Espaço Religioso No Brasil Giumbelli

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    Emerson Giumbelli

    APRESENADORELIGIOSONOESPAO

    PBLICO: MODALIDADES NO BRASIL

    Este artigo apresenta idias e anlises que demandam aprofundamento edebate. Procuro tomar uma constatao enquanto desafio: como entender, noBrasil, a presena legitimada da religio no espao pblico? Procederei tratandodas formas que permitiram essa presena por meio de definies histricas quetomaram por referncia universos sociais diversos. Assim, inicio com o catolicismo,passo pelo espiritismo e pelos cultos afro-brasileiros, e termino com os evanglicos.Embora esses termos correspondam aos segmentos que nos acostumamos areconhecer no campo religioso brasileiro, a questo exatamente saber sob qualdefinio de religio foi possvel acolh-los no espao pblico. Essa acolhidacorresponde a alguma forma de reconhecimento da religio por meio de

    dispositivos jurdicos que implicam o aparato e o poder de Estado e que envolvemalgum grau de legitimidade social. Aposto ento que as relaes entre Estadoe religio no Brasil ficam mais inteligveis se adotamos essa perspectiva histricacapaz de constatar as operaes que produzem modos de presena.

    Reforo o sentido do termo constatao. No se trata, em primeirolugar, de considerar isso um problema, como a coisa parece se tornar quando assumida a perspectiva que interpreta a situao brasileira iluminada peloparadigma da secularizao. A constatao, nesse caso, refere-se ao fato de quecertas formas de presena da religio no espao pblico no foram construdas

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    por oposio secularizao, mas, por assim dizer, no seu interior. Em outras palavras,

    foi no interior da ordem jurdica encimada por um Estado comprometido com osprincpios da laicidade que certas formas de presena da religio ocorreram. Emsegundo lugar, tampouco o caso de deixar de problematizar essa situao, o queacaba sendo o efeito de muitas anlises que se contentam em destacar a ininterruptavitalidade do campo religioso brasileiro. No se pode eludir que essa vitalidade, emalgumas das suas dimenses, depende de um dilogo com os mecanismos dereconhecimento ensejados por aquelas formas de presena. Desprez-las significadeixar de apreender alguns dos vetores de historicidade da constituio de qualquercampo religioso o que nos conduz novamente ao tema da laicidade (ou dosecularismo), referncia que ele encarna na conexo com o Ocidente, e

    necessidade de qualific-la em qualquer situao em que aparea.A perspectiva que procuro assumir segue de perto as idias de Talal Asad,antroplogo saudita-britnico radicado nos Estados Unidos ainda pouco conhecidono Brasil. Depois de formular uma crtica a definies universalistas de religio(Asad 1993), o mesmo autor props uma antropologia do secularismo, na qualeste entendido como parte da modernidade (Asad 2003). Ao meu ver, overdadeiro objeto de Asad exatamente a modernidade de raiz ocidental,concebida tanto como projeto que busca institucionalizar alguns princpios(secularismo ou laicidade, entre eles), quanto como conjunto de tecnologiasque produzem sensibilidades, estticas e moralidades distintivas (Asad 2003:14).Nesse projeto e nessas tecnologias, o Estado-nao e seu aparato legal so umelemento crucial, enfocado em seu papel de formador dos sujeitos-cidados.Secular e religioso constituem pares indissociveis na modernidade, e o quese trata de fazer, para Asad, problematizar o religioso e o secular comocategorias claramente diferenciadas, mas tambm investigar as condies nasquais essa diferenciao afirmada e sustentada como tal (Asad 2006a:298).Assim, possvel constatar acomodaes de agentes religiosos em Estadosseculares, mas tambm definies seculares do religioso. Ou, como ele demonstraao analisar alguns desenvolvimentos da controvrsia sobre o vu em escolasfrancesas, apontar a atribuio secular de motivaes religiosas (Asad 2006b).Seja como for, a presena do religioso na sociedade est sempre relacionada com

    os dispositivos estatais, apesar ou por causa da laicidade.

    * * *

    No Brasil, em se tratando de laicidade, nos deparamos com a aurorarepublicana como marco. quando se adota de modo assumido o princpio daseparao entre Estado e igrejas. Em termos mais concretos: rompe-se com oarranjo que oficializava e mantinha a Igreja Catlica; o ensino declaradoleigo, os registros civis deixam de ser eclesisticos, o casamento torna-se civil,

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    os cemitrios so secularizados; ao mesmo tempo, incorporam-se os princpios da

    liberdade religiosa e da igualdade dos grupos confessionais, o que darialegitimidade ao pluralismo espiritual. Note-se que estamos no final do sculoXIX e a amplitude desse projeto de laicizao coloca o Brasil ao lado, e mesmo frente, de outros pases igualmente comprometidos com aqueles princpios.Mas como eles foram concretizados? Levantar tal questo implica em apostar naseguinte idia: mais do que princpios, o que esto em jogo so dispositivos queconfiguram a relao entre Estado e religio dentro das exigncias da laicidade,partindo-se da constatao de que esse modelo adotado simultaneamente emmuitas naes. Ou seja, temos muitos experimentos de laicidade naquelemomento histrico e no precisamos, para entend-los, sujeitar a maioria deles

    a um referencial analtico decalcado de alguma situao nacional particular.2

    Por muitas razes, a Igreja Catlica teve um papel crucial na definio donovo regime de relaes entre Estado e religio no Brasil republicano. Ressalta-se bastante o fato de que a Igreja Catlica foi contrria sua separao como Estado. E fcil de mostrar como seus lderes e representantes se empenharamna defesa do regime contrrio ou de algum tipo de reconhecimento, por partedo Estado, da preeminncia do catolicismo na constituio da nacionalidade.Tais empenhos foram em parte recompensados no texto da Constituio de 1934,na qual, por exemplo, o ensino religioso permitido e o casamento religiosovolta a ter validade civil; alm disso, o princpio da separao temperado pelapossibilidade de colaborao entre Estado e religies3. A noo de colaboraoconferiu assim um fundamento constitucional para aproximaes entre Estado ereligies, o que, naquele momento histrico, traduziu as vitrias conquistadaspela Igreja Catlica. Mas no devemos exagerar as implicaes dessa noo,ratificada at o presente,4pois sua formulao a manteve subordinada ao princpioda separao e ela no gerou ou se atrelou a nenhum dispositivo jurdicoespecfico. Na verdade, ela veio a oficializar aproximaes que j se faziamdentro do regime constitucional anterior e desde seus incios.5

    Mais importante em suas implicaes, ao meu ver, foi a definio que seconferiu ao princpio da liberdade religiosa. E, nesse caso, imperativo destacarque a mesma Igreja Catlica que foi contra a separao se colocou a favor da

    liberdade. A traduzir o princpio, estavam em jogo discusses sobre a autonomiajurdica das associaes religiosas. A lei de 1890 que produziu a separao entreEstado e Igreja Catlica reconhecia a todas as igrejas e confisses religiosasa personalidade jurdica para adquirirem os bens e os administrarem, mas sobos limites postos pelas leis concernentes propriedade de mo-morta (art. 5.).

    J na Constituio de 1891, venceu a seguinte formulao, com o apoio dasforas catlicas: Todos os indivduos e confisses religiosas podem exercerpublicamente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens,observadas as disposies do direito comum (art. 72 3). No entanto, mesmo

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    depois disso, a diretriz seguida pelas autoridades ministeriais era no mnimo

    hesitante, pois houve iniciativas no sentido de limitar ou desautorizar operaeseconmicas realizadas por instituies catlicas. Seguiu-se ento um debatejurdico de conseqncias importantes para a definio do regime de constituiodos coletivos religiosos no Brasil, no qual a Igreja Catlica interveio ao mesmotempo em que se preocupava em reorganizar a articulao das suas partes parase tornar uma entidade mais coesa do que era antes.

    Desse debate jurdico, no posso seno destacar os principais resultados6.Estava em jogo, repito, a definio sobre a autonomia jurdica das associaesreligiosas. Havia quem achasse que o Estado deveria manter prerrogativas sobrealgumas das dimenses econmicas da vida dessas associaes, sobretudo a

    aquisio e alienao de bens. Ao mesmo tempo, no estava claro como asassociaes religiosas ficariam conferidas de personalidade jurdica, e de quetipo ela seria. Na busca de resposta para essas questes, ganham destaque, porsua importncia no ordenamento jurdico do pas, as estipulaes do CdigoCivil que passa a vigorar em 1917. No entanto, elas reafirmam o que j tinhamestabelecido as provises de uma lei de 1893. Trs pontos so essenciais: (i) nopesa nenhuma restrio especfica sobre a vida econmica das associaesreligiosas, cabendo aos seus estatutos estipular as formas de gesto, relaoentre membros e os objetivos do coletivo; (ii) as associaes religiosas ganhampersonalidade jurdica pelo registro civil de seu estatuto, o que independe dequalquer autorizao prvia; (iii) as associaes religiosas esto submetidas aomesmo regime civil das outras sociedades sem fins lucrativos, sem correspondera uma figura jurdica distinta e prpria.

    Essa configurao ensejou, ainda em 1893, o comentrio, publicado emfrancs, de que se consagrou no Brasil um entendimento de que no existirianenhum limite ou controle estatal em relao s associaes religiosas (SouzaBandeira 1893). De fato, construiu-se um fundamento jurdico para conferirpersonalidade aos coletivos religiosos, o que significava reconhecer sua existnciae ao legais em vrias esferas, sem nenhuma restrio especfica aos seus atoscivis. A liberalidade reforada pela ausncia de uma figura jurdica especfica,embora, como veremos adiante, as entidades religiosas no tenham permanecido

    totalmente indiferenciadas. Por outro lado, o arranjo estabelecido no significavaausncia de restries. A lei de 1893, por exemplo, menciona a proibio de finsou meios ilcitos ou imorais. Mais importante era a idia tcita de que oscoletivos religiosos teriam as condies para se auto-regularem de modo a semanterem dentro dos limites das leis e da moralidade. No se pode esquecertambm que o ordenamento jurdico se construa de modo a regulamentaroutras esferas, das quais obedecendo a uma das expectativas da modernidadea que tal ordenamento aderia a religio deveria estar ausente. Assim, umregime de poucas restries e especificaes sobre as associaes religiosas

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    como queria a Igreja Catlica precisa ser entendido no quadro que articula

    uma expectativa de auto-regulao e uma regulao indireta do domnio religioso.Isso nos conduz a outro plano do reconhecimento estatal do religioso noBrasil. Todo o debate que desemboca no Cdigo Civil de 1917, como j haviaformulado em outro texto, versou quase nunca sobre a religio que terialiberdade, quase sempre sobre a liberdade de que desfrutaria a religio(Giumbelli 2002:276). Ou seja, sua referncia era a Igreja Catlica e umcatolicismo eclesial, sobre os quais no havia dvidas sobre seu estatuto dereligio. muito interessante constatar que, contemporaneamente, ocorria asim um debate sobre a aplicabilidade do conceito de religio aos cultos que aliteratura acadmica chama de medinicos. Esse debate remetia s questes da

    sade pblica, um domnio que na passagem do sculo XIX para o XX mobilizouregulamentaes massivas e pretendeu figurar como principal dimenso da vidacomum. Sua repercusso sobre o domnio religioso serve como ilustrao doargumento acerca da regulao indireta, o que possibilitava a convivncia entreliberdade e restrio do alegadamente religioso. A principal base remetia aoCdigo Penal, outra legislao dos incios da Repblica, que trazia dispositivosque criminalizavam a prtica do espiritismo e a da magia e seus sortilgios(art. 157). Esse dispositivo ladeava outros que visavam a prtica da medicinapor indivduos desprovidos de ttulo acadmico e o exerccio do curandeirismo.Tal base jurdica serviu de referncia para elaboraes e intervenes de altoimpacto social, assim como para reaes importantes em se tratando dereconfiguraes de formas de presena do religioso.7

    O Cdigo Penal, juntamente com regulamentaes sanitrias e policiais,fundamentou aes que atingiram sobretudo cultos que, por suas refernciasafricanas, eram identificados como claramente mgicos, em um sentido que setraduzia em selvageria e feitiaria. Mas, ao menos na capital da Repblica,foram os espritas, cujas prticas medinicas estavam orientadas pela obras deAllan Kardec, os que se destacaram na reao ao que viam como uma contradioentre o Cdigo Penal de 1890 e a Constituio de 1891. Sua reao foi tambmmotivada por incurses policiais e judicirias ao seu universo institucional. Essasincurses interpelavam as prticas teraputicas que se desenvolveram com

    bastante fora no espiritismo, desde seu ingresso no Brasil em meados do sculoXIX. A resposta dos porta-vozes espritas aos ataques em defesas judiciais, emmanifestaes na imprensa enfatizou o enquadramento de suas prticas noo de religio. Para tanto, a categoria caridade foi crucial. A curaproporcionada por meios medinicos argumentavam os espritas , a queacorriam livremente os mais diversos indivduos, tinha como meio e como fima caridade. No esperava pagamento de qualquer tipo como contrapartidamaterial e significava o exerccio de um princpio inerente e necessrio religioprofessada.

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    Pode-se dizer que esse argumento teve xito, no sentido de garantir uma

    margem de imunidade a prticas teraputicas que reclamam motivao religiosa.Essa constatao, contudo, deve vir acompanhada de outras duas. De um lado, oEstado conservou o princpio que oficializa, em tese, o monoplio da cura medicinaacadmica; de outro, no universo das prticas espritas, predominou um vetor queproduziu uma adequao, tambm em tese, das teraputicas a intervenesespirituais. Na prtica, porm, considervel o espao para o desenvolvimento ea oferta de terapias espirituais, sobretudo sob estatuto de informalidade e sem asua penetrao nos espaos da medicina acadmica. Em relao questo dasformas de presena do religioso, pode-se afirmar que o argumento esprita da caridadeproduziu uma extenso da modalidade moldada a partir do argumento catlico da

    liberdade. Em outras palavras: legtimo que essas pessoas que so as associaesreligiosas desenvolvam teraputicas espirituais cuja presena no espao pblico, seno aceita, bastante tolerada. Lembre-se que essa legitimao da dimensoteraputica, dentro de certo formato, foi acompanhada da aproximao de instituiesespritas com o Estado pela via da assistncia social, o que j ocorria, em grau bemmaior, na relao com a Igreja Catlica e correspondia, mesmo sem alcanar amesma legitimidade, ao exerccio da colaborao consagrada pela Constituio de1934 e ratificada nas seguintes.

    * * *

    Embora a base legal contra a qual se conquistou a extenso doreconhecimento do estatuto de religio cobrisse, como se mencionou, os cultosmedinicos em geral, o contraste entre o espiritismo e outras prticas inegvel.Os espritas no apenas ficaram menos vulnerveis s incurses repressoras,como tambm exercitaram amplamente as prerrogativas civis concedidas sassociaes religiosas. Sabe-se que muitos terreiros de umbanda e candombl,por outro lado, no possuem registro em cartrio. Um comentarista, que tambm militante, constata que na cidade de So Paulo ainda hoje nenhumtemplo de candombl tem assegurada a imunidade tributria, os ministros noconseguem obter inscrio no sistema de seguridade social e os cartrios se

    recusam a reconhecer a validade dos casamentos celebrados no candombl(Silva Jr. 2007:315). Mais do que isso: alguns dados e a memria dos adeptosregistram que, em perodo recente (anos 1960 e 70), havia exigncias deautorizao administrativa ou registro policial para permitir o funcionamento deterreiros. Todas essas caractersticas evidenciam a dificuldade que os cultos depossesso de referncia africana encontram para se adequar ou seremreconhecidos em seu estatuto de religio. E se possvel notar investimentosque buscam produzir essa adequao e reconhecimento, tambm se pode constatara construo de uma outra via de presena da religio no espao pblico.

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    Chamarei essa via de diferencialista, por oposio a que acompanhamos

    anteriormente, que denomino generalista na falta de termos mais precisos esem fazer sobre eles qualquer juzo de valor. Sua articulao permite, por exemplo,que os cultos afro-brasileiros componham uma dimenso da cultura pblica,como ocorre mais claramente na Bahia, onde o candombl faz parte de umabaianidade oficialmente promovida (Sansi 2003). Mas gostaria de exploraraspectos que remetem ainda prpria existncia dos terreiros e das condiespara suas manifestaes. Essa uma questo que preocupava Nina Rodrigues,que, na passagem do sculo XIX para o XX, comps uma representao dosterreiros de candombl capaz de conciliar aspectos, em princpio, contraditrios.Refiro-me ao fato de que o mdico radicado na Bahia denunciava, com base na

    medicina acadmica, as prticas de cura africanas e, ao mesmo tempo, reclamavapara os praticantes de feitios a proteo que a Constituio republicanadevia s religies. Outro momento em que reivindicao semelhante articulada ocorre durante os dois Congressos Afro-Brasileiros, realizados noNordeste na dcada de 1930. Como mostra Dantas (1988), houve tambm apreocupao em caracterizar os cultos afro-brasileiros como religies.Lembremos que esses congressos contaram com a participao de figurasimportantes do cenrio intelectual brasileiro. Suas posies revelam a refernciacomum ocupada pela categoria religio na luta por legitimao social.

    No quadro do Congresso Afro-Brasileiro realizado em Salvador, no ano de1937, um memorial, elaborado por dison Carneiro, foi dirigido ao governadorbaiano com o fim de apoiar a reivindicao de liberdade religiosa para asseitas africanas. Os termos utilizados so significativos, por evocarem a posiode outros intelectuais e noes ancoradas na Constituio ento vigente:

    Cada povo tem a sua religio, e sua maneira especial de adorar aDeus e o candombl a organizao religiosa dos Negros escravose dos Homens de Cor da Bahia, descendentes dos Negros escravos,que lhes deixaram, como herana intelectual, as vrias seitas africanasem que se subdividem as formas religiosas trazidas da frica (...).Como tm provado, suficientemente, os mais argutos observadores,

    notadamente Nina Rodrigues e Arthur Ramos, e os CongressosAfro-Brasileiros j realizados (...), nada h, dentro das seitasafricanas, que atente contra a moral ou contra a ordem pblica(art. 113 da Constituio Federal). Ao contrrio, tanto NinaRodrigues e Arthur Ramos quanto os intelectuais que colaboraramnos citados Congressos, todos, sem exceo, tm reclamado aliberdade religiosa dos Negros como uma das condies essenciaispara o estabelecimento da justia entre os homens. (apud Dantas1988:190).

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    O que pretendo destacar que havia, em posies como essas, um

    argumento de vis culturalista. Nina Rodrigues poderia ilustrar isso, como sugereo manifesto acima, mas seu compromisso com o biologicismo prejudicaria ademonstrao. Vale mencionar, no entanto, que ele se referia a um sentimentoreligioso, contra o qual a polcia de nada adiantaria, para traduzir o fetichismoanimista a que associava os feitios africanos. Passo ento s vises de ArthurRamos, um intelectual em sintonia com os investimentos dos Congressos Afro-Brasileiros e que est vinculado a argumentos propriamente culturalistas (Corra1998). Detenho-me em um texto apresentado em um congresso mdico de 1931,no qual Ramos prope uma distino entre charlatanismo e curandeirismo(Ramos 1931). O charlato sempre um mdico que transgride seu cdigo de

    classe; j o curandeiro o indivduo que se dedica a prticas de cura informadopor concepes mgicas. No se pode confundi-los, conferindo a ambos asmesmas medidas de ataque. No caso do curandeiro, o que se tinha, segundoRamos, era um problema de mentalidade baseada em uma psicologia e umacultura diferenciais. Embora as vises de Ramos estivessem orientadas por umaperspectiva de superao, elas recorrem a argumentos que podem, em outrosdiscursos, adquirir um sentido positivo para suportar a existncia e a presenade certas religies. O que os caracteriza exatamente a idia de que essasreligies se constituem, no dilogo com outras, de modo diferencial.8

    Para demonstrar minha proposio, enfoco rapidamente duas situaesrecentes. A primeira ocorre no final dos anos 1980 em So Paulo e trata dotombamento de um terreiro de candombl pelo organismo estadual voltado paraa proteo do patrimnio cultural. Valho-me do comentrio realizado por Silva(1995:183-196), que ressalta a novidade do procedimento e as tenses em meios quais se efetivou. Na prtica, o pedido do tombamento foi a soluoencaminhada para enfrentar um impasse que se colocava no plano dos direitosde propriedade do imvel em que se localizava o terreiro. O falecimento do pai-de-santo que fundou o terreiro provocou uma disputa civil pela herana; otombamento garantiu que a herdeira cuja autoridade religiosa se consolidara nasucesso ficasse tambm com a posse do imvel. Assim, o procedimento efetivadorepresentou a explorao de uma via jurdica alternativa para resolver o problema

    da transferncia de propriedade, problema que est diretamente ligado s formasde autoridade nesse universo religioso. To importante quanto isso notar queo tombamento considerou o terreiro como espao cultural e, para isso, envolveuuma fundamentao antropolgica para a sua efetivao. Foi, portanto, a ttulode cultura que esse reconhecimento ocorreu, aceitando-se que a religiopudesse ser assim concebida e considerada.9

    A outra situao ocorre nesta dcada e envolve controvrsia jurdica, noestado do Rio Grande do Sul, sobre o abate de animais em cultos afro-brasileiros10.Em 2003, tornou-se lei estadual um cdigo de proteo aos animais cujo projeto

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    legislativo, em sua primeira verso, trazia proibio a prticas e eventos, inclusive

    cerimnia religiosa, feitio, que implicassem em maus tratos ou morte. Naverso definitiva, no constavam essas expresses do texto, mas houve preocupaode que a nova redao ainda permitisse a interdio de sacrifcios de animaisnos cultos afros. A lei vedava que se ofendesse ou agredisse fisicamente umanimal e exigia que se desse morte rpida e indolor a todo animal cujo extermnioseja necessrio para o consumo. Houve, em seguida aprovao da lei,mobilizao entre lideranas do universo religioso e dos movimentos negros, quedeu ensejo proposio de um texto que eliminasse a possibilidade deinterpretao lesiva aos cultos afro. A mobilizao teve xito, conduzindo nova lei, que acrescentava a seguinte disposio s provises j citadas: No

    se enquadra nessa vedao o livre exerccio dos cultos e liturgias das religiesde matriz africana. Depois disso, a Procuradoria buscou, atendendo a pedido deentidades de defesa dos animais, derrubar a nova lei, mas o Tribunal de Justiaindeferiu a solicitao. A deciso final ocorreu em 2006, culminando um debateque se desenrolou inclusive na imprensa local.

    O que me importa reter desse debate a argumentao sustentada pelosdefensores da legitimidade dos sacrifcios animais. Ela explora fundamentaesde duas ordens. Em uma delas, a prtica de abate dos animais em terreiros defendida por sua aproximao com outras prticas de abate que no teriamnada de rituais. Como garantir que todo animal seja abatido nas condiessanitrias ideais sem cair em precaues absurdas ou medidas discriminatrias?11

    Um ponto importante era a questo da crueldade, levantada mesmo pelogovernador como ressalva para aprovar a mudana no texto original da lei.Novamente, o argumento dos defensores dos sacrifcios animais apelava para aimpossibilidade de uma aplicao literal, pois toda forma de abate para consumohumano implica em algum grau de crueldade. Em suma, at aqui o que temosso modos de legitimao que inserem o sacrifcio religioso em condies maisgerais que cercam o abate animal. Mas em outra linha de argumentao, exatamente o carter religioso que legitima o abate. Religioso, nesse caso,traduz um aspecto de toda uma tradio e opera como um signo distintivo.Significativamente, embora o argumento considere que outras religies envolvam

    sacrifcios animais, o texto legal menciona apenas as religies de matriz africana.Esse segundo vetor cultiva, portanto, as prerrogativas da exceo. Ele nos

    permite ter mais clareza sobre a distino entre os argumentos generalista ediferencialista na base dos modos de presena e legitimao. No primeiro caso,a noo de religio acionada e construda de tal forma que, mesmo quandosua referncia bem especfica (como vimos na discusso sobre liberdadereligiosa), pressupe-se que configura um gnero que pode ser preenchido pormuitas espcies. No segundo caso, a noo de religio diretamente acionadae construda por referncia a condies especficas, sem constituir uma regra

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    pretensamente geral; por isso, a extenso para outras demandas nunca

    automtica. Esse segundo argumento se desenvolveu mais claramente a propsitodas religies afro-brasileiras porque foi sobretudo em torno delas que se articuloua posio que as vinculava fortemente a uma mentalidade, a uma populaoe a uma tradio especficas12. Assim, elaborou-se uma base diferencialista parasustentar a presena dessas religies no espao pblico brasileiro, que distintada base que se configurou para permitir a presena do catolicismo e do espiritismono mesmo espao. Apresso-me em destacar: veremos mais adiante que oargumento diferencialista no funciona apenas para o modo de insero e presenadas religies afro-brasileiras, nem se fundamenta necessariamente em argumentosculturalistas.

    Mas, como a noo de cultura acaba de aparecer de modo relevante, preciso antes notar a polissemia que a acompanha. Esta fica evidente na suaassociao com a idia de patrimnio, mencionada explicitamente na primeirasituao (tombamento de um terreiro) e passvel de ser acionada na outra (areligio como patrimnio de um grupo especfico). Pois h pelo menos doissentidos em jogo. Cultura como patrimnio pode remeter a uma concepocumulativa, que envolve portanto uma gradao, supondo um ponto a partir doqual o acmulo passa a merecer dignificao e valorao. Ela seletiva nosentido de que pode ser utilizada para distinguir certos objetos, invenes,eventos, monumentos, etc. em relao a outros. isso o que faz, por exemplo,um tombamento. Por outro lado, cultura como patrimnio pode tambm sertomada dentro de uma concepo pluralista, que opera, por assim dizer,inversamente, ou seja, para horizontalizar o reconhecimento. Nessa acepo,qualquer grupo possui sua cultura, singular, e valoriz-la enquanto tal umaforma de promov-la (por exemplo, eximindo-a legalmente de uma norma geral).Ainda h mais: a distino entre concepo cumulativa e a pluralista pode seratravessada ou estar subsumida quela entre argumentos diferencialista egeneralista. Aqui, o significante novamente polissmico: pois cultura podeter conotaes particularistas (relativas a um grupo especfico), mas tambm serconsiderada como dimenso constitutiva do social ou do humano (exemplo:quando um templo catlico de valor histrico tombado pelo Ministrio da

    Cultura). Esses vrios sentidos e concepes permitem, portanto, passagens entresi. Os evanglicos, sobretudo, que vo demonstrar isso.

    * * *

    difcil sobrestimar o impacto da insero dos evanglicos na sociedadebrasileira das ltimas dcadas. Seu crescimento numrico talvez seja um aspectomenor. Por conta de sua ao, o campo da poltica, definida estritamente, incapaz de ignorar atualmente o fator religioso. A indicao e o apoio a

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    candidaturas legislativas por parte de igrejas, a mobilizao para a defesa de interesses

    supradenominacionais (caso das frentes parlamentares), a identificao com titularesde postos do Poder Executivo so todos movimentos, ocorridos com sucessos erevezes, protagonizados pelos evanglicos que tm se dedicado ao uso da identidadereligiosa como atributo eleitoral (Machado 2008; Oro 2003). Paralela ouconjuntamente, observamos a presena de agentes referidos como evanglicos naexecuo de polticas pblicas e em parcerias com agncias governamentais (Machado2003). Tal presena, ao mesmo tempo em que se fundamenta na legitimidade decolaborao entre Estado e igrejas, agora aproveitada por mais um segmento docampo religioso (tradicionalmente, catlicos e espritas cumpriam esse papel), beneficia-se de uma abertura mais recente para a participao da sociedade civil nas polticas

    pblicas e de uma valorizao generalizada da atuao em rede no enfrentamentoda questo social (Burity 2006).Em outro plano, a prosperidade, ainda que seja um termo especfico a

    certas de suas vertentes, serve para apontar outras provocaes lanadas pelosevanglicos. Ela identifica, primeiro, a prtica teologicamente fundada que setraduz no pedido de dinheiro durante os cultos. Na leitura de Montero (2006),trata-se de uma inverso do princpio institudo, prevalecente no campo religiosoe socialmente legitimado, da caridade: ao invs de doar, a religio pede. Almdisso, a prosperidade o fulcro de uma mensagem, mais amplamente difundidae atrelada aos signos do mundo dos negcios, como ressalta Birman (2003), querompe os vnculos secularmente estabelecidos entre pobreza, religio etradicionalidade. Tal mensagem se articula em prticas permeadas por milagres,testemunhos e exorcismos, constitudas em dilogo prximo com as refernciaspopulares e, ao mesmo tempo, exercitadas em espetculos midiatizados que soo correspondente virtual da ocupao de espaos pblicos bem concretos pormultides religiosamente mobilizadas (alm de Birman, ver Corten 1996 e Mafra2002). Temos a, novamente na leitura de Montero (2006), uma segunda inverso,pela qual magia e religio deixam de ser opostas e passam a se conciliar.

    Concordo com tudo isso. Apenas no vejo como essas inovaes ouprovocaes se projetariam no plano que viemos acompanhando ao longo destetexto. surpreendente que tamanha movimentao nas relaes entre religio

    e sociedade no consiga gerar transformaes correlatas nos arranjos que regulama insero da religio no espao pblico13. Retomo alguns dos pontos ressaltadosacima para constatar que cada um deles sugere ou uma inadequao (quecorresponde suspeita generalizada acerca da legitimidade dos evanglicos) ouuma adequao (que corresponde defesa que certos segmentos articulamdiante das acusaes), mas jamais uma transformao. Tomemos, por exemplo,a poltica: s acusaes de teocratismo, de intromisso do religioso, os evanglicosretrucam com a obedincia s regras do jogo democrtico. Quando so reprovadospela prtica de uma espcie de estelionato espiritual, replicam com a

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    demonstrao da liberdade que acompanha as doaes dos fiis. Quando so

    criticados pela sua intolerncia, objetam que esto apenas manifestando a suaopinio. No se trata apenas de registrar esse dilogo dissonante, mas de constatarque no temos modificaes legais em resposta a esses pontos de conflito.

    Talvez o que estejamos vendo neste momento, como j argumentei(Giumbelli 2002), um desafio s formas tcitas que organizam a definio doreligioso no Brasil. possvel que esse desafio provoque mudanas importantesnos dispositivos que configuram aquela definio. Ao mesmo tempo, penso serinteressante insistir em uma espcie de investigao indireta, que vai buscar porrespostas no nos mecanismos que se dirigem imediatamente ao religioso, masnaqueles que, ao regular outros domnios, acabam tendo interferncias nele.

    Vasculhemos portanto alguns dos instrumentos legais ou esferas de regulaocom que j nos deparamos. Foi assim que encontrei pontos nos quais a presenados evanglicos j envolve impacto significativo no perodo recente. Refiro-meao Cdigo Civil, que teve nova verso em vigor desde 2003, e a uma proposiode mudana legislativa que se coloca no plano das polticas pblicas voltadaspara a rea da cultura. Juntas, essas ocorrncias sugerem, por formas inusitadas,redimensionamentos nos modos generalistas e diferencialistas de legitimao doreligioso.

    Embora ainda pouco analisada, uma mobilizao em 2003 percorreusobretudo o universo evanglico envolvendo um protesto contra o novo CdigoCivil14. Alegou-se que este criava a possibilidade de um controle das igrejas porparte do Estado, atentatrio liberdade religiosa. Isso ocorreria, continuava oprotesto, porque as organizaes religiosas passaram a ser tratadas como qualqueroutro tipo de associao, uma das modalidades de pessoa jurdica de direitoprivado previstas no Cdigo. O texto legal estipula algumas atribuies do poderpblico sobre a vida das associaes, refora os direitos de membros em relaoaos dirigentes, reitera a proibio de lucro, exige a manuteno dos registroscontbeis e a necessidade de declarao de renda. No tenho condies de mepronunciar sobre se isso representa um maior controle em relao aos dispositivosque j existiam no ordenamento legal brasileiro dirigido ao universo das entidadessem fins lucrativos. Mas o que pode ser problematizado o protesto levantado

    pelos evanglicos preocupados com as condies de funcionamento de suas e deoutras igrejas: estaria havendo um desrespeito ao estatuto jurdico prprio dasorganizaes religiosas.

    O protesto, nesses termos, surpreendente. Pois no vimos que o CdigoCivil anterior no criou diferenciaes entre as associaes religiosas e demaistipos de associao obedecendo exatamente ao argumento de que nenhumarestrio especfica deveria pesar sobre as primeiras? Ocorre que, por fora deoutros dispositivos ou mesmo da prtica administrativa ou da jurisprudnciajudiciria, as igrejas foram sim, em certos aspectos, tratadas diferencialmente.

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    O item mais evidente o da imunidade tributria, que adquiriu estatuto

    constitucional desde 1946, mas j era aplicada anteriormente por conta delegislaes mais especficas. Outros itens tomam novamente como referncia aIgreja Catlica e envolviam: a permisso para formas hierarquizadas deorganizao de coletivos religiosos, o que inclua o reconhecimento depersonalidade jurdica a entidades, como dioceses e parquias, cuja existnciaera regida por leis cannicas; a imprescritibilidade e inalienabilidade dos bensreligiosos, sobretudo os templos, o que significava que os coletivos religiosos noeram restringidos quanto ao recebimento de bens e eram protegidos quando aodesembarao deles (para detalhes, ver Giumbelli 2002).

    Ou seja, de um certo modo, fazia sentido a referncia dos protestantes ao

    estatuto legal diferenciado dos coletivos religiosos; da as precaues contra afalta de distino no novo Cdigo Civil. Como soluo, chegou-se a umamodificao no texto da lei que foi rapidamente definida e acordada,15 e queresultou na seguinte estipulao: So livres a criao, a organizao, aestruturao interna e o funcionamento das organizaes religiosas, sendo vedadoao poder pblico negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos enecessrios ao seu funcionamento (Art. 44, 1)16. Mas a principal inovaoconsistiu na criao de outras duas figuras como modalidades de pessoas jurdicasde direito privado, entre elas a das organizaes religiosas. As conseqncias,a longo prazo, dessa modificao no so evidentes e podem servir de base paramaiores controles; de imediato, contudo, o que ela faz desatrelar asorganizaes religiosas do conjunto de mecanismos regulatrios previstos nomesmo texto para as associaes sem, ao mesmo tempo, providenciarautomaticamente outros que lhes sejam cabveis. Em suma, pretendendo deixarcomo era, o que se conseguiu foi introduzir a especificao dos coletivos religiososdentro da principal lei civil brasileira. Por ora e por conta da redefinio doCdigo Civil, as igrejas figuram como excees norma geral. 17

    A outra situao que enfocarei com envolvimento dos evanglicos oprojeto de lei proposto por Marcelo Crivella, apresentado no Senado em 2005.Ele altera uma lei de 1991, que institui o Programa Nacional de Apoio Cultura (PRONAC), mais conhecido como Lei Rouanet, que permite que

    empresas invistam em projetos culturais parte do que devem como imposto derenda. A proposta de Crivella, se aprovada, possibilitaria que, alm de museus,bibliotecas e arquivos, tambm templos fossem beneficiados com recursos nombito do PRONAC. Houve uma forte reao no meio artstico, sobretudodepois que o projeto foi aprovado pela comisso temtica encarregada de apreci-lo no Senado, em 2007. Essas reaes focaram na denncia da perverso dafinalidade de recursos escassos, e tambm no carter auto-referido da proposio.Tentando remediar o segundo aspecto, o texto aprovado na Comisso de Educaodestaca a abrangncia acatando a emenda de outro senador: templos de

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    qualquer natureza ou credo religioso. Espera-se agora que ocorra a discusso

    em plenrio.18

    Considerando essa controvrsia, gostaria de ressaltar alguns aspectos dasjustificativas apresentadas por Marcelo Crivella. No texto que acompanha aproposta original, destaca-se o papel civilizatrio da religio na edificao dacultura nacional. O seguinte trecho vale ser transcrito: Ora, nada expressamelhor a formao dessa cultura que o caldeamento das diversas religies,seitas, cultos e seus sincretismos, que, durante sculos, moldaram o processocivilizatrio nacional e, ainda mais, por tempos que viro, continuaro a ser obarro e o fermento que construiro os nossos psteros. Ressaltando a contribuiodas crenas, cultos ou religies para a solidariedade social, para a conscincia

    cvica e cultural, reivindica que sejam reconhecidos como parcela indissolveldo patrimnio cultural brasileiro19. J em pronunciamentos ocorridos em meio polmica levantada por sua proposta, Crivella, mesmo mantendo referncia aopatrimnio histrico e cultural brasileiro, restringiu a canalizao dos recursosapenas para restaurao e conservao de templos histricos, ou seja, os jtombados.20

    O jogo de argumentos e formulaes merece um comentrio. A primeiraverso justificativa apelava para o papel civilizatrio da religio, associando anoo de patrimnio concepo cumulativa de cultura. Ao mesmo tempo,lanava mo de uma formulao abrangente sobre o seu objeto. Abrangente emseus termos religies, seitas, cultos e seus sincretismos e abrangente emseus fins permitir que os templos se acrescentassem aos beneficirios derecursos pblicos. Se considerarmos que a Lei Rouanet vem sendo utilizada paragerar recursos aplicados em projetos pautados por uma concepo mais estritade cultura, compreende-se a reao que se levantou no meio artstico. Crivella,em sua segunda verso justificativa, de certo modo, leva isso em conta, poisrecorre a uma restrio calcada na expresso templos histricos. Assim, apenascertas entidades religiosas seriam elegveis, ainda que dentro da mesmaconcepo cumulativa de cultura, compartilhada, alis, pelos usurios correntesdo PRONAC. Ao restringir os benefcios para monumentos histricos, Crivellaaceita a subordinao do religioso ao cultural. Mesmo assim, sua proposta

    reitera e engrossa a existncia de um modo de presena do religioso no espaopblico que passa pela cultura e que pode se adequar a um argumentogeneralista.

    Note-se que a segunda verso no ganhou correspondncia com o textodo projeto atualmente em apreciao. A nica modificao ocorrida propiciaria,como vimos, que qualquer credo fosse contemplado. Isso permitiria, por exemplo,que templos afro-brasileiros pudessem ser reconhecidos como beneficirios. Aomesmo tempo, abriria a possibilidade de uma acepo pluralista para a definiode cultura. De todo modo, destaquemos que a novidade exatamente a entrada

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    dos evanglicos como beneficirios de recursos concedidos publicamente atravs

    de polticas culturais. Consideremos agora novamente a segunda versojustificativa de Crivella. Nela so nominalmente citadas, como exemplos deigrejas histricas, mltiplas igrejas catlicas, presbiterianas, metodistas,congregacionais e batistas. Crivella no menciona terreiros afro-brasileiros eparece ter desistido da formulao abrangente utilizada na primeira versojustificativa. Na sua ltima formulao, alm de algumas igrejas protestantes, a Igreja Catlica que merece distino. Curiosamente, essa deferncia de umevanglico aos catlicos tem um correlato na reviso do Cdigo Civil. Pois amobilizao de lideranas e entidades evanglicas, acima analisada, recebeu aadeso da CNBB, o que foi fundamental para o seu sucesso (cf. Mariano 2006).

    Isso nos leva a uma outra discusso, ocorrida em 2007. Por ocasio davisita papal ao Brasil, foi divulgada a existncia de uma negociao entre oVaticano e o governo local, por iniciativa do primeiro. O foco dessa negociao uma espcie de acordo que definiria o estatuto jurdico de uma srie dequestes atreladas atuao de agentes catlicos e presena do catolicismono espao pblico. Questes referidas ao tema da sexualidade foram levantadasna repercusso das negociaes, sobretudo por conta dos debates correntes sobredireitos sexuais e reprodutivos e o estatuto legal de certas pesquisas cientficas,mas no faziam parte do documento propositivo. Neste, o Vaticano manifestouinteresse em garantir o ensino religioso obrigatrio em escolas pblicas e aentrada de missionrios em reas indgenas. Outros assuntos tm relao diretacom as duas controvrsias recentes que acompanhamos. Pois o documentoapresenta reivindicaes que incidem sobre o reconhecimento de sua forma deorganizao e sobre matria fiscal (confirmao de imunidade tributria), eainda sobre a preservao do patrimnio materializado em seus templos histricos.21

    A idia de um acordo entre Vaticano e o Estado brasileiro pareceesdrxula22. Do ponto de vista da Igreja Catlica, no entanto, faz algum sentido.No Brasil, a hegemonia catlica no espao pblico se construiu recorrendo a umarranjo basicamente liberal, que dificultou a explicitao de um reconhecimentoprivilegiado. Compare-se isso com a situao de alguns pases europeus nosquais as bases para esse reconhecimento so mais slidas (concordatas e outros

    acordos), o que propicia, em alguns casos e em conjunturas recentes (Espanha,por exemplo), ameaas mais claras para o arranjo estabelecido. O sonho doVaticano para o Brasil o de um acordo que garanta solidez sem suscitar asameaas. Mas existem tambm razes de ordem interna. O novo Cdigo Civilproduziu um vcuo jurdico em relao s organizaes religiosas. Um acordopoderia preench-lo. Alm disso, o campo da relao entre cultura e religio atravessado por movimentos cujos resultados, como se viu no caso do projetoCrivella, so incertos. Novamente, um acordo garantiria a proteo aopatrimnio histrico catlico, de grandes propores materiais e simblicas.

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    De todo modo, no deixa de ser inusitado o surgimento de uma via

    excepcionalista como base para a normatividade da religio majoritria no Brasil.

    * * *

    Creio que estivemos sempre s voltas, nos temas e situaes quepreencheram este texto, com a questo das fronteiras. Primeiro, aquelas entreEstado e religio, que no se configuram necessariamente como muro que impedeas relaes. O que procurei destacar foi a constituio de modos de presenaque permitem, legitimamente, o reconhecimento do religioso no espao pblico,modos que dialogam, mesmo que no se definam apenas por ele, com o princpio

    da laicidade. Segundo, tratamos das fronteiras entre foras e segmentos docampo religioso. Novamente, o foco nos modos de presena demonstra a validadedessas fronteiras (na seqncia catolicismo-espiritismo-cultos afro-religioevanglica), mas ao mesmo tempo revela a existncia de relaes e cruzamentosinusitados (pelos quais evanglicos beneficiam catlicos, e vice-versa). Valeressaltar que os argumentos apresentados aqui se valem de empreendimentosinvestigativos dispersos e apostam na aproximao entre situaes aparentementedesconexas. Ou seja: trata-se de temas que merecem maior pesquisa empricae mais discusso conceitual e analtica.

    Mas possvel, desde j, levantar algumas questes a propsito de doistemas. O primeiro relaciona-se com as polticas de reconhecimento. O tema vasto, por conta das contribuies ilustres que tem atrado nas ltimas dcadas,vindas sobretudo da filosofia poltica, mas tambm pela multiplicidade de situaesempricas que vm entrando em sua rbita recentemente, muitas delasacompanhadas por estudos antropolgicos. Minha interveno singela e refere-se apenas a um texto, que toca diretamente na questo do reconhecimento degrupos religiosos (Modood 2000). Nele, o autor baseia-se na realidade britnica,com o foco voltado para a situao de minorias tnicas, mas dirigindo-se adebates mais amplos, acerca de cidadania multicultural e nacionalidadehifenada. Sua proposta resumida nos seguintes termos: (...) existe umaincompatibilidade terica entre multiculturalismo e secularismo radical. Isso

    significa que, em uma sociedade na qual algumas das minorias desfavorecidase marginalizadas so religiosas, uma poltica pblica multicultural demandar oreconhecimento pblico de minorias religiosas (:194). Ele aposta assim emcompromissos institucionais entre Estado e religies, apontando para umsecularismo moderado que possa responder s demandas fundamentadas nomulticulturalismo.

    Modood sabe que est sendo ousado, pois ele mesmo aponta que muitostericos da diferena e do multiculturalismo demonstram muito pouca aberturapara grupos religiosos (:187). Em apoio sua proposta, ele esboa uma anlise

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    que constata, por toda a Europa ocidental, pontos de vnculo, simblicos,

    institucionais, administrativos, fiscais, entre Estados e aspectos do cristianismo(:189). Mas essa anlise mantm um vis monumental, com ateno reduzidapara dispositivos heterclitos de reconhecimento. Talvez por isso Modood excluaa Frana de suas constataes. De minha parte, prefiro encarar a laicidadefrancesa como um regime de reconhecimento do religioso (Giumbelli 2002).Para demonstr-lo, procuro tratar das formas histricas pelas quais as religiese o religioso tornam-se objeto de elaborao estatal. No quadro contemporneo,duas situaes so particularmente reveladoras. Primeiro, a controvrsia sobre asseitas, pois se lhes nega os atributos que se reconhecem s religies. Segundo,o tratamento do isl, que oscila entre crticas que lamentam sua situao na

    Frana e intervenes que buscam corrigir o que se percebe ora como falta, oracomo excesso. curioso que Modood, em seu texto, est particularmentepreocupado com os muulmanos na Gr-Bretanha e pensando neles que insinuaformas especiais de representao para grupos religiosos. Ora, na Frana esse um ponto recorrente das discusses sobre o isl que contam com o envolvimentoestatal.

    A referncia s minorias tnicas como base para polticas dereconhecimento outro ponto sujeito a debate. Pois ele no estava presentenas formulaes clssicas acerca da liberdade religiosa. Locke (1973), porexemplo, no estava pensando em grupos tnicos quando escreveu sua Cartaacerca da Tolerncia. Nas suas vises, os grupos religiosos so formaes voluntrias,que renem os que concordam com as mesmas proposies de f. claro queessa concepo traduz um entendimento bastante particular do que seja umaigreja; mas tambm particular a etnicizao da religio, e o que h decomum a ambas o fato de se relacionarem com formas histricas e concretas.Torna-se ento importante referir a discusso sobre polticas de reconhecimentoa tais formas, sempre plurais. Em se tratando do Brasil, temos uma situaointeressante, pois as minorias religiosas no se comportam da maneira esperada(Giumbelli 2006). Para ficar apenas no caso dos evanglicos: suas reivindicaesrecentes por liberdade religiosa, essas sim tpicas de uma minoria, vm seguidasde aes e estilos que insinuam um projeto de maioria. Parece-me que as formas

    de presena tematizadas neste artigo a propsito dos evanglicos ratificam essadualidade e seus dilemas.

    O segundo tema a merecer provocaes o das definies de espaopblico. Assim como no pautei minha discusso sobre modos de presena poruma perspectiva normativa (e aqui est outra diferena em relao a Modood),no o fao com respeito noo de espao pblico. Sei bem que tais definiesexistem, tanto em verses liberais, quanto em verses habermasianas paracitar apenas duas referncias entre outras do debate recente na filosofia poltica.Prefiro, no entanto, adotar a expresso em sentido o mais lato possvel,

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    percorrendo empiricamente as situaes variadas que podem encarn-la. Isso

    permite apreender as formas histricas com que se constitui ou se pressupe certo espao de interao pblica, sem desconsiderar a existncia de assimetriasentre os elementos que o povoam e sem esquecer que sua produo envolvedimenses que podemos chamar de simblicas. Asad novamente inspirador:

    Os limites livre expresso no so apenas aqueles impostos por leise convenes ou seja, por um poder externo. Eles so tambmintrnsecos ao tempo e espao necessrios construo edemonstrao de um argumento particular, expresso (oucompreenso) de uma experincia particular e mais amplamente,

    formao de sujeitos participantes particulares. (Asad 1999:180-81).

    V-se que no se pode problematizar o espao pblico sem atentar paraas condies dos atores que se localizam na sociedade; a noo, no entanto,coloca permanentemente em jogo a constituio e o papel do Estado. Estamos,assim, ainda s voltas com o argumento da secularizao e suas expectativaspara a relao entre religio e espao pblico.

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    Notas

    1 Uma primeira verso deste texto foi apresentada na 26a. Reunio Brasileira de Antropologia,ocorrida em junho de 2008, em Porto Seguro, em mesa-redonda coordenada por Patrcia Birman,a quem agradeo o convite para essa participao. Patrcia Birman e Joanildo Burity tm sidointerlocutores importantes em debates sobre o lugar do religioso na sociedade brasileira. PaulaMontero, que esteve envolvida na mesma atividade na RBA, autora de um texto (2006) como qual este dialoga intensamente.

    2 A idia que insiste na necessidade de provincializar a Europa forte no campo dos estudos ps-coloniais. Para uma aplicao consistente dela, ver o trabalho de Van der Veer (2001).

    3 Cf. texto da Constituio Federal de 1934: Art. 17 vedado Unio, aos Estados, ao DistritoFederal e aos Municpios: (...) II estabelecer, subvencionar ou embaraar o exerccio de cultosreligiosos; III ter relao de aliana ou dependncia com qualquer culto sem prejuzo decolaborao recproca em prol do interesse coletivo.

    4 Cf. texto da Constituio Federal de 1988: Art. 19. vedado Unio, aos Estados, ao DistritoFederal e aos Municpios: I estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencion-los, embaraar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaes de dependncia ou aliana,ressalvada, na forma da lei, a colaborao de interesse pblico.

    5 Para uma discusso sobre essas aproximaes, baseada em caso emprico, ver Giumbelli (2003).6 Para um acompanhamento detalhado, em dilogo com a literatura pertinente, ver Giumbelli (2002).7 Para anlises sobre a represso legal s religies medinicas, ver Dantas (1988), Maggie (1992),

    Giumbelli (1997).8 Sobre as posies de Arthur Ramos, ver, por exemplo, Dantas (1988) e Giumbelli (1997). Montero

    (2006), ao se referir a esses argumentos, utiliza-se de uma noo significativa: religies tnicas.A expresso, por si s, traz baila uma discusso sobre a relao entre religio e povos indgenas.Ela incide sobre dois aspectos que se desdobrariam em muitos outros: a possibilidade de traduzir

    cosmologias e prticas indgenas como crenas e ritos religiosos, o que operaria uma sobreposioentre cultura e religio; a postura estatal, muito varivel, acerca da atuao de grupos missionriosem terras indgenas, com a possvel incorporao de seus habitantes aos contingentes religiosos queidentificam as misses. A especificidade dessas situaes demanda um tratamento prprio, mas queno deveria se recusar ao dilogo com as questes levantadas neste texto.

    9 At 2005, o IPHAN (Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional) havia formalizadoo tombamento de seis terreiros de candombl, o primeiro tendo ocorrido em 1984 (cf. Cantarino2005). Outras iniciativas vm ocorrendo em mbito estadual e municipal. Destaque para a Bahia,cujo rgo competente estabeleceu o tombamento de sete terreiros entre 2004 e 2006. Em Salvador,uma providncia da prefeitura protege terreiros como patrimnio histrico e cultural de origemafro-brasileira.

    10 Para o debate, com seus argumentos e fases, ver Oro (2005) e Silva Jr. (2007).11 O argumento reedita uma alegao de Locke (1973) em sua Carta acerca da Tolerncia no contexto

    da fundao do princpio da liberdade religiosa. Ver o comentrio de Burity (1997) sobre esse textoe outras conexes com discusses no Brasil.

    12 Joga papel importante nessa construo a associao entre tais religies e demandas identitriasrelacionadas negritude.

    13 Vale notar que at a dcada de 1950, as igrejas e adeptos protestantes, mesmo sofrendo discriminaesem relao a catlicos, no tiveram dificuldades legais para formalizarem a existncia de suasinstituies. Naquela dcada observam-se processos judiciais em resposta aos movimentos quepropagandeavam a cura divina; mas, nesse caso, a defesa de prticas evanglicas podia seguir aspistas deixadas pelos espritas. apenas depois dos anos 80 que temos processos que mobilizamnovas acusaes (estelionato, intolerncia, etc.).

    14 Mariano (2006) acompanhou o protesto e suas conquistas. Seu empreendimento analtico, contudo,

  • 7/22/2019 Espao Religioso No Brasil Giumbelli

    21/22

    100 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 28(2): 80-101, 2008

    no se refere ao que prefiro destacar adiante.15 Cf. Lei n 10.825, de 22.12.2003, disponvel em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/

    L10.825.htm#art44.16 O texto atualizado do Cdigo Civil pode ser consultado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/

    leis/2002/L10406.htm.17 Basta percorrer alguns registros na Internet para perceber que ocorre uma polmica em torno do

    estatuto das organizaes religiosas, pois h quem considere que elas permanecem sujeitas a umasrie de disposies do novo Cdigo Civil. Mas insisto no fundamental de meu argumento: apolmica s existe porque a modificao introduzida no Cdigo criou uma exceo regulatria.

    18 No conheo nenhuma anlise sobre a controvrsia. Baseei-me em notcias publicadas na Internet,onde circulam muito protestos; para o texto do projeto de lei, cf. http://www.senado.gov.br/MarceloCrivella/projetos/pls6905.htm (consultado em 21.04.2008)

    19 Ver o texto da justificativa do projeto em http://www.senado.gov.br/MarceloCrivella/projetos/pls6905.htm

    20 Cf. artigo e entrevista publicados na Internet: http://www.senado.gov.br/MarceloCrivella/artigos/caluniaeverdade.htm e http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/001287.html.(consultados em 21.04.2008)

    21 Vrias notcias foram publicadas acerca do acordo, mas no tive acesso ao seu texto. Minha fontepara o comentrio foi a matria do Estado de So Paulo, 11.05.2007 (http://www.estado.com.br/editorias/2007/05/11/ger-1.93.7.20070511.13.1.xml).

    22 Vale notar que, em 2007, o governo brasileiro rechaou, embora no totalmente, a idia do acordo,em nome da laicidade. Nota de novembro de 2008: tivemos a notcia, aps a concluso deste texto,da assinatura do tal acordo entre o Estado brasileiro e o Vaticano durante a viagem do presidenteda Repblica Itlia. O acordo precisa ser ratificado pelo Congresso Nacional brasileiro. Em relaoaos dois pontos que foram objeto de meu comentrio, esto presentes na verso assinada do acordo(arts. 3. e 6.) Para o texto, ver http://www.mre.gov.br/portugues/imprensa/nota_detalhe3.asp?ID_RELEASE=6031

    Recebido em abril de 2008Aprovado em julho de 2008

    Emerson Giumbelli ([email protected])

    Professor do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro.

  • 7/22/2019 Espao Religioso No Brasil Giumbelli

    22/22

    101GIUMBELLI: A presena do religioso no espao pblico: modalidades no Brasil

    Resumo:

    Toma-se como problema central especificar as formas pelas quais se configuram relaesde reconhecimento do religioso pelo Estado no Brasil no quadro definido pelo regimerepublicano. Em outras palavras, considerando a laicidade por causa dela ou apesardela , como o Estado foi legitimando a presena do religioso no espao pblico. Nocaso da Igreja Catlica, isso ocorreu inicialmente por meio de uma aliana simblicae material e com a ajuda de um regime jurdico de baixo controle estatal. No caso doespiritismo, ocorreu em meio a uma batalha pela legitimidade de prticas com algumsentido teraputico. No caso dos cultos afros, envolveu a aceitao de um argumentoculturalista. Partindo do delineamento histrico de diferentes modalidades dereconhecimento, busca-se a caracterizao do que ocorre atualmente, considerando a

    presena dos evanglicos no espao pblico. De modo geral, trata-se de problematizara definio de fronteiras no interior do campo religioso e nas relaes entre religio,sociedade e Estado no Brasil.

    Palavras-chave:laicidade, campo religioso brasileiro, espao pblico.

    Abstract:

    This paper analyzes the forms of recognition of religion by the State in Brazil in theframework defined by the Republican regime. In other words, considering the secular

    nature of government and because or despite it it analyzes how the State gavelegitimacy to a religious presence in public space. In the case of the Catholic Church,this initially took place by means of a symbolic and material alliance and with the helpof a legal regime with low government control. In the case of Spiritism, it took placeamid the battle for legitimacy of practices with some therapeutic element. In the caseof African cults, it involved the acceptance of a culturalist argument. Based on thehistoric delineation of different modalities of recognition, it seeks to characterizecurrent actions, considering the presence of Protestants in public space. In general, itinvolves analyzing the definition of frontiers within the religious field and the relationsbetween religion, society and State in Brazil.

    Keywords: secularism, Brazilian religious field, public space.