Escrita tecnologia O suposto fim da letra cursiva abriu uma srie de debates. Em sua coluna de agosto, Keila Grinberg oferece uma perspectiva histrica (e pessoal) sobre o tema. Para ela, a criao de

artifcios incluindo a a escrita parte fundamental da natureza humana.

Inscries em sumrio feitas quase trs mil anos antes de Cristo. De l para c, os homens vm escrevendo

em bambus, papiros, pergaminhos e papis. Hoje, o computador desponta como artefato principal da escrita.

(foto: Wikimedia Commons)

Minha letra sempre foi horrvel. Mesmo antes deste tempo em que escrever

significa teclar, minha letra j era to ruim que uma vez um professor comentou,

ao me devolver uma prova de histria da Amrica colonial, que meu texto o fez

treinar a leitura de manuscritos do sculo 16! Portanto, nem preciso explicar por

que desde ento me tornei adepta do teclado.

Mas como basta a ameaa de que algo vai acabar para o interesse dos

historiadores ser despertado, a recente notcia sobre o fim do ensino da letra

cursiva no estado de Indiana, nos Estados Unidos, me chamou a ateno. Uma

pequena matria no jornal adicionou mais pimenta ao debate sobre a velha

tambm ser boa? escrita mo.

Assim como em outros estados norte-americanos, a letra cursiva vai sair do

currculo para dar lugar a ensinamentos supostamente mais importantes, como

o correto uso dos teclados dos computadores. Tudo bem algumas pessoas no

escreverem mais mo, mas isto significa que a letra cursiva no mais

necessria nos dias de hoje? Ser que um dia deixaremos mesmo de escrever

mo e s usaremos a caneta para assinar documentos ou talvez nem isso?

Em vrios lugares dos Estados Unidos, a letra cursiva sai do currculo para dar lugar a

ensinamentos supostamente mais importantes, como o correto uso dos teclados dos

computadores. (foto: Carlos Henrique Machado/ Flickr CC BY-NC-ND 2.0)

Polmicas parte, mais do que o aspecto cognitivo da questo, o que vem me

interessando nesse debate so as reaes nostlgicas que o anncio do fim da

letra cursiva est gerando. Ou melhor, os impactos culturais provocados pelo fim

de um tipo de escrita e pelo estabelecimento de um novo. Os defensores da

manuteno da escrita manual argumentam que, para escrever, basta papel e

caneta. Mas at o papel e a caneta j foram, um dia, novas tecnologias.

At onde sabemos, a humanidade escreve desde o tempo dos sumrios, que se

estabeleceram na Mesopotmia 3.500 anos antes da era crist. Desde muito

antes, os seres humanos j desenhavam, mas no escreviam no sentido de

representar graficamente os sons. Depois da criao do alfabeto grego e de sua

adaptao pelos romanos, foi criado o sistema alfabtico tal qual existe hoje,

com a representao de sons por caracteres.

De l para c, os homens vm escrevendo em bambus, papiros, pergaminhos e

papis. A escrita, por sua vez, passou de mgica, ameaadora ou perigosa, em

sociedades com baixo grau de alfabetizao, a agente materializador da

verdade, no sculo 19, quando passou a incorporar o estatuto de veracidade (em

processos judiciais, por exemplo) que o testemunho oral deixava de ter.

Destruio da memria?

Na verdade, muito antes do advento da caneta, a prpria escrita j havia sido

condenada, por ningum menos do que Plato. Em Fedra, ele argumenta que a

escrita a pretenso de estabelecer fora da mente humana aquilo que s deveria

estar dentro. Ao escrever, estaramos destruindo a memria, fazendo uso de um

recurso externo a ns mesmos.

Plato: ao escrever, estaramos destruindo a memria, fazendo uso de um recurso externo a ns mesmos

Plato, evidentemente, no estava pensando em computadores ou calculadoras,

mas estava falando de tecnologia. Tambm se referia a uma nova tecnologia o

editor veneziano Hieronimo Squarciafico que em 1477 escreveu que a

abundncia de livros deixa os homens menos estudiosos.

Acontece que o prprio Squarciafico promoveu a impresso de clssicos escritos

em latim, e as ideias de Plato s chegaram at ns porque ele as escreveu. A

confiar na memria coletiva da humanidade, sequer saberamos hoje da sua

existncia.

A questo que qualquer escrita tecnologia, seja ela qual for. Falar humano,

escrever artificial. Por isso precisamos de algo externo a ns para escrever.

Pode ser pena, lpis, caneta tinteiro ou caneta esferogrfica. Ou teclado. Afinal,

a criao de artifcios no parte fundamental da natureza humana?

'Qualquer escrita tecnologia, seja ela qual for. Falar humano, escrever artificial. Por isso

precisamos de algo externo a ns para escrever. Pode ser pena, lpis, caneta tinteiro ou caneta

esferogrfica. Ou teclado.'

Como j dei a entender, acho que no vou sentir saudades da minha letra

quando deixar de us-la. Mas com certeza sentirei falta de cadernos, lpis,

lapiseiras e blocos de anotaes. E os cadernos escolares, ento? Como sero

os adultos de amanh, sem os cadernos da adolescncia? Sei no. Talvez um

pouco de nostalgia no faa mal.

Em tempo

Todo apoio ao movimento da cincia lenta, que vem ganhando visibilidade

mundo afora e recentemente foi objeto de timo post de Bernardo Esteves.

isso mesmo: precisamos de tempo para pensar, digerir, debater, divergir.

Historiadores so, por excelncia, adeptos da leitura lenta e da escrita lenta

tambm, mo ou teclada.

Os assinantes do manifesto defendem que h sculos a cincia vem sendo feita

lentamente. Estou totalmente de acordo. Mas fico tambm pensando que,

nesses sculos todos, fazer cincia, assim como escrever, era coisa para

poucos, que nem sempre dependiam de financiamento pblico para realizar suas

pesquisas ou nem sempre dependiam de seu prprio mrito para angariar fundos

para seus estudos.

Como estabelecer critrios que respeitem o tempo longo da pesquisa e o tempo curto dos financiamentos?

Em um mundo onde muita gente quer fazer pesquisa e os critrios para

atribuio de financiamento devem ser pblicos e baseados exclusivamente no

mrito, como estabelecer critrios que respeitem o tempo longo da pesquisa e o

tempo curto dos financiamentos? (Vale a leitura de uma matria sobre critrios

de avaliao publicada aqui na CH On-line recentemente)

Keila Grinberg Departamento de Histria Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro