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O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO
de Hermann Hesse – Uma dialética reflexiva
PROFa. INGEBORG HARTL
O Jogo das Contas de Vidro (Das Glasperlenspiel) é uma obra dialética de
reflexões profundas, na qual sobressai um racionalismo conflitante, abordando os mais
variados assuntos científicos e espirituais ou políticos. A história em si não é o mais
importante. Serve como meio de expressar o pensamento do autor em diálogos com
personagens ou em longos monólogos.
José Servo, Josef Knecht (em alemão), Josephus Famulus (em latim) ou Dasa, (em
hindu) significa servo. Nome sugestivo para alguém que está disposto a servir, ser útil. Fora
escolhido por seu mestre de música para estudar numa escola de elite em Cela Silvestre,
Castália e no final do curso deveria entrar para a Ordem.
O Jogo..., expressa valores e conceitos do espírito, rege as ações e a vida dos
personagens. Tem como objetivo supremo a Ordem. Todo o romance baseia-se neste jogo.
A música desempenhava uma importância fundamental. Só através dela, podia-se dominá-lo
e vencê-lo. Tomavam parte dele apenas pessoas de certas camadas culturais, exercendo uma
grande influência sobre elas. A compreensão e as regras desse jogo podiam levar à
perfeição. O jogo tinha fórmulas matemáticas e exigia uma grande concentração. Os
ganhadores recebiam contas de vidro de diversos tamanhos e cores, guardavam-nas,
trocavam-nas e com o tempo tinham um colar. Era uma honra possuir muitas dessas contas.
Num diálogo José Servo pergunta ao mestre, por que certas profissões são chamadas
de liberais. O mestre diz:
Tu tens o nome Servo, meu caro, e talvez por isso a palavra “liberal” possua para ti
tanto encanto. Mas neste caso não a leves tão a sério! (P.49)
O mestre continua: (citação)
A liberdade dessas profissões consiste em serem escolhidas pelo estudante. Isso dá
uma aparência de liberdade, apesar de na maioria dos casos ser a escolha mais da
família...P.49
Mais adiante ele diz: (citação)
Caso eles passem nos exames, recebem seu diploma e poderão exercer sua profissão
com aparente liberdade. Serão porém escravos de poderes baixos, vão depender do sucesso,
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do dinheiro, do seu orgulho, da procura de fama, da simpatia ou antipatia que despertarão
nos outros. P.49
Hesse sugeriu, certa vez, que o leitor lesse apenas o que estava escrito e não medir o
que pensava a respeito. No entanto, não é tão simples seguir a sugestão do autor, devido a
complexidade que há em certas partes do texto e que cada um tende a dar uma interpretação
segundo o seu próprio grau de compreensão.
Certa ocasião José lembra-se de São Cristóvão e diz:
Este grande servo sempre me agradou, e eu devo ser um pouco parecido com ele...
Pesquisei longamente e hesitei, sem saber a que senhor eu deveria servir. P.322
No decorrer da obra podemos perceber uma preocupação constante: a procura da
perfeição do EU interior. Não se deve procurar a perfeição externamente, em determinado
lugar, mas trabalhar o nosso íntimo para encontrá-la. Poderia resumir-se esta idéia com as
seguintes palavras: simplicidade, humildade, procurar, encontrar, aperfeiçoamento moral,
perfeição interior e paz. Parece que cada escola que José concluía, contribuía com um grau
para sua elevação espiritual. Essa intenção de melhorar é fundamental e constante na obra.
Seu mestre aconselha o seguinte: (citação)
Tu ...deves aspirar ... ao aperfeiçoamento de ti próprio. A Divindade está dentro de ti,
e não em conceitos e livros. A verdade é vivida, e não ensinada teoricamente. Prepara-te
para as lutas, José Servo...P.57
num diálogo com Ferromonte diz: (citação)
De vez que nós em Castália não somos nem uma congregação cristã, nem um
mosteiro hindú ou taoísta, parece-me que a incorporação entre os santos, numa categoria,
portanto puramente religiosa, não seria permitida para um de nós... P.203
Desta forma é representada, no enredo, a espiritualidade humanística, mas que não
está ligada a nenhuma religião.
José, já mais velho, ao pedir demissão do cargo de Magister Ludi, compreende-se
melhor o significado do seu nome na obra - o de servir: ( Citação)
Solicito... destinar-me para uma escola comum pelo país a fora... e permitir-me
reunir nesta escola aos poucos uma equipe de jovens confrades, um grupo de professores
que me haveriam de seguir...
O mestre de música, diz uma frase das regras da Ordem para meditar: (citação)
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... Cada grau na escala dos cargos não é um passo para a liberdade, mas para um
compromisso. Quanto maior o poder conferido pelo cargo, mais severa a servidão. Quanto
mais forte a personalidade, mais reprovável a vontade arbitrária. P105
José lutou contra todos os poderes. No início com a escola, depois com as igrejas e no
decorrer da vida com todas as organizações políticas e religiosas. Foi combatido e advertido.
Quando jovem acontecia que: (citação)
... a custo conseguia conservar o equilíbrio psíquico.P.71
E diz mais: (citação)
Tive de passar por uma dessas crises em que toda espécie de estudos e de esforço intelectual
propriamente dito se tornam duvidosos e desprovidos de valor para nós...P.72
Quem ousa pensar de maneira independente corre grande perigo de tornar-se um
“Outsider” e será condenado a levar uma vida à margem da sociedade. Plínio, de
personalidade marcante, considerava-se um “Outsider” e revolucionário dentro de Castália,
achou melhor sair para o mundo e tornar-se um político. Queria influenciar as massas,
tornar-se famoso. Por essa razão perdeu a confiança, mais tarde, do seu único filho, Tito.
(citação)
... ele faz apelo a uma voz dentro de mim, que às vezes muito se inclina a dar-lhe razão.
Provavelmente é a voz da natureza, e ela está em aberta contradição com minha educação e
as concepções que nos são usuais. P.68
Plínio foi indiretamente responsável pela decisão de José de abandonar Castália. Era
uma espécie de consciência maior e através dele conseguiu a libertação. José diz: (citação)
Já tinha sido feito aquilo que eu podferia fazer aqui, no meu posto, como indivíduo..
Era tempo de acabar com isso. P.327
Em parte sem o saber, ele ajudou nesta empreitada...Tornou possível compreender e
confessar a mim mesmo, que eu teria chegado ao fim de minha carreira aqui...
Hesse construiu esta ficção num certo tempo do futuro. A cultura espiritual, que então
reinará, tornará todos aptos a servir.
O personagem José em O Jogo das Contas de vidro nos traz uma idéia de
abstração e uma idéia paradigmática. A técnica não faz o mundo melhor, no máximo poderá
ser útil, mas não melhora o relacionamento humano.
José conta a sua vida em Castália até chegar a ser Magister Ludi. Quando se desliga de
Castália, não quer melhorar o mundo mas apenas difundir seus conhecimentos. Ele diz:
(citação)
3
Via minha missão em alargar e aquecer lenta e suavemente... a vida e a mentalidade
castálica, sem ruptura com a tradição e em transfundir-lhe um sangue novo, haurido no
mundo e na história. P.327
A figura do padre Jacobus, segundo Hesse, é uma homenagem a Jacob Burckhardt, um
historiador suiço, e o Magister Thomas é uma alusão a Thomas Mann. No enredo o padre
Jacobus tinha uma grande influência sobre José Servo. Vivia no convento Rochedo de Santa
Maria e era uma espécie de mediador entre Servo (Knecht) e o mundo secular. José comenta
o seguinte: (citação)
Meu professor Jacobus despertou em mim um amor por este mundo, que não cessava
de crescer e procurar alimento e em Castália nada havia que o pudesse nutrir.p.326
Durante o tempo de magistério em Rochedo Santa Maria, na preciosa companhia do
Padre Jacobus, fiz a descoberta de que eu não era somente um castálico, mas também um
homem, e o mundo inteiro me dizia respeito... Esta descoberta suscitou anseios...a que eu em
Castália, não tinha o direito de satisfazer em hipótese alguma. P.326
As longas conversas com o pe. Jacobus são uma tentativa de aproximar
Castália da Igreja Católica. Nessa troca de idéias, José sentiu que não poderia isolar-se em
Castália e guardar para si tudo que adquirira em conhecimentos. Através do pe. Jacobus
descobre o valor da ciência e desta forma percebe que Castália é um lugar perfeito, mas
estagnado e o mundo exterior continua a modificar-se. A união desses dois mundos fazia-se
necessária. Por isso, José pede demissão das suas funções de Magister Ludi, para ser
educador.
A morte de José Servo pode ser considerada como um alerta. Há algo mais forte nas
entrelinhas – a de conduzir o jovem Tito para os valores reais. O gesto involuntário significa
uma advertência que conduz à meditação. Representa um ensinamento muito maior do que
todas as pregações que poderia vir a ouvir. Pois a dor da perda faz muitos recaírem em si
mesmos e elevar-se como que lançados por uma alavanca para uma nova visão de mundo.
José serviu até com a própria morte.
A obra é divida em 14 capítulos. O décimo quarto conta a história de três lendas.
O romance aborda vários temas, mescla filosofia, história, psicologia e psicanálise. Os
treze capítulos que abordam a vida de José Servo são uma grande introdução ao décimo
quarto. Percebe-se nele que tudo é “maia”, uma grande ilusão, e, que só a vida dedicada ao
espírito é verdadeira.
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Concluindo essas reflexões podemos considerar a obra O Jogo das Contas de Vidro
um pretexto para expressar idéias ligadas também ao jogo do poder, ao jogo da vida no qual
todos nós estamos inseridos. Vencerão aqueles que melhor dominarem as regras desse jogo.
Tudo isso pode levar a um denominador comum: os métodos universais de valores e conceitos
do espírito em busca da verdade. Não adiante isolar-se num mundo à parte. Tem que haver
uma integração e uma cooperação com aqueles que estão ao nosso redor. Não é num
determinado lugar que encontraremos o nosso Eu. A busca é interior e a evolução é constante.
O homem não pode ficar estagnado e fechado num círculo (Castália) mas deve estar sempre
pronto a galgar novos horizontes. Até a morte representa a abertura para uma nova vida.
A amizade de José Servo pelo Pe. Jacobus representa muito mais. É nessas reflexões
que Hesse depura as suas próprias dúvidas. O padre resume toda a sua vida escolar e todos os
contatos que ele teve com a Igreja Católica. As idéias de Castália são em parte, os
conhecimentos trazidos da Índia. São dois pólos preponderantes que por fim fundem-se em
harmonia num só.
Hesse no final de sua vida encontrou a verdade que tanto buscara e através da
psicanálise encontrou o seu equilíbrio.
Thomas Mann escreveu sobre O Jogo das Contas de Vidro:
Esta... obra, intelectual em alto nível, é cheia de tradição, de entrosamento, de
recordação e mistério. Eleva o sentimento íntimo a um novo plano espiritual e mesmo
revolucionário num sentido anímico e poético: é de uma forma autêntica e fidedigna
precursora do futuro.
BIBLIOGRAFIA
CARANDELL, José M., ed. Ulisséia, trad. Manuel de Seabra: Hermann Hesse e sua obra.FROMM, Erich; SUZUKI, D.T.; Martinho, R. de – Zen Budismo e Psicanálise, ed. Cultrix, S. Paulo,
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