possuidores de terras e do poder de afazendar-se com os povos originários em

Sant‟Anna do Paranahyba, que particularmente nos interessa neste primeiro momento.

Dentre outras características, o autor discorre:

Para o índio o avanço da frente de expansão não repercute apenas por

colocá-lo diante de uma humanidade diferente, a dos civilizados.

Repercute nos rearranjos espaciais de seus territórios [...]. Essas

mudanças resultam em muitas perdas, não só do território, mas

também de vidas e de elementos culturais (MARTINS, 1979, p. 37).

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O contato com os povos originários, bem como questões de ordem econômica e

social como, por exemplo, a busca de terras dos mineiros após a crise da mineração na

província de Minas Gerais, fazem-nos entender, a partir das considerações de Martins,

que o processo de ocupação nesse território fora a frente de expansão notadamente

marcada pelas “relações não-capitalistas de produção mediadoras da reprodução

capitalista do capital” (1979, p. 47), possibilitadas de modo insuficiente também pelas

dificuldades de circulação de mercadorias e do escoamento da produção, fosse por vias

fluviais ou terrestres.

Na tentativa de inserir Sant‟Anna do Paranahyba, e toda a província do Mato

Grosso, num contexto modernizador, Queiroz (2010), ao interpretar essa questão,

aponta que, estrategicamente, a região de Sant‟Anna foi pensada pela administração

provincial como acesso a abertura terrestre de uma estrada que ligasse Cuiabá à região

sudeste passando por Paranahyba, por ser mais curto que o caminho anteriormente

utilizado: a estrada de Goiás.

Após um processo de reorganização das forças produtivas, considerado lento por

Lucídio (1993), houve a consolidação de uma economia, cujo pilar baseava-se na

agricultura de autoconsumo e na exportação de gado magro em pé. O autor descreve

ainda que foi somente a partir da fundação do povoado de Sant‟Anna do Paranahyba

que a província de Mato Grosso começou a despontar no mercado interno e externo,

sobretudo com as ligações econômicas com São Paulo, ocorridas também pelas vias

fluviais.

Segundo Campestrini (2006) o governo provincial objetivava, desde 1816, a

construção de uma estrada terrestre que ligasse Cuiabá a São Paulo. Sob o comando do

sargento J. Martins de Carvalho, a estrada foi iniciada em 1829. Quando os trabalhos

desta estrada atingiram as proximidades do Sucuriú, os Garcias já estavam na região.

Em 1836, José Garcia Leal foi nomeado, de acordo com Campestrini (2006), diretor da

povoação que, no contexto, contava com trinta casas, chamadas na época de fogos. E

neste mesmo momento foi responsabilizado por concluir a estrada do Piquiry, que

acabara por alcançar o rio Paranaíba e não o Paraná, como era previsto em 1816.

Silva (2014, p.114) entende que a abertura dessa via foi “umas das

condicionantes para que o boi deixasse de ser um produto de abastecimento interno” e

passou então a ser comercializado em outras regiões do Império. Além de que, como

apontado por Silva e Borges, a estrada do Piquiry tenha servido para consolidar o

território de Mato Grosso: “não tanto em relação à investida de nações vizinhas, mas

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principalmente numa longa contenda com Goiás a respeito da definição das divisas das

duas províncias” (2013, p. 342).

Ainda com a perspectiva da construção da estrada e suas benesses, a

preocupação com a “questão do índio” era notória à administração da província, uma

vez que esses sujeitos resistiam a entrada dos não-índios em seus espaços de

convivência. O presidente Estevão Ribeiro Rezende aponta, em seu relatório, em 1840,

que a construção da Estrada do Piquiry passou por dentro de um dos sítios onde os

indígenas estavam alojados. Os povos originários, descontentes com essa interferência,

tentavam a todo modo impedir a passagem de viajantes, que buscavam a todo custo, por

sua vez, “conseguir ainda o exclusivo uso de antigas possessões”.6

Em 1840 afirma este documento oficial que os indígenas foram acusados de

atacar o fazendeiro Capitão Victoriano José de Couto, em São Lourenço, onde tiraram a

vida de duas pessoas, e uma terceira ficou ferida por flechas. Conforme a narrativa,

“mataram o gado e quando não destruíam, roubavam as plantações”.

Na tentativa de controlar as ações indígenas, o presidente da Província

encaminhou bandeiras para afugentá-los desses sítios. O Relatório ainda aponta a

tentativa de inserção da mão de obra dos povos originários no trabalho cotidiano,

especialmente das fazendas e roças. Segundo o presidente da Província, Estevão de

Rezende, no ano de 1839, vários grupos dirigidos por seus caciques foram até Cuiabá,

em sua presença, oferecer serviços. De acordo com esse relatório, o presidente mandou

que fossem entregues aos indígenas Cayapó, que estavam aldeados na estrada perto da

construção do Piquiry e em Sant‟Anna, ferramentas próprias para o trabalho na lavoura,

ou que fossem consertadas as que possuíam, sendo ainda entregue “algum vestuário de

tecidos grossos”7.

Estevão Ribeiro Rezende foi indicado à presidência da província de Mato

Grosso em 1839. Em um dos ofícios8, enviados ao Coronel José da Silva, exigia de

imediato, a partir de sua administração, que houvesse a continuidade da construção da

estrada do Piquiry e pedia auxilio ao dito coronel, ao entender que:

[...] desde logo um dos mais importantes assuntos da administração a

nova estrada denominada Piquiry, entre esta província e de São Paulo,

por ser esta de reconhecida vantagem e de um vital interesse para o

comércio e para a comunicação. Fui informado de que Vossa Senhoria

6 Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso Estevão Vieira de Rezende, enviado à Assembleia

Legislativa Provincial em primeiro de março de 1840. Cuiabá: Tipografia Provincial, 1840. 7 Idem.

8 Documento 56 (estante 05) Província de Mato Grosso- registro de correspondência oficial com o interior

da província (1838-1839). Arquivo Público de Mato Grosso. Cuiabá-MT.

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aos muitos bons serviços prestados à província e ao estado

acrescentara a não menos relevante de aceitar a inspeção e direção

desta importante obra. Sei dos zelos com que vossa senhoria tem

prestado a um a tão importante comissão e contando certo com a

continuação de tão uteis funcionalidade asseguro a vossa senhoria que

da parte deste governo continuara a achar sempre a mais decisiva

cooperação pra tudo que disse respeito à mesma estrada na firme

convicção de que este só mantenha o comando dos povos, e

prosperidade do país9.

Nos relatórios de província, percebemos a urgência e a preocupação dos

presidentes na construção de estradas e de vias fluviais que facilitassem o acesso,

circulação de produtos, animais e sujeitos entre as províncias. Escravizados e pobres

livres, como os agregados e camaradas, seguiam juntos, abrindo estradas e

possibilitando, mesmo que de modo incipiente, a circulação das mercadorias, garantia-

se a circulação econômica e de pessoas na província.

Ao pensarmos na necessidade da construção e adequação das estradas,

destacamos o dinamismo esperado pela administração com a realização da aqui em

destaque estrada do Piquiry. Em 13 de agosto de 183810

, José da Silva Guimarães, vice-

presidente da província, envia a José Gonçalvez da Silva, comandante do destacamento

militar do Piquiry, um oficio regulamentando e indicando, em formas de doze artigos ao

modo de leis, ações que deveriam ser tomadas com urgência para a finalização da

construção da estrada. Dentre os artigos, destacamos o 3º ao dizer o vice-presidente que:

Não constando a atual Povoação do Piquiri senão de pouco e

acanhados ranchos de palha em um lugar baixo, qual o em que se acha

úmido, pouco arejado, falta de matos próximo, rodeados em pouco

distância e pelo lado superior de grandes formigueiros, com dois

lamaçais mui próximo e por isso sujeito a febres intermitentes. A barra

do Tanguá e ali foi encontrado um leito de sobejas proporções para

uma povoação, e é a extrema de um extremo e achatado espigão que

vem morrer e em campo na beira do Piquiri terreno firme, pedregoso,

barrancos altos dos dois lados superiores as maiores enchentes e

excelentes para pontes, tem além disso ótima água, bons matos tanto

para a edificação como para a colheita extensa vista extensamente

assente para uma grande cidade. É este o lugar para onde o governo

tem resolvido fazer (vida) sobre a dita Povoação até por que do

talaria se endireito de estrada a ele encurtando mais duas léguas de

caminho que também encurta do lado de quem, quer a estrada siga por

baixo que por cima da serra. Este lugar que por terra fica coisa de um

quarto de légua em linha reta, rio abaixo de atual Povoação desta pelo

rio, seguindo-se suas voltas, provavelmente mais dez léguas e depois

outro benefício resultante da mudança fazem a povoação mais em 9 Doumento56 (estante 05) Província de Mato Grosso- registro de correspondência oficial com o interior

da província (1838-1839). Arquivo Público de Mato Grosso. Cuiabá-MT. 10

Documento 59. Caixa 1836-1840. Delegacia de Governo. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso.

Cuiabá-MT.

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baixo porque as canoas descem até a barra do Taquari descarregando

indo as cargas em carros até ali por causa da pouca água como da

muito tranqueira do rio11

.

No decorrer do documento, o vice-presidente ainda aponta a necessidade da

construção de ranchos para armazenamento dos produtos, alimentos e ferramentas de

carpintaria aos trabalhadores do destacamento. Também solicita o envio de praças para

cuidar da segurança da população do local, ao observar que: “Pediu avisar ainda, que

deveriam escolher e designar o sítio em que deve ficar a nova povoação o melhor local

para os edifícios que se tem que fazer”.12

E após a escolha do local, era necessário

começar imediatamente o corte de “todo o madeiramento que eles desmatarem”,

regulando, porém, o número de trabalhadores que tem a sua disposição. O documento

não aponta quais eram esses trabalhadores responsáveis pela abertura e construção das

estradas, mas o artigo 11 nos dá indícios da possível participação dos indígenas

“civilizados e catequizados” na construção da estrada. Segue o documento:

Tendo já sido copedida por este governo em diversas épocas muitas

ordens que devem existir em poder do coronel José Gonçalvez, atual

comandante do Piquiry, relativos a proteção devido aos Índios

Cayapós existentes na povoação, e cuja catequese e civilização tanto o

mesmo governo se tem desvelado em promover com tais as forças,

fora acaso referir aqui o contesto deles. Cumpriam poderem ele em

vistas e cuidar muito da educação desta horda de Índios de cujos

serviços se puder desejar tirando grande partido13

. E pelo que

respeita aos povoadores que entrarem e se quiserem estabelecer no

lugar, deverá prestar-lhes toda a proteção, que estiver ao seu alcance

anima-los assegurar-lhes a contemplação do governo e chamar assim

por intermédio deles outros novos povoadores, com os quais praticara

o mesmo, participando tudo quanto for acorrendo neste assentamento

e solicitando as providencias que convierem.14

Percebemos que, nessas correspondências oficiais, havia uma tentativa de impor

uma legitimação na utilização da mão de obra indígena nos serviços que eram

necessários por parte da administração provincial. Embora o documento não aponte

precisamente a participação também dos sujeitos escravizados e pobres livres, não

podemos negligenciar a possível participação destes, uma vez que, historicamente, os

11

Documento 59. Caixa 1836-1840. Delegacia de Governo. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso.

Cuiabá-MT. 12

Idem 13

Grifo nosso 14

Documento 59. Caixa 1836-1840. Delegacia de Governo. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso.

Cuiabá-MT.

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trabalhos braçais, mais forçosos, não ficavam com os detentores da terra e do poder

econômico e político.

1.2 Relatórios de Província e os Cayapó no cotidiano e trabalho em Sant’Anna do

Paranahyba

Para análise acerca da resistência da população indígena em Sant‟Anna do

Paranahyba e arredores, contamos, sobretudo, com os indícios presentes nos relatórios

de província e em outras correspondências oficiais produzidas naquele contexto

histórico15

. Os relatórios, em geral, eram realizados anualmente e não temos

informações sobre os documentos dos anos que faltam, mas supomos, até mesmo por

questões apontadas nos relatórios, que seja por questões de conservação dos arquivos

imperiais.

O relatório de 1838, assinado pelo Presidente da Província de Mato Grosso, José

Antônio Pimenta Bueno, ao apresentar problemáticas na organização da repartição,

destacou:

Grande parte dos Livros de registros dos atos da administração e de

outros documentos importantes achava-se além de desencadeados, em

deterioração; e por falta de plano na distribuição de materiais; não

permitiam divisão em coleções sistemáticas, o que é de muita

utilidade tanto para obter-se com facilidade qualquer documento, (...).

Possa evitar-se nas mudanças dos secretários do Governo, o extravio

que a Secretaria já tem sofrido16

.

Percebemos que o problema de conservação se prolongou durante todo o

Império. Em 1845, o Presidente Ricardo José Gomes Jardim afirmava que a falta de um

Oficio Arquivista contribuía para a manutenção do extravio de papeis e que, segundo o

presidente, eram constantes as mudanças de secretários e presidentes e nessas mudanças

muitos documentos ficavam perdidos. Neste sentido, o presidente aponta a necessidade

de um arquivista:

Não seria de pouca vantagem a indispensável ação de um arquivo

público provincial, que servisse de fiel depósito de todos os

documentos que podem ministrar luzes sobre a história, se não

também dos títulos que mui de perto interessam a província e até o

império17

.

15

Os relatórios estão disponibilizados online e também em forma de microfilme no Arquivo Público de

Mato Grosso, na cidade de Cuiabá-MT, totalizando número de 18 relatórios entre os anos de 1835 a 1889. 16

Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso José Antônio Pimenta Bueno na abertura da

sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial em10 de maio de 1838, Cuiabá, Typ do Echo

Cuiabano. 17

Idem.

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O discurso do presidente da província, Ricardo José Gomes Jardim, nos

apresenta indícios da intencionalidade da produção dos relatórios, por entender os

documentos como aqueles que podem ministrar luzes sobre a história, evidenciando as

duas questões fundamentais sobre a elaboração do discurso oficial. Primeiro que há o

objetivo de permanência desses discursos; segundo, que os discursos são „verdadeiros‟ e

fazem parte do construto da história.

A elaboração dos relatórios provinciais, bem como do aparato que permitia a

construção desses relatórios, estavam presentes em todo o Império. Os relatórios eram a

soma das falas dos administradores com a representação máxima da província, o

presidente.

Como cargo de presidentes de província regularmente instituído em 20 de

outubro de 1823, os presidentes das províncias do império eram nomeados pelo

imperador e possuíam funções administrativas, executivas e, por vezes, judiciarias.

Como não havia um mandato que assegurasse os presidentes em seus cargos, era

preciso mostrar anualmente, a partir de 1834, suas ações para provar o controle de todas

as autoridades administrativas frente ao imperador. De acordo com Aldabalde (2010),

deveria acontecer no mínimo uma assembleia no ano, momento em que:

O presidente deveria levar sua fala, que seria base para o relatório

impresso e publicado posteriormente. Antes de serem encaminhados

às tipográficas, os relatórios dos presidentes eram confeccionados

como discursos político-administrativos autógrafos para serem lidos

aos deputados e continham descrições detalhadas do estado em que se

encontrava a província [...] (ALDABALDE, 2010, p. 15).

Os discursos apresentados, portanto, nas assembleias provinciais, eram a

materialização e a realização dos poderes atribuídos aos presidentes de província, como

prova ou não de sua boa condução dos “rumos da província”. Sabendo, ainda que

minimamente, sobre a construção e objetivos dos relatórios de província, vale indagar:

de que modo o historiador pode recorrer a estes documentos para sua análise? E,

sobretudo, de que forma encontrar indícios das histórias dos sujeitos marginalizados

pelo discurso oficial?

A proposta de assimilação pensada nas reformas Pombalinas no século XVIII

ganhou força nos discursos dos representantes políticos no século XIX. De acordo com

Almeida (2007), após o período de Independência o Estado Imperial trabalhou em torno

da criação de uma identidade unificada da sociedade do império, momento em que

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predominava o modelo europeu de modernização, higienização, visando legitimar a

inferioridade dos indígenas e negros frente aos brancos e, substancialmente, aos

membros das elites. A autora afirma também que:

Aos políticos e intelectuais do Brasil cabia homogeneizar populações

extremamente diversas do ponto de vista étnico e cultural, unificando-

as em torno de identidade e histórias comuns. [...] A enorme

diversidade de populações indígenas no território brasileiro dificultava

não só a aplicação de uma política de caráter geral, como também a

construção de uma única imagem de índio condizente com os ideais

da nova nação. Do ponto de vista político, pregava-se o

assimilacionismo, com procedimentos diversos, como já vinha

ocorrendo desde o período pombalino. Do ponto de vista ideológico,

discutia-se a possibilidade de tornar o índio símbolo nacional (

ALMEIDA, 1997, p. 27).

Imersas nessa divergência sobre qual seria a imagem do índio no Império, outras

questões foram levantadas. Como seria possível o símbolo nacional ser um elemento

que durante todo o século XIX fora considerado como uma „praga‟ que atrapalhava o

desenvolvimento das diversas províncias do império?

Ainda que em certa medida a historiografia tenha tornado marginais e por vezes

invisíveis as ações desses sujeitos, Almeida (1997) nos chama atenção para o papel do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no século XIX, bem como os romances,

relatórios de província e as discussões presentes nas instituições de regulamentações

políticas, as quais evidenciam “ a atuação desses povos ao longo do século XIX, atuação

essa que, como em períodos anteriores, influenciavam os rumos das políticas para eles

traçadas” (ALMEIDA, 1997, p. 28).

Utilizando-se das referências de Campestrini (2006), Borges (2012) aponta que

havia, na localidade em estudo, assim como por todo o império, por parte dos

representantes da região, uma tentativa de inserir os indígenas nas fazendas de criação

de gado em Sant‟Anna do Paranahyba, o que entendemos como uma prática da política

assimilacionista. Nesse território, segundo a autora, era realizado o trabalho de forma

forçosa, uma “forma de violência associada à escravidão por dívidas” (2012, p. 56),

prática comum nas fazendas de gado pelo sul de Mato Grosso pelo XIX e XX.

Silva entende a partir da análise das fontes relativas à localidade em questão, que

essa assimilação aproximou os indígenas da categoria considerada pela autora de

“pobres livres”, ao entender que essa assimilação:

[...] deu-se de forma precária, nos grupos mais pobres da sociedade,

engrossando a já heterogênea camada dos pobres livres, e sendo,

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provavelmente, os mais desvalidos entres estes, já que, devido à sua

origem, os indígenas não parecem ter sido integrados sem distinção

entre os demais (SILVA, 2014, p. 25).

Assim, mesmo considerados como similares a categoria de pobres livres, por

não serem possuidores de terras ou outros bens e tão pouco se encontrarem na condição

de escravizados, cabe destacar que os indígenas tinham suas especificidades enquanto

grupo de resistência, e isto é perceptível, sobretudo no olhar vigilante dos aparatos de

controle provincial.

Desde o período das monções a captura de indígenas e a tentativa de controle

sobre estas populações se fez notória no sul de Mato Grosso. Conflitos que se

prolongaram por todo o império, como apresentado no relatório de 1871, por Francisco

José Cardoso Junior, são perceptíveis.

O presidente da Província, neste documento, mostrava-se preocupado com as

hordas de índios que ele supôs serem Cayapó, aldeados em Sant‟Anna do Paranahyba,

pela perseguição empregada aos engenhos do major João Capistrano e do finado Lara e

Sampaio. Descreveu que após assassinar e incendiar as plantações e algumas

construções, os indígenas roubaram a população. O presidente também notava que:

[...] não abandonam as ferramentas, aparecendo muitas em Sant‟Anna,

no respectivo aldeamento. Além deste fato que faz presumir que esses

índios já conhecem o trabalho agrícola, e que ali residem, existe um

outro mais significativo, e vem a ser o falarem, mais ou menos, o

idioma português, quando por acaso são vistos18

Não podemos afirmar, a partir das fontes, se essa assimilação ocorreu como

desejada, pois temos, de forma mais pontuada, somente a visão dos representantes das

províncias acerca do que ocorria na localidade em estudo. Cabe destacar que ao lermos

o discurso presente nos relatórios temos que manter em mente a intencionalidade deste

documento. Não queremos, portanto, descobrir a verdade dos fatos, já que a verdade

não está consolidada no documento e o historiador encontra possibilidades de algumas

realidades à medida que lança questionamentos ao documento enquanto fonte. Neste

processo orgânico e dialético, atribui significação as suas fontes sem anular sua

subjetividade, processo denominado por Bloch de história-problema.

18

Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso o Capitão de Fragata Augusto Legerver na

abertura da sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial em 10 de maio de 1851, Cuiabá, Typ

do Echo Cuiabano, 1852.

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Neste sentido, podemos levantar alguns questionamentos à inserção dos

indígenas nos mundos do trabalho em Sant‟Anna do Paranahyba. Do modo como essa

inserção é apresentada no relatório de 1840, ela foi em certa medida alcançada uma vez

que os indígenas em questão apresentaram proximidade com as ferramentas e produção

agrícola. Somado a isso, o fato de “falarem, mais ou menos, o idioma português” pode

contribuir para pensarmos a imposição da língua dos colonizadores na linguagem

cotidiana indígena.

Não podemos negar a proximidade em que viviam negros, indígenas, pobres

livres e homens e mulheres de algumas posses no cotidiano de Sant‟Anna de

Paranahyba. Contudo, cabe evidenciar que a intenção do relatório era apresentar ao

governo imperial os rumos da província. Há, portanto, no texto, uma tentativa de

afirmar que por aquela localidade as propostas de controle indigenistas funcionavam.

Os Relatórios de Província compõem um grande quadro de documentos oficiais

e, como podemos perceber, os indígenas quase que invariavelmente aparecem como um

problema a ser exterminado, quando não catequisados e silenciados, ao serem descritos

como sujeitos errantes, que roubavam, matavam, além de serem associados a

brutalidades contra a segurança individual e de propriedade. O discurso da civilização e

da catequese, presente invariavelmente como uma preocupação dos presidentes da

Província, carrega também o significado de ensinar aos índios o modo de vida, a

religião e o comportamento dos não-índios.

Vasconcelos (1999), ao analisar os relatórios de província e a política indigenista

do século XIX, destaca que os cargos de Diretor Geral de Índios, capitães de aldeia e

todo o aparato considerado necessário para a civilização e catequese dos indígenas

foram marcadamente notados no ano de 1845, na província de Mato Grosso, com

objetivo de construir os aldeamentos indígenas, afastando os povos originários “das

áreas cobiçadas” (1999, p. 102) como, por exemplo, o caminho da estrada do Piquiry.

Aparentemente, as dúvidas em relação a esses povos e de que modo os tratar se

estenderam por todo o império. A tentativa de catequizar os Cayapó e civilizá-los, assim

como a outros grupos indígenas presentes no norte e sul da província, era um dos

interesses da administração provincial, mas, em contrapartida, cuidar da vida e da

segurança da população que constantemente se sentia ameaçada por sua presença, era

um desafio aos mantenedores da lei e da ordem.

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Em vista desse cenário, uma década antes da imposição da Lei de Terras de

1850, Estevão Ribeiro de Rezende apontava as dúvidas de como proceder com as

populações indígenas na região:

Se por um lado senhores, a razão e a humanidade exigem que se

continue a tentar a catequese e a civilização daquelas nações, tão

ferozes, como numerosas, por meios brandos, por outro é forçoso

atende o clamor dos povos contra sua hostilidade, garanti-lhes a

segurança da vida, e dos bens, e decidir-se esses selvagens a preferir a

paz á guerra. Para qualquer destas medidas espero que continuareis á

votar a soma, que fosse possível, na certeza de que o governo regulará

convenientemente a sua aplicação.19

Ferreira Junior (2016) entende, a partir da análise dos relatórios de presidentes,

que os frequentes ataques às diversas localidades do território era, segundo a visão dos

administradores, um atraso ao desenvolvimento da província. De acordo com o autor:

Os constantes sobressaltos vividos pelos moradores em função dos

ataques dos índios era, na visão dos administradores, um dos motivos

pelos quais a província não atraia o interesse dos colonos estrangeiros

e assim dificultava o seu desenvolvimento. Nesse sentido, era

necessário atender as demandas dos moradores ameaçados de novos

ataques e para isso expediam-se bandeiras com o intuito de afastar os

índios e prevenir novos ataques (FERREIRA JUNIOR, 2016, p. 13).

Além das bandeiras que visavam à captura desses sujeitos, leis, cargos e diversas

estratégias de inserção dos indígenas ao cotidiano de trabalho foram criadas para tratar

da questão do índio no império. Silva e Borges (2013), ao analisarem também os

relatórios de Província, entendem que as estradas no contexto do império possuíam

importância econômica, política e militar. “Eram imprescindíveis para o

desenvolvimento da lavoura, possibilitando o transporte de ferramentas e outros

insumos necessários ao cultivo e posterior escoamento e comércio dos gêneros

produzidos” (2013, p. 360). Além de serem espaços de circulação de pessoas e

informações, uma vez que:

Partindo de Cuiabá, a estrada do Piquiri atravessava o rio São

Lourenço saindo no destacamento militar do Piquiri, que ficava entre

rio homônimo e o rio Correntes. Deste destacamento atravessava o rio

Taquari e seguia rumo à Sant‟Anna do Paranahyba onde permitia

acesso às províncias de Minas Gerias e de São Paulo, encontrando

passagem nos portos Alencastro (no rio Paranaíba) e Taboado (no rio

Paraná) respectivamente (SILVA E BORGES, 2013, p. 357).

19

Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso Estevão Ribeiro Rezende, na abertura da Sessão

Ordinária da Assembleia Legislativa Províncial em 1º de março de 1840 p. 17

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O trajeto, como visto, não ocorria de forma natural, já que não é possível

considerar somente as passagens de uma localidade a outra. No meio do caminho, do

vai e vem de pessoas, mercadorias e correspondências oficiais, homens, mulheres e

crianças indígenas resistiam ao desfazer de seu cotidiano pelos rumos da economia da

província.

A compreensão de caminhos e fronteiras, apresentadas nesta dissertação, vão

além das questões dadas pela natural. Percebemos que os caminhos são construídos de

acordo com as demandas da comercialização, da economia da região, mas também são

construídos nos movimentos de contração e retração dos sujeitos, como, por exemplo, a

presença dos Cayapó por esses caminhos aqui em questão. Embora houvesse a

necessidade, de acordo com os administradores da província, de se estabelecer essas

linhas de acesso, havia também o elemento indígena resistindo a essas construções.

Neste sentido, podemos compreender que os caminhos, estradas e fronteiras são espaços

construídos nas relações sociais, políticas, econômicas e culturais vividas pelos

diferentes sujeitos.

Silva e Borges (2013) ao analisarem a correspondência de Estevão Ribeiro

Rezende ao inspetor de estradas, evidenciam a necessidade dos representantes

provinciais em livrar-se de qualquer “embaraço” que pudesse impedir a construção e a

livre passagem do comércio. Os Cayapó eram entendidos, como apontam as autoras,

segundo os documentos oficiais como “pragas” que precisariam ser desinfestadas dos

caminhos.

Era objetivo dos representantes da província garantir a ordem e a segurança do

interior da província, o que implicava tomar medidas para conter as ações das

populações indígenas, como bandeiras com o objetivo de caça aos indígenas,

aldeamentos e catequização, como destaca Vasconcelos (1999) ao estudar os relatórios

da Província de Mato Grosso:

Os governantes – acuados por interesses locais- tinham que tomar

decisões imediatas e práticas no sentido de garantir a ordem no

interior da província. Foram muitas as reclamações registradas. A

maior parte vinha de proprietários de terras que acusavam os índios de

roubos, invasões e assassinatos (VASCONCELOS, 1999, p. 47).

Silva (2014, p. 57) aponta que esse contato se dava de forma “quase sempre

conflituosa e violenta, pois esses povos originários, quando não dizimados, foram

marginalizados, separados em aldeamentos, ou mesmo „assimilados‟ ao sistema social

recém-chegado”. Essa inserção se dava, como apresenta a autora, costumeiramente na

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utilização da mão de obra desses povos nos trabalhos presentes na região em

construção, como, por exemplo, na abertura de caminhos entre os matos, no trabalho

nas roças com o cultivo de alimentos, na constituição de milícias particulares, entre

outras atividades de interesse dos poderes locais e provinciais.

Cunha (1987) aponta os limites do discurso oficial do século XIX prevendo o

desaparecimento dos indígenas, pautado posteriormente numa invisibilidade

historiográfica, uma vez que, ao revés desta afirmativa, os indícios das ações dos

indígenas estão presentes na documentação oficial, sendo possível evidenciar suas

experiências de resistências nos sertões, vilas, aldeias e em diversas outras localidades

do Brasil Imperial, reagindo a múltiplas formas de aplicação das leis que tratavam da

“questão do índio” no império.

Nas entrelinhas da documentação oficial, podemos evidenciar a resistência dos

povos indígenas frente ao processo de colonização dessas terras, ou seja, em face da

“conquista” e do afazendamento das famílias que chegavam a Sant‟Anna do

Paranahyba, especialmente a partir da década de 30 do século XIX, trazendo consigo

alguns escravos e parcos recursos. Porém, as histórias das populações indígenas não

podem ser reduzidas ou somente associadas à violência, a submissão e à catequese.

É preciso entender que a vida indígena no sul da província de Mato Grosso não

fora menos violenta como em tantas partes do território colonial e imperial, porém teve

as suas especificidades. Borges (2012) ao analisar os documentos oficiais destacou que

“tais fontes revelam o lugar ocupado por esses povos nas práticas e no imaginário da

administração provincial e de grande parte dos habitantes do lugar nos séculos XIX e

XX”.

Como se depreende deste capítulo, durante o período imperial indígenas eram

entendidos como problemas de ordem pública. As autoridades precisavam estar atentas

às movimentações, às rebeliões e tudo o que poderia, de alguma forma, pôr em risco a

paz pública. O mesmo ocorria com os escravizados, foco de abordagem do próximo

capítulo e eixo central desta Dissertação.

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CAPÍTULO II

ESCRAVIDÃO EM SANT’ANNA DO PARANHYBA A PARTIR DOS

PROCESSOS-CRIMES

Neste capítulo, objetivamos discutir as possibilidades e dificuldades de analisar

os processos-crimes para a compreensão da vida escrava em Sant‟Anna do Paranahyba.

Para tanto, utilizamos os processos-crimes para contar histórias em que os escravizados

aparecem, sejam como vítimas, réus ou testemunhas. Pensamos, nessa perspectiva, nos

limites de imaginação que o historiador pode se utilizar quando os documentos nos

faltam.

2.1 Negros/as escravizados/as e os espaços de trabalho e resistência: os limites

documentais

Era maio de 18821, em Sant‟Anna de Paranahyba, sul de Mato Grosso, por volta

das onze horas da manhã, Laudislau Telles Antunes escutou, vindo de sua roça, dois

disparos de arma de fogo. Horas depois seu filho Jeronimo, que trabalhava na roça, veio

dar a notícia de que o preto, José Benedito, havia sido alvejado com dois tiros, pelo

fazendeiro da roça vizinha, conhecida como Retiro do Quarteirão dos Dias, de Faustino

Antônio Alves Dias.

De acordo com Jerônimo, Faustino queria impedir José Benedito de trabalhar na

roça em que Laudislau, seu patrão, havia mandado. A partir da resistência de José

Benedito, Faustino fez uso da arma de fogo para contê-lo acertando um tiro no umbigo

e outro no lado direito do peito, causando-lhe morte repentina.

Ladislau, sendo testemunha informante, disse também não saber da morte do

negro, mas é certo que duas contas de ouro que estavam no pescoço de José Benedito e

1 Paranaíba, caixa 115, processo criminal. 1882. Documento histórico 4010. Arquivo do Tribunal de

Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande-Mato Grosso do Sul.

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sua garrucha desapareceram. Todas as testemunhas que depuseram a favor do réu

acreditavam que houve uma armação, por parte de Ladislau, para culpar Faustino por

vingança. Sendo concunhados, havia, segundo os depoimentos, contenda antiga que o

processo não aponta. Todavia, em meio a esse processo criminal, nesse momento, o que

nos interessa saber mais é acerca dos indícios das relações entre senhores e escravos em

Sant‟Anna de Paranahyba.

Arroladas as testemunhas, João Batista da Silva, conhecido pela alcunha de

Ganjão, de quarenta anos de idade, casado, lavrador, natural da Província de Mato

Grosso e morador daquele termo, disse que na sexta-feira da mesma semana do crime

Ladislau lhe pediu ajuda para encontrar o cadáver do preto em sua roça. Ao chegarem à

roça – Ladislau, João Batista, Antônio Rodrigues e Jeronimo – perceberam sinais de

arrastados que indicavam para a roça de Faustino. Seguindo os sinais, acharam o corpo

de João Benedito e também encontraram os projéteis de tiro do lado direito, mas Ganjão

afirmou não saber os motivos que levaram ao crime.

Francelino Correia Rangel, sessenta e cinco anos de idade, casado, lavrador,

natural da Província de Minas Gerais; Joaquim da Costa Alecrim, quarenta anos de

idade, casado, natural da Província de Pernambuco, todas essas testemunhas disseram

que sabiam por ouvir dizer que havia entre os dois fazendeiros certa intriga, mas não

sabiam a razão de origem. E também era por ouvir dizer que sabiam da morte do José

Preto, mencionado por eles como camarada de Ladislau.

Mas, Joaquim Lemos de Freitas, de cinquenta anos de idade, casado, lavrador,

natural da província de Minas, morador do termo, ao ser questionado sobre a morte do

preto José Benedito afirmou que Ladislau atribuía o crime a Faustino como forma de

vingar-se de brigas anteriores. Consta ainda em seu depoimento que, na noite da morte

de José Benedito, Faustino teria dormido em sua casa, distante três léguas do local do

crime.

A quinta testemunha, Antonio Pedro de Morais, de vinte e nove anos de idade,

casado, lavrador, natural da Província de Mato Grosso, morador em Sant‟Anna, também

afirmou em seu depoimento o que dizia Joaquim Lemos de Freitas, pois ambos

dormiram na casa de Joaquim. A morte ocorreu, e alguns indícios apontados pelo

processo são interessantes para pensarmos as relações de trabalho e o convívio

estabelecidos entre senhores e escravizados em Sant‟Anna do Paranahyba nas últimas

décadas da escravidão. A começar pelo fato da incerteza acerca das condições de

trabalho de José Benedito, uma vez que ora aparecia na figura de escravo ora na

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condição de camarada. Duas hipóteses podem ser levantadas a partir dessa observação.

A primeira é a de que José Preto poderia ser escravizado por outro fazendeiro e

emprestado na condição de camarada ou empregado como escravo de aluguel à

Ladislau. A segunda é a de que poderia ter sido liberto e ainda continuar prestando

serviços ao seu antigo senhor.

Machado (1988) considera que as condições de escravo de aluguel e ao ganho

eram modalidades notadamente urbanas. Eram formas de se trabalhar por “jornadas”,

por determinado tempo de serviço ou tarefa a ser realizada. A modalidade de jornaleiros

– quem trabalha por jornadas – também era presente entre os homens e mulheres pobres

e livres. Ao pensarmos nos escravizados em Sant‟Anna do Paranahyba, podemos supor

as referidas condições de trabalho também no meio rural, em que as jornadas de

trabalho poderiam ser desenvolvidas em condições pré-estabelecidas com o senhor, aos

finais de semanas ou dias santos, como uma forma de obter recursos próprios. Talvez

tenha sido com esses recursos que José Benedito tenha possuído os objetos que o

processo apresenta: “duas contas de ouro e uma garrucha dentre outros objetos não

descritos”

No contexto posterior a Lei de 1871 foi permitida acumulação de pecúlio aos

escravizados para a compra da liberdade. Ainda, pequenos trabalhos desenvolvidos no

meio urbano e no rural talvez tenham sido fundamentais para a conquista da liberdade

em todo o território do Império. Cabe destacar que a definição e a distinção entre urbano

e rural aos arredores das vilas são ações um tanto difíceis no contexto do XIX.

Machado (1988) também salienta que o dinheiro acumulado pelos trabalhadores

escravizados advinha de variadas atividades desenvolvidas dentro da lógica de uma

economia escravista. As atividades eram realizadas no tempo livre, conquistado nas

brechas que se instituíam no interior da produção das fazendas e engenhos, entre outros

espaços. A constituição de pequenas roças em muitas propriedades era permitida pelos

senhores e realizada pelos escravos como modo de produção de alimentos para suas

famílias e mesmo para juntarem certo pecúlio, com a venda do excedente.

Esta autora aponta outras atividades, com fins lucrativos, realizadas pelos

escravos, sobretudo nas cidades e vilas, como, por exemplo, a venda de peixe, de frutos

silvestres, demonstrando a autonomia escrava com relação a sua formação de pecúlio e

uma forma de economia paralela. Tais ações, como sugere Machado (1988), podemos

considerar que constituíam uma microeconomia escrava. De acordo com a autora, além

do trabalho no interior das fazendas:

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[...] ainda outras atividades escravas autônomas devem ser

consideradas: o artesanato, a pesca e coleta, a prestação de serviços

remunerados realizados dentro ou fora das fazendas, no tempo livre

disponível pelo escravo, as gratificações e prêmios embutidos no

próprio regime de trabalho das fazendas, finalmente, e porque não, os

furtos e desvios da produção agrícola empreendidos pelos escravos,

que constantemente atormentavam a vida dos senhores. (

MACHADO, 1998, p.158)

Ao pensar em Sant‟Anna devemos considerar que neste contexto, a localidade,

embora tivesse sua economia baseada na pecuária e na produção de alimentos – marca

essencialmente rural –, havia em seus espaços alguns signos do que era considerado

cidade no século XIX, como: ruas, igrejas, câmara municipal e etc; os quais podem ser

compreendidos por meio de construções, monumentos e representações sociais, como a

representação da modernidade.

Mas, o que importa nessa discussão é a apreensão da presença dos negros e

negras, escravizados e libertos, nesse espaço urbano e, ao mesmo tempo rural, ou

melhor, em uma localidade que não tinha a característica de grande centro: a vila de

Sant‟Anna. Todavia, as preocupações das elites locais se assemelhavam às das elites

urbanas do país no século XIX, qual seja: o controle que deveria haver sobre quais

lugares os negros livres deveriam ocupar nos campos e cidades. Naquele período,

ambos os espaços, especialmente na província de São Paulo, recebiam grandes números

de imigrantes, os quais trabalhavam lado a lado com os escravizados. Mas, cabe

destacar que pelo cenário em que se encontrava Sant‟Anna no contexto, possivelmente

os escravizados encontravam-se nas condições de “jornadas” de trabalho pelos campos,

ligados invariavelmente ao interior das fazendas ou em outros espaços relacionados ao

universo sertanejo mais amplo.

Os processos-crimes disponíveis acerca de Sant‟Anna não permitem fazer um

apanhado quantitativo. Não conseguimos, desse modo, saber, de forma pontuada, se

havia mais algum sujeito na mesma condição incerta que José Benedito, mas é certo

que, embora as histórias narradas sejam sucintas, e, por vezes, não seja possível fazer

cruzamento de dados a partir de diversas fontes, apresentamos, por meio da análise dos

processos-crimes, uma possibilidade de contar histórias dos sujeitos escravizados

semelhante ao que ocorria no país, partindo de um lugar em que era comum a

designação de que se encontrava nos confins do Império.

Na análise dos processos criminais foi possível perceber que, embora ocorram

intermediações da fala – quando há fala – pelo delegado, juiz ou mesmo pelas diversas

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anotações dos escrivães, devemos entender que esses personagens existiram e

enfrentaram todas adversidades da sociedade escravista. E protagonizaram as histórias

aqui apresentadas.

A documentação da justiça criminal, à medida que “reconstrói” os fatos em

busca da “verdade”, dá indícios, como aponta Wissenbach (1998), dos detalhes, das

vidas ordinárias, dos conflitos e tensões presentes na trama do crime, evidenciando

valores e comportamentos entendidos, na época, como desviantes.

Paul Veyne (2008), ao abordar a escrita da história entende que “a história é, em

essência, conhecimento por meio de documentos”, porém a construção da narrativa

histórica insere-se numa lógica para além dos próprios documentos, pois a fonte não é o

próprio evento, mas fragmentos do mesmo, e não é possível “reconstruir” a realidade

como o ocorrido, mas aproximar-se dela, pois sempre apresentamos uma possível

explicação a partir da documentação disponível. O trabalho com documentos oficiais,

sobretudo os processos criminais, é um exercício sempre desafiador e nos faz refletir

nossos limites de compreensão acerca do passado. Limites por vezes colocados pelo

próprio documento, pelo estado de sua conservação, pela grafia típica do século XIX,

entre outras questões.

A dificuldade em interpretar o documento ou até mesmo a dubiedade

apresentada, como é o caso da condição de trabalho de José Benedito, pode acarretar

fragilidades no desenvolvimento da narrativa. Por outro lado, também sugere ser preciso

atentarmo-nos ao universo das falas das testemunhas. Recorremos então ao Chalhoub

(2001) ao compreender que:

As diferentes versões produzidas são vistas neste contexto como

símbolos ou interpretações cujos significados cabe desvendar. Estes

significados devem ser buscados nas relações que se repetem

sistematicamente entre as várias versões, pois as verdades do

historiador são estas relações sistematicamente repetidas. Pretendem-

se mostrar, portanto, que é possível construir explicações válidas do

social exatamente a partir das versões conflitantes apresentadas por

diversos agentes sociais, ou talvez, ainda mais enfaticamente, só

porque existem versões ou leituras divergentes sobre as „coisas‟ ou

„fatos‟ é que se torna possível ao historiador ter acesso às lutas e

contradições inerentes a qualquer realidade social (CHALHOUB,

2001, p. 41).

Neste sentido, as contradições nos permitem mais indagações e versões que o

conhecimento aprofundado do próprio evento criminoso. Sabemos que José Benedito

morreu, mas não sabemos ao certo se estava sujeito a escravidão ou se estava na

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condição de camarada de Ladislau. Talvez a pergunta que possa ser lançada a essa fonte

seja: o porquê dessa confusão? Qual o limite e o que distanciava e/ou aproximava um

camarada e um escravizado neste contexto? Qual o limite de suposição ou imaginação

permitido ao historiador, uma vez que a realidade em si é inatingível?

Veyne destaca que a história é uma narrativa de eventos, “ela não faz reviver

esses eventos, assim como tampouco o faz romance”. A história, segundo este autor, é

“um romance verdadeiro” (2008, p. 180). Ainda que possua uma variada documentação

interessante à pesquisa, o historiador sempre trabalha com um limite de compreensão

dos eventos e dos períodos. A apreensão ocorre sempre de maneira incompleta, por

meio dos indícios que nos chegam de várias formas. Talvez seja essa “incompletude” a

geradora do contínuo processo de (re)pensar os eventos e os modos de se escrever a

história e, possivelmente, seja ela que dê esta dinamicidade à sua escrita.

Silva (2014), ao discutir os trabalhadores pobres e livres na localidade em

estudo, entende que a categoria de camarada esteve presente desde o início de ocupação

não- indígena na região, sendo definido como um trabalhador pobre e livre que prestava

serviços transitórios, como, por exemplo, na abertura de estradas, no deslocamento de

pessoas, no transporte de gado e etc. Por vezes, os indígenas, em vista de seus trabalhos,

aproximavam-se desta categoria de camarada ao desenvolverem essas atividades. Certo

é que escravos, indígenas, pobres livres e alguns senhores – senão a maioria – dividiam

os serviços numa mesma roça, ou no transporte de gado, como aponta Silva ao utilizar

os documentos da Coletoria de Sant‟Anna do Paranahyba.

O processo-crime, que tem por vitima José Benedito, traz indícios dessa

proximidade nos espaços de trabalho. Cabe lembrar que o filho do fazendeiro Ladislau

trabalhava na roça junto a José Benedito no momento dos disparos, como aponta o

processo. A trama deixa em evidência, portanto, os estreitamentos das relações, ainda

que fosse mantida a hierarquia entre senhores e escravos.

A divisão do que seria camarada, liberto, agregado, buscando definições

fechadas acerca da função específica de cada um acreditamos que seja oriunda de uma

historiografia que tende a fixar categorias rígidas aos sujeitos históricos que, no caso,

são muito mais maleáveis, a depender das necessidades da vida. Mais uma vez somos

desafiados pelo passado e pela base documental para compreendermos que a história e

os seus sujeitos são múltiplos e não cabem em definições rígidas.

A divergência acerca da condição de José Benedito nos faz pensar na mobilidade

de trabalho desse agente social. Como observado antes: Se escravo, estava prestando

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serviço temporário a Ladislau? Se camarada, teria sido já escravizado por Ladislau ou

por algum outro senhor, e agora estava em condição livre? A essas perguntas o processo

não responde e o compromisso com o escrever a história não nos permite presumir,

apenas indagar.

Os espaços de trabalho e resistência se constituíam de múltiplas formas e não

podemos negar a violência contida na escravidão também por essas terras. Porém, a

partir das considerações de Lara (1998), percebemos que ao restringir o estudo da

escravidão à violência apenas considerando a tríade: controle, violência e disciplina,

estamos reduzindo a análise. Entretanto, do mesmo modo que não é possível reduzir as

análises somente a dimensão da violência é necessário que nos atentemos para não

cometermos a (re)docilização da relação escravo/senhor. Talvez não seja possível

compreender o processo de escravidão no Brasil, seja qual for a Província, sem

considerar a violência como uma forma de agir, quase que costumeira por parte dos

senhores e da administração imperial, no contexto do século XIX. Também por parte

dos escravizados, já que a ela reagiram. Embora não se possa resumir ou tratar esta

dimensão como único explicativo também não é possível negar a sua existência, pois

isso seria negar “as marcas” da escravidão, impressas pelos chicotes e pelourinhos,

pelas galés e assassinatos, entre inúmeras outras formas de violência.

O que é preciso afirmar, no nosso entender, é o fato de que a violência

exclusivamente explicada por ela mesma não dá conta de compreender o processo da

escravidão negra no Brasil, pois, de acordo com Silvia Lara:

[...] a violência do senhor era vista como um castigo, dominação. A do

escravo, como falta, transgressão, violação do domínio senhorial,

rebeldia. De modos diferentes sempre estiveram presentes no mundo

colonial, fazendo-o funcionar e produzir ou não (LARA, 1998, p. 21).

Ainda que Campestrini, num intuito de afastar do sul da província o passado

escravista, tenha considerado que a escravidão tenha sido amena por essas terras – como

observa a seguir – é necessária outra interpretação:

[...] no sul de Mato Grosso, os escravos não tinham o tratamento de

regiões de monocultura (café e cana-de-açúcar). Aqui os escravos

eram verdadeiros agregados, trabalhando na pecuária e na agricultura

de subsistência. Quando da abolição da escravatura em Paranaíba, já

não havia praticamente escravos, alforriados aos poucos,

principalmente por obra do padre Francisco de Sales Souza Fleury

(CAMPESTRINI, 2002, p. 128).

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É evidente a tentativa do autor em criar um discurso de diferenciação da

escravidão no sul de Mato Grosso, considerada muito mais amena, do que aquela

ocorrida no restante do país, ao referir-se aos trabalhos sobre a escravidão por essas

paragens. Entretanto, pesquisas como as de Moura (2008), Brazil (2002), Camargo

(2010), Borges (2012)2, sugerem e evidenciam a violência da escravidão na relação

senhores e escravos, numa região baseada na pecuária e também no trabalho de pobres

livres, a exemplo dos camaradas e de povos originários, os quais também se

fundamentavam nessa dimensão. Destaca-se ainda a resistência negra e o cotidiano dos

negros escravizados.

De acordo com a análise de Borges, conforme uma Correspondência Oficial de

1849, emitida pelo Palácio do Governo de Mato Grosso, havia em Sant‟Anna do

Paranahyba um “tronco que serviria de correção” aos negros e negras escravizados.

Conforme esta autora:

Para aqueles que eram considerados infratores aos olhos da lei, o

tronco servia de “exemplo”. Esse instrumento de punição e castigo, ao

ser colocado em lugar público servindo como “prisão pública”,

demonstra as agruras da escravidão e os moldes da justiça dando

subsídios para entendermos as semelhanças entre o que ocorria no Sul

de Mato Grosso e no restante do Império (BORGES, 2012, p. 58).

Neste sentido, cabe destacar que mesmo diante de suas especificidades, de

localização, colonização, quantidade de habitantes, houve pelas terras de Sant‟Anna do

Paranahyba indícios de escravidão e de violência, como houvera em todo o Império

brasileiro, havendo também resistência e luta pela liberdade.

Para a reflexão da violência da escravidão em Sant‟Anna consideramos

relevantes as afirmações de Sidney Chalhoub, ao destacar que: “A constatação da

violência na escravidão é um ponto de partida importante, mas a crença de que essa

constatação é tudo o que importa saber e comprovar sobre o assunto acabou gerando

seus próprios mitos e imobilismos na produção historiográfica” (CHALHOUB, 1990, p.

47).

2 MOURA, Z. A. de. Cativos nas terras dos Pantanais: escravidão e resistência no sul de Mato Grosso –

séculos XVIII e XIX. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2008. BRAZIL, M. do C. Fronteira

negra: Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso 1718-1888. Rio Grande do Sul:

Universidade de Passo Fundo, 2002. CAMARGO, Isabel Camilo de. O Sertão de Santana de Paranaíba:

um perfil da sociedade pastoril-escravista no Sul do Antigo Mato Grosso (1830-1888). Dissertação

(Mestrado em História). Universidade Federal da Grande Dourados, 2010. BORGES, Maria Celma.

Escravos, roceiros e povos originários em Sant’Ana de Paranaíba: terra e liberdade nos campos do Sul

de Mato Grosso (séculos XVIII e XIX). In: Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de

2012, p. 45-67.

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A violência vivida pelos sujeitos do processo em análise, por exemplo, deve ser

considerada, mas buscando compreender quais outras relações foram estabelecidas para

se chegar à concretização do ato violento que resultou na morte ou em outro fato

investigado. Na análise dessas fontes, é preciso descortinar ainda quais os interesses em

voga, bem como: Quais os agentes sociais envolvidos? Quais os limites da violência e

da escravidão? Quais as redes de negociação estabelecidas por essas terras? Elas

existiriam?

Quando nos propomos a construir a história da escravidão e da liberdade em

terras de Sant‟Anna, a partir dos processos-crimes, entre outras fontes,

irremediavelmente analisamos casos de violências e transgressões, entretanto pensamos

os processos-crimes para além da acusação e do culpado, na medida em que é preciso,

como salientado anteriormente, entender o que foi considerado crime no contexto de

análise e quais os interesses e agentes sociais envolvidos.

Baseamo-nos numa análise do social que não descarta a questão da violência,

porém não a trata como único explicativo para compreendermos as relações sociais e de

trabalho no sul de Mato Grosso de fins do século XIX. Mais do que entender o ato de

violência, é necessário pensar quais outras relações e sentimentos estavam envolvidos

nos processos, com ênfase para as formas de resistência dos escravizados nesses

espaços, em vista dos embates, dos enfrentamentos, mas também do cotidiano vivido

por esses homens e mulheres.

Visamos compreender os diversos sujeitos, considerados renegados da

sociedade, marginalizados, no seu (re) fazer cotidiano, entendendo que cotidiano

“refere-se à intimidade, aos modos de vida, ao dia a dia da existência privada, familiar,

pública, às formas de transmissão dos costumes e dos comportamentos”

(ALENCASTRO, 1997, p. 8).

Buscamos, portanto, compreender o que havia de simples, porém essencial para

a compreensão desses homens e mulheres comuns, em sua resistência e prática social,

em seu dia-a-dia, ou seja, em meio ao cotidiano A história não é feita somente por

grandes homens e seus grandes feitos; a história antes de tudo é feita no cotidiano e

habitual, nos gestos, nas práticas diárias comuns, na relação entre os sujeitos e destes

com a sociedade, seus preceitos e comportamentos. Mas, vale observar também que no

caso dos processos criminais tratava-se ainda do extraordinário, daquilo que fugia à

regra do habitual, como podemos observar em Del Priori:

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[...] a história não é produto exclusivo dos grandes acontecimentos, ao

contrário, ela se constrói no dia-a-dia de discretos atores que são a

maioria. Contrariamente as aparências, cotidiano e história não são

contraditórios. Resta analisar de que maneira se opera as relações

entre ambos, relações que colocam, sem dúvida, muitas perguntas ao

historiador, ao sociólogo ou a outros cientistas sociais preocupados em

recuperar os laços entre o social e o individual, o social e o histórico

(DEL PRIORI, 1999, p. 266).

Mas, a história também está intimamente ligada ao extraordinário, ao que foge

ao controle, ao desvio, como diria Michel de Certeau (1982). Desse modo, por mais

complexa que seja a compreensão do sujeito com o social e o social com o mundo

histórico, do individual com o coletivo, a partir de análises desses sujeitos comuns, em

seu cotidiano e naquilo que fugia à regra, visamos compreender singularidades da

sociedade santanensse frente a Brasil Imperial.

2.2 Mortes e Fugas em busca pela liberdade

Em cinco de novembro de 18823, o primeiro suplente do Juiz Municipal, Carlos

Ferreira de Castro deu entrada a uma denúncia de fuga contra seus escravos Serafim e

Luiz. Após a denúncia os escravos foram apreendidos e inqueridos sobre os motivos da

fuga. Declararam então que José Antônio Preto, réu no processo, os perseguia há muito

tempo na tentativa de convencê-los a matar ao seu senhor.

Assim que fora aberta a denúncia, José Antônio Preto foi preso por cometer

crime inafiançável, de acordo com o código, por se achar indiciado no crime de

tentativa de homicídio da pessoa de Castro Ferreira de Castro, crime previsto pelo artigo

192 do código criminal que discorre sobre homicídios e indica que a punição pode

recorrer a morte “no grau máximo; galés perpetuas no médio; e de prisão com trabalho

por vinte anos no mínimo”4.

Cabe ressaltar que mesmo cometendo um crime de fuga ou roubo, José Antônio

Preto foi indiciado por uma “possível tentativa de homicídio”. De acordo com Flores

(2012), somente a partir de 1860 fora criada uma jurisprudência que indicava como

furto e roubo a ação dos sedutores. Discorre a autora também que:

3 Processo Criminal. 1882. Documento histórico 4011. Paranaíba, Caixa 115 - Arquivo do Tribunal de

Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, MS

4 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em: 12

de fevereiro de 2016.

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A fuga de escravos em si não era considerada crime e, portanto,

teoricamente não era possível ser julgada. Em função disso todos os

processos sobre esse tema tem como réu o sedutor. O escravo figura

como réu nos casos em que ele cometeu algum crime, como roubo,

ferimento, homicídio ou tentativa de insurreição, além da fuga. Por

outro lado, a de sedução de escravos tampouco constituía um crime.

Em 1837, no entanto, o decreto 1838, do dia 15 de outubro, tornou

extensivo ao delito de furto de escravos as penas e as disposições

estabelecidas para o delito de roubo. Tal decreto serviu de argumento

para que diversos advogados tentassem enquadrar os „crimes‟ de

sedução de escravos como roubo ou furto (FLORES, 2012, p. 269).

Entretanto, mesmo esta jurisprudência tendo sido estabelecida quase duas

décadas antes da data do processo apresentado, José Antônio Preto ainda fora indiciado

pela tentativa de matar Carlos Ferreira de Castro e não pelo “crime de sedução”.

Supomos, neste sentido, que tenha sido uma escolha do próprio Juiz a natureza da

acusação, uma vez que este tinha o poder de escolher, mediante as provas, por quais

artigos indiciar o réu.

Arroladas as testemunhas, o primeiro a depor foi João José Mendes, de vinte

anos de idade, solteiro, lavrador, natural da Província de Mato Grosso, morador no

termo de Sant‟Anna. Respondeu que sabia e era certa a fuga de Serafim e Luiz, escravos

pertencentes a Carlos Ferreira de Castro. Depois de serem apreendidos declarara que

“fugiram para não matarem seu senhor, pois a muito tempo João Antônio os procurava

para esse fim”.5

A testemunha também afirmou que José Antonio Preto esteve emboscado no

caminho do canavial de Carlos Ferreira de Castro, com o intuito de matá-lo. Ao ser

inquerido da existência de intrigas entre réu e vítima, a testemunha confirmou tais

desavenças. E ainda disse que José Antônio Preto era violento, como apresentado no

documento:

Perguntado qual o procedimento do réu? Respondeu que é mau por

quanto parece a ele testemunha que o réu é inimizado na vizinhança

toda e até na casa dele testemunha o réu espancou a mulher dele réu; e

insultou a um camarada de seu pai provocando com uma garruncha.

Perguntado se o réu tinha inimizade com Carlos Ferreira de Castro?

Respondeu que sim.6

Antônio Machado, escravo de José Gomes Pinheiro, vinte e cinco anos, solteiro,

natural da Província de Mato Grosso, quando inquerido, respondeu que “sabia por ouvir

5 Processo Criminal. 1882. Documento histórico 4011. Paranaíba, Caixa 115 - Arquivo do Tribunal de

Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, MS. 6 Idem.

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dizer” que José Antônio Preto há muito tempo instigava Serafim e Luiz, escravos de

Carlos Ferreira de Castro, a matarem seu senhor. Ainda disse que trabalhou com esses

escravos e foi o próprio José Antonio que os conduziu à fuga.

Aos quinze dias do mês de Novembro de mil oitocentos e oitenta e dois, José

Antônio Bernardes, réu do processo, foi interrogado. E respondeu chamar-se José

Antônio Bernardes, ter 48 anos de idade e ser filho de João Luiz Chavez, tendo como

profissão o trabalho no meio rural. Informou ainda que era casado, natural de Pouso

Alegre, na Província de Minas Gerais, e que não sabia nem ler e nem escrever.

Os depoimentos que seguem, a completar oito, confluem na ideia da tentativa do

réu em matar Carlos Ferreira de Castro, por conflitos apontados, mas não apresentados

de modo que possamos saber as razões que motivaram, a partir da fala das testemunhas,

a tentativa de morte.

Outra questão importante apresentada no processo é o fato de conter o

depoimento dos dois escravos envolvidos como informantes. Luiz, escravo de Carlos

Ferreira de Castro, cinquenta anos, natural da província de São Paulo, respondeu que ele

e seu companheiro Serafim fugiram da casa de seu senhor por medo de serem

castigados, como ele lhes havia prometido e então, segundo consta no documento:

[...] aproveitaram do oferecimento que o acusado José Antônio

Bernardes lhes fez dizendo-lhes que os havia de esconder em tal lugar

que nunca haviam de ser encontrados, e prometeu de avisar-lhes

quando estivessem lhes procurando e os passar o Rio Grande para o

outro lado e então lhes disse que o melhor seria que eles matassem ao

seu senhor o que eles não quiseram convir. Perguntado se o acusado

estivesse com efeito de emboscada para matar ao senhor deles

informante? Respondeu que sim, que esteve de emboscada dois dias

num canavial do senhor para mata-lo, mas que não o fez por que a sua

mulher pediu lhe que não continuasse. Perguntado quais os objetos

deles escravos que até hoje existem na casa do réu desde a ocasião em

que fugiram e pousaram em sua casa? Respondeu que umas roupas

(ilegível), de tabaco, uma enxada, uma foice e uma chocolateira.

Passado a palavra ao réu para contestar o depoimento da testemunha,

encontramos as seguintes observações:

Pelo réu foi perguntado a testemunha qual foi o dia em que ele tinha

lhe falado em matar o seu senhor? Respondeu que foi em um domingo

e quando ele testemunha foi trabalhar para Roldão Gomes Ribeiro,

digo que foi na mesma ocasião que ele réu lhe disse que havia se

emboscado dois dias para matar o seu senhor. Pelo réu foi dito que a

testemunha estava faltando a verdade, pois nunca lhe tive razão para

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matar a Carlos Ferreira de Castro a quem devia muitas obrigações.

Pela Testemunha foi dito que contestava o seu depoimento7.

Percebemos, a partir da leitura do processo, que o mesmo se deu em forma de

júri, uma vez que a testemunha informante expunha sua fala e logo em seguida havia

espaço para a contestação do réu. Cabe destacar que os sujeitos em condição de

escravidão não eram entendidos como cidadãos, portanto não eram testemunhas nos

processos e sim informantes. Como percebemos no documento acima, Serafim e Luiz

aparecem como “testemunhas informantes”.

O Código do Processo Criminal do Império do Brasil, no capítulo Das provas,

no artigo 89, considera que:

Não podem ser testemunhas o ascendente, descendente, marido, mulher,

parente até o segundo grau, o escravo, e o menor de quatorze anos; mas

o juiz poderá informa-se deles sobre o objeto de queixa, ou denúncia, e

reduzir o termo a informação, que será assinada pelos informantes a

quem se não defira juramento8.

Ou seja, mesmo que não fosse testemunha juramentada pelas leis dos Santos

evangelhos, o juiz poderia ouvi-las e como apontado no mesmo artigo: “Esta

informação terá o crédito que o Juiz entender que lhe deve dar, em atenção às

circunstâncias”.

No andamento do processo, Serafim, sendo escravo de Carlos Ferreira de Castro,

também foi ouvido como testemunha informante. Pelas informações do processo é

possível apreender que tinha vinte e um anos de idade, era solteiro e natural da

província de Minas Gerais. Ao ser inquerido sobre quais razões motivaram a fuga,

respondeu:

[...] que tendo seu senhor lhe prometido de espancar então ele

informante e seu companheiro Luiz de medo resolveram fugir e que

antes disto já o acusado José Antônio Bernardes lhes aconselhava de

matar a seu senhor e fugirem; e quando passaram pela casa do acusado

e lá comeram e foram para um vale próximo e lá esteve durante os

dois dias. Até que chegou seu companheiro a fim de irem para um

quilombo que o acusado lhe ensinou e ali ficaram fazendo roça para o

mesmo acusado. Perguntado quais os objetos dele informante ficaram

na casa do réu? Respondeu que nenhum, mas que ficando umas

ferramentas e roupas de Luiz. Perguntado se ele informante sabe que o

réu ficara de emboscada dois dias no canavial para matar o seu

senhor? Respondeu que sabia disse por ter motivo o seu companheiro

falar depois que foi preso. Perguntado se o réu lhes prometera alguma

7 Processo Criminal. 1882. Documento histórico 4011. Paranaíba, Caixa 115 - Arquivo do Tribunal de

Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, MS. 8 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-29-11-1832.htm>. Acesso em: 22

de fevereiro de 2016

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coisa para matar o seu senhor? Respondeu que não e que só lhes tinha

dito que se tivessem animo matassem a ele e depois fugissem.

O documento indica que José Antonio Bernardes sugeriu como esconderijo de

fuga um quilombo9 e que ali ficaram fazendo roça para o mesmo acusado. Perguntado

acerca de quais os objetos dele informante ficaram na casa do réu, respondeu “que

nenhum”, mas que haviam ficado algumas ferramentas e roupas de Luiz. Ao ser

questionado dos motivos porque o réu ficara de emboscada dois dias no canavial para

matar o seu senhor, Serafim respondeu que sabia “por ter ouvido o seu companheiro

falar” depois que foi preso. Perguntado se o réu lhes prometera alguma coisa para matar

o seu senhor, respondeu que não e que só lhes tinha dito que se tivessem ânimo

“matassem a ele e depois fugissem”.

Dada a palavra ao réu para contestar ao escravizado, disse que o informante

estava mentindo em afirmar que ele, réu lhes aconselhou matar ao seu senhor,

perguntando qual razão de cometer esse crime contra um homem “a quem deve muitas

obrigações”.

Independente da “verdade” ou não dos motivos pelos quais José Antônio

Bernardes foi autuado, entendemos, como sugere Wissenbach, que a fuga para

quilombos e até mesmo a tentativa de morte do senhor:

[...] traduziam simultaneamente repudio à escravidão e busca

incessante da liberdade. À luz desse raciocínio, esgotadas as estreitas

possibilidades de manumissão patrocinada- alforrias resultantes do

beneplácito dos senhores ou por eles consentidas- aos escravos

restavam unicamente meios extremos que, uma vez concretizados, os

levariam para fora do mundo da escravidão. Nessa perspectiva, a

resistência escrava visava acima de tudo a destruição do regime ou

nos limites de ação individual, a negação da própria condição

(WISSENBACH, 1990, p. 19).

Entretanto, não podemos afirmar que todos os escravizados planejavam viver em

quilombos, nem tão pouco que as fugas coletivas formariam novos quilombos. Diante

da tensão da ameaça dos sujeitos libertos e fugidos e pelo fato de que cada fuga

representava uma perda na propriedade as sociedades escravistas constituíram várias

estratégias para conter essas práticas.

9 Embora não tenhamos documentos que apontem precisamente a existência de quilombos próximos a

Sant‟Anna de Paranahyba, este documento aponta indícios para um quilombo, se não próximo em espaço

geográfico, próximo nas redes de solidariedade e ajuda entre libertos e escravizados fugitivos.

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Contudo, é necessário frisar, segundo Flores (2012), que fugir não era uma

atitude tão simples ou elaborada de modo instantâneo. Era preciso ter um bom plano de

fuga que garantisse a distância da possibilidade da captura, como ocorrera com Luiz e

Serafim no processo apresentado. As penalidades atribuídas ao escravizado capturado

poderiam ser bem mais dolorosas e violentas que anteriormente à fuga.

A figura do sedutor atua, neste sentido, como facilitador da fuga, não só

pensando em estratégias, mas a incentivando com promessas de sentimentos subjetivos

como felicidade, liberdade e também interesses de uma maior concretude, como bens e

terras. De acordo com Flores:

Em todos os casos, os sedutores são pessoas livres ou libertas que

atuam persuadindo escravos a fugir do domínio de seus senhores e

seguir com eles, sedutores, para outro lado da fronteira onde,

certamente, prometiam que teriam uma vida melhor. Esse processo de

convencer os escravos que gozariam de melhores condições do outro

lado talvez não fosse o mais trabalhoso, pois havia entre os escravos

que nunca tinham fugido uma tendência de projetor uma imagem de

liberdade e de ganhos materiais no outro lado da fronteira. Os próprios

sedutores se ocupavam dessa propagada. A etapa complicada, no

entanto, era de convencer a fugir propriamente. Em alguns casos, os

sedutores levavam semanas para convencer escravos a fugir

(FLORES, 2012, p. 153).

Quando decidiam fugir, os escravizados colocavam as relações afetivas e os

bens materiais num segundo plano em busca da liberdade. Liberdade forjada na

“experiência do cativeiro”, como diria Chalhoub face à violência e poder do sistema

escravista.

2.3 Processos-crimes, camaradas e a violência em Sant’Anna do Paranahyba

Para pensarmos na condição de camaradas e a violência a que eram submetidos

em terras de Sant‟Anna do Paranahyba, vamos apresentar um processo-crime de 1892,

pois mesmo sendo posterior ao recorte temporal estabelecido, entendemos que a

construção da narrativa histórica não pode e nem deve ser delimitada a sua compreensão

em marcos pré-estabelecidos. Outra justificativa é o fato de que, em nosso entender, em

quatro anos (de 1888-1892), as relações entre senhores e negros escravizados ou

mesmo libertos, durante o sistema escravista, não seriam totalmente extintas da

sociedade com o fim da escravidão ou mudadas drasticamente, havendo muito mais

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permanências que rupturas, como sugere esta fonte ao apontar para o convívio entre

Wladislão e o ex-escravo Patrício, que, naquele contexto, conforme o processo-crime,

estava na condição de agregado e fazendo a “ronda” na fazenda.

Era janeiro e a lua crescente brilhava alto, entre nove e dez horas, aos doze dias

de 1892, na vila de Sant‟Anna do Paranahyba. A lua crescia, assim como crescia

também uma contenda há tempos travada entre João Simão e Wladislão José Garcia10

.

Mas, tudo parecia tranquilo na fazenda da Árvore Grande. Porém, a noite guardava seus

segredos: o medo, o escuro, e o suposto sono de Dona Maria Osório da Silveira e das

quatro filhas menores que tinha com Wladislão. Sentado sobre uma pequena mesa na

sala de sua casa, o fazendeiro passava algumas instruções de trabalho para a manhã do

dia seguinte a Patrício Preto, seu ex-escravo, agora “criado” ou mesmo “agregado”, que

também morava na fazenda, com sua esposa e duas filhas.

Wladislão não esperava que “ele moço”, “casado”, “fazendeiro”, “pai

responsável”, viraria em alguns segundos “um corpo a agonizar no chão frio de sua

casa”. A sala era iluminada apenas por um candeeiro. A tocaia estava armada. Por entre

as madeiras da casa de pau a pique um tiro acertou diretamente Wladislão José Garcia,

que foi ao chão, morto, quase que instantaneamente.

Como narra o processo, todos os moradores da casa ouviram os dois tiros

disparados atentando contra a vida de Wladislão. As pessoas que já estavam

acomodadas em seus leitos acordaram assustadas para ver o que sucedera. Dona Maria

Osório não acreditou ao ver “o corpo do esposo amado, do pai extremoso, do chefe de

família exalando o ultimo sopro de vida”11

. A noite então virou luto. Do lado de fora da

casa ouvia-se apenas os passos em fuga e os latidos dos cães que seguiram os assassinos

que corriam desesperadamente do local da tocaia, deixando vestígios de suas pegadas,

que dias depois do acontecido foram investigados pelos agentes policiais.

Logo após o dia do crime, a morte de Wladislão José Garcia foi anunciada aos

arredores da fazenda da Árvore Grande e toda a vizinhança foi, sem demora, prestar

solidariedade à família. Mas, entre os que compareceram a atitude de João Theodoro da

Cruz, camarada de João Simão, fazendeiro vizinho, demonstrou-se suspeita, como se ele

tivesse “uma culpa no olhar”, desviava a vista sempre que “alguém se aproximava”.

10

PROCESSO-CRIME, 1892, Paranaíba, Caixa119/05. Autora - A Justiça Pública; Réus: João Simão de

Freitas e Joaquim Theodoro Crus. Vítima: Wladislão José Garcia. Arquivo do Tribunal de Justiça de

Mato Grosso do Sul. Campo Grande, Mato Grosso do Sul. 11

Idem.

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Outra atitude suspeita foi a ausência do vizinho, o fazendeiro João Simão, no

velório. Os moradores ao redor da fazenda da Árvore Grande sabiam que havia uma

rixa entre o morto e João Simão. Mas não ao ponto da ausência em um momento tão

delicado como a morte. Sua falta foi notada e sem demora deram-se as suspeitas, por

parte dos moradores, de que João Simão, “o ausente”, mais o seu camarada, João

Theodoro da Cruz, eram os assassinos do jovem fazendeiro. Nas vendas, nas comitivas

de gado, nas compras mensais, no café de antes da lida no campo... era essa a notícia

que se espalhava.

Para esclarecer e encontrar o culpado foram arroladas, pelo subdelegado, as

testemunhas do processo. Ele ordenou que fossem intimadas para depoimentos todos

que se encontravam na fazenda da Árvore Grande na noite do assassinato. A partir de

então, deu-se a abertura das investigações e as testemunhas foram intimadas para

dizerem o que sabem ou que ouviram dizer do evento criminoso.

A fim de reconstituir os fatos e descobrir a “verdade” do que ocorrera na noite

de 12 de janeiro, a primeira pessoa a ser inquirida no processo foi Dona Maria Osório

Silvéria, de vinte e dois anos, natural e moradora do termo de Sant‟ Anna, tendo por

profissão a criação de gado, que possivelmente herdara de seu marido, conhecido na

região como um grande negociador e criador de gado. A viúva de Wladislão José Garcia

disse não conhecer o autor ou autores do crime, mas que ouvia dizer na cidade que os

assassinos de seu marido foram João Simão de Freitas e Joaquim Theodoro Cruz, “que

tinha rixas particulares com o morto”.

Dona Maria Osório Silvéria então lembrou que dois dias antes da morte de seu

esposo, Joaquim Cruz esteve em sua fazenda pedindo milho verde. Tinha a impressão

de que “antes que andava sondando”. Também constou que logo depois do crime ambos

“andaram foragidos”, mudando-se para Jatahy, no Estado de Goiás. Questionada sobre a

rixa e negócios que havia entre os suspeitos e seu falecido esposo, respondeu:

Com João Simão havia um contrato de serviços por empreitada para a

feitura de um curral e mangueiro de aroeira. Tendo-se findado o prazo

e não cuidando-lhe no serviço seu marido apresenta para o

cumprimento do contrato e ele com pouca vontade de fazer e com

vista sempre de mudar-se apesar de já se achar pago de todo o preço

do referido contrato.

A partir da fala da viúva supomos que a rixa havia começado pelo fato do não

cumprimento do serviço contratado, ou seja, o serviço fora pago, mas não realizado.

João Simão não cumpriu o prazo e não gostou de ser cobrado. Mas as testemunhas que

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seguem no processo nos dão indícios de pormenores mais antigos que possivelmente

acentuaram o fato de João Simão e seu camarada, João Theodoro da Cruz, serem os

responsáveis pela morte de Wladislão.

O testemunho de Joaquim Francisco, de 25 anos, casado, jornaleiro, natural e

morador de Sant‟Anna do Paranahyba, expôs que no dia da morte de Wladislão, de

quem era camarada, já se encontrava deitado quando ouviu um barulho da parte de fora

da casa. Levantou-se para ver o que ocorrera e o seu patrão já estava morto. Disse ainda

que:

Depois do acontecido (...) se atribuíram a culpa do crime a João Simão

de Freitas, que residia perto do lugar do delito porque além de rixas

antigas com o morto pouco antes havia questionado na entrega de um

gado que para o mesmo João Simão lhe havia dado em pagamento e,

além disso, havia entre eles um contrato que obrigava João Simão a

prestação de serviços de curral e mangueiro.

A partir deste depoimento, percebemos então que havia rixas e trabalhos

anteriores estabelecidos entre vítima e acusado. É perceptível também que era comum

que não fosse cumprido o combinado, tendo em vista a afirmativa de que se repete o

pagamento e o não cumprimento dos afazeres.

Domingos Gonçalves de Almeida, de 30 anos, casado, lavrador em terras de

Sant‟Anna, disse saber que quem havia matado Wladislão José Garcia fora João Simão

de Freitas e Joaquim Theodoro Cruz, seu camarada. Segundo esta testemunha:

Freitas havia convidado Emilio para ajudar a cometer o crime tendo

sido este convite dois ou três dias antes de sua consumação e tendo

Emilio recusado a proposta lhe pediu segredo de que entre ele

(ilegível). Ouviu também ele testemunhar a Ignácio Antônio dos Reis,

por apelido Marreco também da mesma vizinhança contar que viu

quando João Simão e Joaquim Cruz partiram em direção ao sitio

Arvore Grande para praticar o assassinato de Wladislão que nesse

mesmo dia regulando pelas dez da noite foi morto.

Domingos disse ter encontrado João Simão nas mediações da fazenda Árvore

Grande, observando que o acusado já estava de partida para Jathay, em Goiás. Nesse

encontro, a testemunha disse a ele que já sabia quem foram os assassinos de Wladislão.

Dando prosseguimento ao interrogatório, Domingos então foi questionado se sabia os

motivos que levaram João Simão a cometer tal crime. Respondeu então que:

João Simão era devedor de Wladislão e tinha com este contrato feito

para a construção de um mangueirão de aroeira, queria mudar-se sem

pagar e cumprir o contrato, Wladislão o apressava por isso, originando

ali a deliberação do crime para se libertar de compromisso que o

oprimia, e quanto Joaquim Cruz era inimigo de morte.

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Questionado se soubera quais os motivos ou razões porque Joaquim Cruz era

“inimigo de morte” de Wladislão, Domingos disse não saber. Mas a partir de suas

declarações, percebemos que, somando-se à rixa existente entre Wladislão e João Simão

– que não gostou de ser cobrado por um serviço que não fizera – havia também

inimizades que não foram possíveis apreender entre Joaquim Cruz e Wladislão. João

Simão para se livrar da tarefa estabelecida por contrato resolveu também se livrar do

contratante, utilizando-se dos serviços de seu camarada. Conforme esta testemunha, o

processo evidencia as relações de poder e de controle entre fazendeiros e agregados.

A partir dos indícios encontrados nos processos-crimes pesquisados, no decurso

do século XIX, é possível perceber as diferentes formas como eram entendidos os

homens e mulheres pobres – livres ou escravizados –, mostrando-nos o lugar incerto

desses sujeitos numa sociedade de bases escravocratas que, paulatinamente, mesmo à

revelia de seus desejos fundamentados, costumeiramente, em práticas arcaicas e de

dominação, deparava-se com projetos de abolição e aspirações de “liberdade”.

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CAPITULO III

“PELOS BONS SERVIÇOS A MIM PRESTADOS”: DAS PRÁTICAS

COSTUMEIRAS À LEGALIDADE DE ALFORRIAR

No decurso do trabalho, de início abordamos os povos originários Cayapó, os

caminhos e resistências por eles traçados em Sant‟Anna do Paranahyba, frente aos

“ditos pioneiros”, para em seguida discutirmos a escravidão e o seu reverso em

Sant‟Anna, a partir dos processos-crimes, evidenciando as formas de resistência em

busca pela liberdade. Tais ações envolveram, além dos escravizados, vários outros

sujeitos, como: agregados, camaradas e fazendeiros.

O objetivo deste capítulo é pensar as formas de alforria antes e depois da

intervenção do estado nas relações estabelecidas entre senhores e escravizados na região

em estudo. Sobretudo, visa-se analisar a experiência escrava para a conquista da

liberdade, entendendo o sujeito escravizado numa complexa rede de dominação e de

resistência, momento em que negociava, confrontava, consentia, para além do que os

documentos oficiais tinham como primeira intenção em apresentar, no contexto de sua

produção.

As cartas de liberdade e os processos criminais, à medida que apresentam

algumas das características desses agentes sociais, assim como situações por eles

vividas nesse universo de escravidão e de desejo de liberdade, possibilitam que os

pesquisadores desnudem as práticas, circunstâncias e personagens que configuram a

conquista da liberdade e ainda as relações de violência vividas naquele universo – como

na figura dos agregados – permitindo, em certa medida, a consideração do perfil do

cativo em Sant‟Anna do Paranahyba.

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3.1 “Está livre com a condição de me servir”: As liberdades condicionais e suas

definições

A Lei do Ventre Livre legalizou e permitiu que o escravo procurasse os âmbitos

jurídicos para recorrer à sua liberdade, não dependendo somente das relações de

interesses, de compadrio ou mesmo de outras amizades estabelecidas com seus senhores

antes da instauração da lei. O escravo, a partir da homologação da lei, teve possibilidade

de tomar a iniciativa legal perante o seu desejo de liberdade, porém muitos senhores em

todo o Império concederam a liberdade a seus escravos, mesmo antes da Lei 2.040, de

1871, em ações realizadas, muitas vezes, de modo costumeiro.

Cabia ao senhor, de livre e espontânea vontade, de acordo com seu desejo,

passar para o escravizado o título que possuía em garantia de sua posse, isso de modo

legal. Era necessário que o senhor ou seu procurador fosse até um cartório e

oficializasse a transferência do direito de liberdade, na denominada carta de alforria ou

liberdade, elaborada no âmbito das relações íntimas que correspondessem ao interesse

dos senhores e, acontecia de raríssimas vezes atender aos interesses dos escravizados.

Muitas dessas cartas apresentadas até o ano de 1871 possuíam condições de liberdade,

em que o senhor libertava, mas em contrapartida fazia alguma exigência ao sujeito a ser

liberto.

As cartas de liberdade que utilizamos neste capítulo encontram-se numa

coletânea intitulada Como se de ventre livre nascido fosse1(...). Neste mesmo trabalhos

encontramos revogações, hipotecas e escrituras de compra e venda de escravos (1838-

1888). Organizada por um grupo de seis pesquisadores, sob coordenação de Yara

Penteado, este trabalho foi publicado em 1993, com incentivo do Arquivo Público do

Estadual do Mato Grosso do Sul, Ministério da Cultura, Fundação dos Palmares e

Governo do Estado do Mato Grosso do Sul.

A Coletânea apresenta documentos das atuais cidades de Corumbá, Miranda,

Nioaque e Paranaíba. Interessou-nos documentos que tratassem especificamente da

pesquisa realizada em Paranaíba, por conter as cartas de liberdade e outras fontes

relativas a Sant‟Anna do Paranahyba. Embora o recorte temporal seja de 1838 a 1888, a

primeira carta de liberdade apresentada na coletânea é de 1841 e a última de 1873.

1 PENTEADO, Yara. (org). “como se de ventre livre nascido fosse...”: Cartas de liberdade, revogações,

hipotecas e escrituras de compra e venda de escravos. 1838 – 1888. Campo Grande, MS: SEJT.MS:

SEEEB.MS: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares. DF, 1993.

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Acreditamos que existem outras, uma vez que o censo de 1872 contabilizou

cerca 354 sujeitos em condições de escravidão em Sant‟Anna do Paranahyba. Diante

disso, é válido indagar: Foram esses sujeitos libertos somente em 1888? Os senhores de

escravos mantiveram as cartas de alforria por imaginarem o fim da escravidão? Não

houve auto compras? Mesmo com tantos questionamentos, cabe destacar que o objetivo

ao utilizar os documentos na coletânea é de pensar nas formas e condições de liberdade

antes de 1871, período, portanto contemplado por estas fontes 2.

A Lei do Ventre Livre3 legalizou e permitiu que o escravo procurasse os âmbitos

jurídicos para recorrer à conquista da liberdade. O escravo, a partir da homologação

desta lei, teve possibilidade de tomar a iniciativa legal perante o seu desejo de viver fora

do cativeiro, o que de certa forma ampliou a compreensão e os meios de se obter a

liberdade. Foi objetivo desta pesquisa, em particular, compreender a influência das

definições jurídicas na vida cotidiana dos escravizados e libertos em Sant‟Anna do

Paranahyba nas últimas décadas do século XIX.

Muitos senhores em todo o Império concederam a liberdade a seus escravos,

mesmo antes da Lei 2.040 de 1871, em ações realizadas, muitas vezes, de modo

costumeiro, as quais possuem diferentes compreensões relacionadas aos momentos

históricos e às especificidades do contexto. De acordo com Mattoso (1982) e Scwartz

(2001) são práticas costumeiras baseadas nas relações pessoais, parentesco ou afinidade

entre senhores e escravos.

Além disso, os senhores detentores de escravos criavam um mercado paralelo,

pois havia o interesse em expedir a carta de alforria ao escravo se houvesse a

possibilidade de substituição da mão de obra. As cartas de alforria eram outorgadas, por 2 A utilização da coletânea pode ser questionada, uma vez que não tivemos acesso ao documento em si,

mas valorizamos o trabalho dos pesquisadores nesse Arquivo, por entender a importância de ações como

estas para a pesquisa em História – mesmo com todos as possíveis falhas na transcrição do manuscrito,

devido, entre outras questões, a caligrafia e as rasuras desses documentos do século XIX –. Tal ação, em

nosso entender, contribui na divulgação e preservação dos documentos originais de uma deterioração

maior a cada nova consulta nos documentos. Mesmo pesquisadores de outras localidades, sem

possibilidades de deslocar-se aos arquivos do Estado de Mato Grosso do Sul, podem ter acesso à edição,

possibilitando novas pesquisas sobre as problemáticas envoltas na escravidão no Sul da província de

Mato Grosso. Entendemos ainda que ao lançar edição das fontes manuscritas, assim como da

digitalização desses documentos, ao termos as novas tecnologias como aliadas na pesquisa em história,

tais ferramentas possibilitam a democratização das informações. 3 A Lei do Ventre Livre ficou assim conhecida pelo que declara em seu 1º artigo: “os filhos da mulher

escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição de livre” sendo

aprovada, “sob a liderança do gabinete conservador chefiado pelo baiano José Maria da Silva Paranhos, o

visconde do Rio Brando, em 28 de setembro de 1871”. Por isso a lei também é conhecida como Lei do

Rio Branco. SILVA, Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos nas últimas

décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Curitiba: UFPR/SCHILA, 2007. Xii, p. Il, p. 160. Mas, vale

observar que a lei continha cláusulas que concediam a liberdade ao nascido livre somente após os 21

anos, ou mesmo a sua entrega ao Estado, com 08 anos, obtendo a indenização pelo mesmo.

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vezes com um preço superior quando se tratava de um escravo já desgastado pelo

trabalho, e o dinheiro da venda servia para a compra de um negro mais jovem não

desgastado pela hostilidade da escravização de acordo com o preço de mercado, criando

o que Mattoso ( 1982) considera como mais-valia sob o valor pago pelo escravo.4

Além das formas forjadas pelos senhores de libertarem seus escravos, havia

também o inverso: o modo como os escravos se comportavam mirando a liberdade.

Atitudes como manter um bom relacionamento, relações de compadrio e/ou formação

de famílias são práticas conhecidas pela historiografia brasileira nesse contexto.

As cartas de liberdade são fragmentos, testemunho de história de ex-

escravizados que ao longo de sua vida cursaram estratégias em busca da liberdade, seja

no bom comportamento, na negociação ou ainda na formação de pecúlio. Ainda é

possível perceber nas cartas de liberdade a concepção dos senhores de escravos acerca

da liberdade e qual era a função desse sujeito liberto.

Silva (2013), ao pesquisar as cartas de liberdade de Cuiabá, na segunda metade

do século XIX, observou duas questões pertinentes que parecem fazer parte da estrutura

jurídica das cartas de liberdade, uma vez que elas se repetem para as fontes que

dispomos para o estudo da escravidão e da liberdade em Sant‟Anna do Paranahyba.

Não há como desconsiderar as ações dos escravos nesse processo, como, por

exemplo, o fato de prestarem bons serviços objetivando a liberdade, o que pode ser

entendido também como uma estratégia de resistência. As fontes analisadas dão indícios

de que a morte do senhor poderia ser um modo de obter a liberdade, de forma mais

rápida, o que de certa forma justifica ou explica os atentados realizados por meio de

envenenamentos, uso de armas, entre outras ações, por parte dos sujeitos em condições

de escravidão.

Do período em que constam os documentos relativos a Sant‟Anna do

Paranahyba, foi possível mapear na coletânea Como se de ventre livre nascido fosse(...)

a seguinte quantidade de documentos:

4 “O preço da compra possibilita, assim, ao senhor, uma verdadeira mais valia, um lucro suplementar

sobre o capital investido no escravo." MATTOSO, Katia de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª Edição.

São Paulo: Brasiliense, 1982.

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Tabela I: Tipologias de documentos na coletânea Como se de ventre livre

nascido fosse(...)

Documentos Santana de Paranaíba

(1838-1873)

Cartas de liberdade 52

Compra e venda 25

Doações 07

Troca e Permuta 06

Cabe destacar que os pesquisadores da coletânea restringiram seu recorte de

compilação de fontes aos anos 1838 a 1873, momento que nos interessa para

compreender quais as estratégias utilizadas pelos senhores e autoridades do contexto na

elaboração das cartas antes da Lei do ventre livre de 1871.

Das 52 cartas que dispomos, 34 exigiam alguma condição para o escravo ficar

plenamente livre. Assim, no ano de 1845, Antônio Procópio recebeu a carta de

liberdade, juntamente com sua mãe e seus irmãos, Luzia e Geraldo. A carta apresentada

por Joaquim Garcia Leal dizia tornar livre os escravos de sua livre vontade, pelos bons

serviços que dela e deles tem recebido, com a condição de lhe servirem até seu

falecimento, e então depois poderiam gozar de sua inteira liberdade, permanecendo até

então sujeitos as condições da escravidão.

As condições eram as mais variadas, desde cuidar até a morte, cuidar de

plantações, rezar missas e etc, como o que aconteceu a Graciano crioulo, de quarenta

anos de idade, que teve sua carta de liberdade lançada em 1871, tornando-se livre e

desde já liberto e poderá gozar de plena liberdade como se fosse nascido de ventre

livre, com a única condição de cuidar da criação de 50 porcos de seu então ex-senhor,

Francisco José Nogueira.

Uma mesma carta poderia não só lançar a liberdade a mais de um escravo, como

também estabelecer condições diferentes aos escravos citados na manumissão. Martin

Gabriel de Mello Taques e sua esposa Donna Anna Fausta Fagundes de Mello assim o

fizeram em referência aos negros e negras escravizados e, segundo os mesmos,

atendendo a lealdade, e bons serviços. Em vista disso, favoreceram Patrício e sua

mulher Maria pequena, que:

nos servirão mais desde esta data a cinco aos, depois do que gozaram

de sua pela liberdade. Adão, e Francisco mulatos nos servirão mais

desde esta data a quinze anos, depois do que gozarão de sua plena

liberdade, se porem nos ambos morrermos antes do que se finde o

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prazo de que os ditos escravos acima nos tem de servir desde a morte

de nos ambos ficarão gozando de sua plena liberdade.

Além das diferenças de condições acerca da plena liberdade outra questão que

nos chama atenção no fragmento da fonte apresentada é a relação de posse constante na

frase: “Patrício, e sua mulher Maria pequena”; possivelmente Maria pequena fosse

companheira ou amasia de Patrício, tendo em vista que nos documentos oficiais,

sobretudo neste período, as mulheres eram entendidas como pertencentes ao homem,

fossem eles senhores ou escravos. As cartas de liberdade, embora nos revelem indícios

impares para a compreensão das relações estabelecidas entre os escravos, não nos

permitem saber como era a relação entre Patrício e Maria pequena, mas indicam que os

escravizados em Sant‟Anna de Paranahyba se aproximavam, formavam famílias, fato

que entendemos aqui também como uma forma de resistência e de solidariedade no

modo possível de cada dia entre esses homens e mulheres.

As relações próximas de família e parentesco estão presentes, nos parece,

também em outras cartas. Todas, por sua vez, lançadas por João Pedro Garcia Leal no

ano de 1845. Em quatro cartas de liberdade lançadas individualmente, João Pedro

Garcia Leal declarou livre, sob condição: José Benguela, Joaquina Nação Benguela,

Felisardo da nação Moçambique e Maria Nação Moçambique. Supomos que havia uma

relação de parentesco, além do trabalho entre os escravos de João Pedro Garcia Leal,

pelas nações que foram designadas no documento. Era muito comum naquele contexto e

nos documentos oficiais os escravos serem reconhecidos pela nacionalidade de origem.

Neste sentido, talvez tivessem vindo do continente africano no mesmo período e foram

comprados ou trocados juntos ao um mesmo senhor. Ainda que lançadas as cartas de

liberdade todos os escravizados foram libertados condicionalmente, já que estavam sob

a condição de servir a João Pedro Garcia Leal até a sua morte, para somente a partir daí

encontrar-se na condição de livres.

Percebemos que as cartas de liberdade condicionais serviam como um

instrumento de controle e domínio da sociedade escravista. A medida que se colocava a

liberdade sob condição os senhores geravam nos escravos um sentimento de espera da

liberdade plena, porém cabe apreender nas relações estabelecidas entre senhor e escravo

a definição da espera da liberdade, uma vez que a carta poderia ser revogada a qualquer

momento pelo senhor.

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Cunha (1985) entende que essa forma de alforria era: “complementar aos

castigos e à violência física usados. Mas essa esperança era de tal modo construída que

ela passa pela dependência pessoal do senhor” (1985, p. 48). Ao encontro das

considerações dessa autora, Mattoso considera que as cartas de alforria possuíam

ambiguidades que criavam expectativas e diversas ilusões nos sujeitos em condição de

escravidão. De acordo com o Mattoso (1990):

Será realmente 'gratuita', como gostam de escrever certos senhores,

essa liberdade concedida sob a condição de o forro permanecer

escravo enquanto vivos forem o senhor, ou seu filho, sua irmã ou

qualquer dos outros membros da família? Na verdade, ela é paga

muito caro, é sempre revogável e torna o escravo libertável ainda mais

dependente, pois ele sabe que a menor desavença, um instante de mau

humor, pode pôr abaixo o edifício duramente construído de sua futura

libertação (1990, p. 57).

Ao se entenderem e se verem nesse limbo, nem escravos, nem libertos, em que,

conforme Chalhoub, “as coisas mudam, mas continuam as mesmas..”, os escravizados,

de acordo com Mattoso:

(...) tem consciência de que cabe a ele, sozinho, dar o grande passo da

escravidão à liberdade (...). O escravo candidato à alforria dá-se conta

perfeitamente de que se tornará diferente: diferente dos escravos, seus

irmão de ontem, diferente dos homens livres da sociedade de adoção

(1990, p. 63).

Neste sentido, para os senhores pouca coisa ou quase nada mudava, mas já para

os escravizados era cotidianamente reforçada a esperança de um dia chegar a hora da

liberdade. A partir das leituras que embasaram este trabalho, teórica e

metodologicamente, supomos que as cartas sob condição faziam parte de uma série de

instrumentos que reforçavam a dominação pessoal entre senhores e escravizados.

A espera pela liberdade gerava sentimentos de incontestável lealdade e

fidelidade, pois os escravizados sabiam que ao menor sinal de contestação os senhores

poderiam revogar a carta de liberdade caso quisessem. Mesmo se o escravo comprasse

sua carta ainda seria privilegiado pela bondade do senhor. De acordo com Cunha (1987,

p. 37), o ato de alforriar “(...) não só mantinha a sujeição entre os escravos, mas permitia

a produção de libertos dependentes. (...) mantendo os laços de gratidão e de dívida

pessoal em troca de proteção do patrono”.

Por vezes, os sujeitos libertos, que possuíam esses laços de dívida pessoal com

os ex-senhores, continuavam a prestar serviços nas fazendas e sítios onde eram antes

escravizados, mas na condição de agregados e camaradas.

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Sena (2010), ao pesquisar o cotidiano e trabalho dos camaradas, entre os anos de

1808- 1850 na província de Mato Grosso, descreve que os camaradas seriam:

Trabalhadores de ofício, monçoeiros, militares, libertos, indígenas e

todo tipo de pessoas que se direcionaram e se estabeleceram na região,

inicialmente atraídas pelo ouro e depois empregadas em atividades

ligadas a ambientes urbanos e rurais que se formaram na capitania e

depois província de Mato Grosso, são os personagens que deram

início à formação de um grupo complexo de homens e mulheres que

não eram senhores nem escravos, mas que estavam na condição de

livres e pobres. É nesse grupo que podemos buscar a origem dos

camaradas, ou seja, homens livres que firmavam acordo com outra

pessoa (patrão/patroa) para prestar determinados serviços, recebendo

em troca um pagamento pelas tarefas realizadas (SENA, 2010, p. 64).

Assim, os libertos iam inserindo-se na categoria de trabalho de agregados e

camaradas, pois deixavam de viver no sistema de escravidão no trabalho, porém não

seriam senhores. Mas vivenciavam outras formas de violência física e moral.

De acordo com Franco (1983) os camaradas prestavam pequenos serviços, em

sua maior parte esporádicos aos fazendeiros, tendo certa liberdade de circulação por

entre várias localidades, já os agregados moravam, de favor, nas propriedades do

fazendeiro, quase sempre com suas mulheres e filhos, o que implicava um vínculo

maior com o proprietário, mesmo que tivessem a liberdade do ir e vir, dependendo do

contexto. A situação do agregado diferia do camarada que era contratado por dias de

trabalho ou empreitada e não possuía a proteção do fazendeiro.

Conforme Franco (1983), os camaradas e agregados tinham em si, ao menos

hipoteticamente, a segurança da liberdade, pois poderiam, a priori, deixar o trabalho na

hora que quisessem. Entretanto, essa liberdade gerava insegurança, já que muitos

fazendeiros desconfiavam de traição, ao contratar ou ter como agregado um trabalhador

que já tivesse passado por terras inimigas.

Esta autora ressalta que a incorporação do agregado na propriedade não gerava

necessariamente um vínculo ocupacional. Salienta a autora que o agregado: “Era

eventualmente quem trabalhava para o fazendeiro em cujas terras se instalara, assim

como também fazia para outros, pelas redondezas. Esse desvincular ia ao ponto de

poder servir a “inimigo rancoroso” de seu patrono” (FRANCO, 1983, p. 93). Ainda nos

chama a atenção para o fato de que num período em que a oferta de emprego era escassa e

incerta, isso possibilitava que os agregados se tornassem servidores de dois patronos.

Ao refletirmos sobre os camaradas e agregados nos fins do século XIX, em

tempo anterior a abolição, podemos sugerir que seriam sujeitos em transição, na

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condição entre o escravo e o homem livre pobre. Essa insegurança ou indefinição, por

vezes, fazia com que se tornassem alvo de exploração. Os homens pobres, sem posses,

tinham sua liberdade limitada, de fato, pelos possuidores de terras quando a justiça era

incumbida de lhes julgar. Era nesse momento em que o homem pobre passava da sua

condição de submissão pessoal perante seu patrão, para ser julgado perante a

prerrogativa da lei.

3.2 “Por agires a mim com ingratidão”: entre revogações e resistências

Retomando as cartas de liberdade, e entrelaçados à elas os processos criminas,

vale observar que tais cartas não significavam, antes da Lei de 1871, a concessão da

liberdade imediata. Muitas condições, como exposto, estavam relacionadas à prestação

de serviços e a condição de servir aos seus senhores, seus herdeiros até a morte, fato que

não permitia que o escravo estipulasse o tempo sob a condição de escravidão. As cartas

condicionais ainda possibilitavam que o senhor revogasse a condição de liberdade caso

o escravo agisse com ingratidão ou contra a vida do senhor.

Mesmo escravos que não constavam nas cartas condicionais atentavam contra a

vida dos senhores acreditando numa possível liberdade ou ainda para fugir das

condições de violências as quais estavam submetidos no cativeiro, como narra o

processo criminal.

Geraldo5, crioulo, em 1863, na vila de Sant‟Anna do Paranahyba foi acusado da

morte de seu senhor. De acordo com o processo criminal, Joaquim Barbosa de Faria

saiu, como de costume, para suas caminhadas noturnas pela sua fazenda6, quando de

modo inesperado foi atingido por um tiro de garrucha que lhe acertou as costas, no lado

direito, causando a morte.

Para testemunhar o fato ocorrido, o delegado de Sant‟Anna do Paranahyba,

Joaquim de Oliveira Simões, intimou as testemunhas a comparecerem em seu cartório.

As cinco testemunhas eram filhos de Joaquim Barbosa de Faria, todos lavradores e

fazendeiros vindos da cidade de Passos, Província de Minas Gerais. Todos declararam

que sabiam por “ouvir dizer” que o crioulo Geraldo era quem havia disparado o tiro que

5 Processo Criminal. 1863. Documento histórico 3968. Paranaíba, Caixa 114- Arquivo do Tribunal de

Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, MS. 6 O documento apresenta o rio ora de Lagiado, ora de Corrente.

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levara o seu senhor a morte. Há alguns dias, conforme uma das testemunhas, Joaquim

Faria comentou com um de seus filhos que estava com medo de seu escravo.

Por todos serem “testemunhas juradas aos Santos Evangelhos, dizendo a verdade

sobre o que sabiam o lhe fosse perguntado”, o delegado declarou em 21 de agosto de

1863 o escravo Geraldo como culpado, e pediu ao escrivão que “lance seu nome no rol

dos culpados e pague as custas pelo mesmo réu em que condeno”. Mas, Geraldo

recorreu à acusação e pediu que um curador o representasse. Assim, foi emitido um

pedido à Comarca de Miranda que mandasse um curador.

Antônio de Pádua Pinto representou então o “miserável réu” em seu pedido de

revogação, argumentando que o fato criminoso sustentado contra o escravo deveria ser

revisto, pois em um processo crime não se pode acusar alguém pela morte de outro

utilizando do argumento de testemunhas por “ouvir dizer”. Aos quatro dias do mês de

Dezembro de 1863, Geraldo foi declarado inocente, porém o processo não indica quem

foi o responsável pela morte de Joaquim Faria, nem tampouco se Geraldo ficaria livre

da condição de escravo.

Cabe destacar que a morte do senhor não assegurava definitivamente a liberdade

do negro escravizado. Entendendo o escravo como posse, ele passava a ser, após a

morte de seu dono, um objeto que deveria ser avaliado nos inventários, juntamente com

demais bens, como, por exemplo, dinheiro, facas, saca rolhas suíços, a fim de ser

dividido pelos herdeiros legais. Nos inventários, os escravos eram entendidos como

bens semoventes, similares a animais.

Costa e Silva apresenta sob a perspectiva do idioma soninquê,7 considerações do

que seriam os escravos domésticos e os que eram bens semoventes. De acordo com o

autor.

Na saga soninquê figuram não apenas escravos domésticos, que

executavam os trabalhos do dia a dia, mas também escravos que era

bens semoventes, assimilados a gado em pé (e como tal tidos no

século XIX), unidade de prestigio e riqueza patrimonial, que

labutavam nos campos dos seus senhores, sem qualquer contrapartida.

O escravo não era uma pessoa e estava privado de qualquer direito, a

começar pelo direito da paternidade, pois o filho que tivesse pertencia

ao dono da mãe (COSTA E SILVA, 2011, p. 115).

7Conforme Costa e Silva (2011), (Soninkanxaane) é um idioma mandê falando pelos soninquês da África

Ocidental. Estima-se que a língua tenha cerca de 1 100 000 falantes, localizados primordialmente no

Mali, além de comunidades no Senegal, Costa do Marfim, Gâmbia, Mauritânia, Guiné-Bissau e Guiné

(em ordem de importância numérica).

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Neste sentido, mesmo que o senhor viesse a morrer, como fora o caso de

Joaquim Barbosa Faria, nada garantia a liberdade do escravizado, pois este não era

entendido como um sujeito, mas como um produto de posse, que era patrimônio e

deveria ser compartilhado como tal pelos herdeiros dos senhores.

Os atentados dos escravos contra os senhores também seriam evidenciados nas

revogações das cartas de liberdade. Muitas vezes os atentados, sem a morte, poderiam

colocar os escravizados em condições de perda dos acordos traçados na carta de

liberdade, como ocorreu com Antônio Procópio, pois dois anos depois do primeiro

documento que lhe “concedia a liberdade”, Joaquim Garcia Leal apresenta ao Escrivão

do Juízo de Sant‟Anna do Paranahyba, uma carta revogando a alforria. Afirmava Leal

que isto se dava “pela razão” de que Antônio Procópio, conhecido também como

Antônio Crioulo, atentou contra sua vida, e, por assim ser, Joaquim Garcia Leal, pede

por obzequio que o Cartório lance fora o primeiro documento apresentado em 1845, por

Antônio Procópio “não merecer” de sua pessoa “a graça que lhe faria”.

O fato de constar no documento de revogação que o escravo “não merecia” a

liberdade evidencia a forma como as cartas de liberdade eram entendidas pelos senhores

e, por vezes, pela justiça, ou seja, como uma “graça” ou uma “bondade” frente aos

serviços prestados, mas uma vez o escravo agindo com ingratidão o senhor possuía

todo o direito de revogação.

Ao “agir com ingratidão” Geremias Jeronymo teve sua “carta de futura

liberdade” revogada no dia 22 de outubro de 1885. Patricio Lopes de Sousa pediu a

revogação do documento, apresentado em 1843, por Jeronymo ter sido “indigno dela” e

ter lhe “causado muito desgosto e prejuízo”, por ter “fugido muitas vezes sem ter

causa”, declarando por vezes “que não quer servir e nem acompanhar as decisões feitas

anteriormente”.

No documento de 1843, Patricio Lopes de Sousa “desejando a fazer bem” a

alguns de seus escravos, por sua livre vontade, passou carta de liberdade a Ludovina

Creoula, Silvestre Africano, Geraldo Crioulo, Gertrudes e também Gervasio, que se

encontrava sob poder de seu irmão Joaquim, no distrito de São Thiago da Comarca de

São João de El Rei. Cada escravizado tinha uma condição estabelecida na carta para

tornar-se livre. Era comum que uma mesma carta tratasse da liberdade de mais de um

escravizado. José Garcia Leal, em 1854, também revogou a liberdade de Geraldo Criolo

e Luiza Criola por se tornarem ingratos, “não me servindo como deviam e até evadindo-

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se de minha companhia depois que souberam da promessa da liberdade”, nove anos

após a carta de liberdade lançada a sua mãe Maria Crioula.

Em 1845, José Garcia Leal lançou a carta de liberdade de Maria Crioula e aos

seus filhos Geraldo, Luiza e Antônio Procópio, pelos bons serviços deles recebidos,

tendo por condição de lhe servir até a morte. Na carta de liberdade não consta a idade de

Geraldo e Luiza, mas supomos, a partir dos indícios da carta de revogação, lançada em

1854, que eram menores e não tinham consciência da liberdade prometida. Tanto que,

tomando consciência da possível liberdade tentaram fugir da posse de José Garcia Leal.

Neste sentido, cabe questionar as justificativas para a revogação das cartas de

liberdade, bem como os processos de reescravização, num período em que as leis

visavam, de modo paliativo, a passagem do trabalho escravo ao trabalho livre. Embora,

sejam poucas as revogações, Sant‟Anna do Paranahyba estava em meio a esse processo

que abrangia todo o restante do Império, evidenciando pontos de conexão com as

práticas escravistas de diferentes localidades no Império.

Outra prática recorrente era a libertação dos escravos que apresentavam doenças

ou debilidades no trabalho. Como o caso, por exemplo, de Juliana “parda” que Pedro

Nunes Ferreira herdará de seus sogros. Juliana apresentava ter “trinta e tantos anos” e

muito adoentada “com inflamação nas vísceras”. Juliana era casada com Silvério que se

encontrava na condição de liberto. De acordo com documento, foi apresentado a Pedro

Nunes Ferreira, avaliação de Juliana em duzentos e cinquenta mil réis, valor que Pedro

aceitou “por bem conceder a dita escrava o pleno gozo de sua liberdade, como se

nascesse de ventre livre”.

Acreditamos que o valor seja considerado baixo para a época, uma vez que dos

documentos que dispomos os escravos foram negociados em parte, ou em sua

totalidade, por um valor mínimo de 300 mil réis chegando a ultrapassar a conta de um

milhão de réis. Como o caso da escravizada Rosa, de dezenove anos, que aos onze dias

de maio de 1866 foi comprada por Joaquim Alves Correio pelo valor de um conto de

réis (um milhão de réis).

A escravizada Faustina8 de trinta e cinco anos – idade próxima a Juliana que

tinha “trinta e tantos”- fora negociada, junto “a sua cria de dois anos”, entre Abraz Joze

Rodrigues e André Tarboriel, em doze de fevereiro de 1868 pelo valor de um conto e

quinhentos mil réis.

8 Documento 14. Ano 1868, página 172-173. “Como se ventre livre nascido fosse..”

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Neste sentido, pelos valores apontados nestes e em outros documentos presentes

na Coletânea “Como se do Ventre Livre nascido fosse”, entendemos que o valor

atribuído a Juliana para sua auto compra estava abaixo do valor „padrão‟ das

escravizadas da mesma idade. Era comum, naquele contexto, os senhores quererem

livrar-se dos escravizados que apresentavam „moléstias‟, pois a morte de um escravo

significaria uma perda financeira irrecuperável ao senhor. Desse modo, essas fontes

sugerem os limites e as incertezas da prática costumeira de alforriar, sobretudo as cartas

de liberdade sob condição, na medida em que foram utilizadas como ferramentas de

dominação e controle.

O Estado Imperial, na tentativa de regulamentar o arbítrio por parte dos senhores

de escravos e para conter as “agitações” dos negros e negras escravizados, busca

oficializar - dentro de seus limites – as práticas costumeiras de alforriar, transformando

a liberdade oficial em leis dentro de um projeto maior. A seguir, finalizando a

Dissertação, trabalharemos a Lei de 1871, seus avanços e recuos.

3.3 A Lei do Ventre Livre e as condições legais de alforria: cartas de liberdade, leis

e processos

No Palácio Imperial no Rio de Janeiro, dia 28 de setembro de 1871, a Princesa

Isabel, em nome do Imperador D. Pedro II, fazia “saber a todos os súditos do Império

que a Assembleia Geral Decretou e ella Sanccionou a Lei”9 nº 2.040, conhecida

também como Lei do Ventre Livre, pelo que declara seu 1º artigo: “Art. 1º Os filhos de

mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de

condição livre”10

.

Em meados de 1860, com o desequilíbrio encontrado entre a população escrava

no Norte e Sul do Império, devido aos efeitos do fim do tráfico negreiro, em 1850, e o

consequente tráfico interprovincial, somando-se as pressões das transformações

ocorridas no exterior, neste período, especialmente pelas pressões externas da

Inglaterra, Silva (2007) ressalta que o governo Imperial se preocupou em tomar posição

diante as pressões internas e externas. Assim, em 1867 iniciaram-se as discussões acerca

9 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm>. Acesso em: 04 de

janeiro de 2016. 10

Idem. Acesso em 04 de janeiro de 2016.

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da lei ou do “estatuto” do escravo, sendo esta lei aprovada, “sob a liderança do gabinete

conservador chefiado pelo baiano José Maria da Silva Paranhos, o visconde do Rio

Branco, em 28 de setembro de 1871” (SILVA, 2007, p. 111).

Embora “libertasse” o ventre da mulher escrava, a lei não possibilitava uma vida

em liberdade para as crianças recém nascidas, que continuavam a viver com sua mãe,

compartilhando das dores, da violência e das resistências vividas no cotidiano escravo,

nos campos, arraiais, vilas e cidades. Araújo (2005) salienta que as crianças que

nasciam livres de mães escravas se encontravam em uma espécie de limbo, pois não

podiam partilhar da liberdade legal e estavam ligadas pelos laços de parentesco à

família escrava. Neste sentido, a autora afirma que “[...] se é livre o é por determinação

de uma legislação que a liberta, mas não ao ventre que a gera, o que a torna, por um

lado, ligada por fortes laços de parentesco, diretamente à escravidão” (2005, p. 328).

Neste cenário, ao referir-se diretamente aos filhos das escravas, o inciso 1 desta

Lei declara que:

Os ditos filhos menores ficarão em poder ou sobre a autoridade dos

senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os

até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a

esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a

indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até

a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá

o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A

indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda

com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de

30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a

contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a

não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se

dos serviços do mesmo menor.11

De acordo com a lei, os ingênuos ficariam sob tutela dos senhores só a partir de

1879, ano em que as crianças libertas pela legislação completariam oito anos de idade,

e nesse momento cabia aos senhores a escolha de obterem a indenização paga pelo

Estado ou de utilizarem dos serviços desses menores até que completassem 21 anos, o

que não aconteceria, pois a lei se encerraria 17 anos depois. Depois do decreto de 14 de

outubro de 1850, que aboliu inteiramente no Império o tráfico de africanos, o decreto de

28 de setembro de 1871 completou o generoso pensamento sugerido na mente de quem

11

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm>. Acesso em: 04 de

janeiro de 2016.

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muito se dedica ao bem comum, pensamento unânime abraçado por quase todos os

habitantes do Império.12

No ano de 1872, o ex-tenente Coronel, então Presidente da Província de Mato

Grosso, Francisco José Cardoso Junior, declarou em seu Relatório anual o generoso

pensamento sobre a Lei 2.040. Neste sentido, podemos entender que, segundo o

presidente da Província, a Lei 2.040 era semelhante a Lei de 1850 que proibia o tráfico

de africanos para o Brasil, pois assim como a primeira, esta lei se apresentava como

uma forma de transição, aparentemente segura do trabalho escravo para o trabalho livre.

As leis homologadas buscavam a extinção lenta e gradual da escravidão, pois

permitiam, em sua essência – ou ao menos nas suas disposições –, que os homens livres

substituíssem o trabalhador escravo de modo paulatino, sem causar, por esta leitura

oficial, grandes danos a propriedade escrava do senhor e sem perdas nas produções

agrícolas, retardando de fato o que viria a ser a verdadeira abolição.

Preocupado com os rumos econômicos na província o presidente aponta certas

dificuldades no que se refere à mão de obra destinada à produção:

Aqui infelizmente, sente-se a falta de braços; os meios de transportes

são difíceis e caros; a pesiootia13

não cessa de dizimar os campos; a

iniciativa individual é coisa como que desconhecida. A descrença nos

motores que facilitam o trabalho é absoluta; a inércia entre a classe

dos que poderiam suprir a deficiência de escravos é surpreendedora, a

falta de instrução industrial completa e os capitais realizados deixam

de entrar em circulação para, ou serem convertidos em apólices, ou

depositários nos estabelecimentos bancários.14

Francisco José Cardoso Junior chamava a atenção para a falta de escravos nas

lavouras de Mato Grosso, afirmando que os trabalhadores livres que se encontravam

12

RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato-Grosso Tenente Coronel Francisco José Cardoso

Junior, apresentado na Assembleia Legislativa da Província em 4 de outubro de 1872. Rio de Janeiro.

Typ. Imp. e Const. De J. Villeneuve e Comp. Rua do Ouvidor, 1872. p.130. Disponível em:

<http://www.crl.edu/pt-br/brazil/provincial/mato_grosso>. Acesso em: 04 de janeiro de 2016. 13

Os documentos e a grafia do século XIX apresentam contrações da língua falada. Neste sentido,

pensando na palavra pesiootia, apontada no relatório, sob essa perspectiva refere-se a Epizootia, conceito

utilizado para caracterizar mazelas contagiosas que atingem os animais de uma mesma região

rapidamente. Atualmente, o termo é obsoleto e utiliza-se epidemia para entender a proliferação de

doenças em larga escala. O relatório aponta em outros momentos a peste das cadeiras, uma doença

infecciosa que atingindo a raça cavalar causou declínio na produção. Para ver mais sobre o assunto

consultar: CORRÊA FILHO, Virgilio. Mato Grosso. 1 ed. Rio de Janeiro: Typ do jornal do comércio,

1922. DOMINGOS, Gilson Lima Domingos. Pantanal da Nhecolância: História, Memória e a

construção da identidade. Dissertação de Mestrado. UFMS. Dourados-MS, 2005. 14

RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato-Grosso Tenente Coronel Francisco José Cardoso

Junior, apresentado na Assembléia Legislativa da Província em 4 de outubro de 1872. Rio de Janeiro.

Typ. Imp. e Const. De J. Villeneuve e Comp. Rua do Ouvidor, 1872. p. 86. Disponível em:

<http://www.crl.edu/pt-br/brazil/provincial/mato_grosso>. Acesso em: 04 de janeiro de 2016.

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naquela província não queriam substituir o trabalho dos escravos no interior das

fazendas. O presidente ainda ressaltou que os trabalhadores livres plantavam apenas

para sua sobrevivência. Conforme o seu relato, os rios eram repletos de pescados e

ainda assim se retirava deles apenas o suficiente para alimentar a família durante dois ou

três dias e depois tornavam a pescar. Por essas atitudes, considerava as gentes dessa

terra improdutivas, pois embora o solo e a abundância fossem destaques das demais

províncias do Império, a população de Mato Grosso permanecia na inércia frente ao

desenvolvimento Imperial.

Talvez a preocupação do Presidente da Província estivesse relacionada ao fato

de que no momento em que se dava uma abertura econômica para Mato Grosso, a Lei

de 2.040 ocasionaria certas mudanças, como, por exemplo, nas relações pessoais e de

trabalho entre senhores e escravos, e a medida que fossem libertando os escravos, braço

principal para a economia, iam se alterando também as relações de produção, embora,

segundo Cardoso Junior (1850), isso fosse um instrumento ameno para introduzir o

trabalho livre em substituição ao escravo, a fim de engrenar e inovar a produção

agrícola do período. Conforme o presidente da Província:

Essa dificuldade traz, a meu ver, maior facilidade na introdução de

colonos que venham ratear a terra e que com experiência ensinem aos

naturais o melhor meio de obter pelo trabalho do homem livre a

vantagem sobre o homem escravo.15

A ideia então era a de que os colonos estrangeiros viessem com novos

pensamentos e modos de produção e substituíssem o trabalho dos pobres livres e dos

escravizados em relação à produção das roças, comum na Província durante aquele

período. Ainda no Relatório de 1872, Cardoso Junior ressaltou a urgência de se criar

meios para a substituição do braço escravo pelo braço livre, propondo que fosse feita

uma colonização adaptada ao clima. Afirmava também que em todo o Império, em

diferentes províncias, já se promoviam associações de inserção dos colonos ao trabalho

na terra, o que progredia oferecendo interesses avultados à lavoura16

(RELATÓRIO

1872, p. 100).

15

Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso o Major Doutor Joaquim José de Oliveira na

abertura da Assembleia Legislativa Provincial em 3 de maio de 1849, Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const.

de J. Villeneuve e Comp. 1850. 16

Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial de Mato Grosso 4 de Outubro de 1872, pelo

Exmº Snr. Presidente da Província o Tenente Coronel Dr. Francisco José Cardozo Júnior, Rio de Janeiro,

Typ do Apóstolo, 1873

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Outra preocupação do presidente da província, após a declaração da lei, segundo

o documento, referia-se à contínua entrada de escravos em Mato Grosso. O tráfico de

africanos tinha sido proibido em 1850, desse modo o tráfico interprovincial era uma

realidade e havia aumentado em decorrência do fim do tráfico da costa africana. O

presidente da Província propunha o aumento de um imposto sobre o escravo importado

de outra província, dificultando assim a entrada de escravos no Mato Grosso. Neste

sentido declarou:

Depois da lei de 28 de setembro de 1871 redentora da escravidão

devemos senhores, supor que em um prazo dado a escravatura será

extinta no Brasil, e, pois me parece proveitoso que procuremos

dificultar todos os dias e por todos os modo a importação de escravos

para o Mato Grosso17

.

Percebemos então que a Lei de 2.040 trazia em seus artigos e incisos não só

mudanças nas relações econômicas, mas, sobretudo, nas relações pessoais entre

escravos e senhores. Ao mesmo tempo em que era considerada redentora da escravidão

trazia dúvidas a respeito dos caminhos que os senhores teriam que trilhar em vista da

possível perda de sua propriedade e de seus frutos. Preocupava lhes também como

procederiam os sujeitos escravizados frente a possibilidade da vida em liberdade e a

nova reorganização do trabalho.

Outro aspecto interessante observado nesta fonte, que evidencia a compreensão

do Presidente da Província em relação aos escravizados e libertos, é o fato de que

durante todo o Relatório, Francisco José Cardoso Junior enfatiza o caráter civilizatório e

humanitário da lei, afastando com ardor qualquer interpretação contrária, como, por

exemplo, no trecho a seguir:

[...] a promulgação da lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871

justificou as apreensões de poucos que por engano de calculo,

supunham nela um gérmen de calamidades. Pelo contrario, essa lei

salutar, civilizatória humanitária e cristã foi aqui entusiasticamente

recebida e aceita. E que, senhores, a geração que passa em sua quase

totalidade, não admite o depreciamento do homem pelo homem. À

baixa espera que tanto o degradava colocando-o até fora das regras

traçadas pela própria natureza.18

17

Idem. 18

Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial de Mato Grosso 4 de Outubro de 1872, pelo

Exmº Snr. Presidente da Província o Tenente Coronel Dr. Francisco José Cardozo Júnior, Rio de Janeiro,

Typ do Apóstolo, 1873.

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Mas, ainda assim é possível considerar que havia, por parte dos senhores de

escravos, o entendimento de que a Lei de 21 de setembro de 1871 contribuísse de

alguma forma com o aumento da violência na província, pois com a legalidade da

possibilidade do escravo comprar sua alforria aumentaria a quantidade de libertos, o que

possibilita-nos compreender que, de acordo com alguns senhores, a violência era algo

inerente ao sujeito escravizado, que precisava ser controlado por chicotes e açoites.

Então, caso estivessem livres e, consequentemente, sem a disciplina imposta, agiriam

naturalmente com violência. Mas o presidente da Província declarava que os furtos e os

atentados contra a propriedade individual e pública não estavam relacionados à Lei de

nº 2.040.

Não que acreditemos que a violência seja algo inerente ao sujeito escravizado,

mas sim ao sistema escravista como um todo. Desse modo, é cabível a interpretação dos

senhores e autoridades provinciais de que com o aumento de libertos circulando entre

vilas e arraiais, sem trabalho, a mercê da sorte e contando com a solidariedade de

poucos, estes começassem a roubar no intuito de se alimentarem, sendo esse o modo

encontrado para se contrapor ao direito que lhes foi usurpado. A esse ver, eram então

necessários tais atos para a garantia da própria sobrevivência.

Retomando a questão da alforria, Almeida (2007) aponta que a Lei do Ventre

Livre pode ser considerada um divisor de águas no que se refere a política de alforriar.

A alforria antes desta lei não sofria a interferência do Estado, exceto, como destaca a

autora, quando os cativos lutaram na Guerra do Paraguai, que o senhor por apelo ou

pagamento deveria libertar seu escravo, o que nem sempre aconteceu.

A Lei do Ventre Livre legalizou e permitiu que o escravo procurasse os âmbitos

jurídicos para recorrer à sua liberdade, não dependendo somente das relações de

interesses, de compadrio ou mesmo de outras amizades estabelecidas com seus senhores

antes da instauração da lei. O escravo, a partir da homologação da lei, teve possibilidade

de tomar a iniciativa legal perante o seu desejo de liberdade.

Além de reconhecer a liberdade do ventre, a lei regulamentava o direito a

formação de pecúlio, que servia como uma espécie de poupança possibilitando ao

escravo, quiçá, um dia comprar sua carta de liberdade. A mesma legislação propôs a

criação de um Fundo de Emancipação de escravos. Cabiam as Juntas de Classificação

lançar lista acerca dos escravos que seriam libertos por esse fundo, assim como fazer a

avaliação do cativo.

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Mas, de acordo com Araújo (2005), nesta avaliação era possível perceber certas

fraudes, já que os senhores procuravam obter vantagens do dinheiro “público” aplicado

para esse fim, no intuito de prevalecer seus interesses sobre o direito da propriedade

escrava. A autora salienta que:

[...] os cativos eram frequentemente avaliados com valores superiores

em beneficio de seus senhores. Além disso, os proprietários

apresentavam, com frequência escravos incapacitados para o trabalho-

pela idade, sexo ou doenças- para serem libertados pelo fundo de

Emancipação. Dessa maneira os senhores trataram de garantir a

continuidade da dominação quer resistindo diretamente a legislação,

opondo-se à emancipação, quer aceitando- a como estratégia para a

gradual substituição do trabalho escravo pelo livre sem prejuízos ao

seu patrimônio e poder (ARAÚJO, 2005, p. 323.)

É, portanto importante destacar o caráter indenizatório da lei, já que as

regulamentações tinham por objetivo não causar grandes danos ao direito da sagrada

propriedade. Ao passo em que mudavam as relações entre senhores e escravos a lei não

agradou a todos os senhores, pois consideravam que era um ataque do estado à

propriedade privada. Se, de certa forma, a lei talvez pudesse ser capaz de garantir os

rumos da abolição, por outro, preocupava as autoridades provinciais e aos interesses

privados, pois, libertaria o escravo, o braço principal da produção no período. Silva

destaca que:

[...] em todas estas propostas a ideia central era realizar uma abolição

gradual e indenizatória que evitasse maiores transtornos sociais e

econômicos para os proprietários de escravos bem como para o

governo ao mesmo tempo em que também contemplasse as aspirações

emancipacionistas (SILVA, 2007, p. 160).

Outra questão que pode ser ressaltada acerca da “abolição gradual” é evidente já

no primeiro artigo da Lei que declara livre todas as crianças nascidas após a sua data de

homologação: “Dentro dessa lógica, num espaço de duas gerações a escravidão no país

seria extinta pelo fato de que ninguém mais nasceria escravo (SILVA, 2007, p. 167). O

intuito, portanto, era o de que na medida em que se libertassem os negros e negras

escravizados, essa prática fosse dando lugar a inserção de imigrantes, aumentando a

formação do mercado de trabalho livre nas mais diversas funções dentro da lógica

econômica do país, como uma espécie de “transição” lenta, gradual e segura.

Dentre as várias possibilidades, formar uma reserva financeira no valor de sua

carta de liberdade tornou-se, a partir da lei, uma condição real desejada por muitos.

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Embora essa prática já fosse realizada de modo costumeiro, os escravos ficavam

restritos muitas vezes ao desejo de negociação por parte dos senhores, e as disputas

judiciais se travavam entre o direito da sagrada propriedade contra os princípios de

liberdade. Mas, após a homologação da Lei 2.040, a possibilidade da compra de alforria

perpassou o que antes só ocorria em âmbito privado. Mas, como era possível, formar

pecúlio se o trabalho era escravo?

Machado (1988) salienta que o dinheiro acumulado pelos trabalhadores escravos

vinha de variadas atividades desenvolvidas dentro da lógica de uma economia

escravista. As atividades eram realizadas no tempo livre, conquistado nas brechas que

instituíam no interior da produção das fazendas e engenhos.

Em algumas propriedades, a constituição de pequenas roças era permitida pelos

senhores e realizada pelos escravos como modo de produzir para alimentarem suas

famílias e mesmo para juntarem certo pecúlio, com a venda do produto excedente, o que

ficaria conhecido na historiografia como a brecha camponesa. Mas, Machado (1988)

aponta outras atividades, com fins lucrativos, realizadas pelos escravos, sobretudo nas

cidades e vilas, como, por exemplo, a venda de peixe, de frutos silvestres,

demonstrando a autonomia escrava com relação a sua formação de pecúlio e uma forma

de economia paralela. Tais ações podemos considerar que constituíam uma

microeconomia escrava.

Uma série de limitações legais para restringir a compra da carta de liberdade

pelos escravos foi posteriormente estabelecida, como, por exemplo, o regulamento de 3

de novembro de 1872. De acordo com Silva:

A primeira destas era a obrigação de exibir em juízo no ato do

requerimento, o dinheiro ou títulos de pecúlio cuja soma equivalesse

ao seu preço razoável. A outra era a proibição da liberalidade de

terceiros para a concessão da alforria, exceto como elemento

destinado à constituição do pecúlio ou nas vendas judiciais e nos

inventários; pois só por meio do pecúlio e por iniciativa do escravo é

que admitiria o direito à alforria (SILVA, 2007, p. 157).

A primeira destas definições refere-se ao valor que o escravo possuía tendo que

ser apresentada previamente a quantidade de pecúlio em sua posse, evitando assim que

sobrecarregassem os tribunais com valores insignificantes para seus senhores. Silva

(2007) aponta que a segunda definição tinha por objetivo impossibilitar o financiamento

da compra da carta de alforria por senhores inimigos, fazendo com que laços de

dependência e gratidão prevalecessem após a libertação.

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Era o senhor, ao menos oficialmente, até a Lei de 1871, quem decidia o futuro

do escravo, e qualquer ação que versasse sobre a libertação ou, por exemplo, os “bons

tratos”, deveria ser entendida como generosidade, gerando por vezes um sentimento de

dívida moral com o senhor. Ao menos, o que sugere nas fontes, era esse o desejo dos

senhores.

O artigo 8º da Lei de 28 de setembro de 1871 anuncia que em todas as

províncias deveriam “proceder à matricula especial de todos os escravos existentes no

Império, com declaração de nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de

cada um se for conhecida”19

. O objetivo de obrigatoriedade da matrícula de todos os

escravos era conhecer a quantidade de escravos no Império, possibilitando a

continuidade da política de transição do trabalho escravo para o livre. Mas, para os

escravos e seus curadores foi também uma possibilidade de conquista da liberdade,

como o caso de Rita e de seu filho Silvério, apreendido a partir do acesso a uma

Matrícula de Escravos, de 1874. 20

Ao perceber que não havia sido matriculada por Matheus Campos Dias, seu ex-

senhor, Rita evadiu das terras de seu senhor, com seu filho menor. Passados sete meses

vivendo em “plena liberdade”, Matheus entrou na justiça para requerer a posse de Rita.

Na vila de Sant‟Anna do Paranahyba, no ano de mil oitocentos e setenta e

quatro, aos vinte e dois dias do mês de junho, houve uma audiência na sala da câmara,

em que Matheus Dias de Campos, agricultor, casado, acusava a preta Rita de ter fugido

de seu domínio. Esse senhor julgava-se homem pouco entendedor das leis e das

questões burocráticas, e como todo proprietário de terras e escravos que se preze

contratou a um letrado para representá-lo em audiência. Joaquim Lemos da Silva o

representou e propôs sessão ordinária contra a liberta Rita e o seu filho menor, de nome

Silvério, que se consideravam livres devido à falta de matrícula no tempo determinado

pela lei. Matheus Dias de Campos pretendia, com a acusação, provar que a preta Rita,

assim como o filho, eram de seu domínio, a fim de voltar a ter seus serviços.

A fim de caracterizar a posse da escrava, Joaquim Lemos da Silva afirmou que

Rita e seu filho, de nome Silvério, sempre pertenceram a família Campos e naquele

momento pertenciam a Matheus por título hereditário, em cuja posse sempre esteve e

mansa e pacífica.

19

Idem, p.160 20

Documento 18, Caixa 17. 1874, Matrícula de escravo. Arquivo público do Tribunal da Justiça. Campo

Grande, Mato Grosso do Sul.

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De acordo com a argumentação do procurador talvez seja possível compreender

que Matheus Campos não agia com violência contra a sua escrava, pois Rita não havia

se rebelado contra o seu senhor em vista de algum ato violento. Joaquim defendia ainda

que não houve omissão por parte de Matheus em não matricular a Ré e o filho menor,

Silvério. De acordo com Joaquim, Matheus sempre foi rústico e ignorante, por isso não

poderia ter conhecimento da lei que a isto ordenava, e tão pouco compreendia porque

Rita preta e seu filho saíram de sua casa.

Uma das maiores argumentações de Joaquim Lemos da Silva se deu ao dizer que

ninguém da Vila, nem tão pouco Matheus, tinha conhecimento da Lei nº 2040, de 28 de

setembro de 1871. Afirmava o defensor que esta notificação não foi publicada na Igreja,

como de costume. A lei a que se referia é a que ficara conhecida como a Lei do Ventre

Livre. Acreditamos, face a esse processo criminal, que muitas confusões ocorreram em

Sant‟Anna do Paranahyba acerca da Lei do Ventre Livre, ao ponto do Juiz de Cuiabá

enviar ao promotor da Vila um documento dando esclarecimentos sobre ela21

. A lei,

nesse sentido, apontava claramente em seu 2º parágrafo que “os escravos que por culpa

ou omissão dos interessados não forem dados à matrícula até um ano depois do

encerramento desta, serão por este fato, considerados libertos”.

Naquele contexto, o tenente Justiniano Augusto Fleury, defensor da escrava e de

seu filho, ao utilizar-se das prerrogativas da lei, já apontava para a conquista da

regulamentação da Lei do Ventre Livre, sinalizando para o início da abolição oficial da

escravidão no Brasil. A sua fala foi reveladora da importância dessa lei: “A aurora do

formoso dia, em que temos de dar uns aos outros os parabéns pela total abolição da

escravatura no Brasil que já despontou em 28 de setembro de 1871.”22

No desenrolar do processo, após Joaquim Lemos da Silva expor as questões que

justificavam, segundo ele, a posse de Rita e de seu filho como pertencentes a Matheus,

o curador Justiniano fez a defesa da escrava e de seu filho dizendo não compreender

porque somente naquele momento Matheus desejava recuperar Rita e seu filho.

Conforme o curador, fazia sete meses e dias que ambos gozavam de plena liberdade,

andando pelas praças e prestando pequenos serviços na Vila de Paranahyba, a vista e

face do público, sem serem incomodados ou contrariados por Matheus.

21

Documento 26. Correspondência da Presidência com os Juízes de direito municipal e promotores.

Arquivo do Estado de Mato Grosso, Cuiabá. 22

Documento 18, Caixa 17. 1874, Matrícula de escravo. Arquivo público do Tribunal da Justiça. Campo

Grande, Mato Grosso do Sul.

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Fleury afirmou ainda que se Matheus não deu a Rita e a seu filho a matrícula

quando eram seus escravos e estavam dentro dos prazos legais, isso se deu unicamente

por culpa e omissão sua, pois todos os possuidores de escravos do município, distantes a

40 e 50 léguas, haviam matriculado seus escravos a tempo. O defensor afirmou ainda

que, diferentemente da afirmativa de Joaquim Lemos da Silva, Matheus “nunca foi e

nem é homem tão rústico e ignorante como alega”, por que não consta que “tenha feito

ou ouse fazer maus negócios em prejuízo seus nem tão pouco tem vivido em estado de

sandice”.

Na análise dessa fonte é possível perceber como, para os escravos, a escravidão

e a liberdade estavam naquele contexto, de certa forma, materializadas em um

documento: a matrícula. A partir do momento em que Rita percebeu que Matheus não

havia feito sua matrícula e nem tão pouco a de seu filho, devidamente após a Lei do Rio

Branco, se sentiu no direito de gozar de sua liberdade, pois não havia nada que a

declarasse como posse de seu ex-senhor.

O documento enviado a Sant‟Anna pelo presidente da província, General José de

Miranda da Silva Reis, em 1873, com as considerações e disposições da lei, esclarece

que: “o requerimento do promotor ou de qualquer cidadão que obterá a certidão da não

matricula como já é de costume nesta capital, ficando contendo, entendido que a falta de

tal diligência não invalida o direito do escravo a lei que considera liberto”.23

Desse

modo, compreendemos que mesmo que Matheus não houvesse dado a Rita e ao seu

filho a certidão da não matricula ela poderia ser considerada livre após as

regulamentações da lei.

Era prática comum dos senhores, donos de escravos, tentarem burlar

regulamentações no intuito de não perder dinheiro nem o domínio de seus escravos. A

mesma legislação que regulamentava a Lei do Ventre Livre propôs a criação de um

Fundo de Emancipação de escravos. É possível compreender, a partir da análise do

documento24

, que a atitude de Matheus Dias Campos ao ser considerado homem pouco

conhecedor das leis tinha por objetivo não perder a posse de Rita e de seu filho Silvério.

Entretanto, a defesa do curador da Rita apresentou-se como um momento marcante

deste processo, pois coloca em evidência um dos sentidos de liberdade e, ao mesmo

tempo, de denúncia da escravidão naquele momento histórico. Justiniano Augusto

23

Documento 26. 1873.Correspondência da Presidência com os Juízes de direito municipal e promotores.

Arquivo do Estado de Mato Grosso, Cuiabá. 24

Documento 18, Caixa 17. 1874, Matricula de escravo. Arquivo Público do Tribunal da Justiça. Campo

Grande, Mato Grosso do Sul.

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Fleury pediu ao Juiz de paz que avaliasse do modo como ele “considera justo e reto”, as

decisões, pois:

O direito que tem todo o homem a liberdade, exclui o de escravizá-lo.

Aliás trata-se do absurdo de direito contra direito. A escravidão é um

fato, nada mais que um fato que lei nenhuma pode erigir em

direito[...]. A escravidão é um absurdo da força, um atentado cruel,

abominável, nenhuma prescrição vai disfarçá-la da horrível

deformidade. 25

Após os apontamentos do curador, em defesa de Rita e seu filho Silvério, o

subdelegado considerou que a Lei em seu Artigo 8º, de 28 de setembro de 1871, deixou

de ser observada pelo autor, por culpa ou omissão. Assim não seria possível considerar

os motivos que possam justificar o cativeiro. O processo civil foi encerrado em 28 de

novembro de 1874, momento em que o Juiz ordenou: “o autor Matheus Dias de Campos

conceda ação para o fim a Preta Rita e seu Filho Silvério, réus neste processo em sua

plena liberdade e condeno mais o autor nos custos26

”.

Após este longo processo permanece a pergunta: O que Rita faria na Vila de

Sant‟Anna do Paranahyba para garantir sua sobrevivência e a de seu filho fora das terras

ou da casa do seu ex-senhor, Matheus Dias? Vale indagar ainda como se dava o modo

de vida e as relações tecidas por essa escrava e seu filho em meio à sociedade

escravista.

Nos depoimentos das testemunhas arroladas todas afirmaram que a viam pelas

ruas da vila com o seu filho, prestando pequenos serviços. Quais eram esses serviços

não está descrito claramente no processo, mas podemos supor que fossem serviços de

lavar roupa, de pequenos consertos ou de limpeza e cuidados do lar, trabalhos

destinados quase que exclusivamente às mulheres pobres no século XIX. Neste sentido,

a partir de histórias como as de Rita e seus filho, e das relações estabelecidas com a

justiça, entre senhores e escravizados, dentre outros processos trabalhados nesta

dissertação, é possível, mesmo diante da dificuldade de se trabalhar com a linguagem e

estrutura do documento oficial do século XIX, uma análise nas entrelinhas desses

processos, entre outras fontes, partindo dos fragmentos que relatam as experiências de

vida desses sujeitos.

Araújo (2005), ao discutir as relações do Estado e dos senhores de escravos na

colaboração das cartas de liberdade, ressalta as mudanças no âmbito privado que

25

Idem. 26

Idem.

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ocorreram depois da Lei de 1871 em relação aos senhores e seus escravos. Cabia aos

senhores levarem os filhos de suas escravas para serem registrados, e também lhes era

conferida a decisão quanto a vida dessas crianças até os oito anos de idade.

Na maioria das vezes, os filhos livres das mulheres escravas eram batizados por

indivíduos com destaque na província de Mato Grosso. Mas, Araújo (2005), a partir de

suas pesquisas, destacou que raramente os filhos das escravas eram batizados por seus

senhores. Geralmente eram escolhidos senhores de outros planteis que, de certa forma,

poderiam assegurar as condições mínimas de vida ao afilhado. Entretanto, as relações de

compadrio, no caso, o apadrinhamento, também poderiam ser estratégias de convívio

que visavam assegurar, em partes, o domínio dos senhores face aos seus escravos.

Araújo destaca que: “se as ambiguidades da lei garantiriam aos senhores a continuidade

de seu domínio sobre a criança que ela tornava livre, caberia aos cativos reinterpretá-la,

buscando, no seu cotidiano, meios de tornar suas expectativas possíveis de realização”

(2005, p. 346).

A autora salienta que as escravas buscavam estratégias possíveis para seus filhos

viverem livres, mesmo que em uma sociedade escravocrata. A relação de compadrio

observa Araújo (2005), servia para assegurar às crianças, segundo suas mães, uma vida

futura, longe dos chicotes e açoites.

São essas questões, entre outras, que apontam à compreensão da busca pela

liberdade e os modos de resistências dos sujeitos escravizados em Sant‟Anna do

Paranahyba. Pela quantidade de documentação ainda a ser vista e (re) vista nos arquivos

de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, pensando até mesmo no recorte temporal e

espacial, acreditamos que esteja aqui uma pequena parte de algo muito maior do que é

possível ser construído nos cursos de pós graduação.

O incessante trabalho de busca de indícios se renova e apresentam diversas

possibilidades de construção da narrativa histórica a cada “cair de chuva”,

parafraseando Manoel de Barros “a régua é existidura de limite”. E a história não tem

limites, o fato é além do documento, e além dos indícios que nos chegam, não há régua

que limite as possibilidades de compreensão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença.

(Manoel de Barros)

Fazendo uso das palavras, buscamos compreender a importância das

desimportâncias. Nesse sentido, durante o trabalho, apontamos algumas possibilidades

para pensarmos os povos originários, escravizados e pobres livres no recorte temporal

de 1828 a 1888, marcos que remontam, respectivamente, a data marcada ao início da

colonização não branca nas terras santanenses e a data do fim legal da escravidão no

Brasil.

O processo de leitura da documentação oficial disponível no Arquivo Público

de Mato Grosso, Cuiabá e Arquivo do Tribunal da Justiça de Mato Grosso do Sul, em

Campo Grande, foi uma experiência desafiadora. A leitura dos documentos oficiais, é

trabalhosa, precisa ser minuciosa, e somos tomados invariáveis vezes pelo sono, mas a

cada desenrolar do processo, a cada fato inusitado, a cada medida judicial, nos

despertamos e vibramos com a possibilidade de um novo indício para a pesquisa.

Respeitando as histórias, e o nosso próprio tempo de leitura diante dos prazos da

pesquisa, foi possível entender os documentos como narrativa única. Histórias que

ficaram na memória como de pessoas conhecidas que narraram suas vidas. Na tentativa

de compor os silêncios desses sujeitos marginalizados ao buscarmos o protagonismo de

suas vidas, sobretudo na documentação oficial, escolhemos documentos que nos trazem

sujeitos que resistiram aos mandos e desmandos do poder local.

Assim, toda a documentação selecionada e analisada neste trabalho teve como

objetivo entender o processo de busca pela liberdade dos escravizados. Em busca de

construir um panorama social mais abrangente, sobre o espaço da pesquisa, entendemos

que seria necessário pensar na construção dos espaços sociais, e quais outra relações de

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poder, resistência e liberdade eram vivenciadas nas terras santanenses. Neste sentido,

entendemos que pensar sobre a ocupação não branca a partir de 1828, com os Garcias e

os Lopes, por exemplo, seus projetos de “civilização”, e, sobretudo, face a esses

projetos, a resistência dos povos originários, seria crucial apreender essas ações para

pensarmos a história da liberdade relacionada à localidade e aos sujeitos detentores de

poder econômico e político. Pois não seriam os mesmos senhores que exploravam,

dizimavam os povos originários, os senhores de escravos? Qual a forma de busca pela

resistência e espaços de liberdade galgados pelos povos originários frente a essa

exploração?

Trabalhamos na tentativa de compor respostas à essas e outras perguntas no

primeiro capítulo. Para tanto, selecionamos os relatórios de província e cartas oficiais

como fontes norteadoras. A partir da leitura de Cunha (1987), entendemos que

documentos apontam indícios do projeto de assimilação indígena em consonância com

as políticas de civilização e catequese apresentados durante todo o Império. Os

indígenas, bem como os escravizados e libertos, eram entendidos como problemas de

ordem pública. As autoridades imperiais a todo tempo, nos relatórios e cartas, apontam

para o perigo de rebeliões e motins que esses sujeitos poderiam causar.

Entendendo estas problemáticas o segundo capítulo foi pensado a partir dos

processos-crimes, momento em que os crimes e problemas causados pelos escravizados,

indígenas e libertos, seriam evidenciados. A partir de Grimberg (2011) e Chaloub

(2001), buscamos compreender a construção do processo crime, sua estrutura e fases.

As ações dos sujeitos foram analisadas a partir da busca de suas histórias, ao narrarem a

luta para sair de sua condição escrava, entretanto, buscando os devidos cuidados para

não naturalizar a violência, fosse ela de senhor para escravizado ou escravizado contra

o senhor. Buscamos evidenciar que a violência não é algo inato aos sujeitos em

condição de escravidão, mas sim construída nas ações e meios que são utilizados para a

manutenção do poder.

Mas, cabe destacar que as violências para a manutenção do sistema escravista

nem sempre eram relacionadas aos castigos físicos. Elas poderiam e estavam também

relacionadas ao que era de mais simbólico na busca pela liberdade: as cartas de alforria

ou cartas de liberdade.

E no terceiro capítulo nos dedicamos então a analisar a coletânea de fontes,

Como se do ventre livre nascido fosse... Para compreender as exigências das cartas de

liberdade foi necessário entender sua estrutura e suas possibilidades de construção no

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período de elaboração. Identificamos cartas de liberdades sob condição, carta pagas e

auto compras. Porém, antes da Lei de 1871, a Lei do ventre livre, todas as cartas,

independente de sua tipificação, precisariam necessariamente partir da livre e

espontânea vontade do senhor.

Registrava-se a carta, mas ainda assim o sujeito escravizado ficava sob o

domínio do senhor. A maioria das cartas que analisamos estava vinculada às condições

para a concessão da liberdade. Condições como: a servir o senhor até a morte, cuidar

das criações de porcos, cuidar dos filhos até todos se casarem, entre outras situações. As

cartas ainda poderiam ser revogadas caso o senhor entendesse que o escravizado agiu

com ingratidão ou descumprisse algum acordo estabelecido na manumissão.

Após a Lei do Ventre Livre, em 1871, os escravizados puderam recorrer à justiça

para conquistar a sua carta de liberdade, ou seja, não precisavam mais necessariamente

ou exclusivamente do senhor para a concessão da liberdade. Foi uma interferência

gigantesca do estado imperial nas relações entre fazendeiros e escravizados. A Lei do

Ventre Livre faz parte de um conjunto maior de leis que visavam a abolição gradual da

escravidão do Império sem danos aos cofres e a produtividade das fazendas.

Mais do que números e quantitativo de fontes, relatórios e cartas, todo esse texto

foi pensando com o objetivo principal de apresentar sujeitos, homens e mulheres,

indígenas, escravizados, pobres e livres como pessoas que já passaram por aqui; gente

que trilhou por essas terras que hoje conhecemos como Mato Grosso do Sul, que são

mais que números em relatórios frios.

Entendemos, porém, que muito ainda há para ser feito, e esta é uma das

inúmeras contribuições possíveis. Essa dissertação tentou apresentar o calor da vida, o

sentir do respirar, o motor dessas disputas políticas, sociais e econômicas, tão

acentuadas cotidianamente e que movimentam a história. Esperamos ter contribuído, ao

menos em parte, para este intento.

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Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

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Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

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PENTEADO, Yara. (org). “como se de ventre livre nascido fosse...”: Cartas de liberdade, revogações,

hipotecas e escrituras de compra e venda de escravos. 1838 – 1888. Campo Grande, MS: SEJT.MS:

SEEEB.MS: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Pal

Autorizo a reprodução deste trabalho.

Dourados, 2017.

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Rejane Trindade Rodrigues