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195 Educação em Revista|Belo Horizonte|v.30|n.03|p.195-218|Julho-Setembro 2014 ESFORÇADOS E “TALENTOSOS”: A PRODUÇÃO DO SUCESSO ESCOLAR NA ESCOLA TÉCNICA FEDERAL DE SÃO PAULO 1 Nicolau Dela Bandera * RESUMO: Este artigo busca compreender a produção do sucesso escolar na Escola Técnica Federal de São Paulo. O objetivo específico é investigar como o vestibulinho do colégio produz uma seleção rigorosa a priori de um público altamente suscetível à ação pedagógica da instituição e interpretar como determinadas trajetórias familiares impulsionam os estudantes a constantes superações de si e a um alto investimento nas conquistas escolares. Foram analisadas as motivações e as representações produzidas pelos agentes a respeito do estudo e da própria história familiar, assim como o ethos escolar desses jovens que conforma um estilo de vida e um padrão de masculinidade específico, expresso nas identidades escolares do nerd e do prodígio, no qual o esforço escolar é valorizado e reconhecido pelos pares. Para a realização desta pesquisa, foram realizadas entrevistas em profundidade com 21 jovens, selecionados a partir de um questionário aplicado no terceiro ano do ensino médio (total de 257). Palavras-chave: Sucesso escolar. Classes médias. Famílias. Identidades escolares. GIFTED AND HARDWORKING: ACADEMIC SUCCESS PERFORMANCE AT ESCOLA TÉCNICA FEDERAL DE SÃO PAULO ABSTRACT: This paper aims to explain production of academic success at São Paulo Federal Technical School - (Escola Técnica Federal de São Paulo). The specific purpose is to inquire on how the school admission test produces an austere selection a priori from a public highly susceptible to the institution educational action, and interpreting on how specific families’ trajectories stimulate students constantly overcoming themselves and a high investment towards academic achievements. A motivation analysis was carried out and models formulated by agents concerning to study and family history, as well as ethos school investment of these youths in order to determine a lifestyle and a detailed masculinity pattern. This pattern is manifested in the school identities of the nerd and the prodigy, which school effort is valued and accepted by pairs. To perform this research, in-depth with 21 students, a total of 257 were interviewed, selected from a survey applied to high school third year seniors. Keywords: Academic success. Middle classes. Families. School identities. * Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Esforçados e 'talentosos': a produção do sucesso escolar na Escola Técnica Federal de São Paulo

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    Educao em Revista|Belo Horizonte|v.30|n.03|p.195-218|Julho-Setembro 2014

    ESFORADOS E TALENTOSOS: A PRODUO DO SUCESSO ESCOLAR NA ESCOLA TCNICA FEDERAL DE SO PAULO1

    Nicolau Dela Bandera*

    RESUMO: Este artigo busca compreender a produo do sucesso escolar na Escola Tcnica Federal de So Paulo. O objetivo especfico investigar como o vestibulinho do colgio produz uma seleo rigorosa a priori de um pblico altamente suscetvel ao pedaggica da instituio e interpretar como determinadas trajetrias familiares impulsionam os estudantes a constantes superaes de si e a um alto investimento nas conquistas escolares. Foram analisadas as motivaes e as representaes produzidas pelos agentes a respeito do estudo e da prpria histria familiar, assim como o ethos escolar desses jovens que conforma um estilo de vida e um padro de masculinidade especfico, expresso nas identidades escolares do nerd e do prodgio, no qual o esforo escolar valorizado e reconhecido pelos pares. Para a realizao desta pesquisa, foram realizadas entrevistas em profundidade com 21 jovens, selecionados a partir de um questionrio aplicado no terceiro ano do ensino mdio (total de 257).Palavras-chave: Sucesso escolar. Classes mdias. Famlias. Identidades escolares.

    GIFTED AND hARDwORkING: ACADEMIC SUCCESS PERFORMANCE AT ESCOLA TCNICA FEDERAL DE SO PAULO

    ABSTRACT: This paper aims to explain production of academic success at So Paulo Federal Technical School - (Escola Tcnica Federal de So Paulo). The specific purpose is to inquire on how the school admission test produces an austere selection a priori from a public highly susceptible to the institution educational action, and interpreting on how specific families trajectories stimulate students constantly overcoming themselves and a high investment towards academic achievements. A motivation analysis was carried out and models formulated by agents concerning to study and family history, as well as ethos school investment of these youths in order to determine a lifestyle and a detailed masculinity pattern. This pattern is manifested in the school identities of the nerd and the prodigy, which school effort is valued and accepted by pairs. To perform this research, in-depth with 21 students, a total of 257 were interviewed, selected from a survey applied to high school third year seniors.keywords: Academic success. Middle classes. Families. School identities. * Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade de So Paulo. E-mail: [email protected]

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    INTRODUO

    Este artigo localiza-se na literatura da sociologia da educao que investiga a produo do sucesso escolar, visando compreender a posio de um colgio pblico considerado de excelncia no espao das escolas de So Paulo: a Escola Tcnica Federal.2 O objetivo especfico deste trabalho investigar como o vestibulinho para ingresso no colgio produz uma seleo rigorosa a priori de um pblico altamente suscetvel ao pedaggica da instituio e interpretar como determinadas trajetrias familiares impulsionaram os jovens do colgio a constantes superaes de si e a um alto investimento nas conquistas escolares. Alm disso, analisam-se as motivaes e as representaes produzidas pelos agentes a respeito do estudo e da prpria histria familiar, assim como o ethos que caracteriza o trabalho de investimento escolar desses jovens, que conforma um estilo de vida e um padro de masculinidade especfico, expresso nas identidades escolares do nerd e do prodgio, no qual o esforo escolar valorizado e reconhecido pelos pares.

    A pesquisa possui como metodologia a realizao de entrevistas em profundidade com 21 jovens, selecionados a partir de um questionrio aplicado a todos os alunos do terceiro ano do ensino mdio do colgio, num total de 257 questionrios. O critrio de seleo dos entrevistados foi basicamente o de respeitar a heterogeneidade social e cultural interna das turmas de ensino mdio. As entrevistas aconteceram em dois momentos da trajetria desses alunos: o primeiro, no final do terceiro ano do ensino mdio (17 entrevistas), e o segundo quando eles j estavam na universidade (4 entrevistas).

    Os primeiros estudos sistemticos na sociologia da educao brasileira sobre o sucesso escolar das classes mdias e dominantes surgiram somente no final da dcada de 1990. Segundo Catani et al. (2001), nesse momento que ocorre a incorporao do modus operandi da teoria de Bourdieu pela sociologia da educao brasileira, ou seja, a incorporao sistemtica de conceitos e do modo de fazer cincia do socilogo francs. Nesse perodo, a principal preocupao terica da sociologia da educao recai sobre a legitimao da desigualdade na sociedade brasileira por meio do sucesso escolar, ou, na definio de Bourdieu (1989), sobre a funo de sociodiceia exercida pelo sistema de ensino. Surgem os primeiros trabalhos que no analisam a educao escolar em sua funo negativa a produo do fracasso escolar mas sim a partir de sua funo positiva de produo dos eleitos para ocupar as posies mais privilegiadas,

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    em termos econmicos e simblicos, na hierarquia escolar e social (NOguEira, 1991; AlMEIdA, 2009; PErOSa, 2009). ao incorporar os resultados dessas pesquisas, este trabalho pretende contribuir para uma maior compreenso dos processos de produo do sucesso escolar, investigando como so produzidas as disposies e as crenas sociais de estudantes de fraes das classes mdias que frequentam a Escola Tcnica Federal de So Paulo.

    Veremos como determinadas formas institucionais de socializao produzem jovens dispostos e aptos a escolher uma trajetria marcada por um alto investimento na escola e na cultura. Como afirma Passeron (1995), um dos grandes desafios da sociologia da educao contempornea no somente explicar a fronteira simblica que separa os jovens com sucesso escolar daqueles que fracassam, mas investigar as nuanas e as modulaes de sucesso e fracasso que existem no interior do sistema. Parte-se, neste artigo, da hiptese de que esse alto investimento escolar, marcado por autossacrifcios e superaes, pode ser descrito e explicado, com as devidas mediaes, a partir do grau em que a estabilidade ou a possibilidade de ascenso social das famlias dependem da escola ou do acmulo de capital cultural, em funo, de a transmisso de outra espcie de capital ter-se tornado menos rentvel e eficaz para esses grupos.

    UM COLGIO PARA AS CLASSES MDIAS: DO PEqUENO NEGCIO S PROFISSES DE COLARINhO BRANCO

    Os avs dos jovens estudantes da Federal so, em sua maioria, imigrantes ou filhos de imigrantes italianos ou japoneses, e no chegaram, em geral, a completar o ensino mdio. Eles enriqueceram e se estabeleceram em So Paulo como agricultores, operrios, pequenos comerciantes ou artesos. Poucos dos avs dos entrevistados possuem ensino superior: apenas 8,4% (21 casos) dos avs paternos obtiveram um diploma superior, enquanto 14,8% (37 casos) concluram o ensino mdio e 8,4% (21 casos) o ensino fundamental. O ndice de no resposta ou de uma escolarizao que no atinge o nvel fundamental bastante elevado: 68,4% (169 casos).

    J em relao aos pais e s mes dos alunos, houve, em geral, oportunidade de concluir os estudos superiores; alguns se formaram na universidade de So Paulo (9%), mas no obtiveram a ascenso s posies dirigentes por meio dos diplomas conquistados; outros se formaram em cursos tcnicos (2%) e/ou em instituies de ensino superior particulares (40%). Hoje, a maioria dos pais pertence a fraes das classes mdias, ocupando principalmente os empregos de colarinho branco descritos por Wright Mills (1979; garCia, no prelo) em meados do sculo XX: 15,2% funcionrios em posies

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    intermedirias no servio pblico; 11% profissionais liberais; 9,2% administradores de pequenas e mdias empresas; 6,4% funcionrios de escritrio; 6% professores do ensino mdio; 7,3% quadros tcnicos. Pertencentes s fraes da classe mdia tradicional, formada por proprietrios, segundo Wright Mills (1979), e que era predominante na gerao dos avs: esto 7,8% de pequenos comerciantes e 7,3% de pequenos empresrios. alguns pais pertencem s classes trabalhadoras, em ocupaes nos servios urbanos desqualificados (8,3%) e industriais (5%). Somente uma pequena minoria pertence a famlias de fraes das classes dominantes, em que os pais so: 1,3% (3 casos) militares de alta patente, 0,9% (2 casos) rentistas, 0,9% (2 casos) professores universitrios, 0,5% (1 caso) poltico regional e 0,5% (1 caso) artista. Se, na gerao dos avs, essas famlias pertenciam frao da pequena burguesia tradicional, que entrou em declnio no decorrer do sculo XX, formada principalmente por pequenos empresrios e pequenos comerciantes, na gerao dos pais, eles se aproximaram da frao que Bourdieu (2007) denominou de pequena burguesia de execuo, constituda pelos empregados subalternos do tercirio e pelos quadros mdios dos setores pblico e privado. desfrutando de uma posio relativamente estvel no quadro das ocupaes profissionais, essas fraes caracterizam-se pela posse de um capital cultural que, embora maior do que o da gerao anterior, relativamente pequeno em face dos quadros superiores com quem mantm uma relao de tipo execuo/concepo. Porm, a esse capital cultural, traduzido em ttulos universitrios, que seus membros devem a posio que ocupam atualmente na estrutura social, e que constituem tambm fundamento das expectativas de elevao social que nutrem em relao aos filhos (NOguEira, 1997).

    Essas famlias possuem uma diviso de gnero do trabalho muito tradicional. Os alunos descrevem a ocupao das mes como donas de casa, em 27,3% dos casos; a maioria delas possui ensino superior (51,7%), se profissionalizaram, mas tiveram de sacrificar a carreira para cuidar dos filhos. aquelas mes que se mantm no mercado de trabalho tendem a ocupar carreiras vistas como substitutivas da maternidade, denominadas como profisses de maternidade simblica, ou ainda ligadas s qualificaes do cuidado (care): 22,7% so professoras; 5,3% profissionais da sade. Tambm predominam aqui ocupaes de colarinho branco: 9% servidoras do funcionalismo pblico de nvel intermedirio; 5,6% funcionrias de escritrio; 3,3% vendedoras. Pertencentes s classes mdias tradicionais: 4,8% comerciantes e 3,8%

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    pequenas empresrias. algumas mes (4,3%) se enquadram na categoria de servios desqualificados; no encontramos nenhuma me como trabalhadora industrial. Pertencentes s ocupaes tradicionalmente ocupadas pelas classes dominantes, encontramos apenas duas (1%) professoras universitrias.

    Nos questionrios, no aparece nenhuma meno ao desemprego de mes, como ocorre no caso de alguns pais (5 casos). possvel dizer que as mes desempregadas foram descritas pelos jovens ora como estudantes, ora como donas de casa. um dos alunos respondeu pergunta O que sua me faz? da seguinte maneira: no momento, apenas dona de casa; outro respondeu: Ex-funcionria de banco, atual dona de casa. O desemprego atribudo ao homem, que tem, nessas fraes das classes mdias, o papel social do trabalho, enquanto a mulher pode/deve se refugiar, legitimamente, no lar quando o mercado de trabalho no lhe favorvel.

    As famlias enfrentaram um perodo de profundas transformaes no mercado de trabalho em So Paulo nos anos 1980 e 1990, quando se elevaram nitidamente as credenciais escolares exigidas pelas carreiras profissionais, tanto no setor privado, quanto no pblico (SiNgEr, 1988; COMiN, 2002). Sem a escolarizao, ou seja, a converso dos ttulos de propriedade em ttulos escolares, os pais dos alunos provavelmente no teriam condies de se manter na posio social intermediria conquistada na gerao dos avs, em funo das mudanas na estrutura social. Os pais, nesse aspecto, so os primeiros a ter a necessidade objetiva e, paralelamente, a vontade subjetiva de acumular capital cultural e simblico, convertendo parte do capital econmico dos avs e se aproximando, assim, das posies de maior prestgio na sociedade brasileira, tais como as profisses liberais.

    Na maioria das entrevistas, possvel observar como os pais tiveram de voltar aos bancos escolares depois de um perodo no mercado de trabalho, quando muitos passaram a correr o risco de perder aquilo que haviam conquistado. A maioria das trajetrias dos pais marcada pela entrada precoce no mercado de trabalho, o que impede o acmulo mais prolongado e inicial de capital cultural em sua forma escolar. Essa uma das principais diferenas geracionais: os pais tiveram uma juventude e uma vida como estudante mais curtas do que as dos filhos e no puderam se dedicar nica e exclusivamente aos estudos. As estratgias de reconverso no so, portanto, totais. Os pais ainda hesitam entre o acmulo de capital cultural e o acmulo de capital econmico, dividindo o tempo entre a dedicao ao curso superior, em sua maioria em instituies particulares, e ao trabalho.

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    Ao predizer o futuro da classe a partir de uma previso prtica, alicerada nas experincias de seus pais e daqueles prximos a eles, os jovens estudantes da Federal percebem, de maneira tcita, que, caso se mantenham com os atributos e as profisses dos pais, isso significaria, objetivamente, um declnio na hierarquia das posies sociais, j que a prpria estrutura das ocupaes se moveu nos ltimos 30 anos (COMiN, 2002). Ficar imvel enquanto o mundo se move , na maioria das vezes, decair socialmente. da a necessidade percebida praticamente por eles de converter as estratgias de reproduo de seus pais, incluindo o componente escolar de forma mais sistemtica. Em funo das alteraes na estrutura das ocupaes na cidade de So Paulo, h uma taxa baixa de hereditariedade profissional nessas famlias (BOurDiEu, 2007, p.122), o que no significa, necessariamente, que eles estejam em um movimento claro de ascenso social. Muitas vezes, muda-se de profisso, ou deixa-se de ser pequeno proprietrio, para manter a posio intermediria na hierarquia social conquistada h duas geraes. Ser professor de nvel mdio numa escola pblica na So Paulo dos anos 1980 (o caso de 22,7% das mes e 6% dos pais), por exemplo, era ocupar uma posio totalmente diferente e de maior status do que ser professor atualmente. , portanto, revelador das transformaes nas estratgias de reproduo desses jovens o fato de poucos alunos escolherem cursos de licenciatura no vestibular (7,9% - 19 alunos de 239).

    um dos entrevistados retrata bem essa percepo prtica de como os pais foram afetados pelas transformaes na estrutura de ocupaes em So Paulo a partir dos anos 1980. Essa clarividncia dos filhos, alicerada em experincias pessoais em relao aos riscos que acometeram a posio dos pais, influenciar significativamente suas estratgias escolares:

    Meu pai s terminou o ensino mdio, em escola pblica, mas na poca em que a escola pblica era mais bem vista do que hoje... desde que eles saram da escola, eles so comerciantes. Meu pai trabalha nas feiras livres; ele comeou h 30 anos no emprego como empregado, e aos poucos foi crescendo. Na poca, a feira era muito boa. A ele passou a ser dono de uma barraca de feira, e est assim at hoje. Faz 25 anos. A gente mora na Zona leste, mas ele faz feira na Zona Sul, que um lugar melhor para se manter. Hoje o negcio est caindo um pouco, porque as feiras livres esto perdendo espao para os grandes supermercados. E minha me ajudou muito, trabalhou com ele boa parte da vida. S que a chegou uma hora em que ela se cansou; ela queria trabalhar fora, queria as coisas dela. E agora ela est correndo atrs disso; ela voltou a fazer cursos e pretende voltar a trabalhar no final desse ano ou no mximo no comeo do prximo ano (ronaldo - atualmente aluno de Engenharia de Produo na uSP).

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    O fantasma do desemprego e do declnio na hierarquia social, caso no se requalifiquem, ronda as experincias dos pais e das mes no mercado de trabalho e acabar por se transformar num senso prtico dos filhos, que percebem, ainda que no de forma calculista, que precisam converter os capitais herdados, investindo mais na escola, para manter a posio dos pais e sonhar em dar continuidade s conquistas da famlia.

    EThOS DO SACRIFCIO E DAS CONqUISTAS: hERANA SUBjETIvA

    Os estudantes da Federal sentem, portanto, a obrigao de dar continuidade trajetria familiar, tentando ultrapassar seus pais no acmulo de capital cultural por intermdio da escola e da herana familiar. Para almejar essa ascenso social provvel, os jovens manejam um repertrio simblico, no qual o ethos e a histria da famlia se tornam alicerces afetivos utilizados para justificar as expectativas de conquista e ascenso social. Os avs dos estudantes surgem nas entrevistas como heris que conseguiram vencer, com muito sacrifcio e suor, as dificuldades para se estabelecer na cidade. Sem estudo, eles acumularam um peclio suficiente para deixar para trs a posio de operrios, agricultores ou de trabalhadores em situao relativamente precria. Homens ascticos, pessoas de bem, virtuosos, homens honrados, eles conseguiram chegar l, se estabelecer em So Paulo, sem o auxlio de ningum, com as prprias pernas3 Chegar l significa, nesse contexto, se tornar um proprietrio (pequeno comerciante ou empresrio), e no mais um trabalhador agrcola. Chegar l tambm quer dizer a possibilidade de oferecer aos filhos condies objetivas e subjetivas de estudar e de alcanar o trabalho intelectual, to valorizado na cultura brasileira em oposio ao trabalho manual, ainda que nesta gerao eles s consigam ocupar as posies intermedirias na hierarquia das profisses de colarinho branco.

    Os grupos em vias de se estabelecer contam sua histria, segundo Elias e Scotson (2000), a partir do prisma de uma minoria virtuosa, mais regrada e disciplinada, dentre eles. Alguns alunos entrevistados produziram uma imagem de si e de suas famlias como mais dignas, ascticas e ticas que os demais grupos na sociedade. So os mocinhos conquistadores, virtuosos num duplo sentido, como pessoas repletas de virtudes ticas e muito inteligentes. O mito de conquista e virtuosismo, contado e recontado pela maioria dos jovens entrevistados, e provavelmente presente no universo familiar,

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    adquire a funo de uma profecia que se realiza, uma fora subjetiva s possvel de ser produzida a partir de um esteio objetivo que sustenta o esforo prtico e o ascetismo desses jovens aplicados no estudo. Trata-se aqui da reproduo moral da famlia, uma forma de transmitir os valores e as virtudes inscritas na trajetria individual e coletiva, ou ainda uma espcie de herana sentimental (LaHirE, 2005). a famlia no lega aos herdeiros apenas os bens, as propriedades, mas tambm uma histria de ascenso ou declnio com nomes, fotos, experincias de conquistas e de derrotas, que solicita continuidade, mesmo que seja uma continuidade na transformao (BOurDiEu, 2007).

    Bruno, descendente de italianos, filho de um projetista de softwares formado em Engenharia Eltrica na Escola Politcnica da universidade de So Paulo e de uma contadora formada na Faculdade de Economia e administrao tambm da uSP, contou a histria de sua famlia em detalhe, enfatizando os sofrimentos e conquistas dos avs:

    Meus avs no comeo eram pobres... Meu bisav materno tinha um esquema assim: ele comprava terras, construa casas, fazia plantaes, depois vendia. Meu av por parte de pai chegou a fazer at a quarta srie. Como disse meu pai uma vez, o nico arrependimento que ele deve ter na vida no ter estudado. Ele gostava muito de estudar. E ele era to bom aluno que a professora na poca criou uma poupana para ele, na qual ela colocou um investimento em dinheiro, como incentivo para meu av continuar estudando. S que meu bisav precisava dele para trabalhar no campo, e ele era o irmo mais velho de vrios irmos, no tinha o que fazer. Ele teve que abandonar o estudo na quarta srie, mesmo no querendo. Eu tenho grande admirao pelos meus avs. Meu av morou em casa de pau-a-pique, trabalhando para fazendeiro. Superpobre; queria estudar, mas no pde. Mesmo assim, pela determinao deles... meu av no rico, mas no pobre, tem bastante dinheiro. Ele um tipo de pessoa que no consegue ficar parada. Ele no estudou, mas constri casas. Ele compra terreno ainda hoje. Ele j tem dinheiro, aposentadoria, se ele quisesse no precisaria mais trabalhar. Ele gosta muito de pescar; ele vai ao Pantanal, para o Xingu. Eu tenho um grande respeito por eles porque eram pobres no comeo e ficaram ricos. No s ficaram ricos, como que com uma mentalidade mais antiga conseguiram dizer para meu pai e minha me que eles iam estudar. Meus pais se formaram na uSP. Meu pai e minha me eu tambm admiro porque eles trabalhavam, ao mesmo tempo em que estudavam.

    Nem todos os alunos da Federal constroem um passado to glorioso como o dos imigrantes conquistadores. Muitos descendentes de famlias brasileiras com sobrenomes portugueses e membros das classes populares, assim como alguns descendentes de imigrantes de italianos e japoneses, numa posio social inferior s da pequena burguesia, apresentam mais hesitao na hora de contar a histria de sua famlia, encurtando a conversa ou

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    expressando um claro desconhecimento sobre seus antepassados. A tradio construda por esses jovens a partir da gerao dos pais, com muita hesitao e sem antiguidade. Vejamos um trecho de entrevista com renan, filho de pais funcionrios pblicos de nvel intermedirio, sem titulao superior:

    Entrevistador: Eu queria que voc contasse um pouco a histria da sua famlia [silncio]... Se eles so daqui mesmo, o que eles fizeram, seus avs?renan: Eles so daqui mesmo. Meus avs tambm. Eu no sei muita coisa sobre meus avs. Ah, meu pai j trabalhou em vrios empregos. J deu aulas particulares de matemtica, o que me ajudou muito a ter facilidade, que tem me ajudado... Ele nunca terminou um curso superior, a primeira vez que ele est fazendo [o pai cursava Direito na uSP]. Ele comeou, mas parou.

    a ausncia, assim como a presena, de um passado glorioso, de um mito de origem produzido sobre a famlia, no Brasil, no constitui um fator explicativo capaz de dar conta sozinho do fracasso ou do sucesso escolar dos alunos talvez seja mais um dos efeitos de racionalizao que a narrao do passado encerra nas reconstrues a posteriori realizadas pelos agentes (BOurDiEu, 1996). a constncia, a virtude, a linearidade e o progresso na histria contada de si, como a realizao de um projeto da famlia, todas essas caractersticas daquilo que Bourdieu denominou de uma filosofia da histria presente nas biografias, marcam os depoimentos de uma parte dos entrevistados, enquanto outra parte no demonstra tanta habilidade simblica na construo do passado em funo justamente das incertezas e da ausncia de segurana que marcam seu presente. De toda forma, essa difusa segurana afetiva, caracterizada por garantias morais, uma herana de famlia, se transforma num recurso simblico que no deixa de ter seus efeitos sobre a trajetria dos jovens, sempre chamados ordem, ou seja, a realizar o dever ser que est inscrito na trajetria objetiva de suas famlias. Eles precisam corresponder quilo que esperado deles e, principalmente, quilo que eles esperam de si mesmos; em suma, eles precisam estar altura de seu dever. por meio dessa converso da necessidade em virtude, e da transformao das determinaes sociais e econmicas em recursos morais e afetivos, que alguns jovens da Federal trabalham na produo das disposies para o estudo e o sucesso escolar.

    roberto e rosa, casal de namorados nipo-brasileiros, expressam esse sentimento de dever a partir da metfora do espelho:

    roberto: Se for pegar um espelho, 80% do que eu sou hoje se deve aos meus pais.

    rosa: Eu, a mesma coisa; tanto pela estabilidade financeira ou condio econmica, mas pelo fato de os meus pais serem pessoas muito boas, muito esforadas, muito dedicadas. Eu procuro me espelhar neles. Eles passaram muita dificuldade...

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    roberto: ainda hoje eles falam que a gente est sofrendo tudo o que eles sofreram, e o que os pais deles sofreram. O que a gente est fazendo agora, eu vejo, talvez no seja to pesado como o que eles fizeram... Ento eles incentivam muito a gente...roberto: S uma histria que minha me contou que ela cozinhava desde os sete anos. E ela morava em Vargem e tinha que estudar em Bragana. uma cidade prxima... E os pais dela no podiam levar, e ela tinha que ir sozinha de nibus... E ela voltava e j tinha que trabalhar no bar do meu av... E a eu vejo o que ela fez e vejo que preciso dar mais de mim. engraado.

    Os pais so um espelho no s para os nipo-brasileiros da Federal ainda que entre eles exista, em sua cultura tnica, essa metfora para dar vazo ao sentimento de dever filial4 como tambm para a maioria dos outros alunos. Os pais so um espelho num duplo sentido: servem de referncia e exemplo em termos morais, como pessoas muito boas, dedicadas e esforadas que precisam ser seguidas, mas tambm como referncia de uma trajetria que no deu totalmente certo, de pessoas que, apesar dos esforos, no conseguiram se tornar membros das fraes das classes dominantes. Os jovens precisam, dessa forma, ser relativamente diferentes de seus pais para conseguirem obter aquilo que eles no conquistaram, ou s conquistaram parcialmente. O senso prtico adquirido pelas experincias familiares acumuladas e contnuas, principalmente no que se refere s experincias sombrias do desemprego e da requalificao, se soma herana de um ethos inscrito na trajetria familiar para conformar as disposies desses jovens ligadas ao estudo e escola.

    UM COLGIO PARA MENINOS: EFEITOS DO vESTIBULINhO

    Para ingressar na Federal, os jovens enfrentaram um vestibulinho altamente concorrido. Em 2006, os alunos que se formaram na Federal em 2009, nos cursos de ensino mdio e integrado em informtica, enfrentaram uma concorrncia de 30 candidatos por vaga (por volta de 7.200 candidatos para 240 vagas). No questionrio aplicado, pode-se observar que a grande maioria dos alunos do ensino mdio estudou em colgios particulares no ensino fundamental (78%), ainda que haja uma pequena proporo de alunos oriundos de escolas pblicas (18%) e de outros que estudaram tanto em escolas pblicas quanto particulares (4%). as turmas de ensino mdio da escola so formadas majoritariamente por meninos: eles so 72% dos estudantes matriculados no terceiro ano. Os dados dessas turmas contrastam muito com a diviso por sexo entre os matriculados

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    no ensino mdio do pas. Segundo rosemberg (2001), uma proporo maior de mulheres do que de homens conclui o ensino mdio no Brasil: em 1998, no ensino mdio, as mulheres representavam 56% das matrculas e 60% das concluses.

    QUADRO 1 - Distribuio das matrculas no ensino mdio da Federal por sexo e cor

    Meninos Meninas

    Cor n. % n. %

    Branca 130 69,5 47 65,3

    Amarela 26 14 13 18

    Parda 22 12 7 9,7

    Negra/Preta 4 2,1 0 0

    No declara 5 2,4 5 7

    Total 187 100 72 100

    Fonte: Elaborao prpria, 2009.

    Poderamos, portanto, nos perguntar: por que, nas escolas pblicas tidas como de excelncia, no encontramos o mesmo padro de distribuio por sexo e cor encontrado no ensino mdio nacional? A resposta a essa pergunta passa pela discusso sobre as desigualdades existentes no exame de acesso escola. O vestibulinho da Federal conhecido por sua exigncia nas reas de matemtica e cincias. No exame de 2006, realizado pelos alunos entrevistados, a prova elaborada pela Vunesp se abre com oito questes de fsica, cujo contedo est prximo do exigido durante o prprio ensino mdio e, at mesmo, nos vestibulares universitrios: mecnica e dinmica, termosttica e termodinmica etc. Aps a bateria de questes de fsica, h mais 24 questes de matemtica, qumica e biologia. As outras 32 questes que compem o exame (total de 64 questes) so de portugus, histria e geografia, articuladas de maneira interdisciplinar. No foi exigida, naquele ano, uma redao dos candidatos.

    O fato de as questes de matemtica e cincias ocuparem o primeiro plano do exame j aponta para o pblico almejado pela instituio: jovens que sejam, segundo um dos professores entrevistados, alfabetizados em aritmtica e que j tenham adquirido conhecimentos cientficos no ensino fundamental. Como os meninos, principalmente os oriundos de fraes de classes mdias e de colgios particulares, onde j h as disciplinas cientficas estruturadas na grade curricular, tendem a ter um desempenho relativamente melhor nessas

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    reas de exatas do que as meninas (rOSEMBErg, 2001), em funo do tratamento diferenciado que recebem nas escolas os meninos tendem a ser rotulados, pelos professores do ensino fundamental, como mais inteligentes nessas disciplinas do que as meninas (CarvaLHO, 2008) observamos uma inverso na distribuio das matrculas por sexo no colgio em relao distribuio encontrada no restante do ensino mdio do pas.

    Outra explicao para essa inverso o medo sentido pelos pais de fraes das classes mdias de matricular suas filhas num colgio pblico visto como socialmente heterogneo. uma me de aluno foi entrevistada e demonstrou a imagem que suas amigas tinham da Federal quando ela pensou em matricul-lo na instituio: Minhas amigas falavam para mim: voc tem coragem de deixar seu filho estudar na Federal, l s tem marginal, maloqueiro e maconheiro.

    Outro dado chama a ateno no Quadro 1: no h nenhuma menina que se autoclassificou como negra no ensino mdio do colgio, e apenas 9,7% delas se autoclassificaram como pardas.5 um dado que contrasta com a realidade de outras escolas pblicas de So Paulo, onde h um nmero mais significativo de jovens autoclassificados como negros/pardos. Essa situao evidencia um grande dilema para as polticas de acesso ao ensino superior: no somente as universidades pblicas de excelncia esto fechadas s mulheres negras, conforme muitas pesquisas demonstraram, nos anos 1990 e 2000, como tambm as escolas pblicas de ensino mdio de excelncia. a segregao racial no sistema de ensino, portanto, j ocorre antes da entrada na universidade, e no est apenas presente na dualidade pblico/privado no ensino mdio.

    O nmero de meninos e meninas que se autoclassificaram como de cor amarela superior ao de negros e pardos: 14% meninos e 18% meninas. Na pesquisa que realizou sobre o sucesso escolar dos nipo-brasileiros em So Paulo, Camacho (1993) concluiu que a forte presena de valores da cultura japonesa tradicional, como a hierarquia, a vergonha, a tica do dbito, a autodisciplina e a responsabilidade, alm da valorizao da prpria educao escolar, estaria na base de um comportamento de compromisso, dedicao e esforo no processo de escolarizao. Alm disso, a autora relata que h um sentimento entre os nipo-brasileiros, confirmado por alguns esteretipos em relao a eles, de serem superiores em relao aos gaijin (brasileiros), que compensa e explica o sucesso escolar dessa minoria tnica.

    um dos efeitos objetivos do vestibulinho no final do ensino fundamental, portanto, a produo de uma posio singular ocupada

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    pela Federal: como instituio pblica, ela atende predominantemente os alunos que se autoclassificam como brancos ou amarelos, que cursaram escolas particulares durante o ensino fundamental e com um relativo privilgio cultural e econmico herdado, no conseguindo assim democratizar o acesso ao ensino mdio de qualidade.

    Produz-se tambm, por meio do vestibulinho, um efeito subjetivo, a autoestima alicerada na estima e no reconhecimento pelo grupo de pares a crena em si mesmo, que move os agentes em direo s conquistas mais valorizadas nos jogos sociais srios, impedindo que os jovens eleitos desistam ou destruam os projetos familiares. Segundo Bourdieu (1989), os exames possuem uma funo mgica, ao estabelecerem fronteiras de distino simblica entre as pessoas, impedindo que at mesmo os eleitos desistam de seguir seu percurso de sucesso.

    Os jovens da Federal possuem, para fazer frente s competies escolares, uma seriedade e uma crena no jogo escolar, ou, nos termos de um dos entrevistados, uma maturidade, uma determinao social precoce. um ndice dessa seriedade o nmero baixssimo de no resposta pergunta sobre qual curso e universidade eles pretendem frequentar no prximo ano (apenas 4 alunos de 257). O vestibular uma competio que produz agentes com gana de vencer, que se entregam de corpo e alma aos jogos escolares alm, claro, de produzir aqueles que acreditam que seu fracasso produto de sua prpria incompetncia escolar. O envolvimento no jogo escolar implica, portanto, a produo de uma libido especfica para disputar aquilo que est em jogo na escola ou fora dela, uma satisfao emocional pelas conquistas escolares que, para pessoas com outras disposies, no fazem sentido ou no so as conquistas essenciais da vida.

    Sero interpretadas, nos itens a seguir, duas representaes e identidades que se sobressaem nas competies escolares, dentre as quais o vestibulinho de ingresso a manifestao mais evidente, e que jogam gua no moinho da produo do sucesso escolar: as categorias dos nerds e do prodgio. A polaridade construda entre as duas identidades possui, neste artigo, uma finalidade heurstica: alguns alunos possuem, portanto, uma identidade mais prxima da dos nerds, ainda que no completamente englobada por essa representao, assim como outros alunos da escola se aproximam de alguma faceta da identidade do prodgio, no conseguindo, evidentemente, realizar completamente todos os requisitos enumerados pelos jovens para portar tal identidade, que s o aluno ronaldo, como veremos, possui

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    OS NERDS: OS COMPETIDORES MAIS ENGAjADOS NO jOGO ESCOLAR

    Os autodenominados nerds da Federal possuem uma enorme gana de vencer as competies escolares.6 Para eles, no importa apenas o vestibular; trata-se de estar entre os primeiros sempre, tanto nas provas da escola quanto nas competies escolares fora dela. Na Federal, existe uma mdia global das notas de cada aluno; os nerds sempre procuram saber quem o aluno da sala com a maior mdia, comparando o seu desempenho com o dos demais. A escola nem precisa promover a competio entre eles por meio de rankings, como costuma acontecer em alguns colgios particulares (AlMEIdA, 2009), pois os estudantes j trazem incorporada a gana de vencer e a vontade de participar das competies escolares.

    Os meus pais falam at para eu estudar menos... Porque eu estudo muito e os pais ficam preocupados: vai dormir, vai comer, saia com os amigos. Mas eu

    digo: No, meus amigos tambm esto estudando. Ento por isso que fica

    o esteretipo de nerd. Mas pelo menos estudar d prazer. Quando voc entende a matria, domina algo que voc gosta, muito bom. Quando voc tira notas

    tambm, parece que dever cumprido (Entrevista com Juliana, nipo-brasileira, atualmente estudante de Direito uSP).

    Para comprovar como as competies escolares no so vistas como brincadeira, mas como um jogo social srio, pelos autodenominados nerds, basta mencionar o fato de que as notas consideradas baixas por eles tem gente que fica mal e chora por ter tirado 7 motivaram crises de autoestima durante o primeiro ano na Federal. Habituados a ser os primeiros em seus antigos colgios, esses jovens estranharam muito a realidade de um colgio que elege os primeiros de vrios outros e no qual a competio se torna muito acirrada. O nico nerd na sua escola passa a ser visto como apenas mais um na competio. Para se destacar novamente, alguns estudantes da Federal so impulsionados a novas superaes de si, a novas provaes de sua inteligncia e mrito, sofrendo quando seu desempenho no est altura da (auto)imagem de bom aluno.

    Leandro, por exemplo, ao ser reprovado no segundo ano, entrou em uma depresso profunda. Ele s havia ficado em uma disciplina, matemtica, em funo de um intercmbio nos Eua; mesmo assim, a reprovao quebrou sua autoestima e sua (auto)imagem de bom aluno. Para superar esse verdadeiro trauma, ele precisou se tratar com psiclogos e psiquiatras. Foi nesse momento que descobriu que tinha TDaH (Transtorno do Dficit de ateno com Hiperatividade) e passou a tomar ritalina, um remdio receitado

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    por psiquiatras para crianas e jovens considerados hiperativos. H, no caso de Leandro, a produo social de uma doena; ser hiperativo a rotulao patolgica do ethos caracterstico de fraes da classe mdia: a pressa, a ansiedade. depois de tambm fazer anlise, ele conseguiu concluir o ensino mdio e passou direto em relaes internacionais na universidade de So Paulo, um dos cursos mais concorridos da Fuvest. Em entrevista com sua me, podemos observar as preocupaes familiares com o engajamento excessivo nos estudos por parte dos filhos:

    Ele uma pessoa que se cobra demais. Quando ele no consegue atingir um objetivo... Por exemplo, quando ele reprovou, ele ficou em depresso, foi

    uma derrota muito grande para ele. Ento meu medo era se ele no passasse [na Fuvest]. Ento eu tentava prepar-lo, dizendo: Leandro, faz uma PuC. Eu no quero fazer PuC, eu no quero que voc pague r$1.600 de mensalidade

    na Faculdade. Eu falei que no tinha problema, porque ele ficou trs anos sem me

    dar gastos. Ele dizia: Eu quero a uSP, eu quero a uSP. Foi uma determinao

    que eu invejo de certa forma. Hoje, ele est superbem. (Snia, me de Leandro).

    O envolvimento, segundo goffman (2010), significa manter algum tipo de absoro cognitiva e afetiva em uma atividade, estar engajado nela. Todo envolvimento, contudo, pressupe a capacidade de se desvencilhar dele. O savoir-faire das interaes sociais exige, portanto, um envolvimento sob medida; caso ele seja exagerado, gera-se um embarao nas situaes de interao. O indivduo precisa dar evidncia visvel de que ele no se entregou totalmente a esse foco principal de ateno. Normalmente alguma leve margem de autocontrole e domnio de si exigida e exibida (gOFFMaN, 2010, p.72).

    No caso da educao escolar, o envolvimento total autorizado socialmente somente quando ele faz parte do prprio jogo, quando necessrio para a obteno do sucesso, como no caso do vestibular e das provas finais. Contudo, na maior parte do dia a dia escolar, um distanciamento do estudo valorizado entre os alunos. Aqueles que no possuem essa capacidade so desvalorizados aos olhos dos colegas como escolares demais. Ao no conseguirem conciliar o estudo com o envolvimento em outras atividades socialmente valorizadas na adolescncia, tambm pelos pais, tais como o esporte, o namoro, as amizades e as festas, os nerds so vistos pelos outros como relativamente obsessivos pelo estudo, sem esse tato prtico para lidar com vrias atividades concomitantes na escola e fora dela. Essa situao produz vrios embaraos na escola e preocupaes nas famlias.

    Outro lado negativo da imagem de nerd seria o relativo isolamento. Contudo, na Federal, por ser um colgio com um

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    pblico altamente selecionado, que rene muitos alunos que eram considerados nerds em seus antigos colgios, h a possibilidade de que se formem grupos de alunos que gostam de estudar e se identificam por isso. O aluno muito estudioso encontra camaradas em sua turma e no visto como diferente e separado dos demais. Porm, nem todos conseguem ter uma rede de relaes extensa no colgio como a encontrada entre os jovens que praticam esportes. Vejamos um trecho da entrevista com rosa, uma das jovens nipo-brasileiras que se identifica como nerd: Entre a gente tem aqueles que so mais estudiosos, no fechados, mas mais estudiosos, que levam mais a srio. Eu me colocaria nesse grupo; mas no que eu no converse com outras pessoas. a necessidade de afirmar que ela no faz parte de um grupo fechado e que mantm relaes com outras pessoas de fora de seu grupo s aparece na entrevista justamente por causa do estigma que pode pesar sobre a categoria dos nerds. Alguns alunos designados como nerds so aqueles que podem apresentar esse sofrimento em maior grau, justamente por valorizarem o mrito e cultivarem certo individualismo, em clara oposio disposio encontrada por Saint-Martin (1993) entre os filhos da aristocracia francesa, que preferem cultivar as relaes, o esprito de corpo. Ainda citando a entrevista com rosa, eu sou contra voc se dedicar e algum se aproveitar, puxar do seu esforo para se aproveitar de voc e depois se dar melhor. O esforo pessoal deve ser mantido e valorizado.

    O ascetismo de um grupo de jovens da Federal se volta, portanto, contra os luxos proibidos so poucos os jovens, nesse grupo, que conseguem descrever os momentos de festas na escola, cuja finalidade no seja somente o estudo. Porm, h tambm nerds que conseguem conciliar uma rede extensa de amigos e o xito escolar. O esporte e as quadras so os espaos onde os alunos considerados mais populares da Federal estabelecem uma rede abrangente de amizades e se desenvolve essa disposio prtica de cultivar relaes. um desses alunos o prodgio da escola.

    O PRODGIO: UM CAMPEO NAS qUADRAS E NA ESCOLA

    roberto: Ns temos um amigo que gabaritou a prova [da Olimpada Nacional de Matemtica].

    rosa: E ele uma criancinha, dois anos mais novo que a gente. E ele muito capaz.roberto: Chamado prodgio.

    reciellen: E ele um nerd com vida!

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    Entrevistador: Com vida?reciellen: . Ele tem vida social. O prodgio eu admiro muito. muito esquisito. Ele joga futebol, tem vida social e muito inteligente.roberto: Ele foi campeo do campeonato Fogo na roupa [principal campeonato de futebol da Federal]. (Entrevista com roberto, rosa e reciellen.)

    A precocidade um dos elementos mais valorizados no sistem de ensino, pois revela, da maneira mais perfeita, a converso do trabalho escolar e a herana cultural em uma ddiva da natureza. dessa forma que a escola desvaloriza o escolar, e o aluno mais novo, adiantado em relao a seus colegas, pode se dar ao luxo de dispensar a escola, de pular etapas que so obrigatrias para o restante dos mortais (BOurDiEu, 1989). Em dois casos especiais entre os entrevistados, a precocidade abordada e resolvida de maneira diferente pelas escolas. Em um caso j mencionado o aluno que reprova na Federal e entra em profunda depresso , a precocidade um problema para a escola e a famlia, que no sabem lidar com ela, j que no se cogita a possibilidade de pular uma srie inicial. O aluno est avanado em relao aos colegas de sala, mas a escola no autoriza que ele avance para a srie seguinte. A me descreve que a professora da pr-escola no sabia como lidar com ele, j que, ao terminar as atividades antes de todos os colegas, ele no conseguia ficar quieto, esperando os demais, e promovia uma baguna generalizada na sala. Segundo a me:

    O Leandro sempre foi uma criana extremamente inteligente, desde que nasceu [...] Eu tive um problema muito srio. Quando ele estava no pr, um dia, me chamaram na coordenao e me disseram: a gente quer falar com voc daqui a uma semana, que o Leandro.... Eu falei com o Leandro e ele me disse que no havia feito nada [...]. a eu fiquei apavorada. a professora me chamou e me disse: a gente est com um problema muito srio com o Leandro. Eu perguntei o que era. Ela disse: Ele uma criana extremamente inteligente, ele acaba a lio antes de todo mundo, e atrapalha minha classe. Bom, resultado, eu tirei ele da escola... A professora disse que eu precisava procurar uma escola, para o leandro, de superdotados. Isso foi um buraco no meu cho, porque eu percebi que meu filho diferente. Entende?

    Esse mesmo aluno, como vimos, foi posteriormente diagnosticado como hiperativo ao ser reprovado na Federal. as fronteiras que separam as categorias de classificao professoral o gnio, o brilhante, o prodgio e, cada vez mais, as categorias mdicas e psicolgicas o hiperativo, o aluno com transtorno so bem tnues e dependem no somente do desempenho acadmico, mas tambm do comportamento dos alunos em sala de aula.

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    Ainda que muitos alunos da Federal sejam vistos como adiantados, apenas um aluno conseguiu pular as etapas escolares, ao entrar na primeira srie do ensino fundamental com cinco anos, na Federal, com 13, e, na Escola Politcnica da uSP, com 16 anos. Para conseguir a faanha de pular uma srie, esse aluno teve de passar tambm pelo diagnstico de psiclogos. Nas palavras de ronaldo:

    Minha me resolveu me colocar no pr no Colgio So Vicente, onde eu estudei at a oitava srie. Mas por um motivo que eu no sei muito bem qual era, eu j sabia ler e escrever de quatro para cinco anos. E disseram que o pr l alfabetizava, normal, como em todas as escolas. Minha me disse a eles que eu j sabia. A eu passei por uma srie de provas e testes com ditados, contas... E eu passei, eles disseram que no teria nenhum problema se eu fosse para a primeira srie, desde que eu passasse por uma psicloga, e ela atestasse que no teria nenhum problema para mim, para o meu andamento. Eu passei, tive algumas sees com a psicloga na escola. Ela disse que eu era uma criana de cinco anos com uma mentalidade de sete, muito inteligente, e que no teria problema nenhum ir para a primeira srie, que o normal era ir de seis para sete anos. E eu fui de cinco para seis. At depois na Federal eu acabei entrando cedo, com 13 anos no primeiro colegial. a veio um apelido legal no colgio: o pessoal me chama de prodgio por causa disso.

    diferentemente do rtulo de nerd, que pode ser vivenciado como uma categoria acusatria e como um atributo de desqualificao moral ao ser atribudo por outro e no assumido pelo prprio indivduo (BECkEr, 2009), o rtulo de prodgio cola na identidade de ronaldo, que se v a partir dessa categoria e passa a agir como se ela correspondesse ao que de fato ele . a categoria classificatria de prodgio, de um aluno que consegue pular etapas e que passa tranquilamente pelas provaes do sistema escolar, serve aqui como uma profecia que se realiza, ou seja, como uma identidade instituda e instituinte, conhecida e reconhecida por todos, que obriga o jovem a constantes superaes de si para provar aos outros e a si mesmo que est altura dessa identidade. Por ser mais novo que os demais, e ser rotulado como um prodgio nos estudos, esse jovem obrigado e se obriga a estar sempre entre os primeiros do colgio nas provas, nos vestibulares, nas olimpadas nacionais e internacionais de matemtica e fsica.

    O prodgio, contudo, no classificado como um nerd, pois ele no apenas um aluno dedicado. A precocidade faz com que seus bons resultados escolares no sejam vistos como frutos de um trabalho rduo de aquisio de capital cultural que consome todo o tempo de sua vida; eles so antes vistos como a manifestao da inteligncia e do dom. alm disso, ele um nerd com vida social, ou seja, algum que consegue quase milagrosamente

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    ser o primeiro da sala e o campeo do campeonato de futebol da escola, uma pessoa extremamente inteligente e dedicada aos estudos e que consegue tempo para o estabelecimento de uma rede ampla de contatos sociais.

    As quadras e as salas de aula na Federal so representadas pelos entrevistados em uma relao de polaridade por vezes excludente: ou se um aluno extremamente dedicado aos estudos e relativamente isolado, ou se um aluno que gosta de praticar esportes e com uma rede de amigos extensa no colgio. alm disso, a oposio categorial entre as quadras e as salas de aula (ou a biblioteca) marcada por uma oposio de gnero: por um lado, o masculino viril ligado ao esporte e competio no escolar, uma espcie de masculinidade hegemnica, para utilizar a expresso de Connell (2005), e, por outro, o masculino afeminado ligado ao estudo, ao silncio da biblioteca e ao retraimento social, uma espcie de masculinidade subordinada. Os nerds, como vimos, no conseguem superar essa oposio, tendo, no caso dos meninos, por vezes, sua masculinidade colocada em xeque, gerando-se uma enorme ansiedade por parte deles nas conquistas amorosas dentro da escola.

    A escola no a nica instituio responsvel pela construo das masculinidades; porm, a escola, e principalmente a Federal, por ser predominantemente um colgio de meninos, como vimos, uma arena privilegiada para as atribuies de sentidos e para as lutas entre as diferentes configuraes de prticas de gnero. Na Federal, no encontramos uma masculinidade de protesto, observada recorrentemente em outras escolas pblicas de So Paulo, na qual a indisciplina e at mesmo a violncia fsica so expresses da afirmao de uma virilidade juvenil que desafia as autoridades escolares. Na Federal, os jovens, ansiosos por preservar uma imagem masculina hegemnica, e dedicam-se aos esportes e tambm s festas e consumo de bebidas alcolicas, tentando fugir do estigma da associao entre bom desempenho acadmico e efeminao. a polaridade categorial entre quadra/sala de aula marca, dessa forma, o sistema classificatrio dos alunos:

    A panelinha mais forte que tinha l e sempre teve era a panelinha do vlei. geralmente, o pessoal que estuda no gosta do pessoal do vlei, e o pessoal do vlei no gosta de quem estuda. Porque o pessoal do vlei zoa muito com quem estuda muito. Tem um pessoal na Federal que estuda muito, que voc no encontra nem aqui na Faculdade... O pessoal chama de nerd. Na Federal, a gente tinha 13 matrias e tinha gente desse grupo com uma mdia de 9,5. (Entrevista com Felipe, atualmente estudante de Letras na uSP.)

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    O prodgio fascina os demais alunos justamente porque concilia os contrrios ser, ao mesmo tempo, o melhor da sala e algum popular, com vida social e que pratica esporte, um menino estudioso que confirma sua masculinidade hegemnica nas quadras, alm, claro, de fazer isso sendo o mais novo da escola: O prodgio eu admiro muito. muito esquisito. Ele joga futebol, tem vida social e muito inteligente (fala de reciellen). Essa imagem atribuda pelos demais se converte em numa autoimagem:

    Sempre fui um bom aluno, com boas notas. Nada de ficar estudando todos os dias, o dia todo, mas quando as provas chegavam, eu conseguia conciliar ambas as coisas... Eu sempre gostei muito de esporte, e sempre consegui conciliar o esporte e o estudo... Passei trs anos na Federal, e as notas continuaram iguais, mas tambm continuei saindo, indo para as festas; tinha o time de futebol l. Joguei e ganhei os campeonatos na Federal. Foram trs anos muito bons... Eu sempre estudei, mas sem muito exagero. Eu continuo tendo uma vida fora da escola. Eu sempre sa, tive atividades extracurriculares, fiz futebol, vrias outras coisas que no eram a escola. (Entrevista com ronaldo.)

    Os pais do prodgio so feirantes entrevista citada no comeo deste artigo e ele o primeiro da famlia a entrar na universidade. Por ser filho nico, dentre outros fatores, os pais conseguiram pagar os melhores colgios particulares da regio (Penha) durante o ensino fundamental, e a me se dedicou exclusivamente educao dele antes da entrada na escola. Ao ver sua posio ameaada, essa famlia possui uma estratgia de reproduo que implica a converso do capital econmico em capital cultural e social. O filho, ao encarnar esse projeto e ao encontrar na escola um esteio para as aspiraes familiares, envolve-se de corpo e alma nas disputas srias da vida social, conseguindo conciliar o estudo e o esporte graas ao alto capital escolar acumulado durante sua trajetria. Trata-se, portanto, de um trnsfuga de classe que, graas s pequenas inflexes de sua trajetria escolar ter pulado a srie inicial, ser rotulado como um prodgio elevou as expectativas de sua famlia. O prodgio admirado pelos demais alunos da escola tambm por ser uma realizao bem acabada do mito liberal de ascenso social que todos eles carregam da histria familiar: algum que, pelo prprio mrito, sem parecer escolar demais, consegue ultrapassar os pais, ao entrar na universidade.

    CONCLUSO

    Este trabalho tentou conciliar duas abordagens sobre o sucesso escolar: de um lado, a interpretao a partir de fatores estruturais, tais como a posio de classe, a etnia e o gnero, e,

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    de outro, as motivaes e representaes produzidas pelos agentes a respeito dos estudos e da prpria histria familiar. Foi possvel demonstrar que a Federal, dentre outros fatores, destaca-se em relao aos demais colgios pblicos de So Paulo por: 1) atender a um pblico altamente selecionado, por seu vestibulinho, e suscetvel, em funo dos recursos objetivos e subjetivos, ao pedaggica da instituio; 2) muitos alunos se identificarem pela dedicao aos estudos, ainda que com algumas modulaes relacionadas com as configuraes de prticas de gnero, como os nerds e o prodgio.

    um recorte sincrnico da realidade, como o estudo de caso de um colgio, s pode ser totalmente compreendido quando a sociologia lana mo da temporalidade do social, na qual o passado, o presente e o futuro esto imbricados numa rede de relaes e interdependncias. As famlias dos estudantes, ao tentarem se estabelecer na cidade, lutam, h geraes, contra o tempo, para adquirir recursos objetivos e o status da tradio. A produo de uma histria mitolgica familiar, da casa de pau-a-pique aos filhos doutores, para usar a expresso de Shibata (2009) sobre os nipo-brasileiros, revelou ao pesquisador a importncia da trajetria familiar. Os jovens alunos da Federal so constantemente chamados ordem pelas incessantes narrativas familiares que produzem o lastro emocional e moral que sustenta o enorme investimento na conquista da cultura. Essa narrativa familiar, como foi possvel acompanhar neste artigo, foi produzida a partir de um esteio objetivo que sustenta a posio social de determinadas fraes das classes mdias paulistanas. As narrativas so, assim, retratos da lei sociolgica, descoberta por Bourdieu, da converso da necessidade em virtude, ou seja, da transformao, operada pelos agentes das mudanas sociais, ocorridas no mercado de trabalho e educacional, em escolhas vocacionais, reforadas, acima de tudo, pelo sentimento de mrito familiar.

    vimos tambm que as relaes de gnero e de etnia so determinantes na modulao da produo de desigualdades no sistema de ensino, por produzirem, os bem-sucedidos. Neste artigo, buscou-se demonstrar como as identidades possuem efeitos sobre as estruturas de desigualdades culturais e econmicas em geral de reproduo, ainda que possam, em situaes bem especficas, produzir rupturas e transformaes relativas. Em relao s identidades do nerd e do prodgio, a descrio das representaes nativas sobre os espaos de interao internos da escola (as quadras de esporte e a biblioteca) e das concepes distintas de masculino, presentes no colgio, assim como a

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    interpretao a partir da posio social da famlia e da trajetria escolar desses indivduos possibilitaram uma compreenso mais apurada da produo social do esforo e da dedicao aos estudos, muitas vezes considerados por socilogos e, principalmente, por economistas, como algo natural e inquestionvel na chamada sociedade do conhecimento. Ora, vimos, neste artigo, como h um rduo trabalho realizado por esses jovens e seus familiares para adquirir tais disposies e, principalmente, para justificar e significar suas prticas, sem dissipar as expectativas e projetos familiares. Esse trabalho tende a se tornar invisvel medida que subimos na hierarquia escolar: os bem-sucedidos no so vistos como trabalhadores, mas antes como pessoas que possuem mrito, dom, vocao. uma das tarefas da sociologia justamente demonstrar o trabalho social escondido por trs do sucesso escolar e, em consequncia, das desigualdades sociais.

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    NOTAS

    1 Este artigo um resultado da pesquisa de mestrado em Sociologia pela universidade de So Paulo, defendido em 2011, sob a orientao da Professora Sylvia garcia e financiada pela Capes. 2 Encontramos as trs denominaes institucionais das ltimas dcadas ainda inscritas na portaria do estabelecimento de So Paulo: Escola Tcnica Federal, CEFET-SP (Centro

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    Federal de Educao Tecnolgica de So Paulo) e IFSP (Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de So Paulo). a Escola Tcnica Federal foi criada em 1965, por meio da transformao institucional da antiga Escola de aprendizes artfices de So Paulo pela Lei n. 4.759, de 20 de agosto de 1965. Nas dcadas de 1960 e 1970, durante o regime Militar, tentou-se executar um plano de reforma do sistema de ensino brasileiro, com o intuito de fortalecer o ensino tcnico para oferecer mo de obra qualificada para as indstrias de bens durveis que se desenvolveram no perodo do chamado Milagre Econmico. Nesse projeto, as Escolas Tcnicas serviriam para qualificar profissionalmente os membros das classes populares sem a necessidade do ingresso no ensino superior. desde os anos 1980, contudo, a escola foi ocupada predominantemente por fraes das classes mdias paulistanas, em funo de sua qualidade propedutica na preparao para o acesso ao ensino superior. Nos anos 1990, o governo Fernando Henrique Cardoso decide transformar essas escolas em centros de educao tecnolgica, com expanso das vagas no ensino superior tecnolgico. No governo Lula, h um crescimento do investimento nesses centros, promovendo uma expanso de campi pelo interior do pas. 3 Quando no so citaes, sempre seguidas das referncias bibliogrficas, os trechos entre aspas so oriundos de entrevistas com os estudantes.4 Segundo Camacho (1993), a metfora do espelho muito utilizada pelos nipo-brasileiros para expressar a relao que eles mantm com os pais, marcada frequentemente pela ausncia de conversas, intimidade e demonstrao de sentimentos. A educao presente na primeira socializao se realiza, portanto, pelas experincias e comportamentos dos prprios pais, que so vistos como um espelho para se refletir (SHiBaTa, 2009).5 a ideia de cor/raa utilizada neste trabalho remete ao conceito de raa social elaborado por antnio Srgio guimares, que afirma que raa no um dado biolgico, porm construtos sociais, formas de identidade baseadas numa ideia biolgica errnea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenas e privilgios (guiMarES, 1999, p.153). a autoclassificao dos jovens ocorreu a partir de categorias preestabelecidas no questionrio: branco, negro, amarelo, pardo, indgena.6 Dos 21 entrevistados, seis se identificavam como nerds (duas meninas nipo-brasileiras e quatro meninos, dois deles nipo-brasileiros, e dois autodesignados brancos).

    Recebido: 10/08/2012Aprovado: 18/03/2014

    Contato:Departamento de antropologia / FFLCH / uSP

    Programa de Ps graduao em antropologia Socialrua Professor Ciridio Buarque, 113 - Bairro Pompeia

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