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ESPELHO DE CLIO: DAS ILUSÕES DA PERFEIÇÃO À CONSCIÊNCIA
“ESTÉTICA”.
ROBERVAL AMARAL NETO1
RESUMO:
Clio: na mitologia grega, é filha de Zeus com Mnemósine e musa da história. Neste trabalho,
propomos uma investigação sobre a real imagem de Clio refletida no espelho. Comumente ela
é considerada esteticamente perfeita/linda; a mais perfeita entre as musas. Porém, ao longo do
percurso histórico, existem fortes indícios de que a imagem refletida de Clio, no espelho,
apresenta algum(s) problema(s) físico/estético(s). É exatamente essa investigação que
propomos neste trabalho: analisar se Clio apresenta uma imagem perfeita e/ou deformada no
espelho do tempo. Clio, nesta perspectiva, marcaria a ligação entre os homens e sua
experiência no tempo. Para tanto, alicerçamos esta pesquisa em torno de debates, discussões e
autores contemporâneos sobre as possibilidades, características, perspectivas e limites do
conhecimento histórico do tempo presente. E a partir deste recorte temático (a tessitura da
história do presente), propõem-se o debate sobre grandes temas historiográficos da atualidade:
modernidade, pós-modernidade, história, literatura, linguagens, testemunho oral e a reescrita
constante da história. E para consubstanciar a discussão faremos o diálogo com diferentes
pensadores como, por exemplo: François Hartog, Durval Muniz, Clifford Geertz e François
Lyotard na tentativa de buscarmos respostas às indagações apontadas em forma de hipóteses,
como: (01) Clio, apresenta, sim, problemas físico/estéticos verificados ao longo do tempo.
(02) os homens, fascinados pela beleza de Clio, não perceberão as deformações da musa da
história. (03) verificamos, a partir da década de 1980, uma curva ascendente da testemunha
comparada à época do início da Era Cristã.
PALAVRAS-CHAVE: História; teoria; epistemologia; história oral; testemunho.
1 INTRODUÇÃO
Na definição usual/coloquial espelho é: “s.m. Qualquer superfície de vidro, metal
polido, que reflete imagens”. (BUENO, 2013, p. 319) 2. Clio: na mitologia grega, é filha de
Zeus com Mnemósine e musa da história. Neste trabalho, propomos uma investigação sobre a
1Professor/EBTT do IFMA; mestrando em História pela PUC/GO; bolsista da FAPEG. E-mail:
[email protected] 2 BUENO, Silveira. Dicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 2013.
real imagem de Clio refletida no espelho. Comumente, ela é considerada esteticamente
perfeita/linda; a mais perfeita entre as musas. Porém, ao longo do percurso histórico, existem
fortes indícios de que a imagem refletida de Clio, no espelho, apresenta algum(s) problema(s)
físico/estético(s). É exatamente essa investigação que propomos neste trabalho: analisar se
Clio apresenta uma imagem perfeita e/ou deformada no espelho do tempo. Para iniciar essa
aventura, das mais difíceis no campo das análises epistemológicas, podemos observar que o
título deste ensaio não é original. O excelente trabalho de Francois Hartog, o Espelho de
Heródoto (1999)3, vem antes desta investigação e de forma magistral trabalha a idéia de
alteridade e representação do outro na historiografia ocidental, buscando os limites e nuances
da narrativa histórica. Nas pegadas de Hartog, buscamos as características, possibilidades e
limites da deusa-musa da história: Clio4- filha majestosa dos deuses, criada para lembrar os
homens do papel da história: decifre-me ou lanço-te no mar do esquecimento, atirando-o ao
limbo. Clio, nesta perspectiva, marcaria a ligação entre os homens e sua experiência no
tempo. Ao promover a relação entre deuses e homens, os deuses não queriam ser esquecidos
pelos humanos, mas lembrados ao longo dos tempos. Porém, ao figurar a importância dos
deuses, nas suas concepções/respostas míticas, os homens, não representaram apenas suas
qualidades/defeitos, mas também aquilo que mais se assemelhavam aos homens: seus
conflitos, perguntas e respostas para o mundo e também, todos os conflitos existenciais.
Ao promover a simetria mítica, entre homens e deuses, os imortais não só abriram
caminho para o esquecimento das divindades antigas, como abriram uma brecha para a
superação histórico/existencial dos deuses mitológicos. Isso ocorreu por meio da força de
mudança dos mortais: incrível capacidade de adaptação e mudança comportamental e natural,
instrumentalizada pela técnica, ciência e razão. Em fim, do espírito crítico/inventivo dos
humanos. Sobre essa relação mítica a professora Pesavento esclarece que,
No Monte Parnaso, morada das Musas, uma delas se destaca. Fisionomia serena,
olhar franco, beleza incomparável. Nas mãos, o clarinete da escrita, a trombeta da
fama. Seu nome é Clio, a musa da História. Neste tempo sem tempo que é o tempo
do mito, as musas, esses seres divinos, filhos de Zeus e de Mnemósine, a Memória,
têm o dom de dar existência àquilo que cantam. E, no Monte Parnaso, cremos que
Clio era uma filha dileta entre as Musas, pois partilhava com sua mãe o mesmo
3 HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. 4“Clio era uma musa filha de Mynemosine (memória). Ela patrocinava a literatura exemplificada pelos hinos e
panegíricos. Com sua trombeta, proclama aos ares os nomes dos heróis, como suas façanhas. No Império
Romano, Clio tornou-se musa inspiradora da história”. (QUADROS, 2007, p. 15). “Musa da história e da
criatividade, conhecida como a proclamadora, cujo nome representa celebrações e perpetuidade. Personificada
em uma jovem com uma coroa de louros, trazendo em sua mão direita uma trombeta e na esquerda um livro de
Tucídides ou um pergaminho. Ademais, têm como símbolos o clarim e a clepsidra e descansa serenamente sobre
o globo terrestre ao lado do tempo”. (SOARES, 2012, p. 01)
campo do passado e a mesma tarefa de fazer lembrar. Talvez, até, Clio superasse
Mnemósine, uma vez que, com o estilete da escrita, fixava em narrativa aquilo que
cantava e a trombeta da fama conferia notoriedade ao que celebrava.
No tempo dos homens, e não mais dos deuses, Clio foi eleita rainha das ciências,
confirmando seus atributos de registrar o passado e deter a autoridade da fala sobre
fatos, homens e datas de um outro tempo, assinalando o que deve ser lembrado e
celebrado.
Quais seriam hoje, neste novo milênio, os atributos e o perfil de Clio, a favorita das
musas? Cremos que, hoje, sua faceta mais recente e difundida seja aquela da chama
História Cultural. (PESAVENTO, p. 07, 2004).
Quais seriam, então, os novos desafios para Clio, nossa musa perfeita? Seria
passar da história social para a história cultural? Ou a tarefa seria mais desafiadora ainda? Ou
seja, a interligação das diversas dimensões do real, buscando a conjugação da cultura, em rede
de significados, como propõe Gertez (2000)5, para que possamos navegar na barca da história,
não excluindo os pólos da natureza e cultura, mas interligando-os, oscilando nas interseções,
no entre lugar, da história; na terceira margem6 do rio caudaloso e infinito da história?
Cremos que esse seja um dos caminhos, a ser trilhado e defendido, pela nossa deusa-musa
neste começo de século.
1.1 A AVENTURA EPISTEMOLÓGICA: CLIO EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE
Ao longo do percurso temporal da humanidade, os homens tiveram êxito com as
lições históricas de Clio: instrumentalizaram a memória, em narrativas pessoais e épicas, na
tentativa de estabelecer um sentido para a existência humana: conectar experiência/passado
com sentido/presente. E para isso estabeleceu diversas formas de organização no espaço-
tempo. Uma dessas organizações, que chegaram aos nossos dias e se tornou a forma
dominante de organizarmos as idéias no ocidente, foi à organização do saber grego e, por
conseguinte, a lógica platônica das essências, a organização e instrumentalização do Estado-
nas suas diversas roupagens-, o surgimento do cristianismo- alterando toda a forma de
concebermos a idéia do sagrado e da salvação humana. Essas idéias, da construção do
pensamento ocidental, chegaram até a nossa época: a modernidade7- esta nova era histórica
5GERTEEZ, Clifford. Interpretação das Culturas. Buscamos analisar a cultura articulada nas redes de
significados. A partir das concepções de Gerteez percebemos que sem a cultura não acordamos, não falamos, não
estabelecemos signos de comunicação. A cultura não existe, ela faz parte da nossa invenção, da invenção do
próprio homem. 6 Nesse sentido, concorda-se com as idéias de Durval Muniz (2007) sobre a terceira margem do rio. Na metáfora
estabelecida entre o rio e a história percebe-se uma sintonia fina entre as águas, o leito do rio, os processos
históricos e as ações humanas na construção da história. 7A idéia de modernidade, aqui ancorada, é a concepção construída a partir de Kant. Onde se alojou um abismo
entre o sujeito do conhecimento e o próprio “real”; onde a realidade (construída pelo pensamento e linguagem)
não corresponde ao simples reflexo do real estudado. A Modernidade trouxe um ‘grande problema
trouxe, consigo, toda a força do pensamento ocidental formado, séculos antes, no mundo
clássico. Essas idéias, da antiguidade clássica, entraram em simbiose8com o mundo novo que
estava se formando. È resgatado, nesse momento, idéias gregas de objetividade,
racionalização e um poderoso pensamento platônico das essências das coisas. Incluí-se,
também, a construção da história como ciência do passado- com todos os rigores e estatutos
de uma ciência exata, onde sua idéia mais cientificista encontra-se na Escola Metódica Alemã.
No atual momento histórico, com a crise das grandes metanarrativas- onde a história se
encontra em uma de suas maiores encruzilhadas epistemológicas: a reconstrução e/ou
invenção do conhecimento histórico não corresponde mais à cópia fiel do real (como
acreditavam os racionalistas do século XVII e XVIII), sendo, portanto, uma imagem
desfigurada/estranha da realidade. Porém, contrário a essa visão- que trabalha a distorção
plena do real, com o conhecimento que se constrói a respeito desse real- chamada de pós-
moderna; destacamos a fragilidade epistemológica de afirmarmos o surgimento, e alojamento
permanente, dessa nova condição histórica.
Seguindo o viés epistemológico, contrário àqueles que defendem a pós-
modernidade, expomos as contradições máximas de nossa época- a modernidade: a distorção
plena entre o real estudado e o conhecimento produzido sobre o real. Sobre essa assimetria
entre passado e presente Durval nos afirma que,
Nasce uma nova cosmovisão, uma nova teoria do conhecimento, em que este não é a
imagem do mundo, mas chave para possíveis mundos. Eles enunciam o fim do
realismo metafísico que, durante muito tempo, afirmou a capacidade do homem de
conhecer o mundo tal como ele é, que pensou a verdade como uma operação de
correspondência entre a representação, o enunciado e a realidade independente do
sujeito, uma realidade como dado objetivo. (DURVAL, 2007, p. 59).9
epistemológico’ para a construção/criação do saber. A concepção desta pesquisa, aqui exposta, transita na
contramão daquelas que vislumbram que a crise do conhecimento histórico começou a partir da década de
1950/60, com o desenvolvimento das armas de destruição em massa, da corrida espacial durante a guerra fria,
protótipos de computadores, robótica, a química fina, comunicação de longa distância, a era do microchip, a
crise do padrão fordista e a conseqüente “acumulação flexível” e os movimentos sócio-culturais e a crise do
marxismo real. O problema da construção do conhecimento detectado por Kant e Hegel (século XIX) ainda não
foi superado, portanto, não devemos deslocar a idéia de modernidade para a suposta idéia/condição histórica da
pós-modernidade, que inclusive, não tem consenso acadêmico. 8Termo da biologia: “associação de dois seres vivos (especialmente vegetais) na qual há benefícios recíprocos;
vida em comum”. (BUENO, 2013, p. 715). Procura-se evidenciar a construção da modernidade a partir da
conjunção de diversos elementos que formam o tecido do nosso tempo. 9ALBUQUERQUE JR., Durval. História: a arte de inventar o passado. Bauru. São Paulo: EDUSC, 2007. Neste
texto (cap.02), Durval Muniz analisa a constituição contemporânea de invenção do saber histórico. Porém, dar o
melhor de sua analítica para fundamentar distância máxima entre o real e a realidade analisada/ criada pelo
historiador para afirmar que tais distorções na apreensão do real é algo novo, recente, isto e, provém do início da
Segunda Guerra Mundial. Ao referenciar o filme de Akira Kurosawa, Rapsódias de Agosto, ele coloca a
Segunda Grande Guerra como divisor de águas entre a modernidade e uma nova condição histórica. Todo o
abalo simbólico provocado pelos cogumelos atômicos, durante a Segunda Grande Guerra, levou a falência do
projeto humanista/modernidade e a conseqüente gestação de uma nova era histórica: a pós-modernidade. Porém,
Ora, a crise do sujeito do conhecimento não começou na década de 1950/60 como
esboçado, anteriormente, por Durval Muniz. Afirmamos sim, que ela começou bem antes, no
século XIX. Ankersmit (2012) nos expõem sua visão consciente, que percorre o sentido
contrario àqueles que defendem a existência a pós-modernidade, pela constatação da
existência de um vazio entre o sujeito do conhecimento e o real:
Pense no próprio Hegel. Graças a sua convicção idealista de que a história foi
formada pelo mesmo instrumento que o indivíduo em sua disposição para entender a
realidade sócio-histórica- a Razão – Hegel foi bem sucedido em construir uma ponte
no vazio que ele demonstrou existir entre a realidade e o indivíduo. Contudo, em
certo sentido, a suposição está correta. Paradoxalmente, foi precisamente esta
transição das certezas do Iluminismo para a atormentada luta do Romantismo com a
natureza da realidade sócio-histórica que deu à luz a historiografia moderna. O
passado se tornou estranho, irrevogavelmente fechado em si mesmo e, por
conseguinte, interessante. A descoberta da distância entre indivíduo e a realidade
sócio-histórica fez o homem ocidental consciente de seu passado com uma
intensidade até então desconhecida. O passado tornou-se um enigma, e a
historiografia moderna foi criada para ir de encontro ao desafio. (ANKERSMIT,
2012, p. 36- 37)10.
Uma vez colocada a visão da historiografia moderna, e não pós-moderna do
conhecimento histórico ocidental, podemos caminhar para outra estação de nossa
argumentação, na tentativa de saber/compreender se a musa-deusa da história, Clio, tem de
fato um problema físico/estético que comprometa sua observação/fruição do saber histórico: a
constante reescrita do conhecimento historiográfico. Fazemos e reelaboramos a escrita
histórica por duas razões, que são ao mesmo tempo peculiares e característicos ao metier
historiográfico. Em primeiro lugar, porque os homens e as sociedades humanas mudam ao
longo do tempo, isto é, há questões na história que só se faz compreender ao longo da
sucessão temporal. Portanto, “[...] Os homens e as sociedades humanas, por serem temporais,
não permitem um conhecimento imediato, total, absoluto e definitivo. A história só se torna
visível e apreensível com a sucessão temporal. [...]”. (REIS, 2002, p. 07), trazendo a
necessidade de se reescrever a história a partir do momento histórico específico (tempo
presente) e do lugar social (instituição) em que se produz a pesquisa. Em segundo, porque o
não observamos argumentos filosóficos fortes nem referências a grandes pensadores para firmar e fundamentar
sua tese de pós-modernidade. 10 ANKERSMIT. Flankflin Rudolf. A escrita da história: a natureza da representação histórica. Londrina: Eduel,
2012. Texto riquíssimo na construção da teoria e metodologia da história por tematizar questões de grande
relevância para o estatuto da historiografia moderna. Questões como história, tempo, uso da linguagem na escrita
da história, romantismo, paradigma iluminista e construtivismo. Expõem de forma muito clara argumentos que
afirmam a solidez da nossa condição moderna
.
conhecimento muda, isto é, novos documentos, teorias, metodologias e “novos pontos de vista
levam à reavaliação do passado e das suas interpretações são estabelecidas. Há uma
transposição para essa nova linguagem do patrimônio do passado. O passado é, então,
repensado e ressignificado de forma renovada e fecunda. [...]”. (Id. p. 09- 10). Toda essa
avalanche, de novas expectativas em torno da reelaboração da história, é incorporada ao
“novo estatuto” da historiografia e, conseqüentemente, à reescrita da história, fazendo surgir
novos questionamentos, problemas, perguntas e, por sua vez, tentativas de respostas.
Seguindo esse raciocínio, a primeira grande tentativa na Era Moderna, de responder aos
grandes desafios propostos pela história foi tentada pela Escola Metódica, no século XIX11.
Essa escola historiográfica mesmo tratando o conhecimento histórico como científico
imutável e fixo, nos legou pontos de ancoragem e referências metodológicas, ainda hoje
usadas por muitos pesquisadores, foram construídas nos embates efervescentes do ambiente
europeu da época moderna como expressão da racionalidade moderna de controlar e explicar
questões seculares.
Outras correntes historiográficas como: Marxismo, Estruturalismo, Escola de
Frankfurt e Escola dos Annales foram, também, desenvolvidas e/ou criadas na transição do
século XIX para o século XX. E, conseqüentemente, construíram respostas/soluções na
tentativa de responder as angústias contemporâneas, como por exemplo: as imagens criadas
em torno do real que se mostrava cada vez mais desfocado, embaçado e longe de ser
apreendido na sua lógica interna. A crise provocada pelas guerras mundiais e pelo
desdobramento dos conflitos entre socialistas e capitalistas, incluindo as reformas sociais
capitalistas conhecidas como Welfare State12 e as variadas formas de violências contra os
homens (crimes contra a humanidade: prisões ilegais, torturas e massacres de inimigos do
Estado) cometidas tanto por capitalistas quanto por comunistas que chegaram ao poder
11 O texto, aqui analisado, MARTINS, Estevão de Rezende. (org.). A História pensada: teoria e método na
historiografia européia do Século XIX. São Paulo: Contexto, 2010. , parte da premissa de que Leopold Von
Ranke foi fundamental na construção da história como campo de conhecimento estabelecendo seus pressupostos
metodológicos, teóricos, temáticos e seu lugar no panteão das ciências modernas, buscando construir algo novo
tentando ir além do racionalismo cartesiano e do idealismo hegeliano na tentativa de criar uma ciência imparcial,
objetiva e no contexto do éculo XIX não se “contaminasse” com as paixões revolucionárias atrapalhando, assim,
o resultado da pesquisa. Porém, a conseqüência que adveio dos seguidores de Ranke foi catastrófica:
cristalizaram a história como uma ciência exata e perderam a nossa processual e dinâmico do conhecimento
histórico. 12Na obra: Problemas Estruturais do Capitalismo (2002), o pensador contemporâneo alemão Clauss Offe trabalha
a incompatibilidade da democracia com o capitalismo. O curto período histórico em que isso foi possível foi nas
décadas de 1950/60 em que o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos da América, impôs o padrão de
consumo/democracia para os países do Primeiro Mundo e criou “way of life”. Porém, essa compatibilidade foi
em decorrência do perigo vermelho que o bloco comunista impôs aos dirigentes capitalistas, com a idéia de
revolução mundial. Quando esse perigo passou, e veio à Nova Ordem Mundial, à compatibilidade se
transformou em extrema incompatibilidade.
corroboraram com a presença, cada vez mais angustiantes, da falta de referências concretas e
seguras para firmar às certezas homem contemporâneo. Uma das alternativas, ao modelo de
sociedade vigente e forma de construção de novos paradigmas, se deu logo após a Segunda
Guerra. A grande revolução comportamental do século XX, maio de 1968, trouxe os
movimentos de juventude13, na Europa e Estados Unidos, que buscavam atender às novas
demandas sociais, principalmente, das minorias e dos excluídos, saindo do binômio
capitalismo x socialismo. Esses movimentos buscaram soluções pragmáticas para problemas
emergenciais, tais como: a descolonização/incorporação do terceiro mundo, luta dos negros
americanos pelos direitos civis, movimento ecológico e feminista. Esses movimentos, na sua
lógica interna, contribuíram para a construção de um novo tipo de historiografia: os estudos
históricos que valorizam a cultura como dimensão que entrelaçava todos os níveis do real,
buscando alternativas ao sectarismo acadêmico. Porém, persistem, ainda, na acadêmica nos
dias atuais, tendências e posturas historiográficas ligadas às grandes metanarrativas14 que
nada avançam no debate nem na superação dos grandes problemas epistemológicos das
ciências humanas.
1.2 O FIM DAS CERTEZAS ABSOLUTAS: CLIO EM BUSCA DE UM ELO
O momento em que os grandes paradigmas entraram em crise15, na segunda
metade do século XX, as correntes epistemológicas do conhecimento se voltaram para o
passado (século XIX) na tentativa de entender/compreender o estatuto das ciências humanas-
as matrizes epistemológicas, do conhecimento da realidade. Seguindo esse viés interpretativo,
busca-se compor, no presente, o quadro teórico-metodológico que melhor compreenda, na
nossa visão, os grandes problemas histórico/filosófico do nosso tempo, a saber: o
deslocamento/desfiguração total entre o real e o conhecimento produzido sobre essas
13HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.p. 293. Coloca os limites
dos movimentos de maio de 1968 e a não deflagração da revolução, na Europa, foi pelo fato dos estudantes, por
mais numerosos que fossem não podiam fazê-la sozinhos. O grande mérito, desses movimentos, seria em servir
de fonte detonadora para iniciar movimentos maiores em escala continental. Porém, a dinâmica interna desses
movimentos e a cooptação, da força de transformação dos estudantes, pelos governos capitalistas europeus, ao
longo dessa década,tornou a idéia de revolução social uma idéia pálida e desbotada,levando potencialmente essas
forças sociais a se adequarem ao status quo vigente. 14“[...] A metanarrativa se faz a partir de um sujeito de discurso que, a pretexto de falar do lugar da ciência,
sobrevoaria a História e poderia falar de fora dela, ter uma visão global, de conjunto e não comprometida com os
embates do momento. Ilusões que Bouvard e Pécuchet podiam ainda ter no século no século passado, mas os
historiadores hoje já admitem que o se alojar no passado não é nenhuma garantia de imparcialidade,
simplesmente porque ela é impossível.”(Id., 2007, p. 62) 1515 Refere-se, aqui, às grandes correntes teóricas e epistemológicas, do pensamento ocidental, que dominaram as
formas de construção das narrativas historiográficas dos últimos séculos, isto é, a Escola Metódica e Marxismo.
instâncias da realidade. Daí que “[...] A história se torna visível e apreensível com a sucessão
temporal. [...]”. (Id. p. 07). , onde nós, historiadores, de tempo em tempos somos assaltados
por uma nova leva de problemas, perguntas e questionamentos sobre “[...] os homens e as
sociedades humanas no tempo. [...]”. (id. p. 07). Na tentativa de oferecer a melhor história,
alguns historiadores enfatizam a dimensão temporal de formas diferenciadas, uns enfatizam o
passado, outros o futuro e alguns o tempo presente- posição teórica e metodológica em que
este trabalho se sustenta. Sobre a importância do tempo presente, o eminente professor
Quadros comenta:
O tempo presente é o mais importante, segundo Paul Ricoeur, porque reúne as
temporalidades do passado e do futuro. Retomando os conceitos de Reinhart
Koselleck (1979), ele demonstra como é fundamental alargar nosso “espaço de
experiência” para aproximá-lo de nosso “horizonte de expectativa”. (QUADROS,
2007, p. 15).
Seguindo essa premissa, visões do tempo histórico são reelaboradas enfocando
temporalidades próprias de cada tendência historiográfica, que pode, em geral, ser regressivas,
conservadoras ou progressivas. “[...] A renovação teórico- metodológica não abole o
condicionamento da produção histórica em um presente e lugar social. [...]. (REIS, 2002, p.
10). Os contemporâneos são impulsionados a se localizarem e tomarem partido, mesmo que
seja inconsciente essa escolha, aglutinando, assim, os pesquisadores em diversas escolas
teóricas de pensamento, levando à avalanche de novas obras que, marcam uma determinada
época histórica, com sua tendência específica e peculiar de produzir uma determinada forma
de escrita historiográfica, caracterizando um determinado período da historiografia. A história
“[...] Não cria um efeito de neutralidade, imparcialidade, que abolia a condição temporal do
objeto e da pesquisa com o seu sujeito. [...]. (Id., 2002, p. 10). Isso entra em harmonia com os
pressupostos levantados anteriormente: “[...] o objeto temporal e a renovação teórico-
metodológico e de quadros humanos [...]” (Id.,2002, p. 11) leva a mudança contínua da
pesquisa histórica, possibilitando ,em épocas históricas específicas, a revisão de temas
importantes como: objetividade, subjetividade, imparcialidade, parcialidade16, maior ou
menor independência do sujeito do conhecimento,onde essas categorias são articuladas de
forma diferenciada levando os contemporâneos a um olhar diferenciado e específico do
passado e presente e de sua articulação com o futuro.
16 Com relação às idéias de objetividade, imparcialidade e cientificidade na metanarrativa histórica, Durval
Muniz nos oferece sua visão lúcida: “[...] A metanarrativa se faz a partir de um sujeito de discurso que, [...]
sobrevoaria a História e poderia falar de fora dela, [...] não comprometida com os embates do momento. [...] o se
alojar no passado não é nenhuma garantia de imparcialidade, simplesmente porque ela é impossível”. (Id., 2007,
p. 62).
Neste contexto, discutir os próximos dois temas abaixo é fundamental na tessitura
dos argumentos epistemológicos desta pesquisa, para neste percurso buscarmos a resposta
para pergunta que direciona/norteia este trabalho: a musa-deusa majestosa da história tem
algum problema físico/estético? Dentro desse impasse, há questões que merecem análises
profundas. O primeiro tema é a emergência dos estudos do tempo presente na atualidade; e o
segundo tema, não menos importante, é a investigação da relação entre objeto de estudo e
pesquisador (metodologia e teoria) na construção do tecido cultural, mais especificamente a
relação entre a testemunha e o historiador e, por conseguinte, na fértil relação entre fontes
escritas e fontes orais.
Retomando o tema anterior brevemente tocando- o tempo presente. Pode-se,
agora, apresentar algumas idéias importantes acerca desse fértil tema na historiografia
contemporânea. Sobre a profundidade e inteligibilidade da temática do tempo presente, o
prestigioso historiador francês Jean- Pierre Rioux nos oferece uma visão lúcida sobre o
presente:
Um vibrato do inacabado que anima repentinamente todo o passado, um presente
pouco a pouco aliviado de seu autismo, uma inteligibilidade perseguida fora de
alamedas percorridas: é um pouco isto, a história do presente. (RIOUX, 1992, p. 50).
Assim Rioux termina seu artigo intitulado: “Pode-se Fazer Uma História Do
Presente?”. (RIOUX, 1992, p. 39). O estudo do presente é uma das temáticas mais ricas e
debatidas na historiografia contemporânea. As limitações, obstáculos e desafios do estudo do
tempo presente não se limita à famosa assertiva de Roger Chartier (1996)17 sobre o presente: o
estudo do tempo presente desperta um mau sentimento- a inveja. Alicerçar o debate e a
construção epistemológica, em torno desse tema, em posições dessa natureza é incorrer em
anacronismo elementar e traz pouca ou nenhuma contribuição a este tema; que é um dos mais
debatidos e profundos das últimas décadas. Porém, com relação ao sentido da frase de
Chartier, entendo a provocação e ao mesmo tempo a fina ironia desse que é, uma das mais
importantes vozes e luz de entendimento, um dos maiores nomes da historiografia ocidental
da atualidade.
A maior contestação e crítica, invocada pelos conservadores da historiografia, ao
estudo do tempo presente é a proximidade entre o sujeito do conhecimento (pesquisador) com
seu objeto de estudo. Essa armadilha de fato é um dos principais e mais forte argumentos
17 CHARTIER. Roger. A visão do historiador modernista. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,
Janaína. [coords.]. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
contra os historiadores dos estudos do presente. As impressões, a imersão, a “poluição” de
informações e o sentido de “imparcialidade e objetividade” são alterados em oposição ao
historiador. Aliás, essa posição, segundo alguns críticos da historia do tempo presente,
compara os historiadores aos jornalistas. Para esses críticos, tudo isso comprometeria o juízo
e a análise da história. Porém, Durval Muniz (2007), nos alerta que, o conhecimento é
perspectivista. “[...] mas os historiadores hoje já admitem que o se alojar no passado não é
nenhuma garantia de imparcialidade, simplesmente porque ela é impossível [...]”
(ALBUQUERQUE JR., 2007, p.62). Nessa mesma linha epistemológica como nos alerta
Foucault18, toda narrativa é pessoal, parcial e temporal, e conseqüentemente a visão aqui
exposta é interessada, nasceu de lutas políticas, de embates de poder, portanto é uma prática
totalmente ideológica, mesmo que o pesquisador se “proteja” com os métodos e teorias
acadêmicas. Por essas razões, estamos do lado daqueles que acreditam na teoria do
perspectivismo, onde o conhecimento é parcial, subjetivo e histórico.
Mas o grande desafio desse tipo de análise é conjugar comprometimento,
responsabilidade teórico-metodológico, manejo documental com distanciamento
metodológico-temporal na construção narrativa dos temas do tempo presente. Dessa maneira
podemos “[...] esclarecer o presente pelo passado e o passado pelo presente [...]”. (LE GOFF,
2002, p. 93) e se possa, dessa maneira, articular essas dimensões temporais, recusando o
efêmero apesar das armadilhas lançadas pelo sangue quente do momento, contribuindo para
desenvolver/aprimorar essa rica experiência, ainda embrionária, de estudar o próprio tempo
do historiador. E que a ambição de uma história científica do século XIX, que ainda tem raios
poderosos na iluminação da historiografia moderna, não sirva de obstáculo ao
desenvolvimento dessa temática rica em temporalidades, personagens e enredos que renova e
amplia a noção de espaço-tempo na época atual.
“Tudo que é importante é repetido, dizia Ernest Labrousse [...]”. (RIOUX, 2002,
p. 47), e durante muito tempo e diferentes escolas teóricas não admitiram a atualidade dessa
assertiva, secundarizando os eventos e fatos do tempo próximo. E contrariamente, no seu
lugar, a historiografia tradicional ergueu a idéia de longa duração, por temer a proximidade do
pesquisador com seu objeto e conseqüentemente a formação de uma idéia de passado
cristalizado e de captura da sua essência. Foi precisamente, por isso, que Ginzburg nos alerta
para o principio de realidade. “[...] Ao empreender sua resposta ao desafio ‘cético’, dito ‘pós-
18FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 1999. Refiro-me à concepção de Foucault
que trabalha a idéia de poder, não como coisa, mas como relação; onde o poder não está contido em algo
específico, mas está presente em todas as relações sociais.
moderno’, Carlo Ginzburg alerta para a necessidade de maior precisão do método e das
pesquisas documentais [...]”. (ROIZ, 2009, p.10), como forma qualitativa de evitar
anacronismos na pesquisa e manter, ao mesmo tempo, seu compromisso social e acadêmico
com a sociedade e com a história.
Dentro da arquitetura do tempo proposto por Fernand Brundel (longa, duração,
conjuntura e acontecimento), é necessário um entendimento básico: essas temporalidades são
dinâmicas, processuais e dialéticas. Isto é, uma existe dentro da outra, determinando e sendo
determinada uma pela outra. O tempo do acontecimento, da história imediata, precisa estar
articulada com o tempo da história macro, de forma não mecânica como numa relação causa-
efeito, para que a abordagem do historiador não se perca em devaneios, muito menos em um
idealismo cego que procure essências, sentidos teleológicos e totalidades sistêmicas do
passado. Com isso, podemos abordar o último aspecto da anatomia da nossa musa exuberante,
na tentativa de saber se há ou não problema físico/estético com Clio: a relação entre o
pesquisador e a testemunha na metodologia da história oral19.
2 O RETORNO DA TESTEMUNHA: (IN) CERTEZAS IDENTITÁRIAS DE CLIO
Como nos alerta François Hartog20- usando para isso, o paradigma indiciário; o
problema da relação entre a testemunha e o historiador já foi resolvido há muito tempo. “[...]
do ponto de vista prático e epistemológico. A testemunha não é um historiador, e o
historiador- se ele pode ser, em função de necessidade, uma testemunha- não deve assumir tal
função [...]”. (HARTOG, 2011, p. 203). Ora, podemos observar que o historiador na condição
de testemunha compromete em muito a análise do fato, seja pela falta de distanciamento
metodológico, didaticamente necessário, quanto pelo poder de autoridade/certificação, que é
impossível não ser arrolado no processo testemunhal, que socialmente é atribuído ao
pesquisador.
[...] Assim, ser testemunha nunca foi uma condição suficiente, nem sequer uma
condição necessária, para ser historiador. Mas tal constatação já nos tinha sido
ensinada por Tucídides. A própria autópsia (o fato de ver por si mesmo) deveria ser,
previamente, pelo filtro da crítica. Se, agora, nos deslocarmos do historiador para
19A história oral, no século XX, desenvolve-se, pioneiramente, na universidade dos Estados Unidos associada à
“pré-história” da micro-história, como objetivo de compilar os testemunhos dos combatentes da Segunda Guerra. 20Para tal construção teórica, da relação entre historiador e testemunha, usa-se como referência o texto de:
HARTOG, François. Evidências da história: o que os historiadores vêem. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2011.
sua narrativa, a questão torna-se a seguinte: de que modo narrar como se eu tivesse
visto (para fazer ver ao leitor) o que não vi, nem podia ter visto? Velhas questões
que não deixam de acompanhar a história e sua evidência. (Id., 2011, p. 203).
Como podemos observar a relação historiador x testemunha acompanham a
historiografia desde os tempos antigos. A relação nem sempre simétrica entre autópsia
(Tucídides) e testemunha (Heródoto) marcam diferenças profundas no processo de tessitura
da narrativa histórica, que remontam a Grécia Antiga, e marcou profundamente a nossa
maneira de construir os diversos gêneros historiográficos.
Ao analisar a curva ascendente da testemunha21, na historiografia ocidental,
Hartog faz um recuou temporal para nos mostrar, de forma didática, as diferenças e
possibilidades do conhecimento histórico a partir da testemunha. Para isso, ele faz as
assimetrias da construção da centralidade da testemunha, da Grécia Antiga aos dias atuais,
para o conhecimento da história das sociedades. Ao evidenciar as mudanças no sentido do
testemunhar: da testemunha que escuta a testemunha que vê; Hartog nos mostrar a operação
histórico-epistemológica22 dessa mudança de sentido.
O grego antigo criou um vínculo entre ver e saber, estabelecendo como uma
evidência que, para saber, é necessário ver, de preferência a ouvir. Os ouvidos- diz
um personagem de Heródoto- são menos confiáveis que os olhos (HERÓDOTO, I.
Clio, 8). Idein, ver, e oida, eu sei, remetem, de fato, a uma raiz comum: wid. Já
evocamos esse assunto. Ora, a epopéia homérica conhece um personagem designado
como histor, em que se encontra, portanto, a mesma raiz. Assim, de acordo com
Émile Beneviste, este último seria “uma testemunha pelo fato da saber, mas, acima
de tudo, pelo fato de ter visto” ( BENEVISTE, 1969, p. 173). No entanto, o histor-
que intervém em duas situações de disputa- nada tinha efetivamente visto, nem
escutado. Ajax e Idomeneu, por ocasião das cerimônias fúnebres de Pátroclo,
disputam em relação a quem, após ter contornado a baliza, havia tomado a dianteira
na corrida de carros puxados por cavalos. Ajax desafia Idomeneu e propõem
Agamenon como histor (HOMERO, Iliade, 23, 482- 487; HARTOG, 2004, p. 554-
555). Qualquer que seja o papel exato de Agamenon, é certo que ele nada tinha visto
da cena em questão. No extraordinário escudo forjado por Hefesto para Aquiles, está
representado uma cena em que dois homens, ás voltas com um grave
desentendimento (em relação ao autor de um assassinato), decidem recorrer a um
histor (HOMERO, id., 18, 497- 08); este último não é, obviamente uma testemunha
desse ato. (Id., 2011, p. 212- 213).
21O entendimento desta pesquisa com relação à testemunha, na historiografia contemporânea, é aquela que tem
conhecimento de algum fato- como participante (testemunha ocular) ou apenas conhecedor “distanciado” de tal
fato. E por intermédio do pesquisador desnuda o seu conhecimento, empírico e teórico, sobre determinado tema
e deixa sua mente se explorada pelo pesquisador. Contudo, a testemunha- fonte viva, não é portadora da verdade.
Cabe ao pesquisador/historiador fazer o manejo dessas informações e transformá-las em narrativas históricas. 22Entende-se que, neste começo de século, o maior desafio da história é a construção epistemológica de seu
estatuto do conhecimento. As disputas de paradigmas e os caminhos e descaminhos da história passa pelo filtro
da construção epistemológica da história.
Portanto, ao intervir nas duas situações descritas acima, o histor não é aquele que
vai por fim ao litígio, caso este venha a acontecer. É sim, aquele que é o depositário,
principalmente no futuro, do que foi acordado pelas partes em disputa. Isto é, antes de ter
olhos, o histor, tem principalmente ouvidos. Porém, na trilha da análise de Hartog, percebe-se
que, a testemunha tem um papel de suma importância entre os gregos. Então qual o papel da
testemunha entre os gregos? A testemunha em grego é chamada de martus; [...] A etimologia
nos leva ao radical de um verbo que significa lembrar-se; em sâncrito, smarati; em grego
merimna; w, em latim, memor(ia) (KITTEL, 199, v. 4)[...]”. (Id., 2011, p. 213).Isso permite
entendermos a seguinte operação histórica: da testemunha que escuta para a testemunha que
vê, “[...] Quando, no momento de prestar juramento, sempre na epopéia, os deuses são
invocados como testamento, theoi marturoi, eles são convidados, não a ver, mas a ouvir os
termos do pacto.[...]”. (Id., 2011, p. 213). Nessa operação historiográfica a testemunha é
levada a ouvir e guardar, na memória, aquilo que ouve e é depositário. Observamos que o
martus tem principalmente ouvidos.
É necessário, porém, estabelecermos a diferença entre histor e martus na tradição
grega na tentativa de identificarmos a curva ascendente da valoração da testemunha, uma vez
que ambos têm acima de tudo ouvidos. Pontuando essa diferença, observamos que o histor, na
sua condição de fiel depositário do acordo das partes em litígio, ouve os dois lados, isto é,
torna-se conhecedor das duas versões da contenda23. Já o martus, é conhecedor e se preocupa
com um lado, porque ele (martus) surgiu e existe para saber e preocupar-se com apenas um
dos lados da disputa. A intervenção do martus é no presente e para o futuro; enquanto o histor
preocupa-se, além das duas dimensões anteriores, com a dimensão do passado. “[...] já que
sua intervenção no presente repercute no futuro em relação a uma disputa no tempo passado
(até mesmo recente) [...]”. (Id., 2011, p. 213). Heródoto, na Antiguidade, nos fala da
transformação do martus em testemunha como autoridade. Para evidenciar essa transformação
Hartog nos fornece exemplo basilar.
Tucídides há de fornecer-nos um último exemplo quando ele opõe essas
testemunhas que são narrativas sobre acontecimentos antigos ao que tinha visto
pelos ouvintes do discurso que está em via de lhes ser dirigido: “De que serve falar a
vocês de acontecimentos muito antigos quando eles são confirmados, de preferência,
por narrativas (martures logon) que chegaram a nossos ouvidos, e não pelo viram
nossos ouvintes (opsis ton akousomenon)” (TUCÍDIDES, 1, 73). As “testemunhas”
23Entende-se que o historiador contemporâneo tem o compromisso ético e social de mostrar todasas versões do
fato estudado. O historiador, socialmente responsável, não pode apontar apenas uma versão ou ponto de vista
unilateral daquilo de estuda. “[...] enquanto a história dos vencedores limita-se a olhar um só lado, o próprio, a
história dos vencidos deve levar em consideração, para compreender o que se passou, os dois lados [...]”. (Id.,
2011, p. 228).
estão, assim, do lado das falas e do passado: do lado do que não se viu ou não se
pôde ver. (Id., 2011, p. 214).
Como nos alerta Hartog, na impossibilidade de reconstruir todos os passos do
primeiro histor, é necessário colocá-lo ao lado do mnemon, o homem-memória. Para ele é
necessário coadunarmos os testemunhos (orais e escritos) com a prática da autópsia. “[...] Ao
empenhar-se em resolver a controversa questão da nascente do Nilo, ele indica com precisão:
“Fui e vi com meus olhos (autopes) até a cidade de Elefantina; [...]”. (Id., 2011, p. 214).
Como se vê, o trabalho do histor precisa está associado à prática da autópsia (ver por dentro,
com os próprios olhos) como alternativa e possibilidades ampliarmos o horizonte da
pesquisa. Precisamos abandonar ou redimensionar a posição da testemunha na tradição de
Heródoto: o historiador precisa ver os dois lados. È preciso, isto sim, ver os dois lados e ,
também, ver por si mesmo, com o olhar de pesquisador, ver por dentro, tomar posição crítica
com relação à testemunha e fazer, como nos ensina Tucídides, a autópsia24.
Para finalizar o entrelaçamento epistemológico, entre o historiador e testemunha,
gostaríamos de mostrar as conexões entre os dois momentos de ascendência da testemunha,
dentro do pensamento historiográfico ocidental. No inicio da Era Cristã a testemunha torna-se
crucial na validação de fatos sociais e históricos, construindo, assim, uma cadeia de tradição
baseada em pressupostos cristãos e bíblicos. Isso levou a penetração do espaço das Religiões
Reveladas25 e do Livro permitindo uma apartação radical entre testemunho e autopsia. O
testemunho se torna algo imprescindível na validação das verdades religiosas. Flávio Josefo
opera uma conjunção entre a testemunha e a verdade, estabelecendo o poder de autenticação
na testemunha - ver com os próprios olhos. Ele promove o regime de autópsia, mas estabelece
uma distinção com relação à Tucídides; adotando a testemunha ocular- aquele que ver com os
próprios olhos, com o poder de autenticidade. Isto é, a melhor testemunha é aquela que vê
(testemunha ocular) e tem maior autoridade (política, social, militar e etc.) no seu tempo.
Sobre essa a testemunha ocular, com poder de autenticidade, Josefo no mostra que,
[...] Ao assistir ao cerco de Jerusalém, Tito é declarado, de fato, por Josefo
“autoptes kai martus”:o general romano viu com os próprios olhos (ele poderia ser
o historiador) e é testemunha (ele tem o poder de autenticação). Com efeito, martus
24“Autópsia, s. f. Exame médico de um cadáver”. (Id., 2013, p. 103). O sentido de autópsia é utilizado de
maneira mais profunda do que do exposto no filólogo. Autopsiar um fato é ver os detalhes, os microvasos, os
microporos e toda a composição interna e externa do fato estudado. Nesse sentido que Tucídides utiliza o
conceito em questão, no qual concordamos plenamente. 25As religiões reveladas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo; são aquelas que esperaram a revelação do messias
e o dia da volta do Deus criador para redimir a humanidade dos seus pecados e erigir um novo mundo. Nessa
tradição, as testemunhas (na Torá, na Bíblia e no Corão) são colocadas como pedra angular e central na
validação dos dogmas religiosos.
não ésimplesmente redundante, mas acrescenta uma dimensão de autoridade. Flavio
Josefo sublinha imediatamente que Tito é o “administrador soberano das punições e
das recompensas” (Ibid., 6, 34). Excelente exemplo de expressão com ressonâncias
tanto gregas quanto judaicas. (Id., 2011, p. 218).
Como observado, anteriormente, Josefo faz a perfeita simbiose entre testemunha,
autópsia e autenticidade. Isso marcará profundamente a historiografia ocidental durante
séculos. No inicio da Era Cristã, portanto, a testemunha é colocada como pedra central da
história cristã26 e, por conseguinte, na história teológica do período medieval. Dentro desse
pensamento, a(s) testemunha(s) é/são colocadas como eixo central no processo de
autenticidade- da prova, não sendo condição sine qua non a autópsia- a análise clínica, o olhar
do historiador. E essa poderosa força do pensamento cristão perpassou todo o período
medieval, chegando mesmo a se alojar, pelo menos em parte, no início do pensamento
moderno. Entretanto, grande diferença (e algo positivo) do pensamento moderno, com relação
ao período medieval, é que a(s) testemunha (a) não terá o poder máximo de autenticidade:
comprovar por si só um determinado fenômeno27.
Na arquitetura do pensamento moderno, a testemunha vai tomando posição
secundária e, até mesmo silenciada, lentamente dispensada em detrimento do olhar do
pesquisador/historiador. A testemunha, de acordo com os pressupostos da Lei Deuteronômica,
torna-se obsoleta na construção da história moderna. A autópsia, na perspectiva de Tucídides,
das fontes escritas oficiais torna-se o ponto de partida e a referência do historiador.
Observamos, aí, uma assimetria da história moderna com a grega: para Heródoto a referência
era a testemunha- o histor; para Tucídides, o ponto de partida era a autópsia- ver por dentro.
Nessa mesma linha, Flavio Josefo opera a conjunção entre testemunha e autópsia,
estabelecendo dessa maneira, a fala total das testemunhas retiradas por Tucídides. Nessa
perspectiva, a de Josefo, o historiador aparece como compilador de vozes e testemunhos,
ficando, dessa maneira, silenciado pela testemunha. No início da modernidade, a postura de
compilador, não de vozes e testemunhos orais, mas de fontes escritas oficiais torna-se a práxis
e a direção do trabalho do historiador. A autenticidade do acontecimento desloca-se do
testemunho para o documento escrito de base oficial. O profissional que trabalha e faz o
manejo dessas fontes e, portanto, estabelece o sentido das transformações temporais não é
mais o compilador de relatos e testemunhos orais. Isto é, o profissional que se incube, da
26 Refiro-me ao livro específico da Bíblia- Deuteronômio (19:15 SS)que estabelece a Lei Deuteronômica das
Testemunhas, onde para um fato ser provado é necessário, no mínimo, duas ou três testemunhas. 27A historiografia moderna nasceu sob o signo da prova documental de base oficial. Nesses termos, o documento
escrito é colocado nos altar da deusa história e relegou à testemunha os esconderijos dos hereges.
tarefa da história, de forma científica, racional, imparcial e objetiva é o historiador- formado
na academia, com métodos e teorias científicas. Nesse momento, século XIX, a era da
testemunha chega ao fim. Ela, a testemunha, é alijada da história e fica presa aos relatos da
literatura e do mundo da imaginação dos memorialistas, não mais da história científica28.
Mas, mesmo afastada dos grandes paradigmas de construção da realidade, do
século XIX e XX, adeptos da testemunha e do testemunho vão buscar, mais uma vez, a
introdução da testemunha, pelo menos de forma secundária, caso não fosse possível a
construção de um sistema de significados29 alicerçado no testemunho oral. Sobre essas vozes
dissonantes Hartog comentar que,
[...] de uma forma ou de outra, procuraram reintroduzir a testemunha e o
testemunho. Não, evidentemente, como sistema de autoridades, regulamentando o
que é admissível, nem como elemento constitutivo de um indício, mas como
presença: como voz e como memória. Na primeira fila, seria possível Michelet,
evocado precisamente como antecessor da história das mentalidades. ”Nas galerias
do prédio dos Arquivos (ver supra, p. 151) pelas quais perambulei durante vinte
anos, alguns murmúrios, apesar do profundo silêncio, chegavam a meus ouvidos. Os
sofrimentos longínquos de tantas almas sufocadas dessas antigas eras se queixavam
em voz baixa” (MICHELET, Préface de 1869, 1974, p. 24, e supra, p. 152-154). Os
documentos são vozes exigentes e portadoras de uma dívida a pagar. Mas, para
ouvir esses testemunhos, o historiador deve dirigir-se aos arquivos, ou seja,
mergulhar nas profundezas de uma época. Ele deve “atravessar e voltar a atravessar
o rio dos mortos”, transgredir deliberadamente a fronteira entre o passado e o
presente. Resta-lhe, na seqüência, fazer ouvir essas vozes, o que não significa, de
modo algum desaparecer à frente delas. É, pelo contrario, essa operação de acordo
com Michelet, revela o verdadeiro historiador. (Id., 2011, p. 224).
Embora, com toda a distância que a Escola Metódica, do século XIX, manteve
com relação à testemunha, as vozes dissonantes de muitos historiadores conseguiram abrir
uma brecha para o testemunho, mesmo de forma marginal, nos esquemas explicativos da
realidade. Porém, a partir da década de 1970/80 com terceira geração da Escola dos Annales e
a crise das metanarrativas, abriram-se uma avalanche de estudos sobre as mentalidades e o
imaginário. A partir desse período, a testemunha volta com muita força nos estudos
28Entende-se por história científica aquela criada pelo alemão Leopold Von Ranke, estabelecendo as bases para
uma história objetiva, imparcial, documental e presa aos eventos políticos do Estado Nacional. 29Tomamos de empréstimo, aqui, a compreensão do sistema de significado de Geertz; onde no processo de
construção do saber são valorizados as diversas linguagens semióticas (linguagens verbais e não verbais) e os
processos de significação (semiose) entre objeto e sujeito.
sociológicos e históricos, ao ponto de Hartog chamar este momento de a Era da Testemunha
nos estudos acadêmicos. “Mais perto de nós, a partir de meados da década de 1970, o brusco
interesse pela história oral, à qual Philippe Joutard dedicou um livro- sob o título Ces voix qui
nous viennent du passe[...]”. (Id., 2011, p. 225).Engrossando, com isso, as fileiras daqueles
que percebem a importância e a curva ascendente da testemunha na historiografia
contemporânea no mundo ocidental. Porem, mais uma vez, Hartog nos chama atenção para o
cuidado com o trato com o testemunho oral. A testemunha não é a história, mas a fonte pela
qual a história desliza e percorre no rio caudaloso para construir sua visão, sempre incompleta
e parcial, do passado buscando, sempre, não esquecer os métodos e teorias- sempre articulada
com a prática, para que façamos uma história que além de buscar a autópsia de Tucídides (ver
por dentro) veja também os dois lados, do histor, na tradição de Homero.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Bem, depois de percorremos uma longa estrada, um tempo longo e
experimentarmos diferentes visões da testemunha, chegou a hora de retomar a idéia primeira
apontada neste raciocínio epistemológico: Clio, nossa musa inspiradora, tem algum problema
físico/estético que comprometa a visão e entendimento da história? Clio, confirmada pela
tradição, era a musa mais exuberante do Olimpo; com seu clarim, imortalizava e glorificava
com sua música, todos àqueles que eram dignos da glória dos deuses. Porém, toda beleza,
majestade e poder foram tomados como perfeição pelos antigos e, ao longo da nossa
existência temporal, não percebemos que Clio- a musa da história não é assim tão linda e
maravilhosa, como pensávamos até agora. A limitação temporal dos homens, os métodos,
teorias, temáticas e a consciência do processo histórico, oferecida aos homens por Clio,
refletem no espelho mítico do tempo/memória a limitação e imperfeição física e/ou estética da
nossa musa. Entretanto, não sabemos em qual parte, do seu corpo mítico-histórico, há essa
imperfeição, nem o grau dessa deformação, nem por quanto tempo perdurará essa
imperfeição/limitação. Mas hoje sabemos que àquela que surgiu para nos oferecer a
compreensão das mudanças no tempo (História) não é perfeita. Cabe aos homens deste tempo,
principalmente os historiadores, amparar, cuidar e oferecer ajuda- mesmo que seja através de
uma “muleta” (teórico-metodológica) das outras ciências humanas e sociais-, à nossa musa,
Clio, para que ela consiga realizar a sua gloriosa e “divina” missão: possibilitar a
compreensão/transformação das ações humanas no tempo30.
30Nessa concepção, tempo é considerado a matéria-prima fundamental dos fenômenos da sociedade, da história e
dos homens. E os profissionais que trabalham com as idéias, os homens, a sociedade e com o mundo em
movimento não podem prescindir de observarem as transformações da sociedade na tessitura do tempo.
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