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ESCRAVOS A sofrida história dos Parkatêjê durante a época de chumbo: grupo indígena foi escravizado pelos órgãos SPI e Funai durante 11 anos, entre 1964 e 1975 CASTANHA Krohokrenhum, memória viva da cultura Timbira da

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ESCRAVOS

A sofrida história dos Parkatêjê durante a época de chumbo:

grupo indígena foi escravizado pelos órgãos SPI e Funai durante

11 anos, entre 1964 e 1975

CASTANHA

Krohokrenhum,memória viva da cultura Timbira

da

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Fotos: Laís Souza

- Tá aqui, capitão, esse dinheiro é teu - anunciou o sertanista An-tonio Cotrim para o cacique Kro-hokrenhum.

O capitão, que nunca tinha visto uma quantia tão grande na vida, aceitou na hora a proposta do sertanista. Os 15 índios Par-katêjê, liderados por Krohokr-enhum, mudaram-se então, do ig-arapé Praia Alta, no município de Itupiranga, onde moravam, para a reserva Mãe-Maria - ambos no sudeste do Pará. A proposta era proteger os castanhais dos inva-sores que ocupavam o local. Foi o que fizeram. Tomaram conta e coletaram a castanha-do-pará, co-mercializada em Marabá, cidade distante 21 quilômetros do limite da reserva. Em troca pelo trab-alho, seria repassado uma parte justa dos lucros a eles - o que só ocorreu nesta primeira vez.

Com a abertura da rodovia PA-70, atual BR-222, a área desper-tou o interesse dos posseiros, pela facilidade em escoar a castanha, dificultando o seu resguardo pe-los funcionários do Serviço de Proteção para o Índio (SPI), em 1964, ano da promessa de Co-

trim. A terra compreendida entre os rios Flecheiras e Jacundá havia sido demarcada aos índios anos antes, em 1943, por decreto do in-terventor federal no Pará, durante o governo de Getúlio Vargas. Mas o antigo SPI, órgão antecessor à Fundação Nacional do Índio (Fu-nai), criada em 1967, a arrendava para terceiros por preços irrisóri-os desde 1947.

Ao contar a história, o capitão, como o cacique é denominado pela Funai, bate na mesa com força diversas vezes, do mesmo jeito que fez o sertanista Cotrim ao entregar o dinheiro na época. O seu rosto marcado adquire uma expressão intensa. O fato foi de-cisivo na escolha deles de ficarem na aldeia oferecida.

Os Parkatêjê são da família Jê, pertencentes ao povo Timbira, também conhecido por Gavião pelos brancos, - ou “kupê”, como dizem na língua Jê. Eles ocupavam a margem direita do rio Tocantins, desde Imperatriz, no Maranhão, até Jacundá, no Pará, quando, em XIX, o sudeste do estado era habitado apenas por indígenas. A exploração do látex extraído da

árvore amazônica caucho, no fi-nal do século, e mais tarde, nos anos 20, das castanheiras, acuou o grupo. Depois dos Timbira guer-rearem entre si, dividindo a popu-lação, e das doenças dos brancos acometerem os Parkatêjê, resta-ram apenas 15 em Itupiranga, que aceitaram se mudar para a reserva. Lá eles não receberam o dinheiro prometido por Cotrim, que trab-alhou apenas um mês com a tribo como funcionário do SPI, não podendo prever que eles se tor-nariam escravos, por dívida, do próprio órgão.

Os funcionários do SPI, e mais tarde da Funai, levavam a cas-tanha coletada para ser vendida em Belém, e pagavam os índios como se fossem mão-de-obra da instituição. Do valor, eram descontadas as mercadorias que haviam sido retiradas do barracão montado pelo posto indígena, ne-cessárias para a safra, quando eles iam à mata, como roupa, bota, munição, comida. Esse valor era debitado no final da produção, fazendo com que eles sempre ficassem devendo. Um tipo de escravidão comum em explora-

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ções extrativistas. A reportagem tentou, insistentemente, ouvir a Funai sobre o ocorrido, mas a as-sessoria de comunicação do órgão não se manifestou diretamente so-bre o assunto.

O índio Kutia recorda bem desse sistema. Tentando conter o suor com a toalha apoiada em seu colo, num dos dias mais quentes de dezembro no sudeste do Pará, o senhor de 68 anos relembra toda a história que viveu junto com a tribo, enquanto a sua mulher coz-inha frango em uma grelha sobre tijolos, no chão de terra . Ele era do grupo Gavião que morava no município de Tucuruí, tendo se juntado ao capitão depois de ini-ciada a construção da barragem de Tucuruí, em 1967, que inundou sua antiga aldeia. As duas aldeias haviam guerreado entre si anos antes, e foram reunidas pela Fu-nai em Mãe-Maria - assim como aconteceu com os Gavião do Ma-ranhão, que se juntaram a eles em 1969, pela política do SPI de es-vaziar os locais, sob pressão dos grileiros.

Ele se comuni-ca bem em portu-guês, lembra nomes e sobrenomes, assim como valores com exatidão. Após a con-quista de independên-cia financeira da tribo, ele administrou a co-mercialização da cas-tanha e, desde 1985, é funcionário da Funai, quando foi escolhido para assumir a última chefia de posto den-tro da aldeia, evitando maiores brigas entre o órgão e os índios, que ganhariam cada vez mais autonomia.

Kutia conta que no período de explora-

ção, a Funai vendia cada hectoli-tro, medida correspondente a 100 litros, por 10 cruzeiros em Belém e repassava 2 cruzeiros para os índios, sem o desconto do ran-cho. “Veja como a Funai enganou o capitão: em 1974, a safra deu 5.800 hectolitros, a Funai pagan-do 2 cruzeiros para o capitão por hectolitro, queria repassar apenas 1000 cruzeiros para o capitão pela safra. Capitão não queria receber não, ele chorou.”

Neste ano, a Funai vendeu as castanhas por 58000 cruzeiros, e pagou apenas 1000 cruzeiros - deveria ter pago 11600 para o capitão. Segundo o antigo chefe do posto Mãe-Maria, Geraldo Virgínio Ribeiro, em seu livro “Memórias de uma existência”, todos os valores das mercadorias

do rancho era discriminados em um bloco de notas de aviamento em três vias - uma ficava com o interessado, outro era destinado à 2ª Delegacia Regional da Funai em Belém e a terceira, ao arquivo do PI. As atividades com a cas-tanha também era relatadas em um comprovante, que menciona-va a origem do produto, o nome de quem a trouxe e a quantidade recebida nos barracões localiza-dos à margem de Fleixeiras, no início da reserva. Os índios não sabem onde estão estes relatórios e a lista fornecida pela Funai dos documentos existentes sobre os Parkatêjê não inclui nenhum que contenha os dados de venda das castanhas. Também não foi pos-sível ter acesso a qualquer outro documento solicitado à fundação

Criança na frente do armazém:

índios mais velhos apostam na agri-cultura extensiva

Texto: Joana Zanotto

O verde escuro da reserva Mãe-Maria se destaca em meio

a área desmatada no sudeste do Pará

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pois o Serviço de Gestão Docu-mental (SEDOC) da instituição está de mudança desde dezembro, segundo explicou a servidora do setor.

Kutia se emociona durante o relato quando se recorda de Ti-uré - descendente de Potiguara que chegou na aldeia em 74 para ajudar o grupo. Humberto Nasci-mento da Silva, seu nome de ba-tismo, é filho de mãe índia e pai branco, nasceu no Rio Grande do Norte em 1949 e entrou na Funai, através de um concurso, para se aproximar da cultura da família. Tiuré revela que começou a estra-nhar certas atitudes da fundação e para descobrir o que estava acon-tecendo passou a fazer hora extra para ter acesso a documentos si-gilosos.

Em meio ao clima de tensão que cercava os últimos episódios nar-rados por Kutia, Krokonenhum viajou à Brasília, mesmo sob ame-aça de prisão por parte do Coronel Antônio Nogueira, da 2ª Delega-cia Regional de Belém e conheceu Tiuré, que andava descontente com o que vinha descobrindo, e relatou o que a tribo vinha pas-sando.

- Eu vi esse processo aqui. Eles nunca vão te dar a castanha - avi-sou Tiuré.

- Se eu tivesse um índio como você na minha aldeia, nós já tería-mos dado um grito de guerra, de liberdade contra a Funai.

Era tudo o que Tiuré precisa-va para partir. Largou tudo e foi para a reserva, acompanhado do capitão e também da antropóloga Iara Ferraz, que foi prestar um serviço à Funai de Brasília, na im-plantação de um projeto, parte do Desenvolvimento Comunitário, de ajuda aos índios de Mãe-Maria.

Eles conseguiram um emprésti-mo de 30 mil cruzeiros com o ad-vogado Dalmo Dallari e um adi-antamento de 1 milhão na venda

da castanha com o grande comer-ciante Evandro Mutran, de Belém. Com isso, os índios começaram a comercializar a castanha sozinhos e abriram uma conta comunitária no Bradesco, tornando-se a pri-meira tribo indígena com poup-ança no Brasil.

Tiuré relatou sua história por três horas. Ele carrega os cabelos negros compridos, até a altura do ombro. Fala com firmeza, em to-dos os momentos, inclusive quan-do narra os dois episódios de tor-tura que sofreu antes de se exilar no Canadá até 2009, sendo con-

siderado o primeiro índio exilado político do Brasil, pela Organiza-ção das Nações Unidas (ONU). Voltou ao Brasil com a esperan-ça de anistia, com o anúncio da Comissão Nacional da Verdade. Hoje, vive na Baía da Traição, na Paraíba, junto com seus ascenden-tes potiguaras em lutas constantes por retomadas de terras. Em seu tempo livre, pinta e escreve arti-gos. Como os outros índios, Tiuré é muito brincalhão e consegue se divertir ao contar essas histórias. Ele sente falta dos Parkatêjê e vem aguardando ter dinheiro para

visitar os amigos, e seu pai, como chama o Krohokrenhum.

O capitão recebe a notícia de que Tiuré sente sua falta com alegria e emoção. Ele só deixou as repórteres entrarem na aldeia ao saber que traziam consigo uma carta do seu filho de coração. Krohokrenhum fica atento em sua cadeira enquanto escuta sua sobrinha ler o recado. Ao seu re-dor, a família e alguns dos índios mais velhos se sentam para ouvir a história. Eles adoram contar e ouvir histórias.

A aldeia hoje está diferente. Os grupos que foram agrupados pela Funai nos anos 60 se separam por novas brigas entre si e agora estão dispostos em cinco aldeias den-tro da mesma reserva, apesar do capitão insistir sempre que fazem parte de um grupo só. Os Par-katêjê de fato, oriundos do grupo de 15 índios que moravam em Itupiranga, estão em duas alde-ias, que apesar de terem casas de alvenaria, estão dispostas em um círculo, como tradicionalmente. A dos mais velhos, onde fica o “pro-jeto” de cultivo de cana-de açúcar e outras plantações e criação de animais, entre eles, queixadas e porcos; e a dos mais jovens, onde estão a maioria dos outros. O gru-po cresceu depois da escravidão,

passando a 582 índios pelo senso da Funasa de 2010.

O capitão chegou a achar que no tempo da reduzida tribo em Itupiranga o grupo iria terminar, porque morriam cada vez mais gente com a doença do kupê e eles não sentiam mais vontade de viver como índios, na cidade, distantes das matas. Passavam a maior parte do tempo dormin-do na rede. Agora o grupo se reestru-tura culturalmente, com a ajuda da an-tropóloga Leopol-dina de Araújo e o desejo de resgatar o passado.

Krohokrenhum conta tudo isso se-gurando arcos e flechas, que mostra com certo orgulho, enquanto Jopranré, sua sobrinha, pinta as mulheres, com jenipapo. Cada de-senho representa um animal. Elas se preparam para a fi-nal do campeonato marabense de fute-bol: time Parkatêjê versus time dos kupê.

O cacique é um dos maiores incentivadores da retomada cul-tural na aldeia. Ensinou os cantos na língua Jê, que foram todos es-critos e traduzidos no livro orga-nizado por Leopoldina. Ela tam-bém elaborou, por solicitação de Krohokrenhum, uma coletânea bilíngüe de mitos, empregada como material didático na escola da aldeia, que possui aulas minis-tradas em português e em Jê, e au-las culturais todas as sextas-feira.

Apesar das dificuldades em lidar com os problemas ocasionados no período de exploração da castanha e mais tarde da construção do lin-hão de Tucuruí e da Estrada de Ferro Carajás, o capitão se esforça em transmitir seus ensinamentos aos mais jovens, já que hoje tem 83 anos, segundo contabiliza a Fu-nai. Com suas duas esposas ao seu lado, não tira nunca o sorriso do rosto e nem perde a oportunidade de fazer graça com os kupês.

Pintura corporal feita de genipapo: cada desenho é um animal

Retomada cultural na aldeia: o maior desa!o dosParkatêjê

Tiuré: primeiro exilado indígena reconhecido pela ONU

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ENTRECORTADO

A reserva Mãe-Maria é recortada pela rodovia BR 222, antiga PA-70, pela linha de energia de Tucuruí, conhecida na região como o linhão, e pela Estrada de Ferro Carajás, da Vale, for-mando um mosaico intercalado por verde e destruição.

TERRITÓRIO

Os Parkatêjê chegaram na região em 1964, chamados pelo SPI para conter a entrada de invasores na reserva. Dividida em duas par-tes pela rodovia e rica em castan-hais, a área era alvo de posseiros e grileiros.

Já o linhão foi construído após a chegada dos índios, no início, às escondidas. Eles descobriram isso em uma de suas saídas para caçar, surpreendidos por topógra-fos que demarcavam a região. A rede de alta tensão carrega ener-gia produzida pela hidrelétrica de Tucuruí, a quarta maior do mun-do. Para atravessar o território, a Eletronorte pagou em 1980 uma indenização de 40 milhões de cru-zeiros para os Parkatêjê, segundo Krohokrenhum, e forneceu en-ergia elétrica para a aldeia. A re-portagem procurou a Eletronorte para con!rmar o valor, porém a empresa nos direcionou para a Manaus Transmissora, responsável pela instalação do trecho que passa em Marabá. O telefone indicado pela Manaus Transmissora não at-endeu. O linhão tem 517 quilômet-ros, estendendo-se de Imperatriz,

no Maranhão até Miracema, no Tocantins.No início da década de 80, a Vale também construiu dentro da reserva a sua ferrovia, com uma extensão de 892 quilômetros, co-nectando principalmente as Minas de Carajás, no Pará, ao Terminal Marítimo de Ponta da Madeira, no Maranhão. Sobre a estrada são transportados minério de ferro, ferro-gusa, manganês, cobre, com-bustíveis e carvão. Saem todos os dias 380 mil toneladas de minéri-os, que são exporta dos principal-mente para a China. A abertura da estrada de ferro facilitou a entrada de posseiros na reserva e alterou o modo de vida local. O barulho afasta os animais selvagens e os peixes, que antes eram encontra-dos com abundância na lagoa, dentro da reserva. Outro problema decorre do fato de que o trem é ab-erto, liberando pó de minério.

Na época, a empresa, ainda chamada de Vale do Rio Doce, pre-cisou de !nanciamento do Banco Mundial. O funcionário da insti-tuição !nanceira naquela década, Robert Goodland, relata em ent-

revista por e-mail, que o banco so-freu “diversas incomodações com a Funai na época”, que não cumpriu as exigências de apoio aos índios impostas pela instituição para !-nanciar o empréstimo.

Eles pagaram primeiramente uma indenização para os índios, e depois foi feito um convênio que ainda garante ao grupo a remessa de 640 mil ao mês, segundo Kuia, !lho de Krohokrenhum e estu-dante de direito. Nem os índios, nem a Vale con!rmaram o valor, que continua em sigilo.

O que não é sigiloso são as mu-danças de hábito dos índios, após a construção da ferrovia. Eles so-brevivem principalmente com a quantia que ganham por ela. Pos-suem diversas caminhonetes 4x4 e compram a maior parte da comida que consomem no supermercado. Agora, negociam com a empresa a duplicação da ferrovia, que está prevista para ser concluída no se-gundo semestre de 2016 e que vai aumentar o transporte anual de minério de ferro para 230 milhões de toneladas métricas - mais que o dobro da produção atual.

Mudanças à vista:

tribo negocia duplicação da ferrovia