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ESPAÇOS MÍTICO E IMAGÉTICO DA MEMÓRIA SOCIAL 1 Vera Dodebei 2 Muito se tem discutido hoje sobre o estatuto da Memória Social. Conceito complexo e interdisciplinar, a memória social tem sido objeto de abordagens que circunstancialmente a aproximam da sociologia, da antropologia, da filosofia, da psicanálise, da comunicação, para citar as mais evidentes. Contudo, elas apontam, com maior freqüência, para o “conflito” com a História. Se a vizinhança, no caso das primeiras, permite um convívio agradável com as trocas de “receitas e favores”, com relação à História, essa convivência não é pacífica. Centro de debates e registros na literatura recente, as discussões sobre memória e história tentam identificar a natureza da relação existente entre os dois conceitos, aproximando-os por elos sintagmáticos, de pertencimento, ou por fronteiras coordenadas de contigüidade. Esse conflito, longe de ser malévolo, permite o desafio do confronto, o que enriquece a produção intelectual, gerando literatura que incentiva a dinâmica do processo criador. Embora não seja a intenção discutir esses “enfrentamentos”, uma elucidação do conceito de memória social por contraponto com o da história, ainda que parcial, pode fundamentar uma nova reflexão projetada para a atualidade. Esta sim, objeto deste trabalho, recai sobre uma possível superposição, ou melhor, uma interface do espaço/tempo 3 da oralidade mítica com o da imagética eletrônica. A questão da memória social no espaço virtual da representação eletrônica é, neste texto, o desvio que pretendemos enfrentar. Mas, nesse momento, voltaremos ainda nossa atenção ao confronto da memória social vista ou (re)vista pela história. Wehling e Wehling 4 traçam uma genealogia que passeia pelos dois e meio milênios da era existencial da memória individual em Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Santo Tomás, Bacon, Descartes. Os autores centralizam a discussão sobre o surgimento do conceito Memória Coletiva/Social entre o final do século XIX e o início do século XX, com Bergson, Durkeim e, finalmente, com Halbwachs que o consolida em sua obra póstuma Memória Coletiva 5 . 1 Publicado em Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 63- 71. 1 MAFFESOLI, Michel. O poder dos espaços de celebração. Rev. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 116, p. 59-70, jan./mar. 1994. p. 61. Construção conceitual de Michel Maffesoli, cujo significado seria um tempo que se torna espaço. 4 WEHLING, Arno, WEHLING, M.J.M.C.M. Memória e História. Fundamentos, convergências, conflitos. In: Memória social e Documento: uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro : UNIRIO/Mestrado em Memória Social e Documento, 1997. p. 10-26. 5 HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1990. Primeira edição de 1950

espaço mítico e imagético da memória social

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� ESPAÇOS MÍTICO E IMAGÉTICO DA MEMÓRIA SOCIAL1

Vera Dodebei2

Muito se tem discutido hoje sobre o estatuto da Memória Social. Conceito complexo e interdisciplinar, a memória social tem sido objeto de abordagens que circunstancialmente a aproximam da sociologia, da antropologia, da filosofia, da psicanálise, da comunicação, para citar as mais evidentes. Contudo, elas apontam, com maior freqüência, para o “conflito” com a História. Se a vizinhança, no caso das primeiras, permite um convívio agradável com as trocas de “receitas e favores”, com relação à História, essa convivência não é pacífica.

Centro de debates e registros na literatura recente, as discussões sobre memória e história tentam identificar a natureza da relação existente entre os dois conceitos, aproximando-os por elos sintagmáticos, de pertencimento, ou por fronteiras coordenadas de contigüidade. Esse conflito, longe de ser malévolo, permite o desafio do confronto, o que enriquece a produção intelectual, gerando literatura que incentiva a dinâmica do processo criador.

Embora não seja a intenção discutir esses “enfrentamentos”, uma elucidação do conceito de memória social por contraponto com o da história, ainda que parcial, pode fundamentar uma nova reflexão projetada para a atualidade. Esta sim, objeto deste trabalho, recai sobre uma possível superposição, ou melhor, uma interface do espaço/tempo3 da oralidade mítica com o da imagética eletrônica. A questão da memória social no espaço virtual da representação eletrônica é, neste texto, o desvio que pretendemos enfrentar.

Mas, nesse momento, voltaremos ainda nossa atenção ao confronto da memória social vista ou (re)vista pela história. Wehling e Wehling4 traçam uma genealogia que passeia pelos dois e meio milênios da era existencial da memória individual em Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Santo Tomás, Bacon, Descartes. Os autores centralizam a discussão sobre o surgimento do conceito Memória Coletiva/Social entre o final do século XIX e o início do século XX, com Bergson, Durkeim e, finalmente, com Halbwachs que o consolida em sua obra póstuma Memória Coletiva5.

1 Publicado em Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 63-71.

1 MAFFESOLI, Michel. O poder dos espaços de celebração. Rev. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.

116, p. 59-70, jan./mar. 1994. p. 61. Construção conceitual de Michel Maffesoli, cujo significado seria um tempo que se torna espaço.

4 WEHLING, Arno, WEHLING, M.J.M.C.M. Memória e História. Fundamentos, convergências, conflitos. In: Memória social e Documento: uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro : UNIRIO/Mestrado em Memória Social e Documento, 1997. p. 10-26.

5 HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1990. Primeira edição de 1950

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O tema da memória social, ainda em Wehling e Wehling6, pode ser representado pelo trânsito do conceito na filosofia em Castoriadis e Chatelet; na história em Vernant, Nora; na psicanálise por Lacan; na literatura por Proust. E, ainda, o conceito de memória social pode ser descrito sob vários pontos de vista, tais como o sociológico, o antropológico. Mas, sob a perspectiva da história, parece haver consenso na literatura que há dificuldade em estabelecer uma diferença conceitual a qual permita a elaboração do conceito de memória social independente da história.

Wehling e Wehling7 procuram subsidiar a questão enumerando os atributos de identidade entre os dois conceitos – conteúdo material (o passado de uma sociedade, cultura ou grupo) e o esquecimento; quanto aos atributos de diferença, distinguem a memória da história, nesta ordem, por antinomias - simplicidade/complexidade, tempo indefinido/tempo preciso, espaço condicional/espaço referencial, imóvel/dinâmica, repetição/cognição e ética da convicção/ética da responsabilidade. Segundo os autores, as palavras utilizadas para representar a idéia de – memória social – podem variar entre esta última expressão, memória coletiva, ou cultura histórica, todas elas conduzindo a um mesmo significado. A memória social se configuraria, ainda, como gênero para as memórias da tradição oral, entre outras, cabendo à história o conhecimento teórico-metodológico desse mesmo objeto.

Halbwachs8, por sua vez , ao discorrer sobre a oposição entre memória coletiva e história usa menos o argumento da cientificidade e mais o conceito de continuidade espaço-temporal para estabelecer uma diferença. De fato, o interesse da memória social sobre os acontecimentos do passado reside exatamente na percepção de que esses acontecimentos continuam a existir no presente, ou seja, pertencem a um continuum, alterado pelos esquecimentos ocorridos no percurso e acrescido de outras lembranças. Esse caráter dinâmico da memória pode ser visto em Freud citado por Gondar9 quando ele utiliza a metáfora do arquivo para descrever os aparelhos de memória:

a memória é tratada como um arquivo dinâmico, e os traços que a constituem são comparados a documentos, marcas que expressam a complexa relação entre esquecimento e lembrança (p.59) ... de tempos em tempos o material presente sob a forma de traços mnêmicos experimenta um reordenamento segundo novos nexos (p. 61).

Com efeito, o atributo de identidade – esquecimento - deve ser visto nesta perspectiva comparativa de um modo relativo, melhor dizendo, compreendido como uma permanente tensão com a lembrança pois, se para a história um dos seus objetivos pode ser, exatamente, lançar uma ponte entre o passado e o presente, e restabelecer essa continuidade interrompida10, para a memória social a lembrança/esquecimento é o que vai permitir a sucessão dos acontecimentos. Nas palavras de Halbwachs:

Uma vez que a memória de uma sociedade se esgota lentamente, sobre as bordas que assinalam seus limites, à medida que seus membros individuais, sobretudo os mais velhos, desapareçam ou se isolem, ela não cessa de se transformar, e o grupo, ele próprio, muda sem cessar. É, alias, difícil dizer em

6 WEHLING, A, WEHLING, M.J.M.C.M. op. cit. p. 14 7 WEHLING, A, WEHLING, M.J.M.C.M. Op. cit. p. 18 8HALBWACHS, Maurice. op. cit. p. 80 9GONDAR, Jô. O esquecimento como crise do social. In : Memória social e Documento: uma abordagem

interdisciplinar. Rio de Janeiro : UNIRIO/Mestrado em Memória Social e Documento, 1997. p. 53 - 62.

10 HALBWACHS, Maurice. Op. cit. 81

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que momento uma lembrança coletiva desapareceu, e se decididamente deixou a consciência do grupo, precisamente porque, basta que se conserve numa

parte limitada do corpo social, para que possamos encontrá-la sempre ali.(grifo nosso)

Uma interpretação possível para a última frase da citação de Halbwachs seria a de imaginar a memória social como um objeto fractal11, a partir do qual pode-se reconhecer ou recompor o todo pela compreensão de uma ínfima parte que é, na verdade, exatamente igual à sua totalidade. Teríamos assim uma identidade total e uma sucessão de diferenças circunstanciais, que iriam se fundindo no todo, permanentemente, transformando-o, caracterizando, deste modo, o continuum do tempo/espaço.

Poderíamos prosseguir com a discussão, considerando outros discursos como os de Le Goff, Jeudy, Fentress, acerca da dinâmica da memória e, ainda, Gilberto Velho, com o binômio memória-projeto12. No entanto, a questão que nos mobiliza neste momento está centrada no olhar sobre a memória social considerando, de um lado, as possíveis rupturas de continuidade entre a tradição oral, os registros materiais (fundamentalmente a escrita) e a comunicação informática. De outro lado, a nossa proposta é a de estabelecer as interfaces, ou seja, as superfícies de contato, de tradução, de articulação entre esses espaços.

Espaço/tempo

As perguntas onde? e quando? nos remetem aos referenciais de espaço e de tempo. Esses dois atributos acidentais ao objeto o modifica, tornando-o particular ou específico, em relação à sua idéia genérica. Quando eu digo - este texto que eu estou escrevendo aqui e agora – estou diferenciando-o de qualquer outro texto já escrito ou por escrever. Mas essa diferença é relativa a uma identidade de classe ou categoria. Não se configura como uma diferença em si. O exemplo emerge, assim, de uma concepção classificatória do saber, a qual transita na sociedade, com poucas rupturas, desde a filosofia clássica13.

Durante quase vinte séculos a cultura ocidental considerou as dimensões tempo e espaço como atributos independentes e portanto nos habituamos a pensar que os espaços são fixos/estáticos e que o tempo é linear, caracterizando o passado, o presente e o futuro. Com Einstein e a relatividade, fomos obrigados a repensar esse estatuto do tempo e do espaço, resgatando o conceito de “acontecimento” desenvolvido pelos estóicos e exemplificado por Deleuze14:

11 Fractal pode ser qualquer objeto/fenômeno que contenha imagens similares de si próprio. Esse novo tipo de geometria (geometria fractal), foi criada na fronteira entre caos e ordem, tendo como fundamento a teoria física do caos, a qual estabelece que – tudo é submetido a tantas variáveis que se torna sempre, mas não completamente, aleatório. Portanto, os fractais possuem uma espécie de “ordem” (descoberta por Benoit Mandelbrot) que os impede de serem totalmente caóticos ou totalmente ordenados. http://www.freeclouds/fractalland (Tradução livre de texto capturado na Internet em 4 de outubro de 2000). 12 DODEBEI, V.L.D. A construção social da memória. In : _____. O sentido e o significado de documento

para a memória social. Rio de Janeiro : UFRJ-ECO, 1997. (tese de doutorado em Comunicação e Cultura), p. 33 – 66.

13 Cf. DODEBEI, V.L.D. op.cit. p.54 14 DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo : Perspectiva, 1974. p. 6

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Só o presente existe no tempo e reúne, absorve o passado e o futuro, mas só o passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito cada presente. Não três dimensões sucessivas, mas duas leituras simultâneas do tempo.

No entanto, essa concepção só começa a aparecer na literatura geral (em contraposição à literatura científica) com o advento das redes eletrônicas de comunicação. O fenômeno da globalização retoma o discurso da circularidade do tempo e da virtualidade espacial. O espaço virtual, o tempo real passam a fazer parte da vida cotidiana, evidenciando a importância de um “novo” atributo para os modos de pensar – a tecnologia. Vale ressaltar que a tecnologia não é em si uma novidade. Nova é a perspectiva pela qual ela passa a ser analisada, isto é, menos maniqueísta – homem/máquina – e mais interativa, como uma outra dimensão que intervém não só na produção do conhecimento, na sua atualização, mas significativamente na sua transmissão.

A partir da hipótese de que os modos de transmissão do saber estão atrelados às condições tecnológicas da sociedade, Pierre Lévy15 considera que à dimensão do espaço/tempo, soma-se a dimensão da técnica. E que ambas podem ser compreendidas, tal como o continuum de Halbwachs, em três polos do espírito: o da oralidade primária (mito), o da escrita (teoria), e o da informática-mediática (simulação). Esses polos não se configuram em eras porque transitam e acontecem ao mesmo tempo, em graus diversos de intensidade e de manifestação explícita.

Lévy, no quadro comparativo que traça para os três polos, usa os atributos: tempo, pragmática da comunicação, memória social e formas de conhecimento. Mas, em nenhum momento o autor pressupõe o domínio de um polo sobre o outro. Ao contrário, indica que o uso de determinado tipo de tecnologia intelectual, seja o mito, a teoria ou a simulação, coloca ênfase particular em certos valores, certas dimensões da atividade cognitiva ou da imagem social do tempo, que tornam-se mais explicitamente tematizadas e ao redor das quais se cristalizam formas culturais particulares. Ernst Cassirer16, por sua vez, ao analisar as conexões entre língua e mito, considera também o espaço mítico não como uma era, mas como um modo de ver, uma forma simbólica que, embora irrompa com maior força nos tempos mais antigos da história do pensamento, nunca desaparece por inteiro. É esta a nossa intenção ao referirmo-nos ao quadro de Lévy. Na tentativa de aproximar o mito e a simulação, procuraremos identificar os atributos comuns que favoreçam o entendimento de um dentre os vários modos de acontecer da memória social na atualidade.

Oralidade mítica

Vernant17 nos explica que um mito, pontualmente um mito grego, é um relato. A maneira pela qual se constituíram, se estabeleceram, foram transmitidos e se atualizam na memória coletiva pode ser compreendida pelos textos que só chegaram a nós dispersos e fragmentados, à exceção das obras literárias tais como a Ilíada e a Odisséia. À reunião dessas tradições múltiplas deu-se o nome de mitologia grega.

A diferença entre o relato mítico e outros tipos de relatos, por exemplo, o literário, o histórico, pode ser evidenciada sob alguns aspectos. O primeiro deles diz

15 LËVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. : o futuro do pensamento na era da informática. Rio de

Janeiro : Ed. 34, 1993. p. 127 16 CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo : Perspectiva, 2000. p. 19 17 VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. São Paulo : Companhia das Letras, 2000.

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respeito à autoria. O relato mítico segundo Vernant18, não resulta da invenção individual nem da fantasia criadora, mas da transmissão da memória. Assim, o mito só vive se for contado, de geração em geração, na vida cotidiana e as condições de sua sobrevivência são, exatamente, a memória, a oralidade , a tradição. O segundo aspecto é relativo à sua integridade informacional ou unicidade. O mito não está fixado numa forma definitiva. Esta vai variar, sempre, em decorrência do agente - “contador de estórias”, os aedos - ou do processo, a transmissão, a qual incorpora novas analogias e abandona outras, tecendo-se, assim, um continuum formado por lembranças e esquecimentos, sempre atualizado na memória coletiva.

O mito sempre comporta variantes, versões múltiplas que o narrador tem à sua disposição, e que escolhe em função das circunstâncias, de seu público, de suas preferências, podendo cortar, acrescentar e modificar o que lhe parece conveniente.19

A terceira diferença do mito com relação a outros relatos pode ser vista a partir da perspectiva do espaço/tempo. As musas, filhas de Mnemosyne (memória), têm por tarefa a apresentação da criação do mundo desde que ao Kháos (Caos) se contrapôs Gaîa. Gaia, ou a Terra, é nítida, firme e estável, significando o oposto do Caos, embora tenha emergido dele. E é nela que os deuses, os homens e os bichos podem viver com segurança, iniciando-se, assim, a estória das origens. No entanto, a origem do cosmos relatada pela mitologia20 não deve ser vista em um quadro de sucessão no tempo, tal como em Vernant21:

esta gênese do mundo, cujo decurso narram as Musas, comporta o que vem antes e depois, mas não se estende por uma duração homogênea, por um tempo único. Ritmando este passado, não há uma ‘cronologia’, mas ‘genealogia’.

Quanto à experiência do que é espacial, a mitologia a representa, além do próprio mito de origem: Caos – instável, infinito, espaço em queda, e Gaia – estável, definida e fixa -, pela figura do casal Héstia, simbolizando o centro e Hermes o contrapondo com o movimento. Esses polos, mais dinâmicos que opostos, ultrapassam em muito a noção ordinária de espaço e movimento, e exprimem o que Vernant22 denomina de tensão que se observava na representação arcaica do espaço:

o espaço exige um centro, um ponto fixo, com valor privilegiado, a partir do qual se possam definir direções, todas diferentes qualitativamente; o espaço porém se apresenta ao mesmo tempo como lugar do movimento, o que implica uma possibilidade de transição e de passagem de qualquer ponto a um outro.

A união de centro e movimento aliada à circularidade temporal conduz à idéia de um só conceito - espaço/tempo. E tal como na mitologia, ele pode ser imaginado como uma dimensão na qual, a partir da leitura do presente, celebram-se os acontecimentos que transitam no passado e no futuro. A função criativa do mito reside, exatamente, no fato

18 VERNANT, J. Op. cit. p. 12 19 Ibid. p. 13 20 Cf. em VERNANT.op.cit. p.19 o nascimento de Chronus, filho de Gaia e Urano, que instaura o tempo na terra. 21 VERNANT, Jean-Pierre. Aspectos míticos da memória e do tempo. In : ______. Mito e pensamento

entre os gregos. São Paulo : Difusão Européia do Livro/EDUSP, 1973. p. 71-112. 22 ______. A organização do espaço. In : ______. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo : Difusão

Européia do Livro/EDUSP, 1973. p. 113 -206.

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de que este pode ser interpretado à luz do quadro conceitual do presente e, embora a oralidade mítica tenha cedido espaço ao polo da escrita, suas características de relato singular - autoria, forma e espaço/tempo - podem ser encontradas na transmissão do conhecimento, na atualidade e, consequentemente, na configuração, também atual, da memória social.

Simulação/ Imagética

Virilio23 argumenta que na atualidade vamos substituindo os símbolos da linguagem escrita pelos símbolos visuais. Essa ideografia pode ser compreendida pelo que o autor nomeia de lógica da imagem, ou imagética. A imagética habita um espaço/tempo, acrescido de outra dimensão, a velocidade, e pode ser caracterizada por três fases: a era da lógica formal – pintura, gravura e arquitetura que se conclui no século XVIII; a era da lógica dialética – a fotografia, a cinematografia, no século XIX; e a era da lógica paradoxal, que se inicia com a videografia, holografia, infografia (informação digitalizada)24.

Essa última, a era paradoxal, é a que nos interessa analisar a partir das características descritas para o relato mítico, personalidade encontrada por Lévy para representar o polo da oralidade. Dentre os tipos de tecnologias de transmissão do conhecimento citados por Virilio, a infografia pode ser considerada como uma espécie de evolução da escrita. Os exemplos são muitos e basta citar o prefixo e. (que significa eletrônico) para encontrarmos os e.book, e.music, e.jogos, e.etc, serviços e produtos culturais, disponíveis na maior rede de comunicação da atualidade, a w.w.w. (Wild World Web).

Aliada aos demais signos imagéticos, a infografia, ainda que constituída pela

língua natural, ultrapassa a escrita convencional que, por sua vez, dominou o espaço da transmissão do conhecimento em contraponto com a oralidade, e se constitui na forma do relato da atualidade. Temos, assim, um quadro de memórias, parafraseando Halbwachs, composto por matizes de textos, imagens e sons, conformando uma nova linguagem que Lévy denominou de linguagem lúdica, tal é a sua forma de interação comunicacional.

Se no passado, a afirmativa de que ao relato escrito deviam-se créditos de

reprodutibilidade e prova, nesse momento tais atributos não lhe são convenientes. A primeira grande ruptura na estabilidade da escrita é, tal como no relato mítico, a possibilidade de múltipla autoria. Recortes e recomposição da informação são processos incentivados pelo livre acesso aos estoques de conhecimento do espaço virtual, a despeito de todas as tentativas de preservação dos direitos autorais. Como se configurariam as memórias de grupos sociais ou a memória globalizada?

Para Lévy, a memória social do polo informático-mediático está em permanente

transformação, tal como na oralidade, e encontra-se quase que totalmente objetivada em dispositivos técnicos. Os atores da comunicação dividem cada vez mais o mesmo hipertexto e as mensagens são cada vez menos feitas para durarem, configurando-se o modelo de conhecimento por simulação, em contraposição ao modelo interpretativo do

23 VIRILIO, Paul. A máquina de visão. Rio de Janeiro : José Olympio, 1994. p. 9 24 Neste texto adota-se a expressão imagética como gênero daquelas citadas.

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polo da escrita, no qual a memória é objetivada no texto finito, o que vai exigir a identificação do indivíduo, portanto a autoria. Mesmo se considerarmos, tal como em Foucault 25, que o livro é um paralelepípedo que não se encerra no ponto final, visto as ilações inesgotáveis proporcionadas pele rede de citações, estas ainda resguardam a integridade das autorias.

Pesquisas têm sido desenvolvidas para atribuir, ainda numa visão autoral da

comunicação e numa perspectiva cumulativa-repetitiva da memória social, a responsabilidade pela preservação da memória na web.26 Essa preocupação, marcada pelo espírito de cientificidade na busca de consistência teórico-metodologica, é desencadeada exatamente pela inconsistência, inconstância, mutação e obsolescência das informações lançadas na rede mundial de comunicação. Essa é a forma paradoxal da memória social na atualidade: ao mesmo tempo plural como processo em permanente construção passível de múltiplas interferências, e singular como um único conjunto – forma do hipertexto.

Tal como se configurava o imaginário social da oralidade, muito mais criativo do

que objetivo, o espaço/tempo imagético é habitado-vivenciado por uma memória social dinâmica, interativa e em tempo real. O que muda, na atualidade, com relação à autoria, à forma e ao espaço/tempo entre esses dois polos delineados dor Lévy, é a velocidade das ações sociais mediatizadas pela dimensão da técnica.

Interfaces

Das proposições de Lévy e Virilio, os polos não lineares - transmissão do

conhecimento - no primeiro, e a imagética - representação do conhecimento - no segundo, aliadas ao conceito de dinâmica da memória coletiva de Halbwachs, podemos apontar as seguintes superfícies de contato no espaço/tempo da memória social:

a) a interface dos espaços mítico e imagético é uma das inúmeras possibilidades de reflexão sobre a forma pela qual os relatos se constituem, se apresentam, se transmitem e se atualizam;

b) as dimensões espaço/tempo e velocidade/técnica ao serem exploradas nos estudos sobre o estatuto atual da memória do conhecimento na sociedade e, em especial, sobre as configurações da memória social, lhes asseguram o caráter de movimento ou dinâmica;

c) a tradução da leitura do relato mítico para o modelo do hipertexto pode ensejar a melhor compreensão na convivência da criatividade com a objetividade, já que forma e autoria passam a expressar, concomitante, o múltiplo e o singular, em uma configuração do conhecimento menos cumulativa.

Se o modo como abordamos o problema não trouxe a tona uma diferença em si,

isto é, um aspecto totalmente novo aos nossos sentidos, pois que trabalhamos em todo o percurso com o conceito culturalmente sedimentado de identidade, por outro lado nos foi

25 FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1986. P. 25-26. 26 Cf. SAYÃO, Luís Fernando. Bases de dados : a metáfora da memória científica. Ciência da Informação

[on line] v. 25, n. 3, 1996.

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possível reconhecer que nosso objeto, a memória social, vem despontando como uma singularidade disciplinar.

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