Upload
others
View
3
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
ISSN 2175-6945
“Essa era nossa imagem!" – Dos cadernos e folhetins criminais aos circuitos da cultura: fotografias que levaram o funk a arte.1
Rodolfo PAULO2
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ
Resumo
Tendo como eixo motivacional para este artigo um recorte de jornal que expõe retratos de funkeiros ao estilo dos cadernos criminais, visamos discutir a imagem destes cantores na mídia hegemônica. Contrapomos então, esta imagem dos meios de comunicação, a produção de fotógrafas como Dani Darcoso que a partir de seu trabalho autoral oferecem outras abordagens subjetivas ao tema, sendo capazes de alargar fronteiras e engajar outros agentes de fala na constituição do imaginário social do Funk. Por esse viés, são capazes de aproximar o funk do campo da arte (Bourdieu, 1996) gerando outras convergências. Esse processo veio a levantar questões sobre a autenticidade deste ritmo como manifestação cultural brasileira (Sá, 2000), em especial, discutimos a legislação especifica para a "existência" do estilo musical enquanto cultura. Contudo, pensamos as possibilidades de uma representação visual com mais nuances a identidade do negro e sua pluralidade atual.
Palavras-Chave: Campo da Arte. Lei Funk é Cultura. Fotografia. Imagem. Funk. Arte.
O funk carioca e a tal MPB – Música Popular Brasileira: rápida análise sobre a
posição do funk no cenário sociocultural brasileiro a partir da imprensa.
A música popular massiva é capaz de pautar discussões às visões de mundo que
circulam sobre a ideia de uma identidade nacional brasileira legítima. Recortes de falas
de jornais de grande circulação foram ilustrativas à Simone Sá (2000), para assim, se
pensar questões ligadas a legitimidade de manifestações culturais subalternizadas.
A grosso modo, quando se cita a sigla “MPB”, música popular brasileira, está
implícito quem faz parte dela e quem está fora, polarizando em diferentes visões o
1 Trabalho apresentado no GT História da Mídia Impressa integrante do 11º Encontro Nacional de História da Mídia. 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da PPGAC/ECO – UFRJ, email:
ISSN 2175-6945 assunto. De um lado, ficam os guardiões de uma certa pureza, que preservam o legado
simbólico e cultural legitimado, por exemplo, pelo samba, como parte de uma
identidade nacional e autêntica. Do outro, aqueles que de algum modo profanam
estruturas culturais já cristalizadas sob a forma do “cavaco, pandeiro, tamborim” —
caso da Axé Music, do brega, do arrocha, do pagode, do funk, do forró e outros, como
lembra Simone Sá (2000) com a máxima “não me altere o samba tanto assim”, de
Paulinho da Viola. Deste modo, a autora abre a discussão sobre a questão.
O tema, à época, fora a mácula deixada pelo grupo de Axé Music É o Tchan ao
participar do festival suíço de Jazz de Montreux, na Suiça, na noite reservada ao Brasil.
A polémica não foi gerada pelo público que no festival viu o rebolado de Carla Perez
nos mesmos palcos em que já tocaram Djavan, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João
Gilberto e Alceu Valença, mas sim nas páginas dos cadernos de cultura dos jornais
cariocas.
A música popular brasileira tem sido instrumento privilegiado da dramatização
da vida social, política e afetiva, dentro de nossa cultura. Da Matta (1994: 61) lembra
que basta mencionar um tema para encontrar uma canção popular que o retrate; pontua
ainda que, em um país com altas taxas de analfabetismo, a música popular é tão
importante quanto a literatura.
Mas não se trata de qualquer popular. Deve-se obedecer a alguns acordos para
que tal música seja incluída em determinados circuitos culturais. Sá (1997) reforça que
o termo “MPB”, “inventado em conjunto” por músicos, empresários do show business,
veículos de comunicação, jornalistas, intelectuais e representantes da cultura oficial, tem
por matriz rítmica a cultura carioca — onde “quem não gosta de samba, bom sujeito não
é”, conforme canção de Paulinho da Viola, ou seja, o Carnaval e seu ritmo
reivindicaram pra si o papel de homogeneizadores da harmonia da cultura brasileira,
afirma a autora em consonância com Barbero (2009). O que aconteceu no Brasil com a música negra, o modo desviado, aberrante, com que ela obteve sua legitimação social e cultural, põe em evidência, os limites tanto da corrente intelectualista quanto do populismo, na hora a trama de contradições e seduções que compõe a relação entre popular e massivo, a emergência do popular urbano. (Barbero, 2009: 242)
ISSN 2175-6945
A legitimação dessa autenticidade é fruto da fusão e mesclagem de múltiplas
influências — desde negros analfabetos e bases rítmicas afro-baianas aos compositores
mais letrados e bem relacionados, responsáveis pela sofisticação das músicas e por levá-
las para outros espaços. O projeto de nacionalização do samba foi tão bem-sucedido que
qualquer tentativa de fusão oriunda de outros lugares é “jogada para escanteio” — seja o
frevo, a modinha, o maxixe, o “samba baiano” do É o tchan, todos enquadrados sob o
rótulo menor de “regionais”, isto é, “menos relevantes” para o projeto de Brasil nesse
contexto (SÁ, 2000).
Nesse sentido, qualquer ranhura a tão bem sucedido “projeto” é rejeitado.
Barbero (2009: 243) supõe que o que incomoda seja o atrevimento do gesto negro que
transformou seu ritmo em estratégia ao longo do tempo, por meio de uma manifestação
física que não é o trabalho. Não se trata de sua indecência e seu atrevimento para com o
sexo, mas sim o escandaloso lugar no campo cultural que instaura também crises
políticas.
A partir das questões desenvolvidas acima discorro a seguir sobre o campo de
disputa simbólica onde se encontra o funk.
“É som de preto” – Aspectos da disputa do funk no contexto cultural hegemônico.
Dentro do contexto social das favelas e morros cariocas, novos atores sociais,
com configurações identitárias alheias a do sambista de terno branco e ginga de
malandro, começam a aparecer evidenciando outros frutos da diáspora africana. Estes
reivindicam para si matizes musicais e comportamentais próprias. Sua discursividade
ultrapassa a letra de suas músicas, enfrentam as convenções sociais, rechaçam o “bom
gosto” estabelecendo padrões de registros e lugar de fala, indumentárias, e gestuais
próprios.
Contudo, veio a surgir também, decorrente de outras relações de corporalidades
do negro, um tipo específico de dança, onde a coreografia passa a ser repetida nos bailes
por dezenas de pessoas agrupadas em movimentos que parecem ensaiados. São as festas
ISSN 2175-6945 conhecidas como bailes funk, em que a partir de um certo modo de pertença aquele
lugar há uma aproximação entre discursividade e visualidade.
Isto se evidencia, por exemplo, através da vestimenta importada dos B-Boys e do
hip-hop norte-americano, reapropriada com um visual próximo ao do surf. Ao invés
dos puxadores de samba, ou das “tias” dos antigos casarões do centro do Rio, surgem os
primeiros MCs, uma espécie de “rapper local”. Os MCs improvisavam de forma quase
falada sobre o ritmo mixado nos bailes pelos DJs, que importava uma base musical do
estilo Miame Vice, com dizeres pornográficos ou convocando nomes de favelas. O funk
do início da década de 90 dá novos contornos aos festejos populares das comunidades
cariocas.
Este “novo negro” que surge no cenário carioca configura uma disputa por um
novo lugar simbólico as festividades nas favelas e comunidades, deixando-a, de um
modo geral, mais plural e diversa. O novo estilo musical foi um completo sucesso
popular no Rio de Janeiro na década de 90, o que corrobora para grande adesão massiva
em meios de comunicação, como o rádio.
Um dado curioso nesse contexto é que o funk, em 1989 — quando o DJ
Malboro, que comandava o programa Funk Brasil (mesmo nome do primeiro disco de
sucesso de funk) na emissora de rádio Manchete FM, ocupava o primeiro lugar na
audiência das rádios cariocas (Vianna, 1990). Hoje, leituras recentes do IBOPE3
apontam ainda o mesmo horário de 16h às 18h, na emissora de Rádio FM O Dia, com
programas de funk ocupando a maior audiência no meio rádio.
Nessa época o funk já possuía penetração consolida com as chamadas equipes de
sons em diversas localidades da cidade. Os bailes chegavam a reunir cerca de 10 mil
pessoas sob a completa ingestão do Estado. Teve associação exagerada com a
criminalidade, muito a partir de conteúdos noticiosos distorcidos.
3 IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, que dentre suas funções, afere a audiência dos veículos de comunicação.
ISSN 2175-6945
Por conseguinte, ser o estilo musical mais ouvido ou mais amplamente
midiatizado não significa ser o mais aceito ou articulado, como o samba4 foi. Contudo,
é possível observar a notoriedade dessa espécie de demarcação de lugar nesta
construção de espaço; e, nessa disputa simbólica, é mais importante “quem diz” e de
“onde se diz” do que “o que se diz”. Assim vejamos:
Desde o estudo de Vianna (1990), houve um reconhecimento de que as letras do
funk, por conseguinte, sua imagem, esbarram em questões de legitimidade. Nos dias
atuais, as letras de funk são sempre colocadas em oposição as letras do chamado “funk
antigo”, ou curiosamente apelidadas de “funk de raiz”, em alusão direta ao “samba de
raiz”, quer dizer, aquele que considera certa noção de origem.
Afinal, foi preciso reconhecer que “era só mais um Silva / que a estrela não
brilha, / ele era funkeiro, mas era pai de família” merecia ser inserido, ainda que com
certa ressalva, na sigla MPB. Esta segue sendo uma das letras mais famosas – utilizada
inclusive, na cerimônia de abertura das Olimpíadas 2016 – o funk “Rap do Silva”
(1995), de Bob Rum. O seu reconhecimento se deu porque hoje é considerada como
uma “música consciente” que retratava a realidade social das favelas de maneira
poética.
Em 1996, a dupla Claudinho e Buchecha, conseguiu grande repercussão com a
chancela da gravadora internacional Universal Music, apresentando músicas com
caráter crítico. Além disso, esses cantores/compositores conseguiram obter presença
massiva em diversos programas de televisão. Casos como estes introduziram de forma
expressiva o funk no circuito midiático, permitindo a construção de um “poder
simbólico” (Bourdieu, 2006) criando uma realidade que tende a estabelecer uma ordem,
um sentido imediato do mundo social, oferecendo concordâncias, ou, ao menos,
deixando o funk um pouco mais tolerável.
Com o passar dos anos podemos considerar que a penetração do funk na mídia
foi cada vez mais tolerada. No entanto, esse processo foi marcado por fortes relutâncias
4 O samba teve seu processo de legitimação conturbado no início do século. Seu surgimento era caso de polícia, conseguiu seu processo de legitimação à força. Comumente era confundindo com confusões nos
ISSN 2175-6945 em aceitar as manifestações do funk, fundamentando este rechaço as associações feitas
ente o ritmo e o conteúdo de seu discurso.
Os meios hegemônicos vão relutar em aceitar as manifestações de funk
fundamentando tal rejeição às associações feitas entre o ritmo e o conteúdo de seu
discurso. É fácil encontrar no YouTube, por exemplo, se buscarmos pela música “Nosso
Sonho”, de Claudinho e Buchecha, um número interminável de comentários ratificando
que “isso era funk de verdade” (músicas poéticas) e “o funk de hoje é um lixo” (músicas
lúdicas e sexuais) — argumento apoiado no fato de que o ritmo, atualmente, estaria
impregnado de “putaria” e faria apologia à violência sexual, com letras carregadas de
artificialidade. Ora, seria demasiado depositar apenas no funk o grau de erotização da
sociedade brasileira e apontá-lo como responsável maior pela “pouca-vergonha” dos
dias de hoje.
Retornemos ao caso do É o Tchan, que ludibriava com letras de duplo sentido5, e
de uma mistura de ritmos que incorporava o samba, a salsa, o frevo com o objetivo
apenas de celebrar e brincar, mas não alcançou a mesma legitimação, por exemplo,
conquistada pelas “marchinhas” no Rio de Janeiro ao longo dos anos. As marchinhas,
que por décadas ainda fazem parte do carnaval de rua carioca, também contêm
trocadilhos, superficialidade e conteúdo sexual, mas partem da base rítmica do samba.
Ainda sobre este exemplo, Simone Sá (1997) pontua que o que está em jogo é uma
disputa política, autoritária, excludente e cristalizada que visa, como mencionamos, à
apropriação de uma determinada ideia de autenticidade da cultura nacional que não
poderia, supostamente, ser maculada por letras de tão baixo calão. Neste lugar também
se encontra o funk.
“Me deixa de quatro no ato / Me enche de amor, de amor” (“Lança Perfume”, de
Rita Lee, 1980) e “Perua! Piranha! (...) Me deixa gozar, me deixa gozar (...)” (“Não
Enche!”, de Caetano Veloso, 1997) são letras cujos dizeres não se inserem no mesmo
bairros das adjacências do Centro do Rio, pois eram considerados barulhentos e tumultuados em frente a casa das chamadas “tias”, mães de santo que promovia festas além do culto religioso. 5 Muitas vezes o gestual das coreografias de dança do É O Tchan indicavam o sentido real da palavra cantada com o corpo ou faziam alusões sexuais diretas. Quando diziam: “na dança do põe põe você sabe mexer” os quadris indicavam o que significa a expressão (É o Tchan – Dança do Põe Põe).
ISSN 2175-6945 lugar do funk, ainda que seu linguajar seja de igual teor; pertencem, porém, a um lugar
simbólico distinto.
O que é bastante evidente se pensarmos que a figura Caetano Veloso retém
muita mobilidade dentro do campo cultural brasileiro, que suas estratégias, enquanto
indiscutível posição privilegiada na “MPB”, são coerentes as características que
sistematizam sua circulação por diversas camadas sociais, ou seja, seu – “habitus”
(Bourdieu, 2006). O que lhe permite utilizar de qualquer vocabulário sob o refinado
pretexto da “licença poética”.
Já a cantora Valesca do Santos, ou Valesca Popozuda (nome em alusivo aos seus
quadris), que iniciou sua carreira junto com um grupo de mulheres como vocalista
(Gaiola das Popozudas), com cerca de 20 anos, nos anos 2000, diz abertamente em
shows atuais que canta funk de favela, pois esta é sua origem. Suas músicas foram
popularizadas principalmente por outros meios devido ao excesso de conteúdo erótico e
direto. Somente depois de um longo período de trabalho, em 2013, um clipe de baixo
orçamento (Beijinho no Ombro) ganhou o Brasil, permitindo mais fluidez entre os
veículos de comunicação (Caetano, 2015:13).
Valesca não impõe restrições às suas letras em seus shows; no entanto, “Eu
lavava e passava, mas você não dava valor / e agora que eu sou puta você que quer falar
de amor!” (“Agora Virei Puta”, 2008) é alvo de uma certa “higienização” no termo
despudorado quando transposta para espaços midiáticos, como a Rádio FM O Dia:
“puta” vira “absoluta”. A letra de música que é direta em seu show, precisa de uma
versão “para tocar na rádio” a partir de outras rimas e substituições de palavras. O que
denota certa ressalva, especificamente, a este tipo de gênero e não a outros, como o que
pertencente Caetano Veloso.
Importante destacar que Valesca é uma mulher da periferia, com pouco estudo,
cantora e empresaria, produz ativismo feminista, tema recorrente na academia e é
observada por problematizar seu lugar de fala e representa um certo espaço na luta
feminista a posição que ocupa.
Ao passo que a representação da mulher no funk quando ganha contornos
midiáticos, em uma novela, por exemplo sua aparência se distancia, em muito, da
ISSN 2175-6945 imagem de Valesca. Aqui emergem algumas das ressalvas e “poréns” para passar a
outros espaços — caso do funk de Tati Quebra Barraco6, tema musical da personagem
Raíssa, menina loira, de classe média, interpretada pela atriz Mariana Ximenes na
novela “América” (2005), da TV Globo.
Em outras palavras, as letras de funk ganham certa roupagem para circular em
outros espaços – é um processo de higienização –, desde uma readequação vocabular até
sua própria visualidade. Ou seja, há uma reelaboração estética em diversos níveis que
ocorre para o funk se fazer socialmente fluído e esquivar de parecer tão negro e
favelado, logo, pouco aceito.
As letras e demais elementos do funk — transgressão da ordem vigente, voz do
negro nas comunidades, reforço do estereótipo machista, inclusive por mulheres, e, ao
mesmo tempo, lugar da resposta da mulher a esse lugar erótico em que é colocada —
vêm se somar ao contexto midiático atual, às grandes gravadoras que passam a
administrar a carreira dos artistas, à tomada de espaço nos meios de comunicação de
massa. No caso da Rádio FM O Dia, atualmente, além da programação exclusiva de
funk em um horário específico, por 2 horas, também há músicas de diversos cantores e
cantoras ao longo da programação diária. Logo, essa conjuntura, como qualquer
fenômeno cultural, se revela em um paradoxo radical, ora a questionar padrões, ora a
reforçá-los, a partir da necessidade fluida de obedecer às regras de consumo.
Posto esse breve panorama do funk no cenário cultural e musical brasileiro, adiante
será visto de que maneira essa disputa por legitimação se deu no Estado de direito, no
que tange a gestão específica de legislação a área da cultura. E, de que modo, também, a
apropriação midiática converteu-se em narrativas pejorativas e marginalizou a imagem
da figura do MC, dando a ver estigmas sociais.
“Essa era nossa imagem!" – A ofensiva contra o escárnio: sobre o retrato policial
nos jornais.
6 Outra importante cantora do mesmo tipo de funk de Valesca Popozuda, mulher negra e de favela.
ISSN 2175-6945
No dia 22 de setembro de 2009, um movimento de mais de 600 pessoas, em
geral negras, dentre eles DJs do funk, dançarinas, algumas travestis e drag queens além
da forte presença de pessoas oriundas de diversas comunidades, militantes de esquerda e
acadêmicos (como o caso de Adriana Facina7 e outros intelectuais) amontoavam-se
dentro da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) e testemunharam a
aprovação da Lei 5.544/09, conhecida como “Funk é cultura”. Segundo Lopes (2010, p.
101), o texto da lei foi uma produção coletiva mediada pela APAFunk (Associação de
Profissionais e Amigos do Funk). Dividido em seis parágrafos muito simples,
destacando-se dois deles: "Art. 1º Fica definido que o funk é um movimento cultural e
musical de caráter popular."; e “Art. 3º Os assuntos relativos ao funk deverão,
prioritariamente, ser tratados pelos órgãos do Estado relacionados à cultura.”
Entre as teses e dissertações acadêmicas, quando mencionada, é praticamente
um consenso de que a criação da lei foi necessária para salvaguardar os funkeiros em
geral dos atos de arbitrariedade do Estado como o caso das incursões policiais violentas
nos bailes. A tentativa é localizar o funk em outro lugar social, ou, como indagou
Marcelo Freixo, deputado estadual na ocasião, na 5º Conferência/Museu de Arte do Rio
(2016), “não é o microfone do MC que deve ser criminalizado”.
Contudo, o funk vem apresentando à cultura popular na cidade do Rio de Janeiro
novos contornos e significados, colaborando numa produção de imaginário sobre o
negro além do samba. De maneira conturbada na década de 1990, com a associação do
funk à violência, como o caso dos arrastões nomeação dada pela mídia aos “jovens
saqueadores” nas praias, o ritmo detém em si o mais evidente escárnio do racismo
brasileiro disfarçado sob a forma de bom gosto. A narrativa midiática também é fluida e
raras foram as dissidências ao longo dessas duas décadas. Em geral, os jornais criavam
cartografias muito específicas sobre quem é esse funkeiro através da tríade simbólica –
“preto, favelado e bandido” (LOPES, 2010, p. 28).
7 É professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ. Tem experiência nas áreas de Antropologia e História, com ênfase em Antropologia Urbana e História Cultural. Desenvolveu pesquisa de pós-doutoramento sobre música e lazer popular no Rio de Janeiro, com ênfase no funk. Atualmente pesquisa a produção cultural em favelas cariocas.
ISSN 2175-6945
Esta capa do jornal (Figura 1) estampa em forma de folhetim policial 12 retratos
de diversos MCs cantores de proibidão8. Dentre eles, Menor do Chapa, da imagem
acima. Emocionado, eloquente e trêmulo, no mesmo evento no Museu do Arte do Rio
(MAR), compartilhou a mesa com Freixo e outros agentes de fala que se relacionaram
com o funk, como alguns fotógrafos, cerca de dez anos depois (2016) da publicação. Figura 1. Recorte do Capa do Jornal "O Dia" de 30 de setembro de 2005
Fonte: O DIA, Jornal. Capa. Editorial. 2005
Menor, como é chamado, exclama – “essa era a nossa imagem antes desses
caras! Essa era a minha imagem.” e aponta para o telão onde o mesmo estava projetado.
8 Funk proibidão é uma espécie de subgênero do funk, em geral, acusado pelo Estado de fazer apologia ao crime. Suas narrativas sobre o universo da criminalidade, tangenciam o cotidiano e as sociabilidades ligadas à noção de bandido (Novaes, 2016: 11). Os noticiários da época, 2005, tomam tal premissa para justificar manchetes excessivamente pejorativas ao tema. Não é nosso objetivo discutir a legitimidade do subgênero proibidão, posta em cheque na matéria, mas sim a ausência de nuances na representação imagética dos cantores. Importante não confundir com o funk putaria, outro subgênero com letras eróticas explicitas.
ISSN 2175-6945
Quando Menor do Chapa se refere a “esses caras” ele está de mãos dadas a Dani
Darcoso, e ao lado, Vincent Rosenblatt e Maria Puppim Buzanovsky. Três fotógrafos
que passaram a reivindicar no campo da arte (Bourdie, 1996) outras possibilidades de
imagem aos mesmos funkeiros dos retratos policiais. Imagem não só no sentido moral e
estético, mas sob novas produções de imaginários.
Sobre o campo artístico Bourdieu (1996: 244) pontua que agentes e instituições
atuam em espaços de relações de forças de acordo com seu capital. Capital, neste caso,
em Bourdieu representa um poder sobre um campo. Então, as espécies de capital são
poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado. Os artistas
apresentados acima, de algum modo, possuem um volume de capital cultural que
determina as probabilidades agregadas de ganho em todos os jogos em que o capital
cultural é eficiente, contribuindo, deste modo, para determinar uma posição estratégica
no espaço social – isto é, o Illusion. Em outras palavras, é o entendimento da condição e
do funcionamento deste campo específico que possibilitou arquitetar posições
estratégicas para a circulação dessas imagens.
Logo, a partir das fotografias, outras narrativas foram e são possíveis, até os dias
atuais. O engajamento destes artistas com a temática funk, como: a produção de ensaios,
séries, circulação de exposições e projeções em muros dos bailes e favelas promoveu
outra narrativa visual a questão.
As imagens do trabalho autoral, poético e político que esses três fotógrafos
criaram, ainda que em menor proporção, oferecem aos folhetins, chances de novos
contortos a identidade oriunda das classes subalternizadas da cultura brasileira. De
alguma forma, as fotografias propõem uma oposição aos muitos recortes de jornais que
estigmatizaram especificamente a imagem do negro funkeiro, mesmo quando passou a
ser economicamente conveniente pautá-lo nos programas de televisão.
O recorte visa ilustrar a discussão junto aos diversos agentes de fala que foram
vetores de força na criação da Lei “Funk é cultura”. Oficialmente, com ela, tornou-se
indecente aos jornais seguir produzindo tais narrativas. Deste modo, o Estado produziu
um anteparo à marginalização que institucionalizou alguma legitimação cultural, daí
ISSN 2175-6945 então, pareceu existir um acordo tácito em realocar os funkeiros dos cadernos policiais
para os cadernos de cultura.
A Lei surgiu como uma espécie de medida última para garantir o exercício das
funções dos produtores culturais de funk. Em geral as equipes de som, como são
chamadas, ou DJs quando tinham a iminência de qualquer incursão policial, ora,
sofriam “a dura” (truculência policial), ora, ofereciam subornos. A discriminação
sofrida por estas equipes levava a tratamentos violentos, sendo muito comum encontrar
na fala dos MCs relatos sobre equipamentos danificados, CDs jogados em valas,
agressões físicas, fios das caixas de som cortados e queimados pela polícia. Nesse
sentido, a lei surgiu como um instrumento de legitimação das atividades dos
profissionais do Funk de forma a limitar a ação violenta e arbitrária da polícia.
No entanto, a “Ofensiva contra os gritos de guerra do crime”, como noticia a
violência simbólica da manchete, é parte de uma visibilidade da tríade do “negro, pobre,
favelado” anterior a legislação.
Para atender o debate de modo plural, mais uma vez, vale sublinhar alguns
agentes de fala, bem como seus contextos, que tomaram para si de maneira pública a
questão criando outras tensões.
Deste modo, a figura do artista que produz um trabalho autoral sobre funk, assim
como o deputado Freixo, ambos surgem como mais agentes de fala importantes no
processo. Ao produzir discursos visuais, os fotógrafos formulam importante vetor de
força no debate criando dissidências ao imaginário hegemônico, logo, faz sentido
localizar suas fala no processo de inserção do funk no campo da arte.
São os casos específico dos fotógrafos Vincent Rosenblatt (2005 – 2014), Dani
Dacorso (1998 – 2008) e Maria Buzanovsky (2013 – 2015) que, como conhecedores do
jogo, ou meandros artísticos, fazem transitar imagens de outra ordem, produzindo
efeitos estéticos e políticos por meio de fotografias.9
A produção de imagens autorais dos fotógrafos em questão levará em questão o
contexto do funk em embates políticos presente no tema. Contudo, passa-se a
9 Iremos nos ater em seguida mais as imagens e relatos de Dacorso.
ISSN 2175-6945 importância de expor a atuação desses artistas nas esferas simbólicas pontuadas até
aqui, de modo a intervir em suas estruturas.
Campo de disputas simbólicas e suas refrações – fotografias que propõe a retirada
do funkeiro dos cadernos policiais
Com a finalidade de tangibilizar a discussão a partir das imagens, nesse sentido
as fotografias apresentam de maneira bastante palpável o campo em disputa. Contudo,
para dar corpo a essas inferências críticas, foi realizado com Dani Dacorso uma
entrevista com o objetivo de criar registro a partir da fala dos fotógrafos que buscaram
produzir imagens dissidentes sobre a temática funk (Entrevista, 2016/08).
Importante salientar a relevância do fotógrafo ser aceito em uma favela. Ambos
os fotógrafos, tanto de Dacorso quanto de Rosenblatt, tiveram êxito em suas
negociações, uma vez que, o porte de câmeras nas comunidades do Rio por
desconhecidos era imediatamente associado a figura do X9 (delator), ou seja, do
característico repórter com equipamento robusto atrás do furo de reportagem. Logo, era
proibida pelos chefes do tráfico.
No caso dos fotógrafos em questão, toda a negociação carrega bastante
particularidade e preocupação em reconhecer e respeitar os espaços. Dacorso e
Rosenblatt, de alguma maneira, criaram uma relação de confiança e maturação com o
tempo.
Ao longo dos anos 1998 a 2008, a artista frequentou bailes da baixada
fluminense e reuniu em uma série de exposições o registro de cerca de 20 imagens da
cena funk carioca. A exposição Totoma!, termo que se refere ao efeito sonoro do DJ ao
mixar a voz do MC, foi exibida na Bienal de Fotografia de Nice e no Maison Folie de
Moulins, em Lilie, ambas na França em 2005. As imagens também participaram da
coletiva Estética da Periferia, no Centro Cultural dos Correios, no Ateliê da Imagem,
além da Galeria 535 localizada na sede do Observatório de Favelas em 2011.
ISSN 2175-6945
Todo o registro é em preto e branco, de caráter ficcional com a presença do
cômico, do festejo, do trabalho local, não trata apenas a imagem enquanto documento,
mas de um mise-en-scène delicadamente criado e com sentido semântico variado.
No morro do Borel, durante a desmontagem de um soundsystem (parede de
caixas de som) a fotógrafa se aproximou e clicou algumas pessoas que trabalham no
local. Dacorso explica que quando revelou a imagem (Figura 3) percebeu que o retrato
era muito próximo a uma fotografia de Cartier-Bresson e escolheu assumir a releitura
batizando-a de O Menino de Bresson. Figura 2. (esquerda) - Rue Mouffetard, Paris, Portrait. Henri Cartier-Bresson, (1954).
Figura 3. (direita) - O Menino de Bresson, Borel, RJ, Portrait, Dani Dacorso. (1998 - 2008).
FONTE: Acervo Dani Dacorso (1998 – 2008)
Durante a entrevista foi perguntado a Dacorso (Entrevista, 2016) se o tema já
havia sofrido alguma restrição ou ressalva já que suas imagens são de forte teor erótico
e cômico com relação a ideia de crime, por exemplo. Ela explica que a procura pelos
seus registros sempre foi grande por parte da imprensa. Devido a seu vínculo era
possível trânsito livre por meio de suas relações amistosas com as comunidades e com
ISSN 2175-6945 os cantores, Mr. Catra, Menor do Chapa (os mesmos dos retratos policiais do jornal O
Dia) e outros. Porém, esses veículos de comunicação, jornais ou revistas, visavam
imagens que sempre versavam sobre os extremos do tema, nunca sobre as nuances. Não
se tratava de uma abordagem autoral, mas de um recorte temático buscando alguma
fotografia, no todo do trabalho, que era ilustrativa do funk. Tal abordagem da mídia
brasileira gerou uma interlocução tensa, nos diz a fotógrafa, uma vez que, os jornalistas
tendiam a conduzir as aspas com algo já bem determinado e pré-concebido. Explica que
o contato com a mídia brasileira sempre fora muito complicado.
A fotógrafa conta que houve uma ocasião em que o cônsul brasileiro em uma
exposição na Holanda sugeriu a retirada de uma de suas imagens (Figura 4). Afirmava
não ser representativa do Brasil (grifo meu), na ocasião, o curador da exposição não
cedeu à exigência e manteve a imagem a contragosto do cônsul.
Figura 4. – "De Brinquedo" – Série “Totomá!”
FONTE: Acervo Dani Dacorso (1998 – 2008)
Dacorso relatou que algumas abordagens internacionais produziam um certo
exotismo, no entanto havia mais reconhecimento, respeito e menos determinismos.
ISSN 2175-6945 Diferente de outras exposições no país onde foi sugerida a retirada de algumas
fotografias de uma de suas séries por seguir um recorte por faixa-etária.
Mas nem sempre a circulação por diferentes espaços se reservou a experiências
desgastantes. Na ocasião da Holanda (Netherlands Fotomuseum, Rotterdam), o curador
da mostra sugeriu que as imagens ganhariam força se acompanhadas de áudio. Sugeriu
que a musicalidade pudesse alargar os sentidos de quem estava distante do contexto das
fotografias, o que foi visto de forma muito positiva pela artista.
Figura 5. - SlideShow das Imagens de Roosemblatt. Dona Marta. Arvore Seca. Campo da Ordem,
Complexo da Penha. (2009)10
FONTE: Acervo Vincent Rosenblatt (2005 – 2014)
As disputas, exemplificadas nos relatos de Dacorso (Entrevista, 2016: agosto),
estão sob um contexto de criação de novos imaginários sobre a periferia brasileira, em
especial no Rio, que demarcam estrategicamente um certo lugar em crescente ebulição e
anseios por outros enquadramentos.
Como dito anteriormente, percebeu-se que a década de 90 foi marcada por uma
quebra de hegemonia na representação dos favelados tornando suas visibilidades mais
plurais. De certa maneira, outros sentidos passaram a ser reivindicados justamente no
mesmo local de origem de onde fora o “berço do samba”.
A imagem do sambista não é ameaçadora, pois não fere os paradigmas de
comportamento sexual da mesma maneira que o funk faz. Dacorso se diz incomodada
10 Também, para além de espaços expositivos, Rosenblatt frequentemente leva projeções (Figura 5.) do "Rio Baile Funk" ao Morro do São João, na Vila Cruzeiro, no Santa Marta e na Boca do Mato.
ISSN 2175-6945 pela constante acusação e rejeição que vê e ouve acerca da sexualidade que circunda
funk. O excesso de rejeição ao corpo do funkeiro é algo que “dá nas vistas” de maneira
repugnante, principalmente quando certas imagens convocam um olhar ao que é tomado
como estranho.
Ela explica que certa vez uma de suas fotografias (Figura 6.) foi solicitada para
ilustrar uma capa de um livro sobre funk, de autoria do jornalista Silvio Essinger
(2005). A editora produziu intervenções bruscas transformando a imagem em uma
espécie de ilustração ao estilo pop-art, além da retirada das mãos que compõem um teor
erótico na cena. Figura 6. Direita: Imagem original "Monstro de Mil Mãos". Série "Totomá". Esquerda: Capa do Livro.
FONTE: Acervo Dani Dacorso (1998 – 2008)
A fotografia foi reapropriada de forma moral, higienizando seu contexto de
maneira a favorecer uma imagem “menos agressiva” e escandalizante. Dacorso tem
como característica nomear as obras criando extensões de sentido, no caso do “Monstro
de Mil Mãos” a alteração provoca uma leitura deslocada de sua ideia original, o que
evidentemente não era o desejo da autora da fotografia.
ISSN 2175-6945
Como estes, há muitos vetores de força que deixam claro que o funk é algo que
beira o insuportável uma vez que promove rupturas num projeto “ideal de Brasil”. Uma
série de estigmas podem são criados, como fica evidente no canal do Youtube chamado
Mamilos Molengas, criado em 2010, onde o youtuber do canal de heavy metal cria
paródias emitindo juízos de valor em torno de gêneros da música popular massiva –
caso do funk. Logo, é a partir destas concepções que certos estigmas são ativados. Ao elogiar a paródia ou discutir com seus detratores, os antifãs de funk utilizam de forma recorrente estigmas que marcam o funk desde a sua consolidação no Brasil, tais quais a associação com a pobreza e a criminalidade, como elementos que reforçariam processos de distinção em relação àqueles que não gostam do gênero. Preconceitos de classe, raça e gênero aparecem nos discursos de modo a legitimar o caráter superior do heavy metal, representado aqui como um gênero mais “intelectualizado”. Tais colocações ecoam um paradigma elitista sobre a cultura popular periférica como manifestação necessariamente inferior devido à falta de acesso dos mais pobres à educação, ignorando que os fãs de outros gêneros musicais, como o próprio heavy metal, são constituídos por uma diversidade de classes sociais. Tais discursos remetem aos apontamentos de Martín-Barbero (2009) sobre processos classificatórios que classificam a cultura popular não pelo que ela é, mas pelo que lhe falta. Nesse sentido, destacamos ainda a argumentação pautada pelo ideal iluminista da cultura como fator de desenvolvimento de uma nação. De acordo com os críticos do funk, o sucesso do gênero seria um atestado de subdesenvolvimento para o país – o gênero, aqui, aparece diretamente relacionado a processos de alienação da população brasileira. (Holzbach et al. 2015: 144)
No entanto, com destrezas que podem ser semelhante as do samba, o funk parece
ser socialmente tão fluido quanto. Estrategicamente, provocou fusões. Quando
conveniente, passa a ocupar as frestas em que é posto, ou, se coloca. Logo, o funk foi
alastrado e pulverizado, sendo lógico e indiscutível, que o efeito em grande parte advém
das relações mercadológicas que o permeiam. Mesmo não sendo o objetivo do trabalho,
não é possível passar por essa discussão sem alertar os extremos que a indústria
fonográfica vive. Desde um MC que faz cerca de 3 a 5 shows em favelas diferentes
ganhando em média 100 reais por show, conforme afirma Lopes (2010: 96), até
megashows impregnados de índices do pop americano como trocas de figurinos e
cenários, corpo de bailarinos, ventiladores para cabelos esvoaçantes, bandas de
músicos.11
11 Nos dias atuais, foi facultado a mim a função de repórter fotográfico. Exercendo essa função fui contratado pela equipe do Dennis DJ a produção e coberturas de diversos shows no final de 2015, início
ISSN 2175-6945
Quando, em uma entrevista, MC Smith12 foi retrucado sobre o que seria o auge
de sua carreira, já que o mesmo não reconhece que esse momento tenha chegado, ele
responde de imediato – “ser convidado para cantar no Rock In Rio”. Curioso que todos
os cantores de funk por alguma razão retiram o termo MC da frente do nome quando
alcançam certa notoriedade nacional. Gesto simbólico que parece significar um
afastamento de qualquer possibilidade de precariedade, como pouco figurino, equipe
reduzida, baixo cachê e outros, tão comuns entre os MCs de produções menos robustas.
De certo modo, entre um MC e o Rock in Rio há vetores de forças que produzem um
brusco processo de homogeneização de identidade.
Nesse sentido, as imagens dos fotógrafos escapolem de produzir uma representação
sujeita a essas expectativas, preservando, assim, possibilidade de narrativas dissidentes
que se contrapõem as apropriações midiáticas tão corriqueiras às temáticas de
complexidade social.
Considerações finais: teria o fotógrafo um papel no funk?
A experiência de violência física e moral de maneira tão forte, parece marcar os
MCs de um modo muito profundo em seus espaços afetivo-sociais. Durante a entrevista
pedi a Dacorso que sanasse uma curiosidade, expliquei que houvera sido marcante o
momento em que no MAR (Museu de Arte do Rio) ela estava de mãos dadas de
maneira veemente ao Menor do Chapa, enquanto Rosenblatt exibia o recorte de jornal
com sua imagem como criminoso. Ela explicou que se tratava de um período em que o
tema era bastante presente em seu dia à dia e à época Menor do Chapa descortinou sua
comunidade a ela, a levou em sua casa, a apresentou à sua mãe, sua laje e o fotografou
em diversos shows e ocasiões, respondendo assim à proximidade.
de 2016. O DJ é um dos mais bem remunerados do segmento. Há eventos desde um Bar Mitzvá no Parque Lage, como também formaturas de medicinas e diferentes cidades e estados do país. Esses acessos, que escolho entendê-los como fontes de meu trabalho, denunciam a dimensão e proporção que o funk angariou por meio de diversos vetores de força econômica e social. 12 Editorial Fotográfico produzido e fotografado por mim para o site da Rádio FM O Dia.In: http://www.fmodia.com.br/novidades/2014/09/19/mc-smith-tudo-que-e-proibido-o-povo-se-amarra/ acessado em: 07/08/2016
ISSN 2175-6945
Por fim, questionei se nos espaços em que circulou ela sentiu que seu trabalho
oferecia alguma militância diante da enxurrada de estigmas visuais? Disse-me que de
algum modo sim, mas uma militância do corpo feminino uma vez que o corte de classe
daquelas mulheres em seus espaços de entretenimento passaram a ser visíveis. Ter uma
existência.
Dacorso também contou que em alguns ambientes teve que defender o funk
quando fazia alguma exposição oral mesmo sabendo que não iria dar conta das
contradições do gênero. Afirmou que sempre foi difícil encontrar lugar para essas falas,
que as visões sempre foram polarizadas. Protestou afirmando que “ignorar os contornos
é retirar a gênese do funk de alguma maneira.”
Sendo assim, foi possível discutir o papel do fotógrafo diante de realidades
sociais tão plurais na representação de uma cultura de origem subalterna. A
complexidade de legitimação do funk tanto legal, quanto subjetiva, encontrou poucos
engajamentos éticos no que tange a sua ethos pelos outros meios de produção
hegemônicos. Nesse sentido, o campo da arte pode de algum modo produzir
dissidências no registro imagético da diversidade cultural do negro no Brasil.
E, ainda, ao oferecer contornos mais densos às nuances que configuram aspectos
da identidade brasileira forjados nos processos históricos, sociais e econômicos, cada
vez mais complexos e pulverizados, que também se pode confiar a arte um lugar
importante na produção de imaginários contra-hegemônicos.
REFERÊNCIAS: BOURDIEU, Pierre. O ponto de vista do autor: algumas propriedades gerais dos campos de produção cultural. IN: As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 243 – 311. ________.A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Zouk: EDUSP, 2008.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar y salir de la modernidad. Mexico, Ed. Grijalb, 1990.
CAETANO, Mariana Gomes. My Pussy é o poder. Representação feminina através do funk: identidade, feminismo e indústria cultural. Rio de Janeiro: UFF – Instituto de Arte e Comunicação Social. Mestrado (Dissertação). 2016.
ISSN 2175-6945 BUZANOVSKY, Maria Puppim. Exposição: Sharigrafia. Rio de Janeiro. 2015.
BUZANOVSKY, Maria. Et All. 5ª Conferência Funk. Debate "O olhar - O valor da documentação e do Audiovisual no Funk". M.A.R. – MUSEU DE ARTE DE RIO. 18/Maio/2016. In: http://museudeartedorio.org.br/pt-br/evento/5a-conferencia-funk-1 Acessado em 21/02/2017.
DACORSO, Daniela. TOTOMA! Dez anos de Funk. Rio de Janeiro. 1998 – 2008. ________. Entrevista por Rodolfo Viana. Agostos. 2016.
FM O DIA, Rádio. Disponível em: www.fmodia.com.br. Acessado em: fev/2017. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização, introdução e revisão técnica . Roberto Machado. 26ª ed. São Paulo. Ed. Graal. 2013.
LOPES, Adriana Carvalho. “Funk-se quem quiser” no batidão negro da cidade carioca. Tese (doutorado). Unicamp. Instituto de Estudos da Linguagem. 2010. NO BRASIL. Liberdade para todos nós dj! Reunimos as memórias do produtor Rudah Ribeiro com o trabalho da fotógrafa Daniela Dacorso para falar de funk. 2014. In: http://nobrasil.co/liberdade-para-todos-nos-dj/ Acessado em: 8/10/2016.
NOVAES, Dennis. Funk Proibidão: Música e Poder nas Favelas Cariocas. Rio de Janeiro: UFRJ. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Mestrado (Dissertação). 2016.
MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro. Editora UFRJ. 2009.
ROSENBLATT, Vincent. Acervo. “Rio Baile Funk! Favela Black! In: vincentrosenblatt.photoshelter.com, Acessado em: abr/2017. VIANNA, Hermano. Funk e cultura popular carioca. In: Estudos históricos, Rio de Janeiro. Vol.3. n.6. 1990. _________. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. Museu nacional programa de pós-graduação em antropologia social. UFRJ. 1987. HOLZBACH, Ariane. Et All. Cultura Pop. In: Heavy Metal X Funk: disputas de gênero na cultura pop a partir do canal Mamilos Molenga. FERRAZ, Rogerio; CARREIRO, Rodrigo; SÁ; Simone Pereira de; (Org.). Salvador: EDUFBA. Brasília. Compós, 2015. SÁ, Simone Pereira de. Entre raízes e antenas – Notas sobre música popular e identidade nacional. Manaus, Anais Intercom, 2000.