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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 3550
ESCRITORES ANTOLOGISTAS – EDUCAÇÃO DA SENSIBILIDADE EM ANTOLOGIAS DE POESIA NA DÉCADA DE 1960
Suzete de Paula Bornatto1
Introdução
Angela Gomes e Patrícia Hansen reúnem, em livro de 2016, análises de especialistas
diversos sobre personagens definidos como “intelectuais mediadores” e considerados como
“absolutamente estratégicos” na perspectiva da história cultural, que “prioriza as
preocupações com as dinâmicas de produção dos bens culturais”, tornando fundamental a
atenção aos fenômenos de sua mediação (GOMES; HANSEN, 2016, p. 13). A reflexão sobre a
mediação romperia, assim, a dicotomia que “separa a hierarquiza” os processos de
criação/produção, de um lado, e os de divulgação/vulgarização, de outro. Assim, erudição,
qualidade e seriedade não seriam percebidas como virtudes exclusivas dos criadores, sendo
rejeitada qualquer classificação com base nessa dicotomia.
Defendem as autoras que os intelectuais mediadores podem acumular funções e
posições em sua trajetória profissional, atendendo a diferentes intenções e públicos, podendo
mesclar criação e mediação em sua atuação. Estes sujeitos históricos responsáveis pela
difusão, circulação e comunicação dos bens culturais seriam estratégicos para a compreensão
dos processos de recepção de bens culturais e detentores de valor político e cultural, não lhes
cabendo a classificação de meros transmissores ou vulgarizadores de conteúdos.
Entre os mediadores, segundo elas, alguns deixam claro o tipo de conexão de que se
encarregam, por terem ocupações emblemáticas da mediação cultural, como os tradutores, os
educadores e os críticos (de literatura, música), “que aproximam seus públicos dos bens
culturais, fazendo-os conhecê-los de antemão” (GOMES; HANSEN, 2016, p. 34).
Nesse sentido, os intelectuais autores dos projetos aqui apresentados são dupla ou
triplamente mediadores, por acumularem papéis e articularem responsabilidades perante
seus pares – escritores e críticos – , seus leitores – público relativamente especializado ou
consumidor de poesia, e as crianças e jovens do país, em sua diversidade ilimitada de
experiências, formação e expectativas.
1 Doutora em Educação pela UFPR, Professora Adjunta no Departamento de Teria e Prática de Ensino da UFPR. E-Mail: <[email protected]>.
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Para a maioria da população escolarizada nos anos 1960/1970, certamente os mais
importantes selecionadores de textos para leitura, ao lado dos professores, foram os autores
de livros didáticos; pesquisas anteriores mostram, no entanto, que muitos destes se valeram,
em sua escolha, de seleções preexistentes: as antologias, seletas ou coletâneas (BORNATTO,
2011; 2014), gênero cuja história no Brasil merece ser ampliada, após o trabalho de fôlego de
Márcia Razzini em torno da Antologia Nacional.
É mais fácil e seguro escolher dentre o que já foi selecionado por alguém cuja
competência é respeitada, e essa apropriação do critério alheio pelos livros didáticos nos leva
a reconhecer um impacto também indireto das antologias, em termos de conteúdo e de
configuração editorial.
Quem tinha competência, poder e/ou prestígio para escolher e organizar o que/como os
outros poderiam ou deveriam ler? Quem podia ser responsável pela triagem de poemas,
tendo em vista os jovens leitores, dentro da extensa produção poética em língua portuguesa?
A quem os editores confiaram essa tarefa no Brasil, no período em que finalmente a maior
parte da população jovem passa a frequentar a escola?
A fim de contribuir para a discussão dessas questões, abordo dois projetos de educação
materializados por escritores brasileiros – poetas e professores – em antologias de poemas: a
Antologia Poética para a infância e a juventude, de Henriqueta Lisboa (1961), e Poesia
Brasileira para a Infância, de Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito (1968).
Em ambas as obras, o mote é a aproximação entre leitura de poesia e educação – existe
um empenho desses escritores, intelectuais reconhecidos por sua produção literária, crítica e
ensaística, em chancelar textos de qualidade para formar novos leitores, familiarizando-os
com “boa” literatura. Por quê? Aparentemente os livros dos literatos vêm se contrapor a
livros de professores não escritores – embora em nenhum momento isso seja dito dessa
forma.
Os antologistas
A função de autor/organizador, em uma seleção de textos de outros escritores, pode
parecer inexpressiva, se o responsável não agregar algum valor à edição, mas, se o antologista
for escritor de prestígio, sua assinatura empresta confiabilidade e mérito à obra. Conforme
Emmanuel Fraisse (1997, p. 95), são os critérios de organização e o paratexto que constituem
os principais elementos de definição da forma antológica, diferenciando-a de outras, em que
há mera compilação de textos. Esses elementos sublinham o fato de que a antologia é a
expressão de uma consciência crítica da literatura.
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De fato, o direito autoral para proteção das obras literárias, estabelecido
internacionalmente pela Convenção de Berna – assinada em 1886 e revisada em Paris em
1971 – reconhece como autoria a ser protegida o trabalho do antologista:
As compilações de obras literárias ou artísticas, tais como enciclopédias e antologias, que, pela escolha ou disposição das matérias, constituem criações intelectuais, são como tais protegidas, sem prejuízo dos direitos dos autores sobre cada uma das obras que fazem parte dessas compilações. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1998)
A inclusão na legislação é indício da permanência e da aceitação do gênero, cujo início
conhecido remonta aos clássicos gregos. Fraisse (1997, p. 100-101) cita o pesquisador alemão
Pforte, para quem o antologista passa do estatuto de colecionador ou de conservador da
literatura ao de mediador literário, porque vai reproduzir e transmitir o que leu. Assim,
escolher e dispor os poemas dos outros, mesmo estrangeiros, não se resume a partilhar de
seu prestígio, significa reencontrá-los, interpretá-los e transmiti-los.
Por outro lado, na França do pós-1ª. guerra, cresce o número de escritores que se
recusam a ser incluídos em antologias. Isso porque, conforme o pesquisador francês, a
antologia não é motivada somente por uma necessidade coletiva – a escola e seus programas,
a educação das moças, a fundação do sentimento nacional, as inclinações de um público – ela
é também o lugar de expressão de um gosto e de um talento individuais, é manifestamente
criadora da leitura e de uma abordagem da literatura (FRAISSE, 1997,p. 102).
Em 1912, no prefácio ao livro “Alma Infantil – Versos para uso das escolas”, dos irmãos
poetas Francisca Júlia e Júlio da Silva, o editor observa:
As nossas escolas do Estado estão invadidas de livros mediocres [...]. Verdade é que poucos dos nossos escriptores didacticos, pouquissimos mesmo, têm, fóra dessa especialidade, uma solida reputação nas letras. Quase todos são mais ou menos amadores. Entre estes há-os que têm talento, sem duvida, mas a quem faltam qualidades que só têm os artistas (JULIA; SILVA, 1912, p. 9).
Para esse editor, os textos para leitura escolar careciam de qualidade e o ideal era que
seu autor – o “escritor didático” - fosse, antes disso, um bom escritor e/ou um escritor
reconhecido. “Alma infantil” é um livro autoral, para leitura escolar: os poemas foram
escritos para crianças e não compilados de outras publicações; no caso das antologias
poéticas selecionadas, porém, os textos não foram escritos com esse fim - é sua reunião que
tem caráter didático, e a assinatura de um organizador renomado, de um artista reconhecido,
certamente agregou valor comercial e cultural à publicação.
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Henriqueta Lisboa (1901-1985) era filha de político, de família tradicional mineira.
Depois de concluir a Escola Normal em sua cidade natal, Campanha (sul de Minas), mudou-
se para o Rio de Janeiro. Publicou o primeiro livro em 1925; com o segundo, em 1929,
ganhou o Prêmio Olavo Bilac de Poesia, da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Em 1935, voltou a Minas nomeada inspetora federal do ensino secundário; no ano
seguinte, representou as mulheres mineiras no III Congresso Feminista Nacional; em 1945
assumiu a cadeira de Literatura Hispano-Americana da Universidade Católica de Minas
Gerais; e em 1952, outro livro seu recebeu o Prêmio Othon Bezerra de Mello, da Academia
Pernambucana de Letras. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Mineira de Letras,
em 1963.
Sua produção abrange ensaios e traduções de poesia, principalmente do italiano e do
espanhol, mas também do alemão e do inglês. Correspondia-se com Gabriela Mistral, poeta
chilena ganhadora do Nobel de literatura em 1945, de quem era tradutora, e com boa parte
dos escritores modernistas de sua geração: Cecília Meireles, Murilo Mendes, Carlos
Drummond de Andrade e outros (como Mário da Silva Brito, também antologista).
Segundo Eneida de Souza, que organizou a correspondência entre Mário de Andrade e
Henriqueta Lisboa, esta ocupou lugar de destaque entre as poucas interlocutoras femininas
do escritor, que a considerava “fora das correntes gerais” que interessavam à crítica na época,
isso porque a poeta defenderia uma poética universalizante, enquanto Mário de Andrade
pleiteava uma arte “nacional” (SOUZA, 2010, p. 22).
A escritora já havia publicado nove livros, dentre eles dois para crianças, quando
encaminhou ao diretor do Instituto Nacional do Livro (INL), José Renato Santos Pereira, sua
antologia poética para a infância e a juventude.
O INL fora criado em 1937, na gestão de Gustavo Capanema no Ministério da Educação
e Saúde Pública. Conforme Aníbal Bragança, durante o governo Kubitschek (1956-1961), o
órgão não teria conseguido se impor como o responsável pelas políticas públicas para o livro,
mas a gestão de Pereira teve o mérito de dar continuidade ao programa de edições,
enriquecendo-o com a publicação de duas novas séries na Biblioteca de Divulgação Cultural, uma de ensaios sobre temas literários e outra de problemas brasileiros, “em pequenos volumes, a preço módico, capazes de atingir um público cada vez maior” (Pereira, 1956: 4-5), que, nos cinco anos de sua gestão, lançou vinte e oito volumes, com boa receptividade no público leitor, esgotando-se alguns rapidamente. (BRAGANÇA, 2009, p. 237)
No início da “Introdução” da Antologia, datado de dezembro de 1958, Henriqueta
Lisboa declara:
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Ao terminar a organização de uma antologia poética para a infância e a juventude, assalta-me estranha perplexidade. Tarde, porém, para desistir do empreendimento, tarde para recomeçar a tarefa, entrego ao Diretor do Instituto Nacional do Livro, Dr. José Renato Santos Pereira, o resultado de minhas pesquisas e meditações. (LISBOA, 1961, p. 7)
A perplexidade da autora se deve à dúvida sobre se os poemas seriam acessíveis ao
público imaginado – “destinatário de sensibilidade distante da nossa”. Mas é preciso reter
aqui o caráter de empreendimento e de tarefa: a obra parece atender a uma encomenda, o
que ainda precisa ser averiguado junto aos arquivos do INL, a fim de entender o lugar dessa
obra do conjunto das publicações do período.
Poesia brasileira para a infância, de Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito, saiu em
1960 pela Saraiva, editora que começou na área de livros jurídicos na década de 1910 e foi
progressivamente se tornando uma das principais produtoras de livros didáticos do país.
No texto de apresentação, sob o título A poesia e a educação, Nunes e Brito
desenvolvem uma longa digressão sobre o tema, com o recurso à autoridade de diversos
autores (Gustavo Corção, Augusto Schmidt, Hermes Fontes e a própria Henriqueta Lisboa),
mas não aludem a qualquer convite ou pedido – sem nenhuma modéstia, aliás, dizem que seu
“padrão de escolha” é o melhor e que “todos os grandes escritores e educadores” os apoiam
nesse julgamento: “Cremos também que somos os primeiros a empregá-lo em nossa Pátria”
(1968, p. VII).
Cassiano Nunes (1921-2007) era licenciado em Letras Anglo-Germânicas pela USP e, à
época da edição da antologia, havia publicado apenas ensaios de crítica literária. Estudou
literatura nos Estados Unidos e na Alemanha e, segundo seu perfil na página da Associação
Nacional de Escritores, foi “orientador cultural” na Editora Saraiva, mas não há informação
precisa de datas. Também atuou na Câmara Brasileira do Livro e recebeu prêmio da ABL por
uma obra sobre Monteiro Lobato. Lecionou literatura brasileira, entre 1962 e 1966, na
Universidade de Nova Iorque (onde também trabalhou Anísio Teixeira).
De volta ao Brasil, ingressou na Universidade de Brasília, esvaziada após a saída de
professores em protesto contra medidas repressivas do governo federal. Apesar dos vários
livros de poesia e algumas peças de teatro, sua atividade mais frequente foi, em suas próprias
palavras, a de “divulgador da literatura brasileira” (NUNES, 1978, p. 28).
Mário da Silva Brito (1916-?) foi poeta, crítico e um dos principais historiadores do
movimento modernista brasileiro, tendo publicado mais de quarenta títulos por editoras
como Livraria Martins, Civilização Brasileira e Cultrix. Sobre ele, até o momento, foram
encontradas pouquíssimas informações de natureza biográfica em jornais e sites voltados à
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literatura. Seus livros de poesia o aproximam do movimento concretista, mas ele não chegou
a despontar nessa área.
Não há, nessas antologias, informações sobre os organizadores – pode-se supor que
não era necessário justificar sua escolha para o público, ou que seus nomes eram suficientes,
por serem intelectuais atuantes no contexto cultural brasileiro. Embora ambas sejam “para a
infância”, o paratexto dialoga com os adultos – em especial, os professores, ainda que não os
mencione. Assim, é o paratexto que informa um pouco mais sobre os projetos autorais, na
medida em que ali são explicitados os critérios de escolha e organização, além de serem
demarcadas posições em relação a outras obras do gênero.
Poesia e educação
A respeito do lugar da poesia na sociedade, Peter Gay cita o que considera uma
“profecia notável” do abade Nicolas Trubet, em 1754: “À medida que a razão se aperfeiçoar, o
julgamento será cada vez mais valorizado em detrimento da imaginação, e em consequência
os poetas serão menos apreciados”. A “difamação da faculdade imaginativa enfurecia os
românticos”, para quem a imaginação era sempre o alimento essencial dos poetas,
compositores, pintores, de todas as pessoas dotadas de sensibilidade, durante toda a sua
vida” (GAY, 1999, p. 58-59. grifo meu). O autor ressalta a frequência com que os românticos
exaltavam a inocência e a faculdade inata de percepção daqueles que não haviam sido
“estragados” pela sociedade (aspas no original).
A insistência em educar crianças e jovens com poesia apresenta, no corpo das
antologias dos anos 60, justificativas superpostass – ou ela atinge ou alimenta pessoas
dotadas de sensibilidade, ou, antes disso, cria, forma essa sensibilidade onde ela não existia,
por isso um projeto de educação que contemplasse a sensibilidade teria de contemplar a
poesia como conteúdo.
Mas, como é possível educar a (ou para a) sensibilidade?
O termo “sensibilidade” tem mais de dez acepções dicionarizadas, mas as que
interessam de modo mais próximo à temática da educação e da leitura são: 1) sentimento de
humanidade ou faculdade de sentir compaixão pela humanidade, piedade, empatia; 2)
capacidade de captar e expressar sentimentos; disposição para sentir ou para se emocionar
diante de algo ou alguém; aptidão para apreender e demonstrar sentimentos.
As antologias parecem apostar tanto na empatia com a humanidade quanto em uma
aptidão para a fruição e a criação artística. A análise das justificativas e do repertório de
textos ajuda a esboçar uma resposta.
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A antologia de Henriqueta Lisboa tem formato 16x23,5 e uma capa clara, simples – os
únicos detalhes coloridos são duas palavras do título e a marca do INL em vermelho. Tem
274 poemas e mesmo número de páginas, das quais dez são de Notas Bibliográficas, com
local de nascimento e datas de nascimento e morte de cada autor. Não traz ilustrações. Os
textos estão organizados em duas partes: na primeira (para crianças) estão 105 poemas, dos
quais 26 traduzidos; na segunda (para jovens), há 169 poemas, sendo 56 traduzidos. São 84
poetas de língua portuguesa, incluindo a própria Henriqueta, que encerra a lista após a
segunda série de traduções.
O número de poemas por autor é variável – oito de Ribeiro Couto, sete de Drummond,
seis de Augusto Schmidt, Alphonsus de Guimarães e Antônio Correia de Oliveira, cinco de
Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Mário Quintana e Fernando Pessoa. Os nomes mais
frequentes indicam alguma preferência da autora por simbolistas e modernistas afinados
com seu próprio perfil poético.
Os poetas estrangeiros são 49 – Gabriela Mistral é a mais citada, com seis poemas; a
maioria tem um ou dois textos. O que impressiona é a diversidade de origens – explicada pela
pretensão universalizante, de trazer as variadas vozes do mundo em vez de se restringir ao
que é nacional.
Esta opção poética (educacional e política), como já apontado, é motivo de discordância
entre a escritora mineira e o poeta paulista Mário de Andrade, ícone do movimento
modernista brasileiro: “Em carta a Henriqueta, (Mário) exprime a necessidade da poesia de
se afastar do conceito do universal, associado à religiosidade, pela escolha do cotidiano como
material literário e do humor como saída para o sofrimento”. A poeta responde que se sente
“criatura de Deus, antes de tudo, muito antes de ser brasileira” (SOUZA, 2000, p. 31-32).
Os motivos e critérios da autora são apresentados na Introdução:
É a arte, incontestavelmente, um dos esteios fundamentais da educação, pela sua capacidade de aprimorar a sensibilidade, desenvolver os sentidos em direção dignificantes, estimular a faculdade intuitiva e criadora, promover a compreensão dos seres e das cousas para além dos reinos da inteligência. Fiel a essa convicção, tentei realizar, através da poesia aqui reunida, algo em favor da educação estética. (LISBOA, 1961, p. 7)
A sensibilidade é, portanto, atributo dos leitores, só precisa de ajuda para ser
aprimorada – a leitura de poesia teria esse poder, assim como o de desenvolver os sentidos
na direção adequada. É uma perspectiva romântica, que idealiza o leitor e o poder da leitura.
A autora diz que “tentou” algo, não parece segura de alcançar seus objetivos. Interessante é
que a tentativa é a resposta a uma situação:
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Apresenta-se quase sempre ao escolar brasileiro, sob o rótulo de poesia, certo artigo prosaico, naturalmente com muito boas intenções. No caso, o engano redunda em desserviço. O pseudopoema, de versos mecanicamente inflexíveis e substância normativa, à feição de uma flor de papel, desorienta e deforma o gosto natural. A verdade é que o magistério da poesia está no seu valor: a lição da poesia deriva de sua própria essência. (LISBOA, 1961, p. 7)
Fica claro que a antologia do INL vinha se contrapor a obras de qualidade discutível –
porque produzidas com intenção didática, normativa. O juízo sobre os livros disponíveis é
similar àquele expresso pelo editor de Alma Infantil, sobre livros medíocres e escritores
didáticos sem talento literário. Poemas ruins, “pseudopoemas” eram oferecidos à leitura dos
estudantes e isso desorientaria seu (bom) gosto natural – para Henriqueta, boa poesia não
precisa ensinar nada, é formadora por natureza. Existe uma aposta na fruição dos textos para
o desenvolvimento do gosto, do juízo estético.
A autora arrisca uma explicação para esse mau ensino de poesia:
O problema resulta às vezes da incompleta formação do professor, privado na primeira idade, em virtude de um círculo vicioso, dos cuidados estéticos. Agrava-se com a questão do material, aparentemente escasso. Esse material existe em abundância, porém se encontra disperso. Ao recolhê-lo de cada livro e cada poeta de língua portuguesa, de Camões a Geir Campos, quis também valer-me da literatura universal, em páginas traduzidas para o nosso idioma. Assim procurei alcançar meu objetivo, preferindo a força expressiva ao academismo, sem nenhum preconceito de escolas, tendências, meios ou épocas. (LISBOA, 1961, p. 7)
O professor a que se refere a poeta é do final da década de 1950 – e ele não parece
aquele profissional culto e preparado que certa nostalgia dos mais velhos costuma desenhar –
é alguém que não aprendeu a gostar de poesia quando criança – lhe faltaram cuidados
estéticos, ou seja, educação da sensibilidade. E, se para o professor, é difícil ter acesso aos
livros (que seriam abundantes), ela assume o papel de tomar uma amostra de cada um e
propiciar a oportunidade de leitura – antes de mais nada, ao professor.
Os poetas são de língua portuguesa – do Brasil e de Portugal – dos séculos XVI ao XX,
mas também estrangeiros – ou “universais”: de língua espanhola (como Lope de Veja, Garcia
Lorca, Borges, Mistral), italiana (Leopardi), francesa (La Fontaine, Verlaine, Rimbaud),
inglesa (Rilke, Longfellow), alemã (Goethe, Heine, Schiller)– em tradução dela mesma ou de
outros escritores (Manuel Bandeira, Tasso da Silveira, João Ribeiro e outros).
O critério é, então, a força expressiva – e embora sem preconceitos, ela rejeita o
academismo, dando a entender que busca mais naturalidade do que sofisticação de estilo.
Passa a impressão de certa liberalidade na escolha, porém, em seguida, o texto restringe as
possibilidades: “Paralelamente ao critério artístico, busquei atender a imperativos de ordem
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moral, evitando qualquer motivo de depressão psíquica, languidez, angústia, paixão,
desordem: o que pudesse, acaso, ferir a delicadeza de almas imaturas.” (LISBOA, 1961, p. 8)
Essa ressalva, que lembra um pouco as contraindicações de uma bula de remédio,
parece dialogar com a psicologia educacional. Abandona-se o modelo romântico, que preza
também as paixões e a loucura, em prol de um equilíbrio à moda clássica, em nome da ordem
moral.
O critério de qualidade dos poemas é exemplificado: “sentimentos nobres sem doblez,
conceitos de vida naturalmente elevados, gestos graciosos sem afetação, paisagens de
agradável colorido (introspectivas ou exteriores), tudo através de uma dicção, tanto quanto
possível singela, sem vulgaridade ou balbucio.” E é por todo esse cuidado com a delicadeza de
alma dos leitores, justifica a autora, que “altos valores” da poesia universal ficaram de fora,
por serem “severos, ou sensuais, ou herméticos” (LISBOA, 1961, p. 8).
A ordenação segue dos mais contemporâneos (modernos) aos mais antigos
(românticos, na primeira parte; clássicos, na segunda). Mantendo o tom dubitativo do início,
a autora reconhece que é possível que se haja enganado em alguns pontos, mas que pode
dizer com sinceridade ser a Antologia o livro que ela desejaria ter lido na meninice. Ou seja,
era o livro ideal para a menina que ela julgava ter sido.
A atuação de Lisboa como antologista prossegue depois dessa antologia – em 1970, ela
publica Lendas, Contos e Fábulas populares no Brasil pela Cultrix (componente da
Biblioteca COLTED, como a obra de Nunes e Brito).
Poesia Brasileira para a infância, por sua vez, teve em 1960 uma primeira edição em
capa dura, com 294 páginas, e chegou à 3ª. edição, em 1968, em formato 12 x 18,5, com
apenas 190 páginas. A capa desta edição é listrada de branco e rosa, tem uma ilustração em
cores vivas representando duas crianças sorridentes em uma casa amarela, diante de um
jardim, com igreja e céu azul ao fundo. O título e o nome dos autores aparecem em branco
sobre um quadro preto (ou negro, aludindo ao contexto escolar). O volume faz parte da
Coleção Henriqueta (Editora Saraiva), de que não foi possível localizar até o momento
nenhum outro título – é provável que o nome da coleção homenageie Henriqueta Lisboa.
O livro é dividido em cinco partes – todas iniciadas por uma ilustração em preto e
branco, de Nico Rosso: “Nossa terra e nossa gente”, “O Jardim de Deus”, “Lições em
gravuras”, “Infância, reino mágico” e “A imaginação é a fada”, perfazendo 91 poemas, de 67
poetas. Como já anuncia o título, não abriga portugueses ou estrangeiros – no lugar do
universalismo, entra o patriotismo.
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Os organizadores afirmam que, no artigo A Técnica e a Poesia, Gustavo Corção teria
salientado o que parece um fato surpreendente: “as relações íntimas entre a Poesia e a
Ciência, ou seja, em outras palavras, o reconhecimento da utilidade da Poesia” (BRITO;
NUNES, 1968, p. v). Essa justificativa é curiosa, pois dá a entender que a intimidade com a
Ciência legitima a poesia, que – afinal – tem utilidade. Em seguida inserem as palavras de
Corção:
Lucidamente escreveu o prosador [...]: “O mecanismo psicológico da invenção técnica e da descoberta científica tem grande semelhança com o processo de invenção poética. O denominador comum é a capacidade que tem o espírito humano de aproximar, num ato intuitivo, as coisas distantes. Ou melhor, é a capacidade de ver a novidade profunda de cada coisa e sua independência em relação ao uso rotineiro e oficial”. De tal observação deduz-se que a Poesia é, antes de tudo, visão criadora, criação – o que a etimologia comprova. (BRITO; NUNES, 1968, p. v)
É coerente a defesa da cientificidade e o léxico utilizado pelo poetas: da observação se
deduz algo que pode ser comprovado. Reconhecendo que a “moderna pedagogia” visa
incentivar a atividade criativa, “o labor realizado com individualidade”, veem como natural
que a “Escola Nova” tenha dedicado especial atenção ao “setor da Poesia”. De Jacques
Maritain trazem a afirmação de que desde a infância se deveria prever uma “iniciação lírica”,
que não seria difícil por ser “natural nas crianças o estado poético”, por meio de uma
educação da sensibilidade e da imaginação que permitisse a elas serem criadoras.
Mencionam o entusiasmo de Augusto F. Schmidt pelos resultados da Escola Freinet, de Paris,
o trabalho do educador uruguaio Jesualdo na escola secundária, e dois exemplos de crianças
poetas, para concluir que entre infância e poesia “há vínculos manifestos”.
Feita essa defesa da poesia, assim como na antologia de Lisboa, vêm as críticas ao
modelo e aos materiais de ensino:
Não obstante a aceitação unânime ou quase unânime da importância educativa da Poesia, parece-nos que, em nossos colégios, ela é pouco empregada [...] Não temos dúvida de que tal insucesso redunda da carência de material poético autêntico... Em geral, o que se apresenta em nossas escolas com o rótulo de Poesia não passa de um equívoco, para não dizermos um logro. [...] Não são suficientes as aparências da poesia – estâncias, versos metrificados e rimados – para termos a Poesia...
Os autores dizem ter dedicado três anos à procura da Poesia para a elaboração do
volume, o que comprovaria que, de muitos versos escritos no Brasil, poucos tinham a
“essência poética”. A causa mais frequente do malogro da produção poética difundida nos
colégios estaria nas intenções pedagógicas colocadas com precedência. Não existindo uma
poesia determinantemente educativa, a “professora prendada e decidida, que se senta à mesa
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propositalmente para escrever um poema sobre Sete de Setembro – [...] ou faz simples prosa
ou tolice.” (BRITO; NUNES, 1968, p. vii)
A crítica ostensiva à tentativa da hipotética professora sugere que o falseamento da
produção, a utilização didática de um texto sem qualidades, ofende a tal Poesia com
maiúscula – quando, de fato, o problema é que ela rouba espaço de poetas profissionais,
como os antologistas, que não são lidos na escola e, de certa forma, “inexistem” para boa
parte da população.
Nesse ponto, os autores trazem a autoridade poética de Henriqueta Lisboa para sua
argumentação: “Como todas as grandes cousas verdadeiras, a poesia é uma só. Uma só cousa
– vasta, profunda, total”. Concluem assim pela impropriedade “das carradas de poesia
patriótica que têm sido espalhadas no nosso país, com as mais puras intenções
nacionalistas... Sem dúvida, há uma poesia patriótica [...] mas antes de ser patriótica é
Poesia.” (BRITO; NUNES, 1968, p. vii)
Assim, justificam que o critério de sua seleção foi estético, poético – o aspecto
educacional era secundário, os versos não eram aproveitados se neles não “luciluzisse a
enigmática centelha do ‘fenômeno poético’” (BRITO; NUNES, 1968, p. vii), pois do contrário
o poema seria uma fraude, incapaz de educar alguém, e de transmitir qualquer elemento
positivo.
É interessante que o texto de Brito e Nunes tenha começado defendendo a ciência e
terminado falando em uma centelha enigmática.
Considerações Finais
Não cabe aqui discutir a essencialidade do gênero poético, que é, como qualquer outro,
um produto de linguagem cujo valor e cujos sentidos não são absolutos, pois se realizam e
renovam a cada enunciação e a cada nova leitura. Também não se pretendeu discutir o
conceito de leitura como de uma atividade que gera um resultado previsto – tanto Bakhtin
como Chartier nos previnem contra essa ingenuidade. Mas cabe retomar a hipótese inicial, de
que os projetos dos intelectuais escritores se destinam, de fato, a recuperar um espaço para a
poesia na escola, diante de textos e práticas que consideram inadequadas. São investidas em
prol de certa educação, que deseja estimular ou produzir sensibilidade – aparentemente,
como um refinamento de percepção e reação diante do mundo - diante de uma realidade
escolar concreta em que só podem intervir dessa forma.
Embora tenda à transparência, a atividade de mediação define um grande recorte
cultural na produção literária nacional (e internacional), pois cria impacto cultural a opção
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reiterada por determinados autores e textos – ou a possibilidade de contato com outros
poetas e temas.
A seleção de Lisboa, com pretensões de abranger diferentes culturas, olhares e
experiências, se distancia do nacionalismo – e dos exemplos recolhidos com esforço – por
seus colegas, também poetas – em seu roteiro de perfil conservador, em torno dos temas da
terra, de Deus e da infância, afinado com a ideologia do regime militar vigente na época dessa
edição.
A propósito, apenas uma dessas antologias chegou ao século XXI, embora apenas
metade dos poemas tenha sido mantida – e ela continua bastante atual. Talvez seja a mesma
que você, leitor ou leitora, ficou com vontade de ler também.
Referências
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SOUZA, Eneida (org.). Correspondência Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa. São Paulo: EDUSP, 2000.