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Dia Nacional do Azulejo Está na altura de os portugueses voltarem a olhar os seus azulejos São tão comuns em Portugal que os temos como um dado adquirido. Mas quem diga que os azulejos são a mais original contribuição portuguesa para o património artístico europeu. Por isso, prepara-se a sua candidatura a Património da Humanidade e, amanhã, celebra-se o seu dia. A Fugas levanta um pouco o véu desta relação entre portugueses e azulejos. Andreia Marques Pereira "Os portugueses nascem em lo- cais com azulejos, porque os hos- pitais eram antigos conventos e es- tão cheios de azulejos, crescem em cidades cheias de azulejos, casam em igrejas com azulejos e, quando morrem, são enterrados também em locais com azulejos..." Quem o disse terá sido o engenheiro Santos Simões, quem o parafraseia é a in- vestigadora e coordenadora do Az - Rede de Investigação em Azulejo da Universidade de Lisboa Maria do Rosário Salema de Carvalho, para justificar: "Por isso [os portugueses] acabaram por não lhes conferir a im- portância que merecem. São um da- do adquirido". O mesmo não acontece com os estrangeiros que, ao falarem de Portugal, entre os elogios, que por estes dias correm soltos, destacam, frequentemente, os azulejos. Pro- vavelmente falta-nos a consciência da singularidade desta forma de ex-

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Dia Nacional do Azulejo

Está na alturade os portuguesesvoltarem a olharos seus azulejosSão tão comuns em Portugal que os temos como umdado adquirido. Mas há quem diga que os azulejos são amais original contribuição portuguesa para o patrimónioartístico europeu. Por isso, prepara-se a sua candidaturaa Património da Humanidade e, amanhã, celebra-se o seudia. A Fugas levanta um pouco o véu desta relação entreportugueses e azulejos. Andreia Marques Pereira

• "Os portugueses nascem em lo-cais com azulejos, porque os hos-

pitais eram antigos conventos e es-tão cheios de azulejos, crescem emcidades cheias de azulejos, casamem igrejas com azulejos e, quandomorrem, são enterrados tambémem locais com azulejos..." Quem o

disse terá sido o engenheiro Santos

Simões, quem o parafraseia é a in-

vestigadora e coordenadora do Az- Rede de Investigação em Azulejoda Universidade de Lisboa Maria doRosário Salema de Carvalho, parajustificar: "Por isso [os portugueses]acabaram por não lhes conferir a im-

portância que merecem. São um da-do adquirido".

O mesmo não acontece com os

estrangeiros que, ao falarem dePortugal, entre os elogios, que porestes dias correm soltos, destacam,frequentemente, os azulejos. Pro-vavelmente falta-nos a consciênciada singularidade desta forma de ex-

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pressão artística no contexto mun-dial. É que o azulejo tem sido utiliza-do em Portugal ininterruptamenteao longo dos últimos cinco séculosde uma forma que não encontraequivalência noutro país - nem emtermos de presença no território,nem de escala ou de capacidade de

renovação. Esta originalidade, notao conservador do Museu Nacionaldo Azulejo (MNAz) e investigadorAlexandre Pais, é referida "por dife-rentes intelectuais desde a segundametade do século XIX" e é "tambémapontada por estudiosos da cerâ-mica de outros países" - tanto que"Portugal tem marcado a sua parti-cipação em feiras internacionais e

grandes exposições mundiais (qua-se) sempre com azulejos" (pense-senos edifícios da Expo 98, no pavi-lhão da Feira de Hanôver, por Siza

Vieira, ou no cacilheiro de JoanaVasconcelos na Bienal de Veneza).Esta originalidade é o principal mo-tor da proposta da candidatura do

azulejo português a Património daHumanidade. O projecto ainda está

em desenvolvimento e, por enquan-to, assinala-se amanhã, 6 de Maio, oDia Nacional do Azulejo.

Não se pense no azulejo como

Na página ao lado, a estaçãoda Ameixoeira, uma das muitasdo metro de Lisboa que exibemazulejos; ao lado, os famosospainéis da Estação de SãoBento, no Porto

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uma forma imutável de expressãoartística, se calhar "a contribuiçãomais original de Portugal para o pa-trimónio artístico europeu", reflec-te João Mimoso, do Laboratório Na-cional de Engenharia Civil (LNEC),e co-coordenador, com AlexandrePais (em representação do MNAz),do projecto FCT-Azure, que está adesenvolver a candidatura a patri-mónio mundial. Na verdade, "emcada período o azulejo soube rein-ventar-se e apresenta característi-cas específicas", nota Maria RosárioCarvalho. Provavelmente não nosapercebemos, mas hoje atravessa-mos uma nova fase, aponta Alexan-dre Pais, marcada pela transferência

para o azulejo de uma série ->

O edifício do Terminal deCruzeiros do Porto de Leixões,em Matosinhos, também tem noazulejo um dos seus elementosdiferenciadores,- na página aolado, o Palácio do Marquês deFronteira, em Lisboa

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de novas linguagens e estéticas: da

pixelização das imagens (como ostrabalhos do norte-americano IvanChermayeffno Oceanário de Lisboa,ou do Atelier Can-Ran na estaçãofluvial do Terreiro do Paço) à inte-gração de jogos de luz cristalizadosnas fachadas (no edifício Écran, do

Parque das Nações, por Jorge Mar-tins, ou no túnel da Infante Santo,por Eduardo Nery); da linguagemdos comics e da banda desenhada(projectos de Erro, no Parque das

Nações) à construção de largas com-posições figurativas empregandoazulejos industriais das décadas de

1960/70 e que só ganham expres-são à distância (Estúdios Pedrita); da

construção de volumetrias geomé-tricas que dão novos entendimen-tos e texturas às superfícies (facha-das de Maria Ana Vasco Costa) aostrabalhos com o chamado "azulejocinético" (peças com volumetria es-

truturando composições dinâmicasou pintando mensagens só perceptí-veis de determinados ângulos, peloAtelier Can-Ran). Contudo, sublinhao investigador, talvez o mais radical(e interessante) exemplo seja a "a in-

tegração da street art na azulejaria"- como vemos nos murais de grandedimensão no Jardim Botto Machado(de André Teixeira) ou, sobretudo,no trabalho desenvolvido por AddFuel na Avenida Infante Santo. "Comesta migração o próprio conceito detransitoriedade do grafitti é altera-do, ganha permanência e durabili-dade, a sua rebeldia torna-se partedo establishment e estes são aspectosque estão a mudar também o pró-prio posicionamento do azulejo",explica Alexandre Pais. Se esta mu-dança irâ marcar o século XXI, "só

daqui a 80 anos o saberemos"; porenquanto, Alexandre Pais cita a so-

cióloga Marluci Menezes, do LNEC,

que já definiu a passagem do azulejo

de Arte Pública, que caracterizou oséculo XX, para a Arte Urbana.

Esta é mais uma das etapas do

azulejo que se inscreve numa lon-

ga genealogia e que, de certa forma,

já se incorporou no ADN português.Tomando sempre formas diferentes,"até porque é uma manifestação ar-tística que se renova todos os dias",diz a directora do MNAz, Maria An-tónia Pinto de Matos, os azulejosentraram pelos palácios, igrejas econventos (fizeram-se, literalmente,"ouro sobre azul" no século XVIII,com a combinação de grandes, e

sumptuosos, conjuntos de azule-jos narrativos com talha dourada),saltaram para as fachadas no séculoXIX (articulando-se com várias pe-ças cerâmicas, como balaústres, es-

tátuas, telhas vidradas, potes) e, des-

de então, não mais saíram da rua.Uma espécie de "mudam-se os tem-pos, mudam-se as vontades", mas

sempre com uma "permanência de

gosto", salienta Maria Rosário Car-valho. "E", continua, "numa relaçãocom a arquitectura que, creio, é umdos pontos fortes e um dos que mais

destaca a azulejaria portuguesa deoutras manifestações congéneres.Há um sentido de arquitectura, de

espaço e de escala que actua comomeio adjectivador e transformadordos espaços, sejam eles interioresou exteriores."Ouro sobre azul,literalmentePara a candidatura a património daUNESCO só estão, precisamente, a

ser considerados azulejos integra-dos na arquitectura, "pois é esteo propósito destes revestimentoscerâmicos e é da simbiose dos doiselementos que nasce o carácteroriginal da azulejaria portuguesa",justifica Alexandre Pais. Essa sim-biose é um dos "desafios" do MNAz,que funciona como uma verdadeiraporta de entrada para os 500 anosde universo azulejar (e cerâmico)português, conta Maria Pinto Matos,onde os azulejos não estão aplicadosin situ - excepto os do antigo Con-vento da Madre de Deus, onde estáinstalado. "É verdade que os azule-

jos estão fora do contexto, e quando

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retiramos um painel normalmenteperde-se um pouco da história, da

mensagem, mas é a maneira de os

salvaguardar. Temos, por exemplo,azulejos de palácios e conventos quejá não existem", concretiza MariaPinto Matos. Um mundo perdido,portanto, mas conservado, estu-dado e explicado no MNAZ. "É umuniverso fascinante", resume MariaPinto Matos, a que os estrangeirossão mais sensíveis. Pelo menos noque ao MNAz concerne. "O públi-co é, na sua maioria, estrangeiro",avalia, "os portugueses gostam, masnão vêm tanto".

E voltamos ao início. Parece quese cumpre o velho ditado, "ninguémé profeta na sua própria terra", ain-da que Rosário Salema Carvalho seja

optimista, afirmando que "se per-cebe uma muito maior consciência

patrimonial e uma atenção que eramais rara há alguns anos". O DiaNacional do Azulejo, criado o anopassado, pode ajudar e ele própriosurgiu por iniciativa do Projecto SOS

Azulejo, da Polícia Judiciária, quedesde 2007 se dedica à protecção e

valorização do património azulejarportuguês. Um património que, co-mo refere, Maria Pinto Matos, nãose restringe ao país, viaja pela geo-grafia dos Descobrimentos, Brasil,África e Ásia. Os maiores exemplosin situ estão, aliás, no Brasil, acres-centa. Se calhar, aventamos, deveriahaver antes um "dia do azulejo na-cional". 0 que haverá, em Outubro,é o "Mês do Azulejo", iniciativa doMNAz, do LNEC e da Az - Rede de

Investigação do Azulejo, onde é es-

perada a apresentação da resoluçãode um dos "mistérios" da azulejariaportuguesa: esclarecer as origensda produção do azulejo de faiança(majólica) em Portugal, avança JoãoMimoso. Mais um dado a acrescen-tar à candidatura à UNESCO, mas

que não explica a relação duradourados portugueses com os azulejos.Mesmo inconscientemente, é ourosobre azul (e a metáfora aqui anda

perto da origem).

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