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361 Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012 RESUMO Os aluminetos de níquel possuem propriedades que os tornam adequados para uso em componentes submetidos a temperaturas elevadas. Devido à estrutura ordenada desse composto, mantém a resistência mecânica a altas temperaturas, o que não ocorre com as ligas convencionais. O alumínio presente forma uma camada de óxido passivante que protege a superfície da oxidação. O presente trabalho objetiva verificar a estabilidade microestrutural de revestimentos de aluminetos de níquel depositados por plasma por arco transferido (PTA) com pó atomizado. Para tal, foram utilizados pós atomizados provenientes da liga Ni-Cr-Al-C fundida que foram depositados por PTA. As amostras foram cortadas, submetidas a diferentes temperaturas (600, 800, 1000 e 1200-ºC), por tempos diferentes (1, 6, 24 e 72h), e, em seguida, foram cortadas, embutidas e atacadas. As análises foram feitas com microscopia eletrônica de varredura, microscopia óptica, dureza Vickers e análises químicas por EDS. Observou-se que a liga Ni-Cr-Al-C é estável quando exposta a altas temperaturas somente nas primeiras horas, conforme o tempo de exposição aumenta, surgem precipitações de novas fases, além de se notar uma queda na dureza das amostras. Palavras-chave: Aluminetos de Níquel. Estabilidade microestrutural. Intermetálicos. Plasma por arco transferido (PTA). NiCrAlC. ESTABILIDADE ESTRUTURAL DE REVESTIMENTOS DE ALUMINETOS DE NÍQUEL DEPOSITADOS POR PLASMA POR ARCO TRANSFERIDO COM PÓ ATOMIZADO Ana Caroline Crema de Almeida* Marjorie Benegra** * Aluna do 4º ano de Engenharia Mecânica (UFPR). Orientadora do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected]. ** Doutora em Materiais (USP). Coordenadora de Engenharia de Produção e Professora da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

ESTABILIDADE ESTRUTURAL DE REVESTIMENTOS DE … · melhorar as propriedades mecânicas. Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012 363 O Alumínio e o Titânio,

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361Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

Os aluminetos de níquel possuem propriedades que os tornam adequados para uso em componentes submetidos a temperaturas elevadas. Devido à estrutura ordenada desse composto, mantém a resistência mecânica a altas temperaturas, o que não ocorre com as ligas convencionais. O alumínio presente forma uma camada de óxido passivante que protege a superfície da oxidação. O presente trabalho objetiva verificar a estabilidade microestrutural de revestimentos de aluminetos de níquel depositados por plasma por arco transferido (PTA) com pó atomizado. Para tal, foram utilizados pós atomizados provenientes da liga Ni-Cr-Al-C fundida que foram depositados por PTA. As amostras foram cortadas, submetidas a diferentes temperaturas (600, 800, 1000 e 1200-ºC), por tempos diferentes (1, 6, 24 e 72h), e, em seguida, foram cortadas, embutidas e atacadas. As análises foram feitas com microscopia eletrônica de varredura, microscopia óptica, dureza Vickers e análises químicas por EDS. Observou-se que a liga Ni-Cr-Al-C é estável quando exposta a altas temperaturas somente nas primeiras horas, conforme o tempo de exposição aumenta, surgem precipitações de novas fases, além de se notar uma queda na dureza das amostras.

Palavras-chave: Aluminetos de Níquel. Estabilidade microestrutural. Intermetálicos. Plasma por arco transferido (PTA). NiCrAlC.

ESTABILIDADE ESTRUTURAL DE REVESTIMENTOS DE ALUMINETOS DE NÍQUEL DEPOSITADOS POR PLASMA POR ARCO TRANSFERIDO COM PÓ ATOMIZADO

Ana Caroline Crema de Almeida*Marjorie Benegra**

* Aluna do 4º ano de Engenharia Mecânica (UFPR). Orientadora do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Doutora em Materiais (USP). Coordenadora de Engenharia de Produção e Professora da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA362

INTRODUÇÃO

Os metais encontrados na natureza aparecem, na maioria das vezes, como produtos da corrosão, ou seja, na forma de óxidos, sulfetos, etc. Assim, o processo corrosivo de oxidação é uma maneira que o material tem para retornar a sua forma de origem, que é a mais estável (LIU; STIEGLER,1992; MEIER, 1989).

Os metais utilizados na indústria necessitam de alto investimento financeiro para se tornarem adequados para o uso, e a corrosão se torna um prejuízo. Com exceção do ouro, todos os metais puros e ligas são instáveis ao ar à temperatura ambiente, eles tendem a formar camadas de óxidos na interface ar-metal por difusão. Altas temperaturas aceleram o processo de oxidação.

O nome superliga indica que foram utilizados vários elementos para criá-la e sua classificação é de acordo com o elemento que aparece em maior quantidade. As superligas de Níquel apresentam excelente resistência mecânica em uma vasta faixa de temperaturas. Sua estrutura cristalina é cúbica de face centrada (CFC), e a microestrutura, austenítica é conhecida como fase y.

Não há mudança de fase desde a temperatura ambiente, até a temperatura de fusão. Essa característica permite que as superligas sejam utilizadas em várias temperaturas. A estrutura do tipo CFC possui alta capacidade de manter resistência à tração, à ruptura e boas propriedades de fluência. Outras características são: excelente módulo de elasticidade e a alta difusividade que os elementos de adição possuem nesse tipo de matriz.

As ligas de Níquel são endurecíveis principalmente por solução sólida e por precipitação de carbonetos e de fases intermetálicas, que podem surgir durante o tratamento térmico ou mesmo durante o prolongado serviço em temperaturas elevadas. As fases intermetálicas são fases que se formam pela ligação entre dois ou mais metais com razão estequiométrica definida (BENEGRA 2010).

As propriedades da matriz austenítica (CFC) rica em Níquel, já são favoráveis para a excelente resistência das superligas às altas temperaturas, no entanto, ao acrescentar determinados elementos, essas propriedades são reforçadas.

Com a adição do Cromo, há uma melhora significativa na resistência oxidação-corrosão em altas temperaturas. O Cromo é capaz de formar uma camada de óxido Cr2 O3 que é aderente e não altera a estrutura da liga. Essa camada se comporta como uma proteção que não permite que a corrosão se expanda. O comportamento desse óxido é o mesmo dos aços inoxidáveis, no entanto, para que o Cromo forme esse óxido, é necessário que sua composição esteja entre 10 e 30%. O Cromo é o único elemento capaz de reduzir os efeitos da oxidação na superliga, os outros elementos são adicionados com o intuito de melhorar as propriedades mecânicas.

363Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

O Alumínio e o Titânio, quando adicionados à superliga, formam a fase intermetálica y’ (Ni3 (Al,Ti)) ao se combinarem com o Níquel. Essa fase é responsável pelo endurecimento das superligas e é muito estável do ponto de vista termodinâmico. Portanto, a resistência mecânica da superliga depende fortemente das características da estrutura das partículas dessa fase y’, ou seja, característica como: quantidade, formato, tamanho, etc. Os precipitados da fase y’ são tão finos que somente podem ser observados por microscopia eletrônica, de varredura e de transmissão.

A fase y’ não tem amolecimento de grande importância com o aumento da temperatura (ao contrário da matriz y), podendo até endurecer, ou seja, a temperatura não influencia a origem da elevada resistência mecânica. Porém, essa fase não pode ser exagerada, por ela possui uma ductilidade muito inferior à fase y.

Outros elementos como Tântalo, Nióbio, Molibdênio, Tungstênio e o Cromo também podem formar a segunda fase y’, sendo os três últimos em menor quantidade. A composição química da fase y’ dependerá dos elementos substitucionais. Os átomos de Níquel podem ser substituídos parcialmente por átomos de Cobalto, e os átomos de Alumínio podem ser substituídos parcialmente por átomos de Titânio, em maior escala, e por Nióbio, Vanádio, e Tântalo, em menor escala. Elementos, como Molibdênio, Cromo e o Ferro, podem substituir parcialmente tanto o Níquel como o Alumínio (SIMS; HAGEL, 1972).

A adição de Carbono serve basicamente para aumentar a dureza da liga, no entanto algumas porções de Carbono são muito difíceis de serem retiradas da liga e acabam permanecendo. O Carbono reage com os elementos da liga formando carbetos, estruturas resultantes da união de Carbono com metal. Esses carbetos limitam o movimento dos contornos de grão em altas temperaturas, assim, seu crescimento ocorre preferencialmente nos contornos.

Yoshimura e Goldenstein (1996) desenvolveram uma nova família de liga a base de Níquel chamada Ni-Cr-Al-C, composta por uma matriz intermetálica Ni3Al e dispersão de carbonetos de Cromo com fração volumétrica entre 5 e 10% (SILVA, 2006). O intuito inicial era ter um material competitivo com as ligas de Cobalto pelo alto custo e/ou ligas de Ferro Fundido de Alto Cromo. Esses dois tipos de liga já eram muito utilizados, mas perdiam resistência a altas temperaturas.

Kunioshi et al. (2005) fizeram um estudo preliminar de oxidação nas ligas NiCrAlC e compararam os resultados com Stellite 6 e uma liga ferrosa empregada na indústria petroquímica. Os resultados indicaram que o Stellite 6 teve menor ganho de massa em relação ao Ni-Cr-Al-C, e a taxa de oxidação de ambos foram semelhantes a 700ºC, porém o óxido formado na liga Stellite 6 foi menos aderente. Em relação à liga ferrosa, esta apresentou menor resistência à oxidação do que a Ni-Cr-Al-C em temperaturas superiores a 900ºC.

Outros ensaios de desgaste, carburação e erosão, feitos nas ligas fundidas, revelam que essa família de ligas pode ser de grande interesse comercial. Benegra et al. (2010)

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA364

depositaram pó atomizado de Ni-Cr-Al-C por aspersão térmica a chama hipersônica (High Velocity Oxigen Fuel – HVOF). Esses revestimentos mostraram maior resistência à corrosão do que o substrato de AISI 316L em solução aquosa HCl 5% a 40ºC. Além disso, sua taxa de desgaste abrasivo foi muito menor que as descritas na literatura para materiais fundidos de mesma composição, e somente uma ordem de grandeza maior que a liga Ni-Cr-Al-C fundida e tratada termicamente (envelhecida).

Apesar de as Ni-Cr-Al-C’s apresentarem propriedades tão boas ou melhores do que o Stelitte 6 e o Ferro Fundido Branco de Alto Cromo (FFBAC), essas ligas contam com grande dificuldade em sua confecção como fundidas inviabilizando seu uso comercial. Uma maneira de aproveitar o potencial dessa família de materiais sem precisar fundi-lo, seria processá-lo para sua utilização como revestimento.

O plasma por arco transferido (Plasma Transferred Arc – PTA) é um processo de aspersão térmica com características de soldagem, utiliza material em forma de pó para alimentação, o que permite a deposição de diversas ligas e possui uma fonte de calor, tal que, proporciona a fusão superficial do substrato, diluindo parte dele no revestimento (BENEGRA, 2010). O PTA tem vantagem sobre a deposição a laser, por apresentar taxas de resfriamento menores, o que faz com que os precipitados sejam mais estáveis quando submetidos a altas temperaturas, além de poder produzir cordões mais largos e ser um processo mais barato que o laser (BENEGRA, 2010).

Em relação aos outros processos de soldagem, o PTA tem a vantagem de empregar menor energia no processamento diminuindo a diluição e a zona termicamente afetada. Além disso, em revestimentos processados por PTA, observa-se que a variação de composição na zona diluída da superfície até o substrato é abrupta, o que garante um revestimento com características mais parecidas com a liga depositada do que o observado em outros processos de soldagem, em que a variação de composição é praticamente linear ao longo do perfil diluído. Estudos anteriores comprovam a possibilidade de se obter por PTA revestimentos intermetálicos espessos, com boa qualidade e soldabilidade (BAZZI; D’OLIVEIRA, 2004).

O objetivo deste estudo é avaliar a estabilidade estrutural de aluminetos de Níquel, obtidos por PTA com pó atomizado, tratados em diferentes temperaturas e tempos.

365Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

2 MATERIAIS E MÉTODOS

2.1 MATERIAIS PARA CONFECÇÃO DOS REVESTIMENTOS

Os materiais e os métodos utilizados na confecção dos revestimentos encontram-se no trabalho de Benegra (2010). A metodologia explicada neste trabalho refere-se à parte realizada pela aluna nos laboratórios.

Para melhor entendimento dos resultados expostos, a Tabela 1 apresenta a composição química do substrato em que o cordão de PTA foi depositado e a Tabela 2 apresenta a composição química da liga Ni-Cr-Al-C. O único parâmetro que variou no PTA foi a intensidade da corrente utilizada (130 e 160 amperes).

TABELA 1 – Composição química do aço inoxidável AISI 316L, fornecida pelo fabricante

FONTE: Benegra, 2010

TABELA 2 – Composição química da liga Ni-Cr-Al-C

FONTE: Benegra, 2010

2.2 ENSAIO DE ESTABILIDADE MICROESTRUTURAL DOS REVESTIMENTOS

Foram cortadas 16 amostras da liga atomizada depositada com 130 A, nomeadas como ATM130, e 16 amostras da liga atomizada depositada com 160 A, nomeadas como ATM160. As amostras possuíam, em média, 4 mm de espessura. Foi utilizada uma cortadeira da Struers do modelo Discotom-6. Após obter as 32 amostras cortadas, elas foram submetidas à temperatura em forno mufla da marca Jung e modelo 9612. Cada amostra da liga ATM130 e da ATM160 foram tratadas em temperaturas e tempos diferentes, como mostra a Tabela 3.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA366

TABELA 3 – Tratamentos térmicos realizados

Temperatura (ºC) 600 800 1000 1200

Tempo (horas)

1ATM 130 e

ATM160ATM 130

e ATM160ATM 130 e

ATM160ATM 130 e

ATM160

6ATM 130 e

ATM160ATM 130

e ATM160ATM 130 e

ATM160ATM 130 e

ATM160

24ATM 130 e

ATM160ATM 130

e ATM160ATM 130 e

ATM160ATM 130 e

ATM160

72ATM 130 e

ATM160ATM 130

e ATM160ATM 130 e

ATM160----

FONTE: Elaboração própria

Assim que retiradas do forno, cada amostra foi embutida a quente com o auxílio da máquina da Struers, modelo CitoPress-20. Em seguida, os corpos de prova foram lixados nas lixadeiras Struers, do tipo LaboPol-25, utilizando-se lixas de granulometria #220, #320, #500 e #800, nessa ordem. O polimento foi a próxima etapa, realizado nas máquinas da Struers, modelo LaboPol-5, até 1µm com pasta de diamante.

2.3 MICRODUREZAS

As microdurezas foram feitas, com um microdurômetro Wilson Instruments, modelo 402MVD, e a carga utilizada nas amostras estudadas, foi de 500 gf.

Três perfis foram feitos na secção longitudinal de cada amostra, cada um contendo cinco medidas no revestimento. No substrato, foram feitas três medidas, porque não houve variação significativa na dureza entre as endentações feitas no substrato. O espaçamento entre as impressões variou de 0,30mm.

367Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

A Figura 1 esquematiza as medições.

FIGURA 1 – Esquema dos perfis de microdurezas feitos na secção longitudinal das amostras

FONTE: Elaboração própria

Para que a estrutura das amostras pudesse ser analisada microestruturalmente, foi necessário realizar o ataque das peças. Houve inúmeras tentativas de atacar as amostras com o reagente Marble (que foi o utilizado na tese de doutorado que deu origem a este trabalho). No entanto, as amostras foram queimadas e não tiveram sua estrutura revelada. Após todas as tentativas, optou-se pelo ataque eletrolítico, que revelou com clareza a estrutura das amostras.

Após o ataque eletrolítico, as amostras foram enviadas ao Laboratório de Microscopia Eletrônica de Varredura do PMT/EPUSP, onde foram obtidas algumas imagens; e a outra parte das imagens foi feita com o Microscópio Axiovert 40 MAT, do Laboratório de Análise Metalográfica da FAE Centro Universitário. Na USP também foram realizadas as análises químicas qualitativas feitas por espectroscopia de energia dispersiva (Electron Dispersive Spectroscopy - EDS).

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA368

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

A Figura 2 apresenta a microestrutura com a vista geral de uma amostra da liga NiCrAlC, na qual é possível observar a estrutura dendrítica, típica da liga.

FIGURA 2 – Estrutura dendrítica da liga NiCrAlC

FONTE: Elaboração própria

Observando as primeiras amostras tratadas na temperatura de 600ºC (Figura 3A), percebe-se que há a precipitação de carbonetos, possivelmente de cromo.

Os carbonetos são as regiões pontuais mais escuras da estrutura. Esse padrão se mantém em todas as amostras submetidas a 600ºC, e em quase todas submetidas a 800ºC (Figura 3B).

FIGURA 3 – Micrografias das amostras ATM 130 tratadas a 600ºC por 1 e 6 horas (A), e a 800ºC, por 24 horas (B)

ATM130 – 600°C – 1 e 6 horas ATM130 – 800ºC – 24 horas

FONTE: Elaboração própria

369Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Ao observar a micrografia das bordas da amostra submetida a 800ºC por 72 horas (Figura 4), é perceptível o surgimento de uma camada de oxidação que ainda não estava presente no tratamento de 24 horas (Figura 3B).

O resultado da EDS da camada de óxido apresenta um valor muito alto para a quantidade de alumínio (~51,76), isso permite concluir que esse óxido é preferencialmente alumina.

FIGURA 4 – Micrografia da amostra ATM 130 tratada a 800ºC por 72 horas, e a respectiva análise química (EDS) de sua camada de óxido

ATM130 – 800ºC – 72 horas

FONTE: Elaboração própria

Nas amostras de 1000ºC, como esperado, houve um aumento considerável da camada de óxidos (Figura 5). Em detalhe, os pontos 1 e 2 são da região dendrítica e interdendrítica, e suas análises químicas são comparadas com a análise da camada. Há muito alumínio na camada, e a quantidade de ferro é menor do que a que se encontra nos pontos 1 e 2, concluindo que a camada de óxido também é preferencialmente de alumina.

FIGURA 5 – Micrografias da amostra ATM 130 tratada a 1000ºC por 72 horas, e as análises

químicas de cada região

ATM130 – 1000ºC – 72 horas

FONTE: Elaboração própria

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA370

Nas amostras tratadas a 1200ºC (Figura 6A), surgiram precipitações globulares, que se repetem nos três tempos de tratamento para essa temperatura. Essas precipitações ainda são desconhecidas e necessitam de mais estudos para serem identificadas.

FIGURA 6 – Micrografias das amostras ATM 130 tratadas a 1200ºC por 1 hora (A) e 24 horas (B)

ATM130 – 1200°C – 1 hora ATM130 – 1200ºC – 24 horas

FONTE: Elaboração própria

Nos corpos de prova tratados a 600ºC e 800ºC (Figura 7), a estrutura observada foi a mesma para todos os tempos (assim como a ATM 130), com a precipitação de carbonetos.

FIGURA 7 – Micrografias das amostras ATM 160 tratadas a 600ºC e 800ºC por 1 hora

ATM130 – 1200°C – 1 hora ATM130 – 1200ºC – 24 horas

FONTE: Elaboração própria

A partir de 1000ºC foi possível identificar as precipitações globulares nas amostras de ATM 160 (Figura 8A), e na amostra de 72 horas (Figura 8B), os contornos de grão ficaram visíveis. Na Figura 8B, observam-se os carbonetos que migraram para os contornos de grão, que são as regiões de maiores falhas da amostra.

371Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

FIGURA 8 – Micrografias das amostras ATM 160 tratadas a 1000ºC por 24 (A) e 72 (B) horas

ATM160 – 1000°C – 24 horas ATM160 – 1000ºC – 72 horas

FONTE: Elaboração própria

Analisando os resultados da EDS para as camadas das amostras de 1200ºC (Figura 9), é notável a grande quantidade de ferro que se acumulou.

FIGURA 9 – Micrografias das amostras ATM 160 tratadas a 1200ºC durante 1 (A) e 24 (B) horas

ATM160 – 1200°C – 1 hora ATM160 – 1200ºC – 24 horas

FONTE: Elaboração própria

TABELA 4 _ EDS das camadas das amostras de 1200ºC

ATM 160 – 1200ºC – 1 hora ATM 160 – 1200ºC – 24 horasPontos 1 2 3 1 2

O 11,98 11,04 13,72 13,94 10,44Al 2,09 10,46 47,23 0,44 0,85Cr 27,82 1,37 4,71 1,35 3,17Fe 27,51 3,54 8,84 48,62 10,09Ni 26,38 72,19 24,18 33,61 74,25

FONTE: Elaboração própria

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA372

As micrografias das amostras ATM 160 tratadas a 1200ºC (Figura 10), continuaram revelando a precipitação globular.

FIGURA 10 – Micrografias das amostras ATM 160 tratadas a 1200ºC durante 1 (A) e 24 (B) horas

ATM160 – 1200°C – 1 hora ATM160 – 1200ºC – 24 horas

FONTE: Elaboração própria

Após a realização do ensaio de microdureza em todas as amostras, foram calculadas as médias para cada conjunto de medidas e foi possível plotar o gráfico com os resultados das durezas (Gráfico 1).

GRÁFICO 1 – Resultado de dureza dos revestimentos submetidos a 600, 800, 1000 e 1200°C, por tempos variáveis para intensidades de corrente 130 e 160 A

FONTE: Elaboração própria

Analisando o gráfico, percebe-se que a dureza das amostras depositadas não variou muito para as amostras submetidas à temperatura. No entanto, é visível uma variação na dureza no tratamento de 1000°C tanto para as amostras depositadas com 130 A como com 160 A. De 1 a 24 horas, há um aumento progressivo seguido de uma queda na dureza dos cordões depositados com ambas as intensidades de corrente. Isso pode ter ocorrido pela precipitação e dissolução dos carbonetos respectivamente.

373Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Durante o tratamento de 1200°C, os valores da dureza mantiveram o valor medido para o tratamento de 1000°C durante 72 horas. Como a queda na dureza ocorreu antes de surgirem as precipitações globulares, provavelmente, essa nova fase não foi responsável pela queda.

Com os resultados das análises químicas qualitativas feitas por espectroscopia de energia dispersiva (Electron Dispersive Spectroscopy – EDS), foram plotados os gráficos que indicam a variação da porcentagem de massa dos elementos de maior importância da liga. Nos gráficos abaixo, não foi considerada a porcentagem de oxigênio.

A variação do Alumínio (Gráfico 2) foi muito pequena, e apenas nos tratamentos finais a liga ATM 160 apresentou uma queda, enquanto a liga ATM130 aumentou a porcentagem.

GRÁFICO 2 – Variação da porcentagem de massa de alumínio durante os tratamentos térmicos

FONTE: Elaboração própria

Durante os tratamentos térmicos de temperaturas mais elevadas, observa-se o aumento da porcentagem do Cromo (Gráfico 3) nos dois revestimentos. Esse fato pode ter origem na elevada quantidade de Cromo no substrato (~16,62%), assim, ele acaba se incorporando, devido à diluição.

GRÁFICO 3 – Variação da porcentagem de massa de cromo durante os tratamentos térmicos

FONTE: Elaboração própria

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA374

A variação do Ferro (Gráfico 4) se manteve para as amostras ATM 16. Houve uma pequena queda no tratamento de 6 horas, mas depois voltou a subir. Já nas amostras de ATM 130, verificou-se a queda na porcentagem de Ferro a partir de 24 horas de tratamento. Isso pode ter ocorrido, porque nessa etapa foi formado óxido de ferro na superfície.

A amostra de ATM 160 possui mais Ferro em sua composição, por isso essa perda é insignificante, e como o ATM 130 possui menos Ferro na composição, refletiu mais claramente a perda.

GRÁFICO 4 – Variação da porcentagem de massa de ferro durante os tratamentos térmicos

FONTE: Elaboração própria

Em ambas as amostras (ATM 130 e ATM 160), a variação na porcentagem de Níquel (Gráfico 5) se manteve e foi insignificante.

GRÁFICO 5 – Variação da porcentagem de massa de níquel durante os tratamentos térmicos

FONTE: Elaboração própria

375Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

CONCLUSÕES

Com todos os dados obtidos, foi possível concluir que a liga Ni-Cr-Al-C é estável quando exposta a altas temperaturas por um curto período de tempo. Porém, conforme o tempo da exposição aumenta, surgem novas precipitações que alteram sua estrutura. O surgimento dessas precipitações coincide com a queda da dureza das amostras, que se mantém em seguida. No entanto, mesmo com a queda dos valores, a dureza ainda possui um valor semelhante ao da liga depositada.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA376

REFERÊNCIAS

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BENEGRA, M. Desenvolvimento “IN SITU” de Aluminetos de Níquel por Plasma por Arco Transferido Resistentes à Oxidação. 2010. 174 p. Tese (Doutorado) – Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

KUNIOSHI, C.T., SILVA, W.S., RAMANATHAN, L.V., GOLDENSTEIN, H., Oxidation Resistance of NICRALC Alloys – A Preliminary study. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON ABRASION WEAR RESISTANT ALLOYED WHITE CAST IRON FOR ROLLING AND PULVERIZING MILLS, 2005, São Paulo. Anais. São Paulo: IPT, 2005. p. 213-225.

LIU, C.T.; STIEGLER, J.O. Ordered intermetallics. In: ASM HANDBOOK. 9th ed. Materials Park, OH: ASM International, 1992. v. 2, p. 2555–2614.

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SILVA, W. S. Avaliação do comportamento mecânico e tribológico de ligas Ni-Cr-Al-C. 2006. 213 p. Tese (Doutorado) – Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

SIMS, C.T.; HAGEL, W.C. The Superalloys. New York: J. Wiley, 1972.

YOSHIMURA, H. N.; GOLDENSTEIN, H. Compostos intermetálicos fundidos brancos - WCIC uma nova família de ligas para fundição resistentes a altas temperaturas. In: CONGRESSO ANUAL DA ABM, Porto Alegre, 1996. Anais. São Paulo: ABM, 1996. v. 2, p. 287-303.

377Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

O presente trabalho objetiva verificar a estabilidade estrutural de revestimentos de aluminetos de níquel desenvolvidos in situ por plasma por arco transferido (PTA), baseados em uma liga NiCrAlC como referência. Para tal, foram utilizados cordões depositados com misturas de pós elementares variando somente a intensidade de corrente (100 A e 130 A), desenvolvidas por Benegra (2010). As amostras foram submetidas a temperaturas de 600, 800, 1000 e 1200oC pelos tempos de 1, 6, 24 e 72 horas. Após os tratamentos térmicos, as amostras foram tratadas quimicamente, submetidas a ensaios de microdureza e analisadas microscopicamente. Os resultados mostraram que os revestimentos NiCrAlC ao serem submetidos à temperatura sofrem oscilação nos valores de suas durezas e variação microestrutural, principalmente para a menor temperatura de 600oC, sendo que para as demais a variação microestrutural não refletiu consideravelmente na dureza.

Palavras-chave: Aluminetos de Níquel. Estabilidade microestrutural. Intermetálicos. Plasma por arco transferido (PTA).

ESTABILIDADE ESTRUTURAL DE REVESTIMENTOS DE ALUMINETOS DE NÍQUEL DESENVOLVIDOS IN SITU POR PLASMA POR ARCO TRANSFERIDO (PTA)

Francine de Moraes Bozza*

Marjorie Benegra**

* Aluna do 4° ano de Engenharia de Produção da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Iniciação Científica da Fundação Araucária. E-mail: [email protected]

** Doutora em Materiais (USP). Coordenadora do curso de Engenharia de Produção da FAE Centro Universitário. Professora da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

O crescente estudo das ligas a base de níquel tem como objetivo buscar uma alternativa mais econômica para o desenvolvimento de equipamentos de conversão de energia em sistemas avançados1, como turbinas de aviões, jatos, foguetes e vários outros tipos de motores, com bom desempenho e confiáveis em altas temperaturas2.

Baseada nessa necessidade, foi desenvolvida a liga NiCrAlC, composta por Níquel, Cromo, Alumínio, Carbono e pequenas adições de Boro. Essa família de ligas fundidas busca combinar algumas propriedades das ligas a base de Níquel e dos ferros fundidos brancos, juntamente com a característica do comportamento mecânico do composto Ni3Al3. Embora essa família de ligas apresente boas propriedades, ainda existe muita dificuldade para sua confecção como fundidas, o que torna o seu uso comercial inviável. Assim, como alternativa para aproveitar o seu potencial, a liga pode ser processada, utilizando a deposição por plasma por arco transferido, o qual deposita material em forma de pó em um substrato, formando cordões4.

O PTA é um processo de aspersão térmica com características de soldagem, pois possui uma fonte de calor que proporciona a fusão superficial do substrato, diluindo parte dele no revestimento5. Além disso, possibilita a deposição de diversas ligas, devido ao fato de utilizar pó para alimentação6

O principal objetivo de pesquisas relacionadas a essa família de ligas fundidas está diretamente ligado ao interesse em desenvolver uma liga de níquel alternativa que não perca sua resistência mecânica a temperaturas acima de 600°C. Além de ser uma alternativa mais econômica, pois as ligas a base de cobalto, que são resistentes ao desgaste, possuem instabilidade no preço do elemento7.

1 SILVA, 2006.2 NASCIMENTO, 20073 SILVA, 2006.4 BENEGRA, 2010.5 BENEGRA, 2010.6 GRAF, 2004.7 SILVA, 2006.

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1 CARACTERÍSTICAS DAS LIGAS DE NÍQUEL

A microestrutura do Níquel é austenítica de estrutura cristalina cúbica de face centrada (CFC). E possui como propriedade alta resistência mecânica, alta ductilidade e capacidade de diluir grande quantidade de elementos de liga, mantendo sua matriz austenítica8.

As superligas de Níquel possuem características diferenciadas, como alta capacidade de resistência à tração e à ruptura9, alta resistência a elevadas temperaturas10 e corrosão11, além de apresentar maior módulo de elasticidade e seus elementos secundários possuírem alta difusividade em sua estrutura cristalina12. Sua alta resistência mecânica também é resultante de sua alta solubilidade, dentre vários elementos de liga em sua microestrutura austenítica e, sua capacidade de controlar precipitações de fases intermetálicas13. Quanto ao endurecimento, pode ser acrescido com a formação de carbetos e por dissolução de alguns elementos na estrutura por meio do endurecimento por solução sólida14.

O que torna as superligas adequadas para construções de equipamento com resistência mecânica em média e alta temperatura é sua capacidade de endurecimento. Além disso, outras características importantes presentes em algumas superligas são: ductilidade, boa resistência ao impacto, à fadiga tanto de alto como de baixo ciclo, e a fadiga térmica15. Essas características das superligas de Níquel a elevadas temperaturas (ponto de fusão ~1453oC), como resistência mecânica e a corrosão, são alcançadas pela adição de determinados elementos de liga16.

A alta resistência à corrosão ocorre com adição de Cromo, e o endurecimento ocorre com a adição de Alumínio e Titânio. Esses dois elementos, quando combinados com o Níquel, formam a fase γ’. Essa fase é responsável pelo endurecimento das superligas, de modo semelhante ao endurecimento das ligas de Alumínio por precipitação, porém é mais estável e resistente a altas temperaturas17. As características apresentadas pelas partículas na fase γ’, como seu tamanho médio, quantidade, formato e sua distribuição,

8 CANGUE, 2007.9 NASCIMENTO, 2007.10 VALLE, 2010.11 AZEVEDO; MOREIRA; JUNIOR SUPERALLOY, 2001.12 NASCIMENTO, 2007.13 SIMS; HAGEL, 1972.14 NASCIMENTO, 2007.15 SIMS; HAGEL, 1972; BROOKS, 1982.16 SIMS; HAGEL, 1972.17 BROOKS, 1982.

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são as principais responsáveis pela alta resistência mecânica, pois essas partículas induzem a revelação de distorções em seu reticulado. Alguns dos elementos que favorecem esse endurecimento são o Tântalo, Alumínio e o Nióbio18.

A alta resistência mecânica das superligas de Níquel em altas temperaturas acontece devido ao fato da matriz γ’ possuir maior resistência ao aumento de temperatura, não amolecendo de modo significativo, podendo também endurecer. No entanto, essa fase apresenta como desvantagem uma ductilidade muito inferior quando comparada à sua fase γ, fazendo com que a presença da fase γ’ não deva ocorrer de modo exagerado19.

Além da formação das fases γ e γ’, também ocorre a formação de carbetos, que contribuem para o endurecimento das superligas de Níquel20. Os carbetos restringem o movimento dos contornos de grãos em elevadas temperaturas, impedindo ou minimizando o amolecimento causado pelo crescimento de grãos. Com isso, também ocorre o aumento da resistência à fluência. Nas superligas, os carbetos estão presentes na condição fundida e solubilizada, porém, como são muito instáveis, desaparecem com o envelhecimento21.

Outra fase que pode ser formada além dos carbetos é a dos boretos. O Boro é um elemento essencial na produção das superligas e, geralmente, se localiza nos contornos de grãos reduzindo a tendência ao rasgamento dos contornos durante o procedimento que causa a ruptura22. Os boretos são caracterizados por serem partículas refratárias e duras, apresentadas somente nos contornos de grãos23. Além disso, também atuam como fontes de boro para os contornos, pois demonstram crescer de um contorno de grão para o interior de um grão24.

Quando não ocorre o controle correto da composição química, podem surgir fases indesejáveis que afetam as características mecânicas do material, principalmente durante o processo de tratamento térmico. Dentre as fases que podem ser formadas, como fases indesejáveis, têm-se a fase delta e as fases Topologicamente compactas (TCP – do inglês Topologically Close-Packed Phases). Entre as fases topologicamente compactas, as fases Sigma, Mu e Laves se sobressaem25.

18 SIMS; HAGEL, 1972.19 REINALDO, 2008.20 REINALDO, 2008.21 SIMS; HAGEL, 1972.22 SIMS; HAGEL, 1972.23 REINALDO, 2008.24 SIMS; HAGEL, 1972.25 SIMS; HAGEL, 1972.

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As fases TCP são formadas por camadas compactas de átomos em forma de redes, apresentando textura em zigue-zague de cestos, alinhadas com os planos octaédricos da matriz CFC. Essas fases prejudiciais comumente se apresentam como plaquetas finas que geralmente se nucleiam nas partículas de carbetos presentes nos contornos de grãos26.

Tanto a fase sigma como a fase Mu e a Laves apresentam um efeito específico e prejudicial às propriedades das superligas de Níquel. Sua morfologia em forma de plaquetas, as quais se mostram como agulhas no plano bidimensional de imagens microestruturais, pode provocar a iniciação e propagação de trincas, causando a fratura frágil em baixa temperatura. Na maioria das vezes, as trincas se nucleiam próximo aos contornos de grãos, pois são neles que ocorrem maior concentração de elementos que favorecem a formação dessas fases indesejáveis. Essas fases possuem altos teores de metais refratários extraídos da matriz gama, que resultam em amolecimento das superligas de Níquel27. Já o reticulado cristalino das fases topologicamente compactas diferencia-se devido às suas camadas compactas de átomos afastadas uma das outras por distâncias interatômicas relativamente grandes28. Para a fase sigma, as camadas compactas de átomos estão afastadas uma das outras por átomos maiores29.

Essas fases são indesejáveis, pois comprometem a resistência dos materiais, prejudicando a resistência à ruptura em altas temperaturas juntamente com a redução da ductilidade. Esse efeito ocorre tanto na fase sigma como nas fases Mu e Laves30. Na fase sigma, além de ter sua resistência à tração reduzida drasticamente, também tem sua ductilidade reduzida para valores praticamente nulos31.

Outra fase que pode ser formada durante o tratamento térmico ou durante serviço é a delta. Essa fase também pode ser apresentada em plaquetas, tendo uma relação e orientação de planos cristalográficos com o reticulado da matriz, e também pode ser apresentada em forma de glóbulos orientados aleatoriamente. No entanto, a formação exagerada da fase delta pode depreciar a resistência mecânica de uma superliga de Níquel, endurecida pela fase γ’’, ao consumir elementos que auxiliam na formação de fases endurecedoras32.

26 SIMS; HAGEL, 1972.27 SIMS; HAGEL, 1972.28 YONEKUBO, 2010.29 SIMS; HAGEL, 1972.30 NASCIMENTO, 2007.31 SIMS, HAGEL, 1972.32 SIMS; HAGEL, 1972.

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Quando as superligas de Níquel-Ferro são endurecidas pela fase γ’, tornam-se suscetíveis à formação da fase Eta. Essa fase possui estrutura cristalina hexagonal compacta e pode ser formada durante o processamento termomecânico ou durante serviço; podendo, também, apresentar morfologia em plaquetas intragranulares, conhecidas como estrutura de Widmanstätten, que se formam a partir da fase γ’, ou em formato celular nos contornos de grãos, tendo aspecto semelhante ao da perlita nos aços33.

2 NI-CR-AL-C

A família de ligas fundidas Ni-Cr-Al-C foi desenvolvida por Yoshimura e Goldenstein como objetivo de unir algumas propriedades dos compostos intermetálicos à base de níquel e dos ferros fundidos brancos, verificando o comportamento atípico do composto Ni3Al em sua fase γ’, juntamente com o aumento da resistência mecânica em altas temperaturas e dispersão de carbonetos de cromo de alta dureza34.

Silva (2006) realizou ensaios de compressão nas ligas Ni-Cr-Al-C e confirmou o comportamento diferenciado das ligas ferrosas comuns do composto Ni3Al, verificando o aumento da resistência ao escoamento com o aumento da temperatura, bem como o aumento de dureza. Quando o autor comparou a resistência da liga Ni-Cr-Al-C com Stellite, a liga apresentou uma menor resistência mecânica, devido à sua estrutura ordenada. Posterior a isso, também foi verificada a microestrutura de carbonetos mais homogênea resultando em melhor comportamento sob desgaste abrasivo, erosivo e melhor resistência à oxidação.

Outro estudo referente à liga Ni-Cr-Al-C, desenvolvido por Goldenstein et al. (2006), teve como objetivo pesquisar a influência de tratamentos térmicos de solubilização e envelhecimento, bem como diferentes teores de carbono sobre a resistência ao escoamento sob compressão e dureza a quente. Os resultados encontrados pelos autores mostraram que, independente do tratamento térmico realizado, as ligas apresentaram resistência ao escoamento característica às superligas à base de níquel. Assim, apresentam manutenção da resistência com o aumento de temperatura. Porém, quando estudada a dureza da liga a temperatura de 800°C, verifica-se um amolecimento dos carbonetos de cromo com a temperatura, tornando o uso da liga inviável.

33 SIMS; HAGEL, 1972.34 SILVA, 2006.

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3 PLASMA POR ARCO TRANSFERIDO (PTA)

O processo de deposição por plasma por arco transferido (Plasma Transferred Arc – PTA) possui propriedades de soldagem35 em que é adicionado junto ao feixe de plasma o material em forma de pó, resultando na fundição sobre o substrato36. Esse processo utiliza um arco piloto, um bocal de constrição do arco e três sistemas de gás, cada qual com uma função: adição do pó; proteção da poça de fusão; ionização, para então resultar no plasma37.

As vantagens apresentadas por esse procedimento, quando comparadas a outros existentes, são: baixos valores de diluição; obtenção de revestimentos mais homogêneos e densos; não apresentar resíduos sólidos, prevenindo a poluição; pequena taxa de distorção dos componentes revestidos; não ocorre contaminação da poça de fusão; apresenta alta flexibilidade por utilização de metal de adição em forma de pó; e possibilitar alta eficiência na utilização desse material de adição, podendo chegar até 95%. No entanto, apresenta como desvantagens o alto valor agregado ao equipamento e a necessidade de maior qualificação para seu uso38.

4 MATERIAIS E MÉTODOS

4.1 REVESTIMENTOS UTILIZADOS

Para realizar a pesquisa, foram utilizados cordões depositados de misturas de pós elementares por plasma por arco transferido (PTA), desenvolvidas por Benegra (2010).

Para realizar a deposição por PTA, foi utilizada corrente com variação de 100 A e 130 A, pós elementares e substrato de aço inoxidável AISI 316 L. Assim, com o processo de deposição concluído, a liga final foi denominada NiCrAlC A, com balanço de massa dos pós elementares apresentado na Tabela 1 e composição química do substrato, fornecida pelo fabricante, na Tabela 2.

35 BENEGRA, 2010.36 GRAF, 2004.37 GRAF, 2004.38 GRAF, 2004.

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TABELA 1 – Carga em massa (%) utilizada para fabricação do revestimento NiCrAlC

Elemento (% massa) NiCrAIC A

Cromo 10

Alumínio 15

Carboneto de Cromo 5

Ferro Boro 0,1

Níquel Bal

C Mn P S Si Ni Cr Mo Cu Al Co N0,017 1,43 0,039 0,028 0,40 10,12 16,62 2,05 0,36 <0,005 0,11 0,06

FONTE: Benegra (2010)

4.2 ENSAIO DE ESTABILIDADE MICROESTRUTURAL DOS REVESTIMENTOS

Para preparação dos revestimentos e ensaios de estabilidade microestrutural, foram utilizados os materiais e equipamentos disponibilizados pelo Laboratório de Análise Metalográfica da FAE Centro Universitário.

As amostras de liga NiCrAlC A foram cortadas com o auxílio de uma cortadeira de Struers – modelo Discotom-6, de modo que fossem obtidas 30 amostras das ligas.

Após o processo de corte, foi realizado o tratamento térmico nas 30 amostras, em forno mufla, da marca Jung – modelo 9612.

Para esse procedimento, cada amostra foi submetida a temperaturas e tempos diferentes, conforme Tabela 3.

TABELA 3 – Tratamentos térmicos realizados

Temperatura (oC) 600 800 1000 1200Tempo (Horas) A100 A130 A100 A130 A100 A130 A100 A130

1 A100 A130 A100 A130 A100 A130 A100 A130

6 A100 A130 A100 A130 A100 A130 A100 A130

24 A100 A130 A100 A130 A100 A130 A100 A130

72 A100 A130 A100 A130 A100 A130 -

FONTE: Elaboração própria

No entanto, ao realizar os tratamentos térmicos, notou-se que devido à não remoção do substrato da liga e seu ponto de fusão ser muito inferior ao da liga NiCrAlC, a partir do

385Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

tratamento de 1200°C por 24 horas, o substrato começou a fundir, tornando inviável o tratamento de 1200°C por 72 horas, pois não seria possível remover as amostras do forno no tempo esperado.

Após realizar os tratamentos térmicos, cada amostra foi embutida a quente, com auxílio do equipamento da Struers – modelo CitoPress-20, o que durou 5 minutos. Em seguida, realizou-se o processo de lixamento nas lixadeiras Struers – tipo LaboPol-25, com lixas de granulometria #220, #320, #500 e #800, respectivamente. Após o lixamento, realizou-se o polimento com o auxílio das máquinas da Struers – modelo LaboPol-5 – até 1µm.

4.3 MICRODUREZAS

Os testes de microdureza realizadas em todas as amostras foram realizados com auxílio do microdurômetro Wilson Instruments – modelo 402MVD. Para o estudo realizado nas amostras, utilizou-se uma carga de 500gf.

Para o estudo realizado em laboratório, foi feito em cada amostra três perfis na secção longitudinal, cada um com cinco medidas no revestimento e três medidas no substrato. A quantidade de medidas realizada no substrato foi inferior, devido ao fato de não existir uma variação significativa na dureza entre as endentações realizadas no substrato. Além disso, foi utilizado um espaçamento entre as impressões de 0,30mm, conforme a Figura 1.

FIGURA 1 – Esquema dos perfis de microdurezas feitos na seção longitudinal das amostras

FONTE: Elaboração própria

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Com os valores obtidos no ensaio de microdureza, foi possível calcular as médias para plotar os gráficos apresentados nos resultados.

4.4 ATAQUE QUÍMICO

Após o teste de microdureza, para que fosse possível estudar as estruturas de cada amostra e realizar suas metalografias, foram realizados os ataques com os reagentes apresentados na Tabela 4.

TABELA 4 – Reagentes metalográficos utilizados para revelação das microestruturas das ligas NiCrAlC

Reagente Composição Tempo

Marble10g de sulfato de cobre numa solução de 50ml de ácido clorídrico e 50ml de água destilada

~30s

Eletrolítico com ácido oxálico

0,2-2g ácido oxálico + H2O(100ml) ~1 a 2min

FONTE: Benegra (2010)

Para o primeiro ataque, utilizou-se o reagente Marble, no entanto, esse reagente não revelou as microestruturas da forma esperada e, em algumas amostras, chegou a queimá-las, impossibilitando o estudo.

Para verificar se o problema encontrava-se realmente no reagente, utilizaram-se três frascos diferentes de Marble. Além disso, realizaram-se ataques de 1 a 60 segundos em várias tentativas, porém, as microestruturas não foram reveladas. Com isso, optou-se por realizar o ataque eletrolítico com o auxílio do equipamento Kristall 620, pertencente ao Laboratório de Materiais da UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná). Após realizar o ataque eletrolítico nas amostras, as imagens das microestruturas foram realizadas com o auxílio do Microscópio Axiovert 40 MAT, pertencente ao Laboratório de Análise Metalográfica da FAE Centro Universitário.

5 RESULTADOS E DISCUSSÕES

A Figura 2 apresenta a variação de dureza da amostra Ni-Cr-Al-C A. Observa-se que a 600oC, os valores de dureza são todos maiores que os valores das amostras como depositadas, para quaisquer tempos de ensaio e para ambas as intensidades de corrente.

387Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

FIGURA 2 – Resultado de dureza dos revestimentos submetidos a diferentes temperaturas por tempos variáveis para intensidades de corrente 100 A e 130 A

Fonte: Elaboração própria

Esse resultado é um efeito da precipitação de fases, que pode ser visualizada na Figura 3. Os precipitados são resistentes ao ataque químico, portanto, revelam-se como fases escuras.

FIGURA 3 – Microestrutura das amostras NiCrAlC A submetidas a temperatura de 600oC por 1 hora

A100 – 600°C – 1 hora A130 – 600oC – 1 hora

FONTE: Elaboração própria

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A Figura 4 mostra a evolução dos precipitados, após 24 horas de exposição a 600oC.

FIGURA 4 – Microestrutura das amostras NiCrAlC A submetidas a temperatura de 600oC por 24 horas

A100 – 600°C – 24 horas A130 – 600oC – 24 horas

Precipitado em forma de “agulhas” que se originaram da fase em forma de “H”.

FONTE: Elaboração própria

A comparação entre as microestruturas da Figura 3 e 4 mostra que a fração de precipitados aumentou à medida que o tempo de exposição foi maior, e que o tamanho desses precipitados também aumentou. Portanto, essas alterações microestruturais respondem pelo aumento de dureza à medida que o tempo de exposição aumenta.

De acordo com Benegra (2010), os precipitados em forma de H, como indicados na Figura 4, possivelmente tratam-se da fase sigma, que é uma fase topologicamente compacta, frágil e que gera um aumento de dureza. Para os precipitados em forma de agulha, a autora afirma que são originados da fase em forma de H. Quanto à formação dos carbonetos e de intermetálicos, sabe-se que as ligas de Níquel são endurecíveis preferencialmente por solução sólida e por precipitação de carbonetos e de fases intermetálicas. Além disso, essas fases podem ocorrer durante o tratamento térmico, ou mesmo durante o prolongado serviço em temperaturas elevadas39.

39 BENEGRA, 2010.

389Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Para temperaturas a partir de 1000oC, a dureza dos revestimentos não possui variação significativa em relação aos valores do material como depositado. Entretanto, verificaram-se grandes variações microestruturais, como as apresentadas na Figura 5.

FIGURA 5 – Microestrutura das amostras NiCrAlC submetidas a temperatura de 1200oC pelo tempo de 6 e 24, respectivamente

A100 – 1200°C – 6 horas A130 – 1200oC – 24 horas

FONTE: Elaboração própria

A microestrutura da Figura 5 para a intensidade de corrente de 100 A é constituída de uma fase globular, não apresentando mais as fases em forma de agulhas ou H. No caso da amostra A130, a estrutura dendrítica foi completamente substituída por uma estrutura em forma de plaquetas, especialmente observada em uma das duas fases que a constituem.

FIGURA 5 – Microestrutura das amostras NiCrAlC submetidas a temperatura de 800oC pelo tempo de 24 e 72 horas

A100 – 1200°C – 6 horas A130 – 1200oC – 24 horas

FONTE: Elaboração própria

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CONCLUSÕES

Com base nas análises realizadas para todas as micrografias e os ensaios de durezas, nota-se que com o aumento de temperatura as amostras sofrem aumento nos valores de dureza para a exposição na menor temperatura, ou seja, 600oC.

Por outro lado, para as temperaturas maiores, não foram verificadas variações consideráveis nos valores de dureza, apesar de haver mudanças microestruturais consideráveis. Dessa forma, nota-se a instabilidade estrutural das amostras, sem, em princípio, comprometimento do comportamento mecânico.

391Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

REFERÊNCIAS

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BENEGRA, M. Desenvolvimento “in situ” de aluminetos de níquel por plasma por arco transferido resistentes à oxidação. 2020. 155 p. Tese (Doutorado) – Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

BROOKS, C.R. Heat treatment, structure and properties of nonferrous alloys. Metals Park: ASM, 1982. p.

CANGUE, F. J. R. Permeabilidade do carbono em revestimentos de níquel reforçados por intermetálicos.2007. 167 p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.

GOLDENSTEIN, H. et al. Influência dos tratamentos térmicos de solubilização e envelhecimento sobre o comportamento mecânico das ligas NICRALC. 17º CBECIMat - Congresso Brasileiro de Engenharia e Ciência dos Materiais, 15 a 19 de Novembro de 2006, Foz do Iguaçu, PR, Brasil.

GRAF, K. Estabilidade a alta temperatura de revestimentos de HASTELLOY C depositados por PTA. 2004. 89 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004.

NASCIMENTO, J. L. Estudo da confiabilidade por análise microestrutural e de propriedades mecânicas de superligas de níquel INCONEL 718 empregada em ambientes agressivos na exploração de petróleo. 2007. Dissertação (Mestrado) – Universidade Tecnológica – CEFET/RJ, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

REINALDO, P. R. Influência dos parâmetros de processamento por PTA e do substrato, na resistência ao desgaste de um revestimento a base de Ni. 2008. 74 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.

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SIMS, C.T.; HAGEL, W.C. The Superalloys. New York: J. Wiley 1972.

VALLE, L. C. M. Efeitos da solubilização e do envelhecimento na microestrutura e nas propriedades mecânicas da superliga INCONEL 718. 2010. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

YONEKUBO, A. E. Caracterização microestrutural do aço inoxidável superdúplex UNS S32520 (UR 52N+) processado por moagem de alta energia. 2010. 109 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2010.

393Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

As primeiras experiências cooperativas surgiram na Inglaterra durante a Revolução Industrial, que foi responsável também pela mudança significativa no modo de produção capitalista, tendo como consequência a diminuição dos recursos da classe trabalhadora, levando esses trabalhadores a oferecer seu trabalho em condições degradantes, a fim de garantir sua sobrevivência. Surge então a economia solidária como forma de organização que procura minimizar o empobrecimento das comunidades. A pesquisa objetivou estabelecer, por meio da pesquisa bibliográfica, os elementos contidos nas potencialidades do cooperativismo popular no setor pesqueiro relacionando-as à temática do desenvolvimento sustentável e às afinidades existentes nas comunidades cooperativas pesqueiras com a problemática ambiental. Verificou-se que o cooperativismo oferece aos pescadores uma nova realidade frente aos problemas enfrentados, permitindo que tenham maior competitividade no mercado e melhores condições de vida. Constatou-se, ainda, que não existe consenso em relação ao conceito de sustentabilidade, que, desse modo, não pode ser atingida sem que haja uma visão integrada das questões urbanas, abrangendo as questões sociais e todas as suas dimensões. Infere-se, então, que não é possível que as cooperativas populares pesqueiras cheguem ao clímax do melhor resultado produtivo e à qualidade de vida sem que haja o atendimento aos princípios cooperativos antes estabelecidos, aliados à temática do desenvolvimento sustentável, que garantirá a existência dos recursos ambientais por um longo período, caso sejam respeitados seus limites e evitados os impactos sobre o meio ambiente.

Palavras-chave: Sustentabilidade. Cooperativismo. Setor pesqueiro.

COOPERATIVISMO POPULAR E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: EM BUSCA DAS POTENCIALIDADES NO SETOR PESQUEIRO

Bianca de Castro Silva Rebolho*Paulo Ricardo Opuszka**

* Aluna do 5º ano de Engenharia Ambiental pela FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica da Fundação Araucária. E-mail: [email protected].

** Doutor em Direito (UFPR). Professor do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Organizações e Desenvolvimento da FAE Centro Universitário. Professor de Economia no curso de Direito da Universidade Positivo. Pesquisador do CNPq. Advogado Trabalhista. E-mail: [email protected].

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA394

INTRODUÇÃO

Os impactos ambientais causados pelas atividades humanas vêm acelerando o processo de esgotamento dos recursos naturais, bem como a redução da qualidade ambiental, exigindo a compatibilização da sobrevivência humana com a proteção ambiental – adequando o sistema natural e o econômico –, a fim de garantir o desenvolvimento sustentável. Entretanto, mais do que cuidar do ambiente, é preciso atentar para as questões sociais, em especial na que se refere à atividade pesqueira, uma vez que essas atividades têm influência direta sobre os demais fatores que envolvem a sociedade.

Nesse sentido, desde 2003, os empreendimentos populares são objetos de políticas públicas do governo federal, especialmente Cooperativas e Associações Populares, a partir de diversas ações de diferentes Ministérios (Justiça, Turismo, Desenvolvimento Social, Pesca, Desenvolvimento Agrário, do Trabalho). Entretanto, não se define ao certo o alcance das referidas políticas por que se dividem em políticas de governo ou sociais e políticas públicas, nos casos que tais ações se converteram em leis.

A presente pesquisa objetivou estabelecer por meio da pesquisa bibliográfica os elementos contidos nas potencialidades do cooperativismo popular no setor pesqueiro, relacionando-as à temática do desenvolvimento sustentável e as relações existentes nas comunidades cooperativas pesqueiras com a problemática ambiental, a fim de propor uma nova visão em relação ao papel do cooperativismo e seus associados na manutenção da vida de comunidades, no equilíbrio da relação homem-natureza e no estabelecimento de novas alternativas para o equilíbrio dessa relação.

As primeiras experiências cooperativas significativas surgiram na Inglaterra durante a Revolução Industrial em resistência ao capitalismo, passo importante em razão do papel que o cooperativismo assume para a mudança da realidade das comunidades, entre elas a pesqueira, contribuindo para a transformação da realidade atual.

Assim como o cooperativismo, o conceito de desenvolvimento sustentável surgiu como um meio de enfrentamento à crise ambiental atual, a fim de reduzir os impactos das atividades humanas sobre os recursos naturais. A partir de então é que os esforços começaram a se voltar não apenas para um crescimento econômico, mas aliado à questão ambiental em todas as suas dimensões.

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1 VERTENTES DA SUSTENTABILIDADE E A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE

Em face da crise ecológica, o conceito de desenvolvimento sustentável surgiu como um meio de enfrentamento, a fim de reduzir os impactos antrópicos no meio ambiente, que, atualmente, tornam-se cada vez mais complexos tanto em termos quantitativos quanto qualitativos (JACOBI, 1999). Dessa forma, ao se definir desenvolvimento sustentável discute-se também o que é a sustentabilidade.

Para Jacobi (1999), o processo de desenvolvimento sustentável advém principalmente de duas correntes. A primeira se relaciona às que influenciaram mudanças nas abordagens do desenvolvimento econômico, especialmente a partir dos anos 1970, a exemplo do Clube de Roma. Enquanto a segunda corrente, difundida com a Conferência de Estocolmo, em 1972, refere-se à crítica ambientalista ao modo de vida contemporâneo. “Assim, o que se observa é que a ideia ou enfoque do desenvolvimento sustentável adquire relevância num curto espaço de tempo, assumindo um caráter diretivo nos debates sobre os rumos do desenvolvimento” (JACOBI, 1999, p. 175).

Segundo o mesmo autor, o conceito de ecodesenvolvimento foi utilizado pela primeira vez por Maurice Strong, em 1973, para caracterizar uma concepção alternativa de política de desenvolvimento. Em 1987, a divulgação do Relatório Brundtlandt – conhecido como Our Commom Future (Nosso Futuro Comum) – trouxe novamente à tona a temática do desenvolvimento sustentável, apresentando-se como um marco no debate ambiental (JACOBI, 1999). A partir desse documento, rompe-se a ideia da preservação ambiental como sinônimo de intocabilidade dos recursos naturais, sendo construída a partir de diferentes dimensões as quais devem ser consideradas no planejamento do desenvolvimento (MAIA, 2007).

Dando origem ao conceito de Sustainability, “que é uma ação em que a elaboração de um produto ou desenvolvimento de um processo não compromete a existência de suas fontes, garantindo a reprodução de seus meios” (FARIA, 2011, p. 15).

Como consequência, logo se propôs o conceito de desenvolvimento sustentável enquanto um processo de gerar riqueza e bem-estar, ao mesmo tempo em que promove a coesão social e impede a destruição do meio ambiente (Santana, 2008). A sustentabilidade passou a ser então adjetivada e conceituada de acordo com paradigmas, modelos e critérios (FARIA, 2011, p. 16).

A discussão sobre sustentabilidade que acabava de surgir apresentava a ideia de que o crescimento econômico “tinha de estar invariavelmente ligado à dissipação infindável de recursos” (PEREIRA; CHIARI; ACCIOLY, 2010, p. 3).

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Assim, a partir de então, todos os esforços começaram a se voltar não apenas para um crescimento econômico, mas esse aliado à questão ambiental em todas as suas dimensões, salientando, segundo Ignacy Sachs (1993 apud PEREIRA; CHIARI; ACCIOLY, 2010), a necessidade de compatibilizar a melhoria nos níveis de qualidade de vida e a preservação ambiental.

Mesmo durante a preparação para a Conferência de Estocolmo, levantaram-se duas vertentes distintas em relação à preocupação ambiental, tendo, por um lado, o posicionamento de abundância (the cornucopians) – que consideravam que as preocupações com o meio ambiente acabariam por inibir, ou até mesmo atrasar, o desenvolvimento dos países ainda em desenvolvimento –, e, por outro lado, os catastrofistas (doomsayers) – que denunciavam o crescimento demográfico e econômico como fatores centrais para a exaustão dos recursos naturais e um colapso na humanidade, “para eles, a perturbação do meio ambiente era consequência da explosão populacional” (SACHS, 2000, p. 51).

Ambas as proposições extremistas foram descartadas, uma vez que o crescimento econômico era ainda necessário, bem como a conservação da biodiversidade, por meio de estratégias de conservação. Dessa forma, as cinco dimensões da sustentabilidade difundidas por Sachs são conhecidas como: (1) sustentabilidade social, (2) sustentabilidade econômica, (3) sustentabilidade ecológica, (4) sustentabilidade espacial e (5) sustentabilidade cultural.

Segundo Pereira, Chiari e Accioly (2010), a multiplicidade desses fatores se relacionam entre si de maneira diversificada, respeitando, no entanto, características locais e regionais. Assim, o conceito de sustentabilidade de maneira abrangente pode ser estabelecido como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem as suas próprias necessidades” (BRÜSEKE, 1995, apud PEREIRA; CHIARI; ACCIOLY, 2010, p. 2). Assumindo, na atualidade, um sentido polissêmico, multidisciplinar, transposto e aplicável a diferentes situações, contextos e objetivos.

Para Clovis Cavalcanti (2003 apud BARBOSA, 2008, p. 7) sustentabilidade “significa a possibilidade de se obterem continuamente condições iguais ou superiores de vida para um grupo de pessoas e seus sucessores em dado ecossistema”. Por meio dessa nova visão de desenvolvimento, Barbosa (2008) coloca a real mudança provocada na discussão sobre o desenvolvimento sustentável, limitando o progresso material e o consumo, reforçando a ideia de recursos limitados e a necessidade de preocupação com o futuro.

Segundo Faria (2011), como paradigma que envolve três dimensões, a sustentabilidade trata da integração entre economia, sociedade e meio ambiente, sendo conduzida por três grupos distintos, a saber: empresários, governo e sociedade. Nesse sentido, a sustentabilidade pode ser avaliada pelas seguintes linhas

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i. Como modelo colaborador-comunidade, em que explicita qual deve ser a responsabilidade central das empresas, proporcionando bem-estar aos colaboradores e comunidade na qual está inserida, ou seja, ir além da questão produtiva e da lucratividade.

ii. Como critério da responsabilidade social, incitando a busca do desenvolvimento sustentável, aliando a equidade social, prudência ecológica e a eficiência econômica.

Conforme Faria (2011), a sustentabilidade se baseia em quatro princípios:

i. Princípio precatório: determina que diante da incerteza científica sobre a possibilidade de prejuízos à saúde dos seres vivos, não se deve adiar a tomada de medidas preventivas;

ii. Princípio preventivo: evitar ao máximo a ocorrência de danos e riscos ambientais, avaliando-os previamente, a fim de permitir a adoção de solução adequada;

iii. Princípio compensatório: a necessidade de compensar vítimas da poluição e outros danos ambientais deveria ser abordada nas legislações vigentes;

iv. Princípio do poluidor pagador: os custos da reparação ambiental e das medidas compensatórias deveriam ser suportados pelas partes responsáveis (ONU, 2007 apud FARIA, 2011).

Ignacy Sachs (2000), em seu livro Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável, reafirma a ideia de que é preciso que o ser humano se aperceba de que todas as atividades econômicas estão firmemente atreladas ao ambiente natural, e, por isso, é responsabilidade do homem a criação de projetos sustentáveis por meio do desenvolvimento de sistemas de produção análogos aos ecossistemas naturais, e, além disso, capacitar os envolvidos nos processos de modificação da natureza.

Faria (2011) afirma que a sustentabilidade decorre de diferentes abordagens. A abordagem econômico-liberal de mercado apresenta duas concepções: i. Concepção clássica ou tradicional, que parte da premissa de que a concorrência, o crescimento econômico e a própria pressão dos consumidores leva ao uso racional dos recursos naturais e a necessidade de adequar seu uso, compatibilizando com as exigências ambientais; ii. Concepção moderna, que defende a internalização dos custos ambientais por meio da criação de sistemas de estímulo de mercado, “geralmente com o auxílio de impostos e taxas ambientais ou do comércio de títulos de poluição” (FARIA, 2011, p. 18).

Por outro lado, a abordagem ecológico-tecnocrata estabelece a concepção da sustentabilidade planejada, partindo da ideia de que por meios gerenciais pode-se alcançar

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a superação dos problemas ambientais. Nessa linha, a intervenção do governo se faz indispensável para reduzir ou evitar efeitos nocivos dos processos de crescimento econômico.

A abordagem denominada biocêntrica e a do ambientalismo radical revelam uma visão holística, propondo que todas as atividades e políticas devem se subordinar às exigências da sustentabilidade da natureza, visão que é utilizada também na ecologia profunda, com o fortalecimento dos movimentos sociais. No ambientalismo radical, verifica-se, de igual modo, uma rejeição ao consumismo norteador das modernas sociedades em busca de incluir objetivos básicos para a sociedade, como a satisfação de necessidades econômicas básicas e justiça social.

Por último, cita-se a abordagem da política de participação democrática ou popular, que coloca a participação como peça-chave da política ambiental para que haja uma mudança efetiva no que tange as políticas públicas. “O planejamento deve ser compreendido não apenas como orientado pelas necessidades da população, mas também, como conduzido por ela” (FARIA, 2011, p. 19).

2 A SUSTENTABILIDADE E A TEORIA CRÍTICA: A CRISE DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL

Segundo Faria (2011), a teoria crítica é fundamentada na incessante busca das contradições sociais.

A teoria crítica pretende expressar a emancipação dos indivíduos e promover a conscientização crescente da necessidade de uma sociedade em que os interesses coletivos prevaleçam sobre os individuais, em que os indivíduos sejam sujeitos de sua própria história, escrevendo-a coletivamente. (FARIA, 2011, p. 20)

Dessa forma, verifica-se que a teoria crítica da sustentabilidade pode ser descrita em sete instâncias gerais:

i. Contradições: uma vez que os fatos se transformam, é preciso que se considere a dinâmica contraditória da realidade para todas as ações e políticas de sustentabilidade;

ii. Ideologia Dominante: a ideologia muitas vezes não permite que os indivíduos tenham consciência em relação ao todo, e, portanto, nas concepções de sustentabilidade podem estar as ideologias dominantes;

iii. Racionalidades Dominantes: as concepções de sustentabilidade existentes acabam por racionalizar práticas exploratórias sem, muitas vezes, questionar o modelo econômico que acaba por criar essas disfunções;

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iv. Contexto Social-histórico: para que se entenda o desenvolvimento, inclusive o desenvolvimento sustentável, é preciso entender sua trajetória histórica;

v. Emancipação: caracterizada pela busca de autonomia do indivíduo e da sociedade, a fim de construir sua própria história, “desempenhando papel ativo sobre os problemas relevantes de interesse coletivo”;

vi. Conscientização Individual e Coletiva: a consciência pode ser definida como a capacidade de estar ciente de si mesmo, e, portanto, a consciência individual fragmentada não permite a consciência coletiva emancipada;

vii. Responsabilidade Coletiva: deve-se pensar na coletividade e nas suas responsabilidades, para que a verdadeira sustentabilidade seja praticada por meio de uma democratização e conservação da responsabilidade pela conservação dos recursos naturais.

Portanto, ao analisar tais concepções da teoria crítica, verifica-se que a sustentabilidade deve ser trabalhada em um ambiente de autogestão, sem agredir o meio ambiente e a população, podendo-se, então, definir a sustentabilidade a partir da teoria crítica, como “a prática coletiva e democrática de produção das condições materiais de existência que no processo de transformação preserva a fonte de recursos da natureza ou os repõe nas mesmas condições” (FARIA, 2011, p. 22).

Deve-se, finalmente, enxergar a sustentabilidade como sendo políticas e práticas voltadas à conservação ambiental, mas, principalmente, do respeito à coletividade e à sociedade que está envolvido o recurso a ser preservado, tendo como alvo a garantia de uma vida sustentável.

Para Sachs (2000), a relação existente entre as forças de mercado e o desenvolvimento sustentável é incompatível, e, portanto, verifica-se a necessidade da promoção de estratégias de desenvolvimento sustentável, para que isso se torne uma realidade. Quando aproveitados adequadamente, os subsídios têm significativa importância para o aproveitamento de recursos sustentáveis, no entanto, atualmente, em sua maioria são mal aproveitados, apresentando, dessa forma, um efeito devastador.

É preciso, desse modo, unir às estratégias de conservação e busca pelo desenvolvimento sustentável o respeito ao direito à vida de todas as pessoas, sem o qual não será possível e real o desenvolvimento sustentável, conforme coloca Hubert Reeves (1990, p. 147 apud SACHS, 2000), ao tratar que as pessoas são ‘os produtos mais complexos e de maior atuação da natureza’, capazes de provocar mudanças significativas na natureza, sejam elas positivas ou negativas.

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Segundo May (2001, apud CUNHA; HASENCLEVER, 2011), todo processo econômico deve incorporar objetivos ecológicos, respeitando os limites físicos existentes para o uso dos recursos naturais, e assim, ser sustentável.

Para o desenvolvimento sustentável três funções ambientais não podem ser desrespeitadas: de provisão de recursos; de absorção e neutralização dos dejetos da atividade econômica e de manutenção de serviços ambientais. Por outro lado, o modelo sustentável deve promover a coesão e a mobilidade social, elevar a participação política dos cidadãos e respeitar a sua identidade cultural, assegurando o acesso ao poder e ao desenvolvimento das instituições sociais. (MAY, 2001 apud CUNHA; HASENCLEVER, 2011, p. 59).

Pode-se estabelecer que o desenvolvimento sustentável se baseia em três linhas, a saber: a eficiência econômica, a excelência ecológica e a responsabilidade social; no entanto, podem haver questões mais complexas a ser consideradas, como o contexto de tais dimensões, a consideração das demais dimensões existentes, entre outros (MAJER, 2004 apud CUNHA; HASENCLEVER, 2011, p. 60).

Entre os economistas, ainda não se estabeleceu um conceito claro e conciso a respeito da sustentabilidade, demonstrando que se trata de um conceito amplo e complexo, bem como de incertezas metodológicas, e, portanto, deve-se continuar a buscar a produção de teorias mais consistentes sobre a relação entre economia, sociedade e meio ambiente.

3 O COOPERATIVISMO E A ORGANIZAÇÃO DA GESTÃO COLETIVA DE TRABALHO ASSOCIADO

Foi com base nos pensamentos dos economistas políticos clássicos, como Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, que se consolidou o modo de produção capitalista no século XIX. No entanto, “o trabalho assalariado, embora hegemônico no capitalismo, não foi a única forma de trabalho importante” (OPUSZKA, 2006, p. 15).

Nas ocasiões de crise do capitalismo, o trabalho cooperado surgiu como outra forma de organização, como resistência ao capitalismo. Embora as primeiras ocorrências de organizações cooperativas sejam verificadas entre os egípcios, e até mesmo na Idade Média, segundo Scheneider (apud OPUSZKA, 2006) afirma que até a metade do século XVIII elas não tiveram tanto significado.

a classe operária reagiu ao capitalismo de duas formas: organizando os trabalhadores em sindicatos visando a melhoria das condições de trabalho dentro do modo de produção; resistindo a implementação do capitalismo, voltando-se para autogestão e cooperação (OPUSZKA, 2006, p. 75)

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Entre seus precursores, o cooperativismo recebeu a contribuição de diversos defensores dessa alternativa ao capitalismo. Podem-se citar alguns de destaque, de acordo com Opuszka (2006): Charles Fourier – figura de maior relevo dentre os socialistas utópicos, fundador de diversos sindicatos e cooperativas; Saint Simon – defendia a associação universal dos trabalhadores; Louis Blanc – precursor das oficinas sociais, uma espécie de cooperativa que une aprendizado e o desenvolvimento de trabalhos para geração de renda; Beatriz Webb – por compartilhar as ideias cooperativas; e Robert Owen – socialista utópico, que extraiu sua confiança na possibilidade de uma sociedade melhor. No entanto, “é quase unânime a posição de que o cooperativismo se consagrou com os denominados ‘pioneiros de Rochdale’” (OPUSZKA, 2006, p. 20).

Os primeiros princípios do cooperativismo vieram de Rochdale e eram eles: adesão livre ou porta aberta; gestão democrática; juros módicos ao capital; retorno proporcional às operações; transações a dinheiro ou vendas à vista; neutralidade política ou religiosa; desenvolvimento do ensino. (OPUSZKA, 2006, p. 20).

Durante a Revolução Industrial, “evento histórico-econômico que transformou totalmente o modo de produção capitalista” (NICOLADELI, 2009, p. 17), verificaram-se as primeiras experiências cooperativas na Inglaterra Tanto nesse episódio quanto com o fim da Revolução Francesa, verificou-se a diminuição dos recursos da classe trabalhadora, aumentando ainda mais a pobreza dos ingleses, levando esses indivíduos a oferecerem seu trabalho em condições degradantes, a fim de garantir sua sobrevivência.

É nesse contexto que surge a chamada economia solidária, “como uma forma mutualística de organização que procurava minimizar o empobrecimento dos operários e artesãos” (SINGER, 2002 apud NICOLADELI, 2009, p. 17), destacando-se o empresário Robert Owen, que na ânsia de provocar alterações no sistema vigente da época, persistindo na ideia e disseminando-a, surgiram várias cooperativas por toda parte, mas sem subsistir por muito tempo. Robert Owen apresenta-se, portanto, como um dos precursores do sindicalismo, e, consequentemente, ao surgimento das cooperativas, ambos com a finalidade de melhorar as condições de subsistência dos trabalhadores.

Nesse processo, foram estabelecidas algumas regras a fim de permitir a adequada gestão das cooperativas, que eram caracterizadas pela plena democracia, tanto na entrada de um indivíduo na cooperativa como seu afastamento dela, além da divisão igualitária dos recursos obtidos – quer sejam lucros ou prejuízos. As regras estabelecidas, tais como a permissão única e exclusiva para a venda de produtos à vista, a abertura para a associação de qualquer pessoa, entre outras, visavam à reforma do meio econômico e social.

E embora as iniciativas de Robert Owen não tenham conseguido solidificar uma economia do tipo solidária no mundo, elas fizeram com que os operários passassem a lutar por si mesmos, levando à criação de leis específicas que procurassem resguardar seus direitos (NICOLADELI, 2009, p. 19).

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Fato importante é a necessidade das cooperativas não perderem de vista os princípios originais propostos, ante a sua existência na economia moderna, que acaba por gerar uma vertente empresarial e sua relação com sistemas diferentes do cooperativo.

Outra iniciativa que acabou destacando o movimento cooperativista pelo mundo é a criação, em 1895, da Aliança Cooperativa Internacional (ACI), representando mundialmente todas as cooperativas, realizando inúmeros congressos de cooperativas na Europa, e consolidando as ideias e princípios cooperativistas. Embora muitas das cooperativas criadas não tenham obtido êxito, o movimento cooperativista ainda permanece vivo como forma de reinventar e modificar a presença atual do capitalismo, pois, “segundo Schultze, pai da idéia cooperativa, somente a associação pode elevar o nível de sociedade” (NICOLADELI, 2009, p. 24).

3.1 A VISÃO SOCIALISTA/ANARQUISTA SOBRE O COOPERATIVISMO

O ponto inicial da reflexão socialista/anarquista sobre o cooperativismo é dada por Marx, verificando o sistema exploratório da classe operária existente no modelo capitalista e apresentando a crítica frente a esse sistema, que tem por base a espoliação da força de trabalho, visando à pura obtenção de lucro.

Nicoladeli (2009) afirma que a crítica de Marx a esse modelo recai principalmente na exploração do trabalho pelo capital, pois sempre haveria aqueles que viveriam à custa do trabalho dos outros. É a partir desse contexto que surgiram os ideais cooperativistas, tendo como base a doutrina socialista, visando à humanização do trabalho por meio da justa remuneração, socialização da propriedade e igualdade nos meios econômicos, culturais e educacionais a todos os membros da sociedade.

Verifica-se assim, que o cooperativismo tem maior familiaridade com o socialismo, pois visa a cooperação, não uma cooperação espontânea, mas uma cooperação [...]. Ao invés do lucro, o cooperativismo visa os interesses humanos. (NICOLADELI, 2009, p. 35-36)

Nota-se, ainda, que a própria definição de cooperativa dada por Romeuf (apud NICOLADELI, 2009) aponta para o socialismo, ao citar a sociedade cooperativa como uma “empresa constituída e dirigida por uma associação de usuários, conforme a regra da democracia” (NICOLADELI, 2009, p. 36), tendo por foco a prestação de serviços à sociedade como um todo (membros e conjunto da comunidade).

Dessa forma, as cooperativas permitem ao cooperado tornar-se seu próprio patrão, por serem criações autônomas de trabalhadores, necessitando, entretanto, que se atenham aos cuidados necessários para que as cooperativas não corram “o risco de se tornar tão alienante como o capitalismo [...] uma vez que reproduzem na sua organização, todos os defeitos do capitalismo” (NICOLADELI, 2009, p. 38).

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3.2 O COOPERATIVISMO COMO FORMA DE GESTÃO

Tratando-se de alternativa ao modelo vigente do capitalismo, o modelo cooperativista, segundo Horz (2011), se apresenta como a forma jurídica que permite novas relações sociais. Isso se deve ao fato de que o cooperativismo promove um achatamento da hierarquia organizacional, uma vez que todos estão no mesmo nível decisório, eliminando as relações de poder e permitindo, dessa forma, que se criem relações mais justas e igualitárias entre os trabalhadores, tendo como base o modelo da autogestão social, no que se refere à possibilidade de manter suas características autogestionárias internamente, sem perder a capacidade de se utilizar de relações externas de troca tipicamente capitalistas a fim de garantir sua sobrevivência no mercado.

Pela peculiaridade das cooperativas, Horz (2011) salienta que esta seria a única maneira de contradição ao modelo capitalista, isto é, instituir relações de igualdade e posse coletiva no que tange à finalidade dos produtos, a produção em si e a partilha dos benefícios dela obtidos.

No Brasil, o cooperativismo apresenta-se sob diversas óticas, podendo se diferenciar tanto pela finalidade com a qual são constituídos como pelas relações de trabalho praticadas. Horz (2011), citando Faria (2009), estabelece três tipos de cooperativas distintas, conforme a área de atuação, a saber:

Tipo 1: semelhantes às organizações capitalistas, atuam como verdadeiras empresas, tendo como exceção a existência de um Conselho Fiscal e Assembleia Geral, formada pelos cooperados.

Tipo 2: nesse tipo de cooperativa observa-se a gestão coletivista, na qual os cooperados são seus próprios gestores detendo o controle sobre o que é produzido e os meios de produção.

Tipo 3: ocorre quando os trabalhadores estão excluídos do sistema capitalista, sem emprego, e se organizam pela necessidade de geração de renda, recorrendo ao trabalho informal (precarizado), como o artesanato popular.

3.3 O COOPERATIVISMO EMPRESARIAL: O NASCIMENTO DE UM SISTEMA CAPITALISTA DE ORGANIZAÇÃO FORMAL DA MÃO DE OBRA

As primeiras cooperativas eram essencialmente de consumo, com a finalidade, então, de angariar recursos para a subsistência de seus cooperados, conforme seus interesses de consumo. Após sofrer muitas resistências, com o apoio do poder público, as atividades cooperativas passaram a ser mais rentáveis, ganhando, com isso, mais adeptos.

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Apesar do tempo corrido, os princípios do cooperativismo foram mantidos – apenas redefinidos – estando em vigor, atualmente, como cita Opuszka (2006), com a seguinte nomenclatura: adesão livre e voluntária; controle democrático dos sócios; participação econômica dos sócios; independência e autonomia; educação, treinamento e formação; cooperação entre cooperativas; interesse pela comunidade.

A partir dos princípios difundidos por Rochdale, verifica-se que a gestão democrática é fator importante para – se não alcançar – buscar a igualdade para todos os cooperados e sua ampla participação. Outra característica importante é o fato de cada um, independente da cota que possui, ter o direito a um voto (OPUSZKA, 2006).

O cooperativismo empresarial pode agregar ainda dois princípios, denominados secundários, referentes à dupla qualidade e a retribuição pessoal diferenciada, conforme trata Delgado (apud OPUSZKA, 2006). A dupla qualidade diz respeito ao resultado satisfatório tanto para o contratado como para o cooperado do trabalho; e a retribuição pessoal diferenciada refere-se à necessidade de que o cooperado tenha melhores condições do que os trabalhadores empregados ao receber os benefícios.

Serra (2008) afirma que o cooperativismo não engessa o sistema, e, portanto, permite flexibilizações conforme o espaço em que é introduzido, possibilitando o desenvolvimento e consolidação das cooperativas, que devem, acima de tudo, garantir o crescimento de seus associados, e, consequentemente, seu próprio sucesso.

No Brasil, verifica-se o contrário no que tange ao desenvolvimento das cooperativas. Em razão do crescimento econômico que obtiveram, principalmente as cooperativas agrícolas, passaram a “crescer na exata proporção das vantagens financeiras que tiveram condições de oferecer aos associados” (SERRA, 2008, p. 4), deixando, entretanto, se perder os aspectos de cunho social e ideológico.

Esse distanciamento dos princípios ideológicos que regem o cooperativismo acabou levando as cooperativas a se aproximarem dos valores econômicos e a política dominante, em oposição à filosofia estabelecida, sendo estruturadas do nível mais alto ao mais baixo, raramente a partir de iniciativas das classes produtoras e sim de iniciativas governamentais. As cooperativas passaram, então, a ser um poderoso instrumento do Estado, mesmo que não atendessem às necessidades de seus associados, como no caso da agricultura. Tradicionalmente, o modelo antes praticado absorvia grande parte da mão de obra que se instalava no meio rural em função das maiores oportunidades de trabalho.

Anteriormente ao surgimento do novo modelo, as cooperativas acabavam exercendo o papel de recebedoras e repassadoras de matérias-primas produzidas pelos associados, sem que houvesse necessidade de um intermediador, o que permitia que os associados melhor se identificassem com as propostas e as teorias que embasavam o cooperativismo.

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Porém, na nova fase, as cooperativas acabaram perdendo um pouco de sua essência social e se consolidaram grandes empresas. Essa brusca mudança na base das cooperativas acaba gerando ambiguidades e contradições referentes a seus próprios princípios cooperativistas.

Serra (2008, p. 9) formula que “não há como negar, por exemplo, que o quadro associativo perdeu sua importância na sustentação da empresa, sofrendo, em relação a ela, o que seria pelo menos na aparência, uma ruptura social e econômica”. Assim, o distanciamento provocado pelo surgimento da cooperativa empresarial, que dissocia a própria cooperativa do seu corpo associativo, é sustentado por fatores, como o poder restrito dos cooperados às decisões; a separação das sobras a serem distribuídas, fazendo distinção entre aquelas produzidas pelos cooperados e as desenvolvidas pela empresa; a impossibilidade de cada associado repartir igualitariamente os benefícios dos recursos, principalmente aquelas não contabilizadas na conta capital.

3.4 O COOPERATIVISMO POPULAR: A RESISTÊNCIA DOS TRABALHADORES EM MEIO AO ALCANCE DE TRABALHO E RENDA

O cooperativismo, como já tratado, se insere no mercado como uma resposta ao individualismo liberal. Gonçalves e Vegro (1994) salientam a finalidade do cooperativismo de, por meio de uma reforma no capitalismo pelo uso da cooperação, transformar a realidade das classes excluídas, reduzindo “os impactos sociais decorrentes da excludência gerada no processo de avanço da acumulação capitalista” (GONÇALVES; VEGRO, 1994, p. 61).

As empresas cooperativas permitem a integração dos seus associados ao processo de modernização, permitindo que esses tenham acesso às fontes, tecnologias e recursos outrora negados, e criem condições adequadas para sua sobrevivência. Gonçalves e Vegro (1994), citando Gonçalves (1987), afirmam, tomando o caso dos agricultores como modelo, que é a própria cooperação dos cooperados que verticaliza as atividades, permitindo ao indivíduo ter maior acesso e participação no valor adicionado, característica que faz com que o sistema cooperativista de distinga dos demais sistemas de organização empresarial.

A crise verificada nas sociedades atuais decorre especialmente da grande desigualdade socioeconômica existente que caracteriza o crescimento econômico vigente, “gerando necessidades de abastecimento às camadas mais pobres da população, sob pena do sistema implodir, pelo número assustador de necessitados” (NICOLADELI, 2009, p. 50).

Mas, embora a crise do trabalho seja basicamente uma crise de exclusão social, a própria sociedade vem se mobilizando por meio de iniciativas a fim de se fortalecer e buscar alternativas ao problema do crescimento da pobreza.

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A economia solidária tem sido apontada como provável solução para impedir o desabamento do sistema. Trata-se de um movimento que é considerado por alguns estudiosos como movimentos alternativos, por prover a subsistência da população excluída do mercado de trabalho, e por outros, como movimento alterativo porque provoca alterações no quadro de condução das políticas de desenvolvimento. (NICOLADELI, 2009, p. 51).

Apesar de a economia popular existir não somente pela vontade política, mas principalmente pela vontade da própria sociedade, nota-se que é preciso uma organização coletiva, a fim de fornecer às populações excluídas condições básicas de subsistência, minimizando os problemas de sobrevivência, no que tange o abastecimento e trabalho dessa população, diferenciando-a, portanto, da economia informal. A partir disso, pode-se definir a economia popular, conforme Icaza e Tiriba (2003 apud NICOLADELI, 2009), como o conjunto de atividades (econômicas e sociais) praticadas pelos setores populares, utilizando-se de suas próprias forças e recursos, visando à garantia do atendimento às necessidades básicas.

Verifica-se que as cooperativas têm sido uma das principais formas dessa convivência e uma maneira de organização da economia popular, entretanto, para que as organizações cooperativas possam se sustentar deve haver uma cooperação entre elas, para, então, reduzir sua fragilidade, com o apoio de toda a sociedade, políticos, assistentes sociais, ONGs, Igreja, entre outros. Dessa forma, a própria economia informal existente atualmente pode ser adaptada por meio da organização, tornando-se uma economia popular, para que o trabalhador use seu trabalho para próprio sustento, de maneira não excludente e que possa ser capaz de atender às suas necessidades.

Apesar de o cooperativismo inserir em seu escopo as particularidades e características do local onde é implantado, especialmente no que tange os segmentos sociais e econômicos, “pode-se dizer que o cooperativismo é um sistema universal que se sustenta nos princípios da ajuda mútua e da ajuda própria” (SERRA, 2008, p. 3).

4 COOPERATIVISMO NA PESCA ARTESANAL: POTENCIALIDADES E LIMITES A SUSTENTABILIDADE

4.1 BENEFÍCIOS DAS COOPERATIVAS DE PESCA

Apesar do diagnóstico alarmante sobre a situação do cooperativismo pesqueiro no Brasil em função das dificuldades encontradas, principalmente no que se refere à ausência de políticas e diretrizes governamentais e do próprio segmento cooperativista para a busca de novos rumos, Maldonado e Santos (2006) explicitam um novo cenário em relação às

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mudanças associadas a esse cenário, passando a ser função do próprio Estado o estimulo à modernização da cadeia produtiva, bem como no estimulo a parcerias, associativismo e cooperativismo.

Pode-se afirmar que as cooperativas de pesca surgiram da necessidade dos cooperados em buscar alternativas solucionais para os problemas técnicos e comerciais, destacando-se também o objetivo de melhores condições de vida, assim como a melhor estruturação e condições sociais da comunidade.

A cooperativa surge, portanto, como importante fator para a redução dos custos de produção e despesas aos associados, como a aquisição de insumos e equipamentos, conseguindo preços mais atrativos, e, por consequência, ganhando maior visibilidade e crédito perante os fornecedores, reduzindo o custo repassado ao comprador.

De acordo com Pinho (1984 apud MALDONADO; SANTOS, 2006, p. 325), se cada pescador artesanal tentar colocar individualmente seus produtos diretamente no mercado encontrará muitas dificuldades, entre as quais se destacam: a falta de recursos para organizar uma infraestrutura de serviços de acondicionamento, conservação e transporte de seus produtos e a fácil deterioração dos produtos da pesca, obrigando-o a vendê-los a qualquer preço, em um período relativamente curto depois da captura. Os custos da operação também são maiores do que os das grandes empresas, o que torna a venda individual dos pescadores extremamente desigual e em desvantagem competitiva em relação àquelas.

Em contraposição, melhorando as condições dos associados, por meio das cooperativas, é possível diminuir os custos operacionais pela compra em maior volume, além de possibilitar a centralização administrativa, financeira e técnica do negócio, aumentando sua eficácia (MALDONADO; SANTOS, 2006). Outro benefício é a possibilidade da divisão de trabalho, sendo os trabalhos desenvolvidos em conjunto pelos cooperados, complementando as tarefas a serem executadas, favorecendo a especialização do pescador.

4.2 PESCA E PROBLEMAS AMBIENTAIS

Segundo Pereira (2008), a competição pela captura das espécies vem se reduzindo ao longo dos anos, e, por consequência, alterando as relações sociais, bem como o contato com a natureza, dessa forma, a busca pela sustentabilidade na atividade da pesca e no meio onde vivem acaba sendo razão não prioritária. A autora salienta que, muitas vezes, a necessidade imediata por alimento para subsistência do pescador e sua família acaba se tornando um obstáculo para o uso de práticas que diminuam o esforço de pesca e o uso de apetrechos que minimizam o impacto da pesca e são mais adequados à proteção ambiental.

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Nesse sentido, verifica-se que ambas as situações estão atreladas, pois a escassez de recurso pesqueiro leva o pescador a usar redes com malhas mais finas para pegar peixes menores a fim de obter resultados próximos às situações anteriores. No entanto, essa mudança na atividade pesqueira provoca “maiores danos ao ambiente, agravando assim a situação do estoque e comprometendo safras futuras” (PEREIRA, 2008, p. 74).

Por consequência desses fatores, a situação de pobreza dessas comunidades é agravada, colocando-os em uma situação de vulnerabilidade social, o que torna a situação ainda mais complexa do ponto de vista ambiental, exigindo constantes diálogos entre as partes interessadas – governos, pesquisadores, os próprios pescadores e outros –, para que se alcance a melhor solução para os problemas enfrentados.

Os que estudam a situação do estoque das espécies tentam convencer os pescadores de que precisam diminuir o esforço de pesca para que haja uma renovação e reprodução adequada. [...] No entanto, na sociedade capitalista [...] tudo ou quase tudo acaba tomando proporções de ser visto na ótica da luta por sobrevivência para uns e busca de lucro para outros (PEREIRA, 2008, p. 74).

Com isso, o pensamento ambiental e a luta por sua aplicabilidade são postos de lado, para uma manifestação irracional da lei do mais forte, o capital. Surge, desse modo, a educação ambiental – que possui como finalidade a construção de uma nova racionalidade no uso dos recursos naturais, bem como da condição saudável de vida entre os seres humanos (PEREIRA, 2008) –, que enfrenta diversos problemas para se efetivar, em função das próprias dificuldades verificadas nas comunidades pesqueiras.

Um fator importante, muitas vezes negligenciado, é a necessidade do acesso à educação das comunidades pesqueiras, tanto no que se refere à educação formal (escolar) como informal (projetos, programas), pois ela possibilita que participem ativamente nas decisões que envolvem a comunidade. A participação representa uma conquista para os atores sociais e possibilita a ação interativa entre forças que se complementam e se contrapõem numa realidade vista como totalidade, conforme Acselrad (2001 apud PEREIRA 2008).

Desse modo, infere-se que a não participação dos atores sociais, especialmente no que se refere àqueles afligidos pelos problemas sociais “decompõe a realidade, reduzindo-a e simplificando-a, não dando conta da compreensão de sua complexidade e somente possibilitando intervenções parciais e fragmentadas” (PEREIRA, 2008, p. 76).

Pereira (2008) enfoca então a estratégia da utilização da educação ambiental como propulsora de um processo de inclusão social e participação, tornando-se, dessa forma, um instrumento de gestão capaz de intervir na realidade (ou em sua construção), permitindo que cada indivíduo atue considerando as consequências globais de suas atividades, consciente da globalidade que existe em cada local e em cada indivíduo. Assim, se o meio

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ambiente está relacionado a um lugar determinado em que os elementos naturais e sociais se relacionam, é preciso lançar um olhar sobre os problemas imediatos que envolvem a realidade do grupo social inserido nesse meio.

No âmbito da política pública, Pereira (2008) trata da alta capacidade de intervenção da liderança de comunidades e pescadores, embora ainda se verifique que poucos efetivamente se envolvem no processo de participação, “o que os torna alvos de oportunistas que se aproximam com intuito de usá-los como trampolim político” (PEREIRA, 2008, p. 77).

Algumas peculiaridades da atividade pesqueira são fundamentais para entender a realidade a que as cooperativas se inserem e subsidiar o planejamento de estratégias para o desenvolvimento do cooperativismo na atividade pesqueira. Maldonado e Santos (2006, p. 326) citam como peculiaridades a “dependência do poder público e a complexidade da atividade pesqueira e das cooperativas de pesca”. Outra peculiaridade do setor pesqueiro é a questão do próprio pescado, recurso que depende exclusivamente da reprodução biológica e o crescimento dos indivíduos, que, segundo Marrul Filho (2001 apud MALDONADO; SANTOS, 2006, p. 327), “são fenômenos limitados pela capacidade de carga do ambiente no qual ocorrem, impondo limites ao tamanho dos estoques capturáveis”.

Constrói-se, assim, naturalmente, um teto máximo sob o qual a atividade pesqueira pode operar - fato contrário à própria dinâmica do capitalismo em sua tendência ao desenvolvimento infinito. As flutuações no tamanho dos estoques exploráveis, provocadas tanto por fatores naturais como por aquelas decorrentes de desequilíbrios ambientais ocasionados por atividades antrópicas, causam imensas dificuldades na previsão de rendas futuras, resultando em altas incertezas econômicas para a atividade pesqueira (MALDONADO; SANTOS, 2006, p. 327).

Os pontos apresentados associados aos desafios enfrentados pelas cooperativas pesqueiras, em face de algumas exclusividades, como a de o pescado ser um produto altamente perecível; de a atividade em pequena escala exigir dedicação exclusiva do pescador; além de outros, que acabam limitando as potencialidades do setor. A importância do meio marinho, constituído pelos oceanos, mangues, mares e costa, e demais ambientes aquáticos (lagos, rios, estuários), se dá por ser componente essencial “do sistema mundial de sustentação da vida e uma valiosa fonte de proteínas para o desenvolvimento de uma população em constante crescimento” (CHAVEZ; TACHIBANA, s.d., p. 1).

Segundo Chavez e Tachibana (s.d.), fatores como a poluição, o desenvolvimento tecnológico ocorrido nas últimas décadas, exigindo maiores custos ambientais, e, sobretudo, a pesca predatória são formadores de grandes pressões sobre os recursos hídricos, em especial o marinho, que já dá sinais de esgotamento, apesar de sua imensidão. Essa poluição contamina não só a água, mas também sua produção para abastecimento humano, inviabilizando, segundo especialista, o seu tratamento para consumo em pouco

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tempo. A contaminação pode gerar também problemas em relação às atividades turísticas e recreativas em cidades litorâneas, tornando-as inaptas, constituindo um grave problema às autoridades locais.

Chavez e Tachibana (s.d.) orientam que a prevenção da contaminação se torne cada vez mais imprescindível, pois seus impactos não se restringem à alteração da qualidade da água, mas também exercem efeitos diretos sobre a “qualidade e variedade dos serviços oferecidos, programas de educação, número de turistas, programas de saúde e custos ambientais” (CHAVEZ; TACHIBANA, s.d., p. 2). Outro impacto observado é a introdução de espécies exógenas, que acabam se proliferando rapidamente no novo ambiente onde são colocadas, pondo em risco a biodiversidade local. O excesso de resíduos orgânicos e inorgânicos lançados na água também contribui para o enriquecimento de nutrientes na água, gerando, consequentemente, a eutrofização. Outro ponto é o uso em demasia de medicamentos que, quando absorvidos pelos organismos aquáticos, acabam influenciando no processo de geração de outros organismos resistentes à contaminação (CHAVEZ; TACHIBANA, s.d.).

O grande desafio que se coloca na atualidade é uma forma de satisfação das necessidades humanas aliada à proteção e resguarda do ecossistema aquático, que é a base da vida, e, assim, viver em harmonia com a natureza, uma vez que a produção pesqueira, infelizmente, ainda tem base na exploração intensiva dos recursos naturais e sobrecarga da capacidade ambiental, sem levar em consideração que tanto as geração presentes quanto as futuras dependem desse recurso e de sua produção natural.

4.3 IMPACTO AMBIENTAL DA PESCA

Os principais impactos ambientais, também os mais expressivos, decorrem da pesca industrial cujos processos tecnológicos permitem o avanço das atividades além das regiões costeiras, para suprimento de uma ampla faixa da população, o que exerce uma forte pressão no meio ambiente, causando “o desaparecimento de muitas espécies, e deixado a outras perto da extinção devido principalmente a uma pesca irracional” (CHAVEZ; TACHIBANA, s.d., p. 10).

Entre os problemas ambientais que são verificados nos ambientes aquáticos e acabam gerando impactos, destacam-se: os vazamentos de combustíveis/petróleo de embarcações; a contaminação por esgotos sanitários e industriais; dejetos domésticos; nutrientes (fosfatos e nitratos); eutrofização; metais pesados (resíduos minerais); resíduos químicos (resíduos industriais); produtos petroquímicos; inserção de espécies exóticas; e a própria pesca e aquicultura. Desse modo, conforme colocam Chavez e Tachibana (s.d.), o

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impacto ocasionado pela pesca pode ser dividido em impactos diretos e impactos indiretos, de acordo com o seu nível de atuação, a saber:

Impactos Diretos: redução da população objeto da pesca; mortalidade da população não objetiva (fauna acompanhante); destruição de habitat causado pela introdução dos apetrechos de pesca.

Impactos Indiretos: interações biológicas (competência e depredação); efeitos provocados no ecossistema por descartes derivados da pesca; impactos da pesca fantasma.

Outros impactos, como os provenientes dos descartes de espécies não exploradas, “bem como dos desfechos orgânicos derivados das atividades pesqueiras” (CHAVEZ; TACHIBANA, s.d., p. 11), podem levar a mudanças na estrutura e diversidade de espécies das comunidades aquáticas, o que favorece o desenvolvimento de espécies detritívoras. Os autores citam ainda o impacto originado pela água de descarga e água de cola, gerada pelas fábricas processadoras de farinha e óleo de peixe, o que culmina na proliferação de algas, e consequente eutrofização do ambiente. Já a pesca fantasma, aquela decorrente do abandono de aparelhos e equipamentos de pesca decorrentes de acidentes é responsável por mortes, ainda não mensuradas, de mamíferos aquáticos e aves, principalmente.

Em virtude desses impactos, ressalta-se a necessidade da criação de regulamentações que estabelecem padrões e limitações quanto ao uso e exploração dos recursos aquáticos, visando à utilização desses recursos da melhor maneira possível, sustentavelmente, para que continuem proporcionando rendimentos adequados, sem deixar de lado a proteção dos ecossistemas aquáticos e o ambiente como um todo.

4.4 OS LIMITES E AS POTENCIALIDADES PARA A SUSTENTABILIDADE

Apesar das fortes pressões sofridas pelas comunidades pesqueiras, sobretudo no que se refere à evolução e expansão do sistema capitalista, “um dos grandes desafios futuros que se apresenta trata-se de entender como essas comunidades pesqueiras têm se organizado e sobrevivido no contexto capitalista” (PEREIRA, 2008, p. 79).

Já dizia Sartre, através de Brandão (2003), que o essencial não é o que foi feito do homem, mas o que ele faz daquilo que fizeram dele. O que foi feito dele são as estruturas, os conjuntos significantes estudados pelas ciências humanas. O que ele faz é a sua própria história, a superação real dessas estruturas numa práxis totalizadora (PEREIRA, 2008, p. 79).

Nesse sentido, é fundamental que as comunidades pesqueiras tenham pleno acesso à educação como um todo, inclusive à educação ambiental, para que se discuta e se entenda como se articulam os poderes na sociedade e o papel da política numa situação de desigualdade social como muitos desses pescadores vivem.

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Como diz Pereira (2008), os problemas ambientais não decorrem da quantidade de pessoas existentes no Planeta, mas sim em como elas se organizam e produzem em sociedade. Nesse ponto é que se insere a questão da educação ambiental como meio para o enfrentamento dos problemas ambientais e solução das questões que atingem as cooperativas de pesca artesanal, tendo como foco a busca da sustentabilidade em suas dimensões.

Nesse sentido, trabalhar educação ambiental com pescadores artesanais significa estar articulado com lutas sociais, com a expectativa da emergência de atores sociais, com a preservação e o reconhecimento de processos reversíveis e outros irreversíveis e com as relações econômicas de forma crítica (PEREIRA, 2008, p. 80).

Portanto, a adoção de políticas públicas de educação ambiental voltadas para a pesca instiga a reflexão do papel dos órgãos ambientais na tomada de decisão, tendo como base a participação popular.

Importante ressaltar o papel do cooperativismo para a mudança da realidade das comunidades pesqueiras, que, segundo Pereira (2008), se apresenta como um dos caminhos possíveis para a transformação da realidade atual.

Entende-se, nesse sentido, que os pescadores e pescadoras, através da educação ambiental, terão oportunidade de apoderar-se de ferramentas, que lhes proporcionarão descortinar os mecanismos que movem a sociedade capitalista, criando alternativas de mudança na busca da sustentação desta categoria social (PEREIRA, 2008, p. 80).

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CONCLUSÃO

O cooperativismo surgiu da necessidade dos grupos menos favorecidos como forma de enfrentamento ao capitalismo – sistema vigente caracterizado pela busca desenfreada pelo lucro –, e de combater a desigualdade na distribuição de recursos, exclusão de pessoas, e o desemprego, que tem como consequência a falta de condições adequadas para a subsistência desses grupos.

Dessa forma, as cooperativas pesqueiras, baseadas nos princípios do cooperativismo definidos por Rochdale e difundidos, principalmente, por Robert Owen, se apresentam como grupo organizado na busca de melhores condições de sobrevivência e competitividade no mercado.

Muitos foram, são, e ainda serão os movimentos cooperativistas que surgem na ânsia de modificar, pelo menos, seu contexto, a atual forma de gestão dos empreendimentos, lutando contra o capitalismo vigente.

Infere-se, portanto, que as cooperativas propõem uma nova dinâmica à sociedade atual, buscando a justiça social e econômica, pela divisão igualitária de direitos e deveres.

O cooperativismo oferece aos pescadores uma nova realidade frente aos problemas enfrentados, permitindo que tenham maior competitividade no mercado, melhores condições de vida, e valorização do trabalho. A capacidade de autogestão, obtenção de empréstimos e o crescimento das vendas levam os pescadores a se valorizar em virtude do trabalho cooperativo, que lhes permite oferecer seus produtos em condições que seriam impossíveis enquanto pescadores individuais.

Verifica-se que não há consenso a respeito do conceito de sustentabilidade, e que esse conceito se apresenta como um tema complexo e muitas vezes inatingível quanto às várias dimensões.

Portanto, a sustentabilidade não pode ser alcançada sem que haja uma visão integrada das questões urbanas, abrangendo as questões sociais, importantes fatores de degradação ambiental, sendo de fundamental importância para garantir o atendimento às condições de proteção ambiental, e, além disso, em sua visão mais ampla, de maneira complementar proporcionar sustentabilidade social, econômica, cultural, espacial e política.

No que tange a necessidade de resolução dos problemas quanto à dimensão ambiental na pesca artesanal, destaca-se a importância da educação ambiental, a fim de sensibilizar os pescadores quanto ao uso dos recursos naturais e à necessidade de preservação ambiental para que o negócio se torne sustentável, elevando o nível de vida dos cooperados, e permitindo que se garanta qualidade ambiental para as futuras gerações.

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Portanto, o ecodesenvolvimento deve promover a conscientização da comunidade local, bem como definir os padrões de sustentabilidade que serão utilizados para garantir um crescimento local adequado.

Infere-se, então, que não é possível que as cooperativas populares pesqueiras cheguem ao clímax do melhor resultado produtivo e qualidade de vida sem que haja o atendimento aos princípios cooperativos antes estabelecidos, aliados à temática do desenvolvimento sustentável, que garantirá a existência dos recursos por um longo período caso sejam respeitados seus limites, e evitados os impactos sobre tal.

Outro destaque se relaciona à estreita ligação entre as finalidades tanto do cooperativismo quanto da sustentabilidade, que é lutar contra o sistema vigente, buscando oferecer às comunidades condições equilibradas e igualitárias de vida, suprindo suas necessidades, sem desrespeitar o que pertence ao outro (nesse caso, pode-se citar o meio ambiente e seus recursos naturais) sempre em uma gestão de cooperação.

O papel do poder público está, tão logo, em oferecer à sociedade opções para a associação em cooperativas, o incentivo e fiscalização de suas ações para que realmente beneficiem aqueles que necessitam, além da criação de políticas públicas efetivas para o desenvolvimento desse setor, em especial o pesqueiro, que muito tem a contribuir com o desenvolvimento do País, além de ser uma alternativa viável para os problemas de desigualdade social e econômica.

Em relação ao desenvolvimento sustentável, enquanto esse não for entendido como único meio de se atingir a proteção ambiental, principalmente como garantia de sobrevivência desta e das futuras gerações, que dependem intrinsecamente dos recursos ambientais, tanto o cooperativismo quanto o próprio capitalismo estarão fadados à crise, atingindo toda a população.

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RESUMO

As enchentes que vêm ocorrendo no País têm gerado inúmeros estragos materiais e morais. A causa das enchentes não é apenas a chuva, mas também a falta de planejamento urbano, estrutura inadequada para os recursos hídricos, ausência de fiscalização para obstar construções irregulares em morros, nas proximidades dos rios, além de outras causas. Os danos causados são evidentes e inúmeros; porém pouco se fala acerca da responsabilização daqueles que tinham o dever de evitar – ou ao menos reduzir – os impactos causados pelas enchentes. Assim, o presente trabalho pretende levantar os argumentos jurídicos a favor e contra a responsabilização do Estado pelos danos causados pelas enchentes no Brasil, verificando se, de fato, ele pode ser responsabilizado. Para o desenvolvimento do trabalho, foi realizada a pesquisa bibliográfica e o estudo de casos, culminando na conclusão de o Estado pode, sim, ser responsabilizado pelos danos oriundos das enchentes, tanto pela adoção da teoria da responsabilidade subjetiva, quanto pela adoção da teoria da responsabilidade objetiva.

Palavras-chave: Danos. Indenização. Estado. Culpa. Catástrofes.

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELOS DANOS DECORRENTES DAS ENCHENTES: UM ESTUDO DE CASO DAS ENCHENTES OCORRIDAS NO VALE DO ITAJAÍ EM 2008 E NA REGIÃO SERRANA DO RIO DE JANEIRO EM 2011

Kelly Laskavski*Mayra de Souza Scremin**

* Aluna do 5º ano de Direito da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica da Fundação Araucária. E-mail: [email protected].

** Mestre em Direito (UFPR). Advogada. Professora da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

Todos os anos o Brasil se depara com inúmeras catástrofes decorrentes das chuvas. São enchentes e deslizamentos de encostas que levam consigo construções, bens móveis e vidas, deixando um rastro de danos que, em princípio, não são reparados. No entanto, não é isso que prevê a legislação brasileira, que é clara ao definir que todo aquele que causar dano a outrem tem o dever de indenizar. Assim, a identificação dos responsáveis pelas enchentes abre caminho para a cobrança de reparação aos danos delas decorrentes.

Mas o que é responsabilidade? De acordo com Rui Stoco1, a expressão “responsabilidade” é polissêmica, podendo significar tanto diligência quanto obrigação pelos atos praticados. A expressão originou-se nas relações creditícias em que o devedor confirmava ter com o credor uma obrigação, a qual era garantida com uma caução ou responsor, não guardando qualquer relação com a culpa, mas somente servindo de garantia de satisfação da obrigação.

Atualmente, a expressão responsabilidade civil diz respeito ao dever de reparar os danos materiais ou morais causados a terceiros, por ação ou omissão própria ou que lhe seja atribuída por lei. Trata-se de uma exigência natural da vida em sociedade e visa restabelecer o equilíbrio individual e social rompido com o dano2.

Maria Helena Diniz define a responsabilidade civil como

a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar o dano moral e patrimonial causado a terceiros em razão do ato próprio imputado, de pessoa por quem ele responde ou de fato ou coisa ou animal sob a sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva).3

Rui Stoco4 menciona que a responsabilidade civil é uma instituição assecuratória de direitos para onde acorrem os insatisfeitos e injustiçados pelo comportamento de outrem. É, portanto, uma consequência e não uma obrigação original. Sempre que alguém sofre um detrimento qualquer e não obtém a reparação necessária, pode lançar mão da responsabilidade civil para se vir ressarcido, dado que a responsabilização civil consiste na retratação de um conflito.

1 STOCO, Rui, 2007.2 MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus; SILVA, Regina Beatriz Tavares da,

2011, p. 566.3 DINIZ, Maria Helena, 2003.4 STOCO, Rui, 2007.

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Assim, visando atender às expectativas daqueles que sofrem os danos – ainda que decorrentes de enchentes – a legislação brasileira traz duas vertentes a serem invocadas: a responsabilidade subjetiva, aplicável a uma generalidade de pessoas, para a qual o elemento culpa é indispensável à configuração do dever de reparação do dano; e a responsabilidade objetiva, aplicável àqueles que detêm um dever maior de diligência – como o Estado – sendo dispensável a presença do elemento culpa para caracterização do dever de reparar, como será visto adiante.

2 REFERÊNCIAL TEÓRICO

2.1 RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA

A responsabilidade civil subjetiva encontra guarida no Código Civil Brasileiro, mais especificamente em seus artigos 186 e 927, os quais, cumulados, dispõem que, aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito, fica obrigado a repará-lo.

O ato ilícito, conceituado no artigo 186 do CC, é definido por Maria Helena Diniz como sendo o ato praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando o direito subjetivo individual. Assim, causado dano a outrem, cria-se o dever de repará-lo. Logo, o ato ilícito produz efeito jurídico, só que esse não é desejado pelo agente, mas imposto pela lei.

O ato haverá de ser considerado ilícito sempre que, como decorrência de uma infração da regra que disciplina a atuação estritamente jurídica de alguém, se manifeste uma desconformidade, ainda que essa não venha lesar direito subjetivo de quem quer que seja6.

Assim, tem-se que para configurar a responsabilização subjetiva, é necessária a presença dos seguintes elementos: ação ou omissão, dano, nexo de causalidade e culpa.

5 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. Editora Saraiva, 3 ed. 1997, p. 169.6 SANTOS, Herez, 2006.

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A ação ou omissão ensejadora da responsabilidade civil é aquela dita antijurídica, imputável ao agente, uma vez que a mera consumação do dano na órbita individual de um terceiro é insuficiente para o surgimento da responsabilidade7. Complementando, tem-se que “quem age conforme ao direito, de maneira lícita, não é responsável, porque a responsabilidade é sanção da violação e uma regra de direito”8.

O dano, em sentido comum, significa o mal que se faz a alguém; prejuízo; destruição, inutilização ou deterioração de coisa alheia; enquanto, em sentido jurídico, dano é qualquer ato ou fato praticado pelo sujeito ativo, produtor de lesões a interesses alheios juridicamente protegidos, incluindo-se no conceito de ato ou fato tanto as ações como as omissões9. Trata-se de qualquer lesão injusta aos valores protegidos pelo Direito10.

Do dano surge a necessidade de reparação, a fim de restaurar o equilíbrio rompido11. A doutrina é unânime12 em afirmar que não há responsabilidade sem prejuízo, concluindo que o prejuízo causado pelo agente é o dano13. Observa-se que o dano somente será indenizável quando for certo, especial e anormal14.

Por certo, tem-se que o dano deve ser real, já concretizado, sendo impossível o ajuizamento de medida preventiva, isto é, medidas interpostas sob a fundamentação de que os danos poderiam ocorrer; por especial, tem-se que se contrapõe à noção de dano geral aplicável à coletividade como um todo, devendo ser passível de individualização; e anormal, por não ser mero dissabor da vida em coletividade, consistindo em prejuízos atípicos.

Quanto ao nexo de causalidade, tem-se que é a relação de causa e efeito existente entre o fato ocorrido e suas consequências15.

7 JUSTEN FILHO, Marçal, 2005, p. 794.8 DIAS, José de Aguiar, 2006. p. 141.9 MATIELO, Fabrício Zamprogna, 1998.10 BITTAR, Carlos Alberto, 1993, p. 14.11 BITTAR, Carlos Alberto, 1993, p. 16.12 A título de exemplo, cita-se BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1993; SPITZCOVSKY, Celso. Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2004; e MATIELO, Fabrício Zamprogna. Dano Moral, Dano Material e Reparação. 4. ed., revista e ampliada. – Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998.

13 STOCO, Rui, 2007.14 SPITZCOVSKY, Celso, 2004, p 263.15 SPITZCOVSKY, Celso., 2004, p 266.

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Por fim, o elemento culpa é analisado em seu sentido lato senso, ou seja, tanto pode ser que o agente causador do dano tenha praticado a ação ou dela se omitido por dolo – vontade livre e consciente da ilicitude de seus atos –, quanto por culpa stricto senso, caracterizada por negligência, imprudência ou imperícia.

Conclui-se, pois, que – para a corrente subjetivista – a culpa é elemento indispensável à concretização da responsabilidade civil, devendo ser avaliada a imputabilidade, ou seja, a consciência do agente, a vontade do infrator na prática do ato deve ser consciente16.

A obrigação de reparar decorrente da culpa corresponderia rigorosamente a um sentimento de justiça, de modo que a reparação seria indispensável para a integração da pessoa no meio em que vive, tanto no direito quanto na moral17.

Presentes tais requisitos, resta configurado o dever de indenizar na modalidade subjetiva, ou seja, aquela que depende da “inexecução consciente de uma norma de conduta, cujos efeitos danosos são desejados pelo agente (dolo) ou previsíveis, mas não evitados pelo infrator (culpa em sentido estrito)”18 causadora do evento lesivo.

2.2 RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA

Conforme dito anteriormente, a responsabilidade civil é aplicada de forma diferenciada àqueles que detêm um dever maior de cuidado. Assim acontece com o empregador em relação aos atos praticados por seu empregado, a quem deveria fiscalizar e coordenar e, do mesmo modo, com o Estado.

Para essa espécie de responsabilização, é necessária tão somente a presença de dois elementos: dano e nexo de causalidade.

A previsão legal para a responsabilização objetiva está no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil Brasileiro, que determina a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

16 MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus; SILVA, Regina Beatriz Tavares da, 2011, p. 576.

17 MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus; SILVA, Regina Beatriz Tavares da, 2011, p. 577 e 578.

18 MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus; SILVA, Regina Beatriz Tavares da, 2011, p. 578.

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No que tange à responsabilização objetiva do Estado, a previsão legal decorre da própria Constituição Federal da República do Brasil, que no artigo 37, §6º dispõe que

as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Percebe-se, pois, a exclusão do elemento culpa do agente, motivo pelo qual é denominada por alguns doutrinadores – tais como Celso Spitzcovsky, Odete Medauar e Diógenes Gasparini – como objetiva.

Odete Medauar pauta a necessidade de responsabilização objetiva do Estado por meio do seguinte conceito: No caso da Administração, a multiplicidade e amplitude de suas atividades e as suas prerrogativas de poder ensejam risco maior de danos a terceiros. Por outro lado, nem sempre é possível identificar o agente causador, nem sempre é possível demonstrar seu dolo ou culpa. Melhor se assegurar os direitos da vítima ante o tratamento objetivo da responsabilidade da Administração19.

Tratando-se de responsabilidade objetiva do Estado, por vezes vigora a teoria do risco administrativo, que consiste em uma responsabilidade objetiva mitigada e que pode ser afastada ou diminuída pela culpa exclusiva ou concorrente da vítima, cabendo o direito de regresso contra o responsável direto pelo evento, por vezes, a teoria do risco integral, aplicável nas situações em que não há direito de regresso do ente público contra o seu agente.

Observa-se que a teoria do risco integral é demasiado extremista, podendo ensejar situações absurdas, em que, embora o Estado nada pudesse fazer para evitar o dano, ainda assim seria responsabilizado. Por essa razão, referida teoria não é adotada pelo Direito Nacional, que optou pela teoria do risco administrativo.

No entanto, essas não são as únicas vertentes acerca da responsabilidade do Estado. Uma parte da doutrina20 entende que, se tratando de omissão do Estado, haverá responsabilidade subjetiva, devendo o lesado provar o dolo e a culpa – teoria da culpa anônima do Estado ou teoria da falta do serviço21.

19 MEDAUAR, Odete, 2009, p. 377.20 Os principais expoentes dessa corrente são Celso Antônio Bandeira de Mello, Hely Lopes Meirelles,

Maria Helena Diniz, Maria Sylvia Zanella di Pietro e Diogénes Gasparini.21 Justen Filho diz ser mais apropriado aludir a uma objetivação da culpa, posto que aquele que detém

competências estatais tem o dever objetivo de adotar as providenciais necessárias e adequadas para evitar danos às pessoas e ao patrimônio. Para ele, infringindo esse poder objetivo quando no exercício de suas competências e acarretando dano, forma-se um juízo de reprovabilidade quanto à sua conduta sem a necessidade de investigar a existência de uma vontade psíquica no sentido da ação ou omissão causadora do dano.

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De acordo com essa teoria, respaldada no artigo 4322 do CC, o Estado deve reparar o dano apenas se comprovado o mau funcionamento, o não funcionamento do serviço, a falha da administração (culpa publicista ou culpa anônima). De qualquer modo, cabe à vítima comprovar tais acontecimentos23. Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que defende a responsabilização subjetiva do Estado em casos omissivos24. Assim, não existe responsabilização do Estado por crimes cometidos por fugitivos do sistema carcerário, tampouco por mortes causadas por balas perdidas, e, de igual modo, não se fala em responsabilidade do Estado quanto a danos oriundos das enchentes.

Mas e quando tais danos oriundos das enchentes se mostram recorrentes em determinados locais? Ainda assim cabe ao prejudicado comprovar que os danos poderiam ser evitados se houvesse a efetiva intervenção estatal? Na hipótese de reconhecimento de risco administrativo, pode-se dizer que – mesmo acontecendo todos os anos na mesma época – o excesso de chuva consiste em caso fortuito? Que mesmo o Estado detendo o Poder de Polícia não lhe cabe retirar moradores de áreas impróprias e que os danos que lhes acometerem decorrem de suas próprias atitudes?

A fim de responder tais questionamentos pretende-se, por meio dos estudos de caso abaixo, verificar se é possível imputar a responsabilidade pelos danos decorrentes das enchentes ao Estado e, se sim, qual a fundamentação para tanto.

3 OBJETIVOS

3.1 OBJETIVO GERAL

Identificar de quem é a responsabilidade pelos danos causados em razão das enchentes ocorridas no Brasil, especificamente nas áreas utilizadas no estudo de caso.

22 Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

23 MEDAUAR, Odete, 2009.24 AI 727483 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 19/10/2010, DJe-222

DIVULG 18-11-2010 PUBLIC 19-11-2010 EMENT VOL-02434-03 PP-00458 LEXSTF v. 32, n. 384, 2010, p. 72-75. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000167539&base=baseAcordaos. Acesso em 06. Jun. 2012.

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3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

1. Conceituar o que é responsabilidade e os elementos que a compõe;

2. Diferenciar a responsabilidade subjetiva da responsabilidade objetiva;

3. Verificar a legislação e doutrina aplicável em cada caso;

4. Analisar a responsabilização cabível no caso das enchentes ocorridas no Vale do Itajaí e Região Serrana do Rio de Janeiro.

4 METODOLOGIA DA PESQUISA

Para o desenvolvimento da pesquisa e obtenção dos resultados foi realizada a pesquisa bibliográfica (caráter exploratório), a fim de conceituar em que consiste e a quem se aplica a responsabilização por danos causados.

Outrossim, foi realizado o estudo de dois casos emblemáticos de danos causados pelas enchentes no Brasil: Vale do Itajaí, em Santa Catarina e Região Serrana do Rio de Janeiro.

5 ESTUDO DE CASOS

Encerradas as explanações acerca do que é a responsabilidade civil, passa-se agora para os estudos de caso e as conclusões deles decorrentes.

Inicia-se com a enchente ocorrida no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, no ano de 2008.

O Vale do Itajaí conta com uma rica rede de drenagem formada por inúmeros afluentes do rio Itajaí. Sua colonização foi inicialmente agrícola, composta por minifúndios a beira do rio. Com o tempo, pequenos núcleos urbanos começaram a surgir, transformando-se em pequenas e médias cidades que formam a rede urbana no Itajaí, a qual, atualmente, conta com 51 municípios.

A economia da região, que inicialmente era baseada na agricultura e na extração, se desenvolveu até chegar à industrialização, principalmente no ramo têxtil, que trouxe consigo o crescimento populacional, de modo que o leito secundário dos rios, considerado planície de inundação, e as encostas dos morros foram gradualmente ocupados, ensejando enchentes periódicas na região25.

25 MATTEDI, Marcos Antônio et al, 2009, p. 8.

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A enchente, ocorrida em novembro de 2008, levou 14 municípios a decretarem estado de calamidade pública, e outros 63 decretaram situação de emergência, perfazendo a quantia de 135 mortos e 78.656 desabrigados e desalojados26.

A intensidade das chuvas, de fato, fora considerada excepcional, perto de 500mm em dois dias em Blumenau, mas, ainda assim, é inegável que as atividades humanas contribuíram decisivamente para o aumento dos impactos27. A título de exemplo, cita-se a cidade de Baú, uma das mais atingidas pelo desastre, onde o levantamento efetuado pela Empresa de Pesquisa Agropecuária e de Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI) demonstrou que 85% dos escorregamentos de terra decorrem de ações humanas desenvolvidas na área, tais como desmatamentos, cortes nas encontas, aterros, políticas agrículas e urbanas inadequadas28.

Ressalta-se que “é um equívoco acreditar que quanto maior a chuva maior o impacto, pois eventos de menor intensidade vêm produzindo impactos negativos de magnitude cada vez maior”29. Assim, toda a destruição verificada no período pós-impacto é fruto da cumulação de práticas cotidianas de ocupação irregular do solo e recursos naturais, o que permite a afirmação de que os desastres que comoveram a opinião pública nacional e internacional em novembro de 2008 foram construídos socialmente a partir das escolhas políticas30.

Destaque-se, ainda, que essa não foi a primeira enchente ocorrida na região. Blumenau, por exemplo, é reincidente em caso de enchentes, registrando 68 delas num período de 158 anos31. Em todas as ocasiões, porém, as demandas da população atingida foram respondidas com uma falsa imagem de segurança, que continua a incentivar a ocupação de áreas de risco e uso indiscriminado dos recurso naturais, com intuito de incentivar o desenvolvimento, sem a percepção de que esse suposto desenvolvimento ocasiona perdas significativas quando do acontecimento de tragédias, como a vislumbrada em novembro de 200832.

26 SIEBERT, Cláudia, 2009, p. 40-51. 27 MATTEDI, Marcos Antônio et al, 2009, p. 16.28 MATTEDI, Marcos Antônio et al., 2009, p. 16.29 MATTEDI, Marcos Antônio et al., 2009, p. 17.30 Marcos Antônio Mattedi et al citam como exemplo as frequentes alterações no Plano Diretor da cidade

de Blumenau, que visam a expansão de aterros em áreas inundáveis, sem considerar o aumento do risco de inundação à jusante.

31 MATTEDI, Marcos Antônio et al., 2009, p. 15.32 MATTEDI, Marcos Antônio et al., 2009, p. 17.

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No segundo caso a ser estudado – a enchente ocorrida na Região Serrana do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011 –, tem-se que pelo menos 918 pessoas perderam suas vidas e 345 foram dados como desaparecidos. Estima-se que 8.900 pessoas ficaram desabrigadas 33. As cidades mais afetadas foram Teresópolis, Nova Friburgo e Petrópolis.

Na ocasião, o Instituto Nacional de Metereologia (InMet) chegou a emitir aviso metereológico para as Defesas Civis estadual e municipais, no entanto, de acordo com as prefeituras de Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis, não houve tempo para evitar a tragédia, enquanto que a defesa civil estadual limitou-se a ignorar o aviso34.

Deve-se observar que, embora o volume de chuvas tenha sido elevado, ele não representa o maior volume registrado na região. A título de exemplificação, Teresópolis registrou 124,6 mm de chuva no dia 12 de janeiro de 2011, contra uma máxima histórica de 140,8 mm, registrada em 28 de janeiro de 197735.

Convém acrescentar, ainda, que em 2008 o Ministério Público ajuizou ação para demolir construções irregulares em áreas de risco do bairro do Caleme, um dos mais atingidos de Teresópolis, cuja ação não havia sido analisada pelo judiciário na data da tragédia. Além desse, outros 20 inquéritos constam em abertos para investigar denúncias de ocupações em áreas de risco ou de preservação ambiental no município, que teriam sido incentivadas pela prefeitura, por vereadores e pela iniciativa privada.

Em 1992, o MP moveu uma ação para demolir lojas construídas irregularmente na cabeceira de um rio, perto da Ponte do Imbuí. A sentença em primeira instância saiu em 2009, 17 anos depois, mas a Defensoria Pública recorreu e o processo está no Tribunal de Justiça36.

Não apenas Teresópolis tinha ciência dos riscos existentes, e, de acordo com os estudos disponíveis, as três cidades tinham, antes da tragédia, pelo menos 42 mil moradores em 230 áreas vulneráveis, onde foram construídas cerca de 10 mil casas37. Teresópolis, inclusive, já havia sido objeto de mapeamento de áreas de risco em 2007, conforme informou o presidente do Serviço Geológico do Rio de Janeiro (DRM-RJ), Flávio Erthal em 09 de abril de 201238.

33 Disponível em http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5554636-EI8139,00-RJ+nenhuma+casa+foi+entregue+para+as+vitimas+das+enchentes+de.html. Acesso em 13 de maio de 2012.

34 Disponível em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2011/01/17/irresponsabilidade-em-cadeia-editorial-357193.asp. Acesso em 13 de maio de 2012.

35 Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/chuva-nao-foi-mais-forte-registrada-na-serra-28358 6#ixzz1 unoTzzx6. Acesso em 11 de maio de 2012.

36 Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/ha-tres-anos-mp-entrou-com-uma-acao-para-demolir-as-construcoes-em-areas-de-risco-no-caleme-2834165#ixzz1uo47N3kg. Acesso em 13 de maio de 2012.

37 Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/antes-de-catastrofe-cidades-da-regiao-serrana-ja-tinham-mapeado-42-mil-moradores-em-areas-de-2831693#ixzz1uo5ja0Yh. Acesso em 13 de maio de 2012.

38 Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-04-09/areas-de-teresopolis-afetadas-pela-chuva-sao-consideradas-de-risco-desde-2007. Acesso em 13 de maio de 2012.

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Analisando as situações acima, verifica-se que, caso seja aplicada a Teoria da Responsabilidade Objetiva do Estado baseada no risco administrativo – conforme determinação da Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 37 §6º –, o Estado não poderia alegar em seu favor a existência da excludente de responsabilidade caso fortuito ou força maior39, pois ambos os desastres eram previsíveis, seja pela existência de enxurradas anteriores, seja pelos estudos realizados nos locais, que evidenciaram a existência de ocupações em área de risco. Também não se trata de estado de necessidade, pois o dano é decorrente justamente da inação estatal e não de sua atuação emergencial para combater a enchente. A culpa exclusiva de terceiros também não serve de respaldo para a não responsabilização do Estado.

No caso de Nova Friburgo, a população chegou a temer a queda de uma caixa d’água local, por pensar que se tratava do rompimento de uma represa, mas a situação não passou de boato, sem maiores danos. Supondo que, de fato, a caixa d’água, ou mesmo a represa pertencente a terceiro que não ao Estado, viesse a causar danos, aí sim estaríamos diante dessa hipótese de excludente. Poder-se-ia falar em atenuação da responsabilidade civil do Estado por culpa concorrente das vítimas, mas tão somente para aquelas que de fato residiam em áreas de ocupação irregular e não para as demais, atingidas pela força das águas em áreas, até então, consideradas seguras e regularizadas.

Esse é o entendimento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que no julgamento da apelação cível nº 2004.000021-9, entendeu pela responsabilidade objetiva do ente público, mas condenou-o ao pagamento de metade da indenização pleiteada por julgar que as condições em que foi edificada a residência do requerente concorreram para o acontecimento da lesão40.

39 Odete Medauar disserta que “caso fortuito diz respeito a um acidente ou falha material, técnica ou humana, sem ciência precisa do motivo. Nessa hipótese, assemelhada ao chamado fato das coisas, pode haver responsabilização, se presente o nexo causal.” Força maior, por sua vez, são fatos irresistíveis da natureza e, de acordo com a autora, “se neste caso, houver também omissão do Estado na adoção de medidas que poderiam ter atenuado ou impedido os danos, caberá sua responsabilização”.

40 AÇÃO ORDINÁRIA DE INDENIZAÇÃO. ENCHENTE QUE DESTRUIU PARCIALMENTE A RESIDÊNCIA DO POSTULANTE. BUEIRO ENTUPIDO. OMISSÃO DO ENTE PÚBLICO EM ATENDER A SOLICITAÇÃO DE LIMPEZA FORMULADA ANTES DO EVENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA CONFIGURADA. COMPROVAÇÃO DO DANO E DO NEXO DE CAUSALIDADE. GRANDE VOLUME DE CHUVA E CULPA DO REQUERENTE AO CONSTRUIR EDIFICAÇÃO MAL ESTRUTURADA, ABAIXO DO NÍVEL DO MEIO FIO. CONCORRÊNCIA DE CAUSAS ATENUANTES DA RESPONSABILIZAÇÃO DO MUNICÍPIO. CONDENAÇÃO AO RESSARCIMENTO DA METADE DOS DANOS MATERIAIS ADVINDOS QUANTIA PLEITEADA CONDIZENTE COM O VALOR NECESSÁRIO AD RESSARCIMENTO DOS PREJUÍZOS. DESNECESSIDADE DE REMISSÃO À FASE DE LIQUIDAÇÃO DA SENTENÇA. IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE DANOS MORAIS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ADEQUAÇÃO DA DECISÃO. RECURSO DO AUTOR PROVIDO PARCIALMENTE E RECURSO DO MUNICÍPIO E REMESSA DESPROVIDOS. (TJSC - Apelação Cível n. 2004.000021-9, de São José do Cedro, rel. Des. Vanderlei Romer, j. 18/03/2004). Disponível em: www.tjsc.jus.br. Acesso em 11 de maio de 2012.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA428

Essa mitigação da responsabilidade estatal encontraria óbice no poder coercitivo que lhe cabe, pois, ciente das ocupações irregulares – como de fato estava –, era necessário que tivesse intervindo a tempo. Para o presidente nacional da Associação Brasileira de Engenheiros Civis, Ney Fernando Perracini de Azevedo, a ausência de planos diretores mais rígidos e fiscalização “permitem construções em áreas impróprias. É um convite ao desastre41”.

Cláudia Siebert aduz que:

Se o Estado não exercer o papel o seu papel regulador, através do planejamento urbano, os mecanismos de mercado estarão livres para agir em benefício de interesses individuais. O Estado tem se mostrado omisso na regulação do mercado imobiliário; ausente na produção de habitação social e ineficaz no controle urbanístico, com legislação incompatível com a realidade social, falta de fiscalização de ocupações irregulares e impunidade de loteadores clandestinos42.

O presidente do Serviço Geológico do Rio de Janeiro (DRM-RJ), Flávio Ertha, por sua vez, afirma que:

A questão do uso do solo é responsabilidade do município. Nosso mapeamento oferece às prefeituras uma carta com os pontos de risco iminente, com fotografias, delimitações, casas sob ameaça e número de pessoas nessas casas. O município então, com o apoio do estado e do governo federal, se for necessário, deve retirar as pessoas ou providenciar obras de contenção43.

Logo, se na demanda em face do Poder Público pleiteando a indenização por danos decorrentes das enchentes, o Poder Judiciário entender pela aplicabilidade da teoria objetiva, ao Estado restará tão somente a tentativa de redução do quantum indenizatório com base na culpa concorrente da vítima.

41 Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1087053&ch. Acesso em 11 de maio de 2012.

42 SIEBERT, Cláudia, 2009, p. 49.43 Gazeta do Povo. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.

phtml?id=1242491&ch=. Acesso em 11 de maio de 2012.

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Se, por outro lado, for adotada a responsabilização subjetiva, pautado na faute du service, o Estado também poderá vir a ser responsabilizado, desde que reste comprovado que o dano decorre de sua omissão. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já adotou o posicionamento de que, quando existe a previsibilidade e de enchente na área, resta configurada a culpa do ente público pelos danos decorrentes44. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina já decidiu pela não responsabilização do Estado em razão da falta de provas do liame subjetivo na omissão45.

CONCLUSÃO

Realizados os estudos de caso das enchentes ocorridas no Vale do Itajaí, em 2008, e na Região Serrana do Rio de Janeiro, em 2011, à luz da doutrina nacional, tem-se que é possível demandar, em face do Estado, pleiteando a indenização pelos danos decorrentes das enchentes, tanto com base na teoria da responsabilidade subjetiva, quanto com base na teoria da responsabilidade objetiva.

Isso porque, no primeiro caso – responsabilização subjetiva – o fato de o Estado ter ciência de que existem áreas de risco e não tomar nenhuma providência para evitar o desastre configura sua culpa, elemento diferenciador das teorias. Já na segunda hipótese – de responsabilização objetiva do Estado –, cabe ao indivíduo lesado tão somente estabelecer o nexo causal, enquanto que ao Estado compete, em sua defesa, alegar alguma das excludentes de responsabilidade.

44 DIREITO ADMINISTRATIVO. ATO OMISSIVO. FATO DA NATUREZA. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. DEMONSTRAÇÃO DA CONDUTA OMISSIVA, DA CULPA, DO DANO E DO NEXO DE CAUSALIDADE, QUE SE APRESENTA ÍNTEGRO, A DESPEITO DA ALEGAÇÃO DE FORÇA MAIOR. EXISTÊNCIA DE PROVAS QUANTO À PREVISIBILIDADE DE ENCHENTES NA LOCALIDADE, DADA A PROPENSÃO DA ÁREA, QUE CONTA COM O ESCOAMENTO DE TODA ÁGUA DO MUNICÍPIO PARA A LAGOA. OMISSÃO ESPECÍFICA. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA LIMITADA À REPARAÇÃO DE DANOS PATRIMONIAIS. DIREITO À INDENIZAÇÃO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJRJ 0001976-03.2007.8.19.0031 - APELACAO – Des. Custódio Tostes – Julgamento: 26/07/2011 – 1ª Câmara Cível) Disponível em www.tjrj.jus.br. Acesso em 11 de maio de 2012.

45 APELAÇÃO CÍVEL – INDENIZAÇÃO – ENCHENTE – DANO A IMÓVEL URBANO - CONSTRUÇÃO CLANDESTINA – CULPA POR OMISSÃO – AUSÊNCIA DE PROVA - RESPONSABILIDADE CIVIL NÃO CONFIGURADA – SUCUMBÊNCIA – ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA – ART. 12 DA LEI N. 1.060/50 – RECURSO DESPROVIDO. Consoante dispõe o art. 37, § 6º, da CF/88, a Administração responde pelos danos que seus agentes, nesta qualidade, causarem a terceiros, independentemente de culpa (objetiva); todavia, este critério de apuração da culpa não tem aplicação no ato omissivo do Poder Público, devendo a vítima comprovar objetivamente o defeito no serviço ou a sua inexistência. Concedido o benefício da justiça gratuita, a cobrança das custas e dos honorários ficará suspensa pelo prazo de 5 (cinco) anos, nos termos do que dispõe o art. 12 da Lei n. 1.060/50. (TJSC - Apelação Cível n. 2002.012378-7, de Porto União, rel. Des. Rui Fortes, J. 07/11/2003) Disponível em www.tjsc.jus.br. Acesso em 11 de maio de 2012.

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Nos casos estudados, caberia ao Estado alegar apenas a responsabilidade concorrente da vítima quando esta ocupava área não legalizada na área atingida. Ainda assim, essa concorrência deve ser mitigada, haja vista o dever estatal de atuar coercitivamente no planejamento e fiscalização urbanística.

Embora exista embasamento legal para sustentar a responsabilização do Estado por ambas as teorias, entendemos que não há razão para diferenciação entre as condutas comissivas e omissivas do Estado. Primeiro, porque a Constituição Federal – que prevê a responsabilização objetiva do Estado – é hierarquicamente superior ao Código Civil – que prevê a responsabilização objetiva em casos omissivos –, de modo que a disposição da Constituição Federal deveria prevalecer em todos os casos. Segundo, porque a responsabilização objetiva apresenta como grande diferencial a inversão do ônus da prova, cabendo ao lesado – hipossuficiente da relação– apenas comprovar a existência do dano e do nexo causal. Já ao Estado caberia fazer prova em contrário, comprovando que realizou tudo que estava ao seu alcance, a fim de evitar ou mitigar o dano, mas que ainda assim ele ocorreu.

Tem-se, portanto, que a responsabilização objetiva, sob a modalidade do risco administrativo, por si só, já é suficiente para embasar a responsabilização do Estado pelos danos decorrentes das enchentes.

431Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

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433Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

Este artigo tem como base a análise das legislações nacionais, desde a Constituição Federal às leis ambientais, para apuração da responsabilidade civil e ambiental dos envolvidos nos desastres de alagamento. Para tanto, é preciso analisar os aspectos da responsabilidade civil, da responsabilidade do Estado e da responsabilidade ambiental. Deve-se, ainda, levar em consideração a obrigação prevista pelo artigo 225 da Constituição Federal, que cabe ao Poder Público e à sociedade defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Palavras-chave: Enchentes. Poder Público. Dever. Direito ambiental.

A RESPONSABILIZAÇÃO DOS ENVOLVIDOS NAS ENCHENTES

Alessandra Araujo Marcondes*Mayra de Souza Scremin**

* Aluna do 5º ano de Direito da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Mestre em Direito (UFPR). Advogada. Professora da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

Todo o ano são noticiados desastres envolvendo enchentes em várias regiões do Brasil. Apesar desse problema vir se tornando cada vez mais comum, não são evidenciados os responsáveis pelos danos causados por esses desastres.

Indaga-se, assim, se as enchentes ocorrem somente pelo excesso de chuva, ou se poderiam ter sido evitadas por determinadas ações do Poder Público, previstas em leis ambientais e normas urbanísticas, e, ainda, se há influência das próprias vítimas desses desastres.

Este trabalho tem o intuito de questionar se as legislações pertinentes preveem formas de se evitar o problema das enchentes, pela análise das leis ambientais e urbanísticas. A partir disso, verificar a responsabilidade tanto do Estado, levando em consideração o dever estatal de manter o meio ambiente ecologicamente equilibrado e prover moradia digna a seus cidadãos, quanto da própria vítima.

O desenvolvimento deste trabalho se fundamentou em pesquisa doutrinária e jurisprudencial, bem como na legislação pertinente ao tema. Para a arguição teórica, são utilizados os ensinamentos de autores como: Helly Lopes Meirelles, Celso Antonio Bandeira de Mello, Édis Milaré, Celso Antonio Pacheco Fiorillo, entre outros que contribuem para o desenvolvimento deste trabalho.

1 RESPONSABILIDADE CIVIL

No Código Civil Brasileiro de 2002 está descrito no caput do artigo 9271 que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. A descrição do cometimento de atos ilícitos está presente no artigo 1862, que determina que comete ato ilícito a pessoa que, seja por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, viola direito e causa dano a outra pessoa. O artigo 1873 prevê a hipótese de cometimento de ato ilícito por pessoa que ao exercer o seu direito excede manifestamente os limites impostos

1 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

2 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

3 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

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pelo próprio fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes. O parágrafo único do artigo 927 ainda estabelece que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Portanto, a responsabilidade civil por uma ação ou omissão do agente causador pode decorrer tanto de um ato ilícito quanto de um ato lícito, devendo este último estar fundamentado na teoria do risco. Resta evidenciado que o Direito Civil Brasileiro determina que quem causar dano a outrem passa a ter o dever de indenizar a vítima. O ato de o responsável indenizar quem sofreu o dano pelo agente causador se denomina responsabilidade civil.

Conforme esclarece o autor Carlos Alberto Bittar4, é necessária a comprovação de alguns pressupostos para que o lesado tenha direito à reparação. Esses pressupostos são o próprio dano sofrido, o fato de terceiro que o tenha causado (ação ou omissão do agente causador) e que haja um nexo de causalidade entre o evento danoso e a ação de terceiro.

A doutrina classifica a responsabilidade civil em responsabilidade contratual e extracontratual, também chamada de aquiliana, e em objetiva e subjetiva, entre outras5. A responsabilidade civil é dita contratual quando decorre do descumprimento de um acordo previamente feito entre as partes, devendo aquele que deu causa ao prejuízo indenizar a outra parte. Portanto, “antes de a obrigação de indenizar emergir, existe, entre o inadimplente e se cocontrante, um vínculo jurídico derivado da convenção”, conforme leciona Silvio Rodrigues6. Na extracontratual não existe uma relação preestabelecida entre as partes. O vínculo entre elas surge a partir do momento em que alguém causa dano a outrem e, por determinação legal, passa a ter obrigação de lhe reparar os prejuízos.

Nos ensinamentos de Washington de Barros Monteiro7 “na responsabilidade subjetiva, fundamentada na culpa, é preciso demonstrar o modo de atuação do agente, sua intenção dolosa, isto é, a vontade do lesante de causar o dano, ou o seu comportamento negligente, imprudente ou imperito”. O autor ainda explica que a responsabilidade objetiva se fundamenta no risco, não importando se houve dolo, negligência, imprudência ou imperícia, pois apenas a verificação dos pressupostos de dano, ação e nexo causal são suficientes para que surja o dever do agente causador indenizar o prejudicado.

4 BITTAR, Carlos Alberto, 2005, p. 8.5 Não é objeto deste trabalho trazer todas as classificações existentes na doutrina pátria atual.6 RODRIGUES, Silvio, 2009, p. 9.7 MONTEIRO; SILVA; MALUF, 2011, p. 571.

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2 RESPONSABILIDADE DO ESTADO

O artigo 37, §6º da Constituição Federal do Brasil, de 1988, determina que

as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (BRASIL, 1988)

Conclui-se, portanto, baseado no artigo acima citado, que a responsabilidade do Estado consiste na reparação dos danos causados a terceiros por agentes públicos, ou quem preste serviço público, no exercício da função pública. Nas palavras de Romeu Felipe Bacellar Filho8,

cabe às pessoas jurídicas de direito público, de um modo geral ao Estado e às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, reparar todos os danos decorrentes da atuação de seus agentes nessa qualidade.

Jose Cretella Júnior9 explica a responsabilidade do Estado por uma visão social ao declarar que

Quando a atividade administrativa causa dano a um só que seja dos administrados, está rompido o equilíbrio social, e ao direito, que funciona como um termostato, cabe recompor o prejuízo sofrido, lançando-se mão dos recursos públicos para os quais concorreu também o próprio cidadão prejudicado.

Com relação à espécie de responsabilidade por que o Estado responde, Jose de Aguiar Dias10 defende a ideia de que o Estado responde objetivamente pelos atos de seus representantes, sejam praticados de maneira comissiva ou omissiva.

Hely Lopes Meirelles11 também entende que se trata de responsabilidade civil objetiva quando os danos são causados pelos agentes públicos, sob a modalidade da teoria do risco administrativo. Essa teoria se fundamenta no risco que a própria atividade pública gera, levando em consideração a possibilidade de se causar danos a alguns membros da sociedade, não sendo necessário que a vítima demonstre a falta de serviço ou culpa do agente, pois somente a demonstração do ato lesivo e injusto causado a terceiro pela Administração já justifica o dever de indenizar o dano causado. Para fundamentar seu

8 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe, 2009, p. 217.9 CRETELLA JÚNIOR, José, 2002, p. 71.10 DIAS, José de Aguiar; DIAS, Rui Belford, 2006.11 MEIRELLES, Hely Lopes, 1990..

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posicionamento, o autor alega que os princípios subjetivos da responsabilidade da culpa civil não podem ser aplicados na responsabilização da Administração pelos danos causados por aqueles que lhe são subordinados, visto que a Administração goza de autoridade e de prerrogativas públicas, não podendo ser comparada ao particular.

Diogenes Gasparini12 esclarece que o §6º do artigo 37 da Constituição Federal exige para a configuração da responsabilidade objetiva que haja uma ação do representante estatal, pois o dispositivo constitucional utiliza o verbo causar. Portanto, quando houver uma atuação do agente público, a culpa do Estado é presumida e o ônus da prova é invertido.

Para que haja a responsabilização do Estado, portanto, não é necessário que a vítima comprove a culpa ou dolo da ação estatal que lhe causou prejuízo, devendo demonstrar apenas o dano sofrido, a conduta danosa praticada por agente público e o nexo de causalidade entre o dano suportado e a conduta do representante estatal.

Entre os autores, é pacífica a teoria sobre a responsabilidade do Estado pela ação dos agentes públicas, seja essa lícita ou ilícita, restando divergência quando se trata de comportamentos omissivos do Estado.

Para alguns autores, como José de Aguiar Dias e Hely Lopes Meirelles, a teoria da responsabilidade objetiva descrita no artigo 37, §6º da Constituição Federal é aplicada tanta para a ação quanto para a inação do Poder Público. Enquanto para outros autores, como Celso Antônio Bandeira de Mello (2002), Maria Silvya Zanella Di Pietro (2009), Maria Helena Diniz (2008) e Diogenes Gasparini (2008), aplica-se a teoria da responsabilidade subjetiva quando há omissão estatal.

Para o presente estudo, convém adentrar somente na segunda teoria, já que a primeira é aplicada nos moldes da responsabilidade objetiva por ação, já descrita acima.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello13, aplica-se a teoria da responsabilidade subjetiva quando a ocorrência de um dano decorre da omissão do Estado, quando o serviço não funcionou, ou funcionou tardia ou ineficientemente, apenas fazendo sentido responsabilizá-lo quando houver o descumprimento de um dever legal de obstar o evento lesivo. Não havendo, portanto, obrigação do Poder Público em impedir o evento danoso não há razão para lhe impor o encargo patrimonial sobre as consequências dessa lesão.

12 GASPARINI, Diogenes, 2008. p. 1043.13 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, 2002.

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Logo, a responsabilidade do Estado por ato omissivo decorre de um comportamento ilícito, para o qual a responsabilidade é subjetiva, pois as condutas estatais ilícitas devem decorrer de negligência, imprudência ou imperícia, ou, ainda, por dolo, quando houver intenção de violar norma que constitua a obrigação. O autor ainda destaca que os acontecimentos passíveis de acarretar responsabilidade por conduta omissiva ou atuação insuficiente do Estado, que podem ser por comportamento material de terceiros ou por fatos da natureza cuja lesividade o Poder Público não impediu, embora tivesse de fazê--lo, e cita como exemplo o alagamento de casas devido o empoçamento de água pluviais que não escoaram por omissão do Estado em limpar os bueiros galerias que teriam como objetivo dar vazão às águas da chuva.

Para Maria Silvya Zanello Di Pietro, que também adota a teoria subjetiva nos casos de omissão estatal, também é necessário comprovar que havia o dever de agir do Poder Público e que este se omitiu, agindo, então, ilicitamente. Nos dizeres da autora,

no caso de omissão do Poder Público os danos em regra não são causados por agentes públicos. São causados por fatos da natureza ou fatos de terceiros. Mas poderiam ter sido evitados ou minorados se o Estado, tendo o dever de agir, se omitiu. [...] Enquanto no caso de atos comissivos a responsabilidade incide nas hipóteses de atos ilícitos, a omissão tem que ser ilícita para acarretar a responsabilidade do Estado.14

Nesse sentido, Meirelles admite a possibilidade de responsabilidade subjetiva quando o dano for ocasionado por atos de terceiros ou por fenômenos da natureza, nos quais se incluem as enchentes, já que o dispositivo constitucional que estabelece a responsabilidade estatal se refere a condutas de agentes públicos. Nesses casos de fatos estranhos e não relacionados com a atividade estatal, deve se observar o princípio geral da culpa civil, devendo, portanto, comprovar “imprudência, negligência ou imperícia na realização do serviço público que causou ou ensejou o dano”15.

14 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, 2009, p. 651.15 MEIRELLES, Hely Lopes, 1990, p. 655.

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3 RESPONSABILIDADE AMBIENTAL

A responsabilidade civil ambiental surge no ordenamento jurídico pela Lei nº 6.938/1981, conhecida como a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que determina que aquele que causar danos ao meio ambiente passa a ter a obrigação de recuperar ou indenizá-los (art. 4º, VII)16 e ainda esclarece que, independentemente de culpa, deverá indenizar os terceiros afetados (art. 14, §1º)17.

A responsabilidade presente no artigo 14, §1º é a responsabilidade civil objetiva, pois, como citado acima, independe da existência de culpa do agente infrator, ou seja, independentemente se a pessoa quis causar o dano e se causou por negligência, imperícia ou imprudência. Para a responsabilidade civil ambiental, não há exclusões de responsabilidade em casos de força maior ou caso fortuito. Priscila Santos Artigas18 esclarece que “basta, assim, para a incidência da Lei, a configuração do dano ambiental e o estabelecimento do nexo de causalidade”.

Édis Milaré esclarece que o Direito Ambiental tem basicamente três esferas de atuação: a preventiva, a reparatória e a repressiva. A prevenção é um preceito constitucional, por meio do qual cabe ao Poder Público e à coletividade o dever de defesa e preservação o meio ambiente. A reparação dos danos ambientais causados funciona dentro da perspectiva das normas da responsabilidade civil, a partir da qual quem causa dano a outrem deverá repará-lo. A repressão faz-se àqueles agentes causadores de danos ambientais, por meio da imposição de obrigação de reparar os danos causados, indenizar terceiros prejudicados e ainda sofrer aplicação de sanção administrativa19.

A responsabilidade civil ambiental deve sempre ser vista à luz dos princípios ambientais. Segundo Sergio Luis Mendonça Alves20, os mais relevantes princípios ambientais são aqueles presentes nas disposições da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e que foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988.

16 “Art 4º A Política Nacional do Meio Ambiente visará:VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados

e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.”17 “Art 14 Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não

cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.”

18 ARTIGAS, Priscila Santos; ALMEIDA, Gabriel Gino; SERAFINI, Leonardo Zagonel, 2006.19 MILARÉ, Édis, 2009.20 ALVES, Sergio Luis Mendonça, 2003. p. 21-66.

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3.1 PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO

Presente no caput do artigo 22521 da Constituição Federal, que determina que um meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos, sendo, portanto, um bem de uso comum do povo e essencial para que haja uma sadia qualidade de vida, e impõe como dever do Poder Público e da coletividade a defesa e proteção do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Para assegurar a efetividade desse direito, o §1º do artigo 22522 impõe ao Poder Público ações como a de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas (inciso I); preservar a diversidade e integridade do patrimônio genético do País, fiscalizando as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético (inciso II); definir a proteção para determinados espaços territoriais e componentes presentes em todas as unidades da Federação a serem especialmente protegidos (inciso III, primeira parte); e proteger a fauna e a flora, proibindo práticas que provoque perigo à função ecológica, existência das espécies ou que submetam

21 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do poso e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

22 Art. 225 - § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e

ecossistemas;II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas

à pesquisa e manipulação de material genético;III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem

especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

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os animais à crueldade (inciso VII), conforme as determinações da Lei nº 9.985/200023, que regulamentou os incisos acima citados. Ainda determinou que deverá o Poder Público exigir estudo prévio de impacto ambiental para obras ou atividades que possam causar significativa degradação do meio ambiente (inciso IV); controlar produção, comércio e utilização de técnicas, métodos ou substâncias que causem risco à vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente (inciso V); e promover a educação ambiental e a conscientização da sociedade como forma de preservação do meio ambiente (inciso VI).

O conceito de preservação do meio ambiente está descrito no artigo 2º, inciso V, da Lei nº 9.985/2000, que descreve ser um “conjunto de métodos, procedimentos e políticas que visem a proteção a longo prazo das espécies, habitats e ecossistemas, além da manutenção dos processos ecológicos, prevenindo a simplificação dos sistemas naturais”.

Portanto, o princípio da prevenção consiste em utilizar meios, sejam manejos de espécies, fiscalização, proibição de determinadas práticas, exigência de estudos de impactos ambientais, para preservar o meio ambiente e prevenir danos a este.

3.2 PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

Como complementação do princípio anterior, o princípio da precaução está, conforme o ensinamento de Alves, previsto no artigo 225, §1º, inciso V, da Constituição Federal, que determina como obrigação do Poder Público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”24.

Esse princípio consistiria em não permitir a realização da atividade quando houver uma previsão, uma probabilidade ou possibilidade de ocorrência de dano ambiental, para que não se produzam as consequências indesejadas que, por fim, prejudicariam as presentes e as futuras gerações.

23 A Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, regulamentou os incisos I, II, III e VI do §1º do artigo 225 da Constituição Federal e ainda instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, além de outras providências.

24 ALVES, Sergio Luis Mendonça, 2003.

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3.3 PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO

Este princípio diz respeito às formas de participação no Direito Ambiental e está previsto no artigo 225 da Constituição Federal, que determina como dever do Poder Público e da coletividade defender e preservar o meio ambiente. Portanto, aqui se destaca uma das formas de participação da sociedade, pela defesa e preservação do meio ambiente.

Celso Antonio Pacheco Fiorillo esclarece que “não se trata de um aconselhamento, mas sim de um dever da coletividade”25. A participação comunitária nas questões ambientais pode acontecer no processo legislativo, em órgão colegiado, na formulação e execução de políticas públicas ambientais e ainda pelo Poder Judiciário.

No processo legislativo, essa participação se efetiva a partir da iniciativa popular, com apresentação de projetos de leis complementares, desde que obedeça aos critérios, como número mínimo de cidadãos, ou por referendo acerca de uma lei relacionada com o Direito Ambiental.

Junto aos órgãos colegiados dotados de poderes normativos, a participação comunitária se concretizaria pela presença de representantes que são indicados por associações civis para conselhos e órgãos de defesa do meio ambiente.

A defesa do meio ambiente, de forma judicial e por iniciativa dos cidadãos, poderá ser realizada por ação direta de inconstitucionalidade, ação civil pública, ação popular constitucional, mandado de segurança coletivo ou mandado de injunção. A propositura de ação popular que tenha como intuito anular ato lesivo ao meio ambiente, entre outros, sendo qualquer cidadão parte legítima como autor e ficando isento das custas judiciais e do ônus da sucumbência, exceto quando comprovada má-fé.26

3.4 PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Está previsto no artigo 170, inciso VI, da Constituição do Brasil, que diz respeito à determinação de que a ordem econômica deverá observar, entre outros, o princípio de defesa do meio ambiente.

Assim, o princípio do desenvolvimento sustável se resume em conciliar a atividade econômica com a preservação do meio ambiente, para garantir o direito de meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

25 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco, 2009, p. 56.26 Art. 5º LXXIII qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao

patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

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3.5 PRINCÍPIO DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL

A educação ambiental também é vista como um princípio do Direito Ambiental e está prevista como forma de preservação ao meio ambiente, juntamente com a conscientização pública, devendo ser promovida pelo Poder Público, como descreve o artigo 225, §1º, inciso VI, da Constituição Federal.

Fiorillo explica que

a educação ambiental decorre do princípio da participação na tutela do meio ambiente”, a partir da qual se busca trazer “consciência ecológica ao povo, titular do direito ao meio ambiente, permitindo a efetivação do princípio da participação na salvaguarda desse direito.27

Em 27 de abril de 1999 foi promulgada a Lei nº 9.795, que dispõe sobre a educação ambiental e institui a Política Nacional da Educação Ambiental. Essa lei definiu como educação ambiental

os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade (BRASIL, 1999).

O artigo 2º da Lei nº 9.795/1999 esclarece que a educação ambiental é um componente essencial e que deve estar presente e ser permanente na educação nacional, em todos os níveis e modalidades de processo educativo.28

3.6 PRINCÍPIO DA INFORMAÇÃO

O acesso à informação é um direito fundamental descrito no artigo 5º, inciso XIV da Constituição Federal do Brasil. Portanto, é direito de todo cidadão ter acesso às informações ambientais para que possa cumprir com o seu dever de defesa e proteção ao meio ambiente, que lhe é incumbido pelo caput do artigo 225 da Constituição da República.

27 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco, 2009. p. 58.28 BRASIL, 1999. Art. 2º A educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação

nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal.

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A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente determinou em seu artigo 9º, inciso VII, a criação do Sistema Nacional de Informações sobre o Meio Ambiente, que, por sua vez, foi regulamentado pelo Decreto 99.274/1990.

Milaré29 lembra, com receio, a criação da Lei nº 10.650/2003, que teve como objetivo dar à coletividade livre acesso aos documentos, expedientes e processos administrativos que contenham matéria ambiental, obrigando, assim, que todos os órgãos competentes forneçam as informações que tenham sob sua guarda. Essa garantia de acesso às informações deverá ser cumprida sem a necessidade de o indivíduo comprovar o interesse específico nessas informações.

3.7 PRINCÍPIO DO POLUIDOR PAGADOR

Um dos mais importantes princípios do Direito Ambiental foi criado pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que determina em seu artigo 4º, inciso VII (primeira parte) que ao poluidor e ao predador haverá a imposição da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados.

A lei conceitua, em seu artigo 3º, inciso IV, poluidor como pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, direta ou indiretamente responsável por atividade causadora de degradação ambiental. Degradação ambiental, por sua vez, é conceituada como alteração adversa das características do meio ambiente.

A brilhante descrição de Milaré esclarece que, por esse princípio, se busca

imputar ao poluidor o custo social da poluição por ele gerada, engendrando um mecanismo de responsabilidade por dano ecológico, abrangente dos efeitos da poluição não somente sobre bens e pessoas, mas sobre toda a natureza.30

Para José Adércio Leite Sampaio, Chris Wold e Afrânio José Fonseca Nardy31, “o princípio do poluidor pagador induz os Estados a promover uma melhor alocação dos custos de prevenção e controle”, razão pela qual a aplicação desse princípio é considerada como orientação geral do Direito Ambiental para evitar episódios de degradação ao meio ambiente.

29 MILARÉ, Édis, 2009, p. 200.30 MILARÉ, Édis, 2009, p. 827.31 SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio José Fonseca, 2003, p. 25.

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3.8 PRINCÍPIO DO USUÁRIO PAGADOR

Presente na segunda parte do inciso VII do artigo 4º da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, determina a imposição “ao usuário, da contribuição pela utilização dos recursos ambientais com fins econômicos” (BRASIL, 1997).

O princípio do usuário pagador é, portanto, uma forma de onerar aquele que utiliza os recursos naturais para exploração de atividade econômica com o intuito de evitar que haja uma exploração desnecessária ao meio ambiente e, mediatamente, incentivar a conservação deste.

Estudados os princípios, é necessário observar o que dispõe a legislação ambiental acerca da ocupação dos solos e sobre a necessidade de ações para que essa ocupação seja feita de maneira que não venha a prejudicar o meio ambiente.

A Carta Magna determina no artigo 225 que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” (BRASIL, 1988)

Portanto, sendo o meio ambiente um bem de todos e necessário para a promoção e manutenção de uma vida sadia e com qualidade é necessário que proceda a sua preservação e conservação, sendo que essa obrigação cabe ao Poder Público e à sociedade civil.

O artigo 1º, inciso VI do novo Código Florestal, Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, determina a

responsabilidade comum de União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em colaboração com a sociedade civil, na criação de políticas para a preservação e restauração da vegetação nativa e de suas funções ecológicas e sociais nas áreas urbanas e rurais (BRASIL, 2012).

Novamente se vê a determinação da legislação da participação mútua do Poder Público e da coletividade nas ações que visem à preservação do meio ambiente.

A Lei nº 6.766/1979, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano, prevê em seu artigo 2º que “o parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes.” (BRASIL, 1979)

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O artigo 6º dispõe que o sistema de escoamento das águas pluviais é a infraestrutura básica do parcelamento do solo.32 O artigo 3º estabelece que as hipóteses de admissão do parcelamento do solo para fins urbanos nas zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, são definidas por plano diretor ou aprovadas por lei municipal. O parágrafo único prevê ainda que o parcelamento do solo não será admitido em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas as exigências específicas das autoridades competentes, ou onde a edificação não é aconselhada devido às condições geológicas.33

Também devem ser observadas as legislações municipais, como a Lei Orgânica e Plano Diretor, para que se verifiquem, caso a caso, as imputações legais acerca das ações cabíveis ao Poder Público quanto ao uso do solo e preservação do meio ambiente.

No entanto, de acordo com o disposto nas legislações federais, é possível perceber que compete ao Estado o planejamento da utilização do solo e da realização de infraestrutura básica das áreas ocupadas com saneamento básico e sistema de escoamento das águas pluviais e de esgoto. Para a efetiva proteção ambiental pelo Estado, é necessário que também restaure o que foi destruído ou degradado, conforme aponta Meirelles34, que cita como exemplos a necessidade de reflorestamento das áreas desmatadas, recomposição dos terrenos erodidos ou escavados, regeneração de terras exauridas, entre outros.

32 6º A infraestrutura básica dos parcelamentos situados nas zonas habitacionais declaradas por lei como de interesse social (ZHIS) consistirá, no mínimo, de:II - escoamento das águas pluviais; [...]

33 Art. 3º Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal.

Parágrafo único - Não será permitido o parcelamento do solo:I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o

escoamento das águas;II - em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam

previamente saneados;III - em terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências

específicas das autoridades competentes;IV - em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação;V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis,

até a sua correção.34 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977.

p. 589.

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Havendo a inação do Estado quanto à implementação de sistemas de escoamento de águas pluviais e de esgoto, ou até mesmo de sua manutenção, caracteriza-se o descumprimento de dever legal de agir, que, por sua vez, acarretará o agravamento de precipitação de chuva intensa ocasionando enchentes. Logo, é possível imputar ao Estado a obrigação de reparar os danos causados às vítimas, pois há a previsão legal do dever estatal de promover infraestrutura básica com escoamento das águas provenientes de chuva.

Conforme visto acima, nesses casos, caracteriza-se a responsabilidade subjetiva estatal, por omissão dos agentes públicos, devendo, portanto, ser demonstrada a culpa do Estado, mais especificamente a negligência. Conforme explicado por Marçal Justen Filho,

se o resultado danoso proveio de [...] fato pertinente ao mundo natural, não há responsabilidade do Estado. Mas, se o evento foi propiciado pela atuação defeituosa do serviço público ou dos órgãos estatais, existe responsabilidade civil. [...] O Estado pode ser responsabilizado quando deixar de limpar galerias pluviais, daí derivando inundação das vias públicas e prejuízos a terceiros.35

Com relação aos casos de acontecimento de força maior, é esclarecedora a observação de Di Pietro quanto à omissão do Estado, que atesta que

mesmo ocorrendo motivo de força maior, a responsabilidade do Estado poderá ocorrer se, aliada à força maior, ocorrer omissão do Poder Público na realização de um serviço. Por exemplo, quando as chuvas provocam enchentes na cidade, inundando casas e destruindo objetos, o Estado responderá se ficar demonstrado que a realização de determinados serviços de limpeza dos rios ou bueiros e galerias pluviais teria sido suficiente para impedir a enchente.”36

Portanto, demonstrada a culpa do Estado pela inação dos seus agentes públicos, cabe ao Poder Público a obrigação de reparar os danos causados àqueles cidadãos que os sofreram de maneira direta, mas também àqueles que sofreram de maneira indireta com os prejuízos causados ao meio ambiente como um todo, seja em parques, praças ou monumentos.

Com relação aos desmoronamentos dos morros em que há construções irregulares de casas há que se fazer algumas considerações. Primeiramente, compete ao Poder Público prover a seus cidadãos habitação digna. O planejamento e licenciamento da ocupação do solo são obrigações do Estado, assim como a devida fiscalização, pois

em referência às atividades humanas que resultam em intervenções (positivas e negativas) sobre o meio ambiente, o monitoramento ou monitoração é um procedimento essencial para o estabelecimento de ações preventivas e, quando necessário, também corretivas.37

35 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 4. ed., rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 809 e 815.

36 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, 2009. p. 648.37 MILARÉ, Édis, 2009, p. 332.

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Há que se avaliar, ainda, a responsabilidade daqueles que construíram em locais não autorizados e sem a devida licença necessária para ocupação do solo. Haverá a chamada culpa concorrente entre o Estado e as vítimas do desastre, porquanto o Estado se omitiu quanto ao dever de fiscalizar a ocupação do solo, e a vítima, por sua vez, contribuiu com a ocorrência do dano, cabendo, assim, responsabilidade a ambos os envolvidos.

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RESUMO

O abuso do direito e seu exercício disfuncional são práticas vedadas pelo Direito Civil de tradição romana; entretanto, a submissão do devedor à relação jurídica obrigacional clássica tornavam sua proteção menos eficaz, permitindo ao credor que deixasse de exercer seus direitos de crédito por longos períodos. O Código Civil brasileiro vigente adotou o sistema de cláusulas gerais, dentre elas a da boa-fé objetiva, de modo que a sujeição do devedor aos desígnios do credor deixa de ser absoluta e passa a refletir uma efetiva relação jurídica bilateral. Muito embora o atual Código Civil faça tal alteração, não se percebe claramente os instrumentos jurídicos necessários para a liberação do devedor quando o não exercício do direito pelo credor passa a ser abusivo ou disfuncional.

Palavras-chave: Abuso de Direito. Exercício Disfuncional. Direito das Obrigações. Mora do Credor.

O NÃO EXERCÍCIO COMO CARACTERIZADOR DO ABUSO DE DIREITO: APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA EM DEFESA DO DEVEDOR EM FACE DA MORA DO CREDOR

Barbara Dias Largura*Regis Tocach **

* Aluna do 3º ano de Direito da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Científica Iniciação da Fundação Araucária. E-mail: [email protected]

** Mestre em Organizações e Desenvolvimento pela FAE Centro Universitário. Professor da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

A mora do credor sempre foi vista com reservas por parte do legislador, pois, afinal, se deveria proteger o credor contra os atos de inadimplência do devedor. Entretanto a inação do credor pode representar um grave risco ao próprio devedor e à sociedade em geral, que deve ter a seu favor um mínimo de segurança para a realização de sua atividade civil e, eventualmente, empresarial.

O atual Código Civil brasileiro incorporou uma série de inovações, dentre elas a adoção das cláusulas gerais dos negócios jurídicos, afastando-se da concepção clássica de proteção exacerbada do credor em face do devedor. Porém, especificamente em relação às obrigações de fazer e de não fazer a proteção do devedor contra a mora do credor mostra-se muito menos enfática e efetiva.

Daí a questão que emerge desse contexto leva ao problema de pesquisa proposto: existem formas de garantir a proteção do devedor em face do credor que deixa voluntariamente de exercer seus direitos de crédito, ou os exerce de forma disfuncional, especialmente em relação às obrigações de fazer e de não fazer?

O desenvolvimento do estudo fundamenta as respostas ao problema de pesquisa e a identificação de mecanismos efetivos de proteção do devedor quando da mora do credor em obrigações de fazer e de não fazer. Portanto, o objetivo geral é analisar a implicação dos prazos prescricionais e medidas judiciais e administrativas específicas como formas de garantia da segurança jurídica e negocial do devedor em face do credor.

Os desdobramentos para operacionalizar tal objetivo levam aos seguintes objetivos específicos:

1. verificar no não exercício abusivo uma violação ao princípio da boa-fé objetiva;

2. identificar mecanismos judiciais e extrajudiciais de defesa efetivos, notadamente em relação às obrigações de fazer e de não fazer;

3. apresentar de que forma as soluções encontradas podem ser operacionalizadas.

1 METODOLOGIA

O presente estudo é estritamente qualitativo, de natureza teórica, com procedimento de pesquisa exploratória, seguindo a orientação de Gil (2002), em que o desenvolvido ocorre mediante o emprego de pesquisa bibliográfica e documental.

Nesse sentido, Marconi e Lákatos (1996) defendem a importância do estudo exploratório para desenvolver a familiaridade do pesquisador com o objeto e suas

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peculiaridades. Com a exploração, o pesquisador se torna apto a categorizar, desagregando o seu objeto sem perder de vista sua complexidade e suas interações com os demais integrantes do campo epistemológico (VASCONCELOS, 2002).

O roteiro para análise de conteúdo das fontes consultadas foi o instrumental, que tornou possível compreender as relações que há entre os sujeitos personagens do estudo – credor e devedor – e o impacto causado pela atuação de cada um deles na esfera não só jurídica, mas de poder dos demais, ou seja, na esfera mais privativa, em que não há interferência de instâncias superiores.

Desse modo, os modelos e as formulações propostas no problema e nos objetivos são respondidos à medida que os dados obtidos são colocados em contraposição ao conjunto de regras e instrumentos jurídicos criados pelo Estado nas diferentes épocas avaliadas.

A metodologia aplicada se consolida na pesquisa teórica, o que possibilita reestruturar os dados necessários ao estudo proposto com ampla utilização de material bibliográfico e legislações.

2 REFERENCIAL – TEORIA E ANÁLISE

Dentro de um histórico mais recente do Brasil, levando em conta o Código Civil de 1916, pode-se observar que não havia muitas garantias ao devedor, um dos poucos benefícios a ser tutelado por essa lei era a proteção do bem de família. Maurício Jorge Pereira da Mota situa o período vivido pelo País, “o Código Civil de 1916, impregnado pelo individualismo jurídico e pela doutrina do laissez-faire, o liberalismo econômico smithiano, não recepcionou muitas das medidas de proteção ao devedor” (MOTA, 2006, p. 330).

O Código Civil atual, de 2002, desvia-se do individualismo exagerado do Código de 1916, e passa a seguir um caminho de maior proteção ao devedor, pautado pelos princípios de operabilidade, eticidade e socialidade. O Direito Civil moderno, cada vez mais, vem sofrendo o fenômeno chamado de constitucionalização, ou seja, a interpretação das legislações e de seus institutos é voltada para o bem da coletividade, realizada à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que, por sua vez, acrescentou inúmeros mecanismos para a proteção contra o abuso do direito, como as cláusulas gerais.

É inegável que existem inúmeros meios de proteção ao credor contra aquele popularmente chamado de mal pagador, mas com o avanço das relações jurídicas a níveis mais complexos se faz necessário possuir também mecanismos para proteger o devedor do credor que abusa do seu direito, ou exerce sua obrigação de forma disfuncional. A

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mora do credor sempre foi vista com ressalvas pelo legislador, porém, a inação do credor pode representar um grave perigo ao próprio devedor e à sociedade, que deve gozar de um mínimo de segurança jurídica para a realização de suas atividades.

Nesse sentido, Oliveira Ascenção (2010) descreve o exercício inadmissível do direto como uma figura a ser reprimida, pois sua repercussão mostra-se danosa à segurança jurídica e a perpetuação do sistema jurídico como um todo.

A partir do que foi discorrido, o presente estudo aborda as formas de garantir a proteção do devedor em face do credor, que deixa voluntariamente de exercer seus direitos de crédito ou os exerce de forma disfuncional, especialmente em relação às obrigações de fazer e de não fazer.

2.1 PERSONAGENS JURÍDICOS DA PROBLEMÁTICA – CREDOR E DEVEDOR

É interessante para o estudo em questão, que a abordagem dos personagens da trama – credor e devedor – fique clara no entendimento dos leitores, para que este trabalho possa atingir um nível mais profundo de alcance, saindo da esfera meramente jurídica, podendo beneficiar, assim, cidadãos em busca de algum tipo de informação acerca do assunto.

Pode-se caracterizar credor como aquele que está apto a receber algum valor em pecúnia ou outra prestação derivada de prévio acordo entre partes, ou seja, popularmente aquele a quem se deve algo. Já o devedor, por sua vez, é aquele que possui uma obrigação para com alguém.

No campo das obrigações, o credor possui a pretensão de que um objeto venha a ele. E, nesse caso, o objeto pode ainda não existir, tendo de ser feito pelo devedor, como acontece em contratos de serviços.

2.2 RELAÇÕES JURÍDICAS

Para a efetivação do presente estudo, é necessário abordar, antes de tudo, o conceito de relação jurídica e como essa relação se dá no campo das obrigações, pautada no vínculo entre credor e devedor, principalmente nas relações de fazer e não fazer.

Silvio Rodrigues define o conceito de obrigação como sendo “o vínculo de direito pelo qual alguém (sujeito passivo) se propõe a dar, fazer ou não fazer qualquer coisa (objeto), em favor de outrem (sujeito ativo)” (RODRIGUES, 2002, p. 3).

Em consonância com essa definição estão Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, entendendo a obrigação como “relação jurídica pessoal por meio da qual uma parte

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(devedora) fica obrigada a cumprir, espontânea ou coativamente, uma prestação patrimonial em proveito de outra (credora)” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 17).

No campo obrigacional, o item essencial é o vínculo jurídico entre credor e devedor, no qual, tomando como base um viés modernizado do Direito Civil, ambos devem possuir uma proteção eficaz contra os abusos e ao exercício disfuncional.

2.3 OBRIGAÇÕES DE FAZER E NÃO FAZER

Após esclarecer sobre a obrigação em si e sobre o vínculo que une credor e devedor dentro da relação jurídica, é preciso dar um breve esboço acerca das obrigações de fazer ou não fazer, cenário principal da problemática estudada.

A obrigação de fazer se caracteriza no interesse do credor pelo próprio serviço a ser prestado pelo devedor, ou seja,

Na obrigação de fazer o devedor se vincula a determinado comportamento, consistente em praticar um ato, ou realizar uma tarefa, donde decorre uma vantagem para o credor. Pode esta constar de um trabalho físico ou intelectual, como também da prática de um ato jurídico. (RODRIGUES, 2002, p. 31)

A obrigação de fazer é positiva, está ligada à realização de uma atividade pelo devedor em proveito do credor, presente em contratos de empreitada, por exemplo. Em contraposição, está a obrigação de não fazer, que é negativa, ou seja, possui um caráter omissivo por parte do devedor.

Rodrigues (2002) também elucida sobre a obrigação de não fazer, trazendo seu conceito como a obrigação em que o devedor se compromete a não praticar determinado ato e que poderia realizar se não existisse o vínculo que o liga ao credor.

A obrigação de não fazer encontra respaldo em diversas situações práticas do cotidiano, como traz Gagliano e Pamplona Filho (2002, p. 64): “é o que ocorre quando alguém se obriga a não construir acima de determinada altura, a não instalar ponto comercial em determinado local”, e tantos outros exemplos que podem ser utilizados.

No campo das obrigações de fazer e não fazer existem muitas divergências doutrinárias quanto à possibilidade ou não da sua executoriedade, no caso de o devedor se negar a realizar a obrigação pactuada.

Código Civil Brasileiro, em seu artigo 247, reiterando o conteúdo do Código Civil de 1916, diz que nas obrigações personalíssimas, a recusa no cumprimento da obrigação

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somente permite ao credor exigir perdas e danos, silenciando sobre possível execução específica da obrigação. (CAHON, 2005, p. 2)

Essa interpretação literal do Código Civil não possui grande aceitabilidade, pois já não se pode mais aceitar que o credor não possua meios de obter a prestação contratada quando o devedor deixar de cumprir a obrigação por mera vontade. Theodoro Júnior coloca pertinentemente acerca de como costumava ser tratada essa questão:

Na plenitude do liberalismo, então, não havia lugar, em princípio, para a execução específica das prestações de fazer e não fazer. Por ser intocável o devedor em sua liberdade pessoal, uma vez recalcitrasse em não cumprir esse tipo de obrigação, outro caminho não restava ao credor senão conformar-se com as perdas e danos. Teria de apelar para a execução substitutiva ou indireta. (THEODORO JÚNIOR, 2001, p. 3)

Há de se observar que uma porção da doutrina brasileira, de acordo com Cahon (2005) não concorda com a interpretação do texto legal de forma literal, admitindo a possibilidade de execução até mesmo das obrigações personalíssimas. Esse autor esclarece ainda que “a recusa do devedor de obrigação de fazer infungível é equiparada à culpa na inexecução de obrigação de fazer fungível, pois trazem as mesmas conseqüências jurídicas” (CAHON, 2005, p. 4).

Modernamente a execução específica se mostra possível com a previsão contida no artigo 461 do Código de Processo Civil, que autoriza o juiz a aplicar as medidas necessárias ao cumprimento coercitivo da determinação judicial, ou até mesmo substituir a manifestação de vontade do devedor nas obrigações de fazer. Entretanto, o grande problema apresentado é justamente o contrário, isto é, quando o credor não exerce o direito de executar o devedor da obrigação de fazer, ou pior, não lhe outorga as condições necessárias ao cumprimento da obrigação.

Para tanto, o presente estudo pretende analisar as situações em que o não exercício do direito por parte do credor poderá configurar ato abusivo, e, por consequência, ato ilícito contra o devedor.

2.4 BOA-FÉ OBJETIVA

Com o fenômeno da constitucionalização das obrigações, passou a ser necessária a interlocução do direito das obrigações com a Constituição para uma compreensão e aplicação adequada das normas e regras civis.

Paulo Lobo levanta essa questão de forma pertinente, lembrando que:

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A unidade do direito das obrigações não está mais enraizada nos códigos civis, exclusivamente, mas, também, no conjunto de princípios e regras que se elevaram à Constituição e aos tratados internacionais, em torno dos quais gravitam os microssistemas jurídicos que tratam das matérias a ele vinculadas (LOBO, 2011, p. 13).

Seguindo essa lógica, surgiram as cláusulas gerais como mecanismos de proteção contra abusos possivelmente cometidos, uma delas é a cláusula da boa-fé objetiva, que é um princípio, que determina a probidade e a boa-fé obrigatoriamente presente nas relações jurídicas. Isto é, significa uma atuação refletida, respeitando os interesses e expectativas das partes vinculadas, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução e sem causar lesão, cooperando para atingir o bom fim das obrigações.

Miguel Reale ressalta de maneira enfática a importância da boa-fé em toda e qualquer situação dentro do direito:

Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências. (REALE, 2003, p. 7)

2.5 ABUSO DO DIREITO

A doutrina brasileira é majoritária ao reconhecer a existência da figura do abuso de direito, porém o modo como ela é trabalhada é bastante variada, devido a sua divisão em duas teorias diferentes: objetiva e subjetiva.

A teoria objetiva possui, ainda, duas vertentes essenciais para explanar o abuso de direito. Cláudio Antônio Soares Levada traz esta interpretação:

Duas as principais correntes dentro das teorias que procuram explicar objetivamente o abuso de direito, as que afirmam consistir o abuso no exercício anormal de um direito, da qual o principal expoente é Saleilles, e a que defende o ato abusivo quando deixe ele de atender à sua finalidade, à função para a qual o direito foi criado e justificadamente existe. (LEVADA, 2003, p. 9)

O abuso do direito é definido pelo artigo 187, da Lei nº 10.406/02, que encaixou o exercício disfuncional de direito entre os atos ilícitos. A opção adotada pelo Código Civil brasileiro é tratar o abuso de direito pela teoria objetiva, aferindo a ilicitude pela simples transgressão do fim determinado pelo direito, sem levar em conta a questão do dolo ou culpa. Outro lado da doutrina, mais tradicionalista, defende a ideia do abuso de direito dentro da teoria subjetiva, como Rui Stoco (2002), concluindo em seus estudos que a teoria subjetiva deve ser a adotada no abuso do direito, de forma que o abuso se salienta apenas quando o ato é realizado com dolo ou culpa.

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Historicamente, já houve a discussão quanto ao campo de abrangência do abuso do direito, se ele poderia ser considerado como um ramo autônomo, ou se era apenas um aspecto da responsabilidade civil. Não há mais dúvidas de que o abuso do direito vem alcançando sua independência, e tomando contornos muito vastos, sendo aplicado a todas as áreas do Direito. Porém, a maioria da doutrina ainda o coloca dentro das bases civis de responsabilidade.

Entretanto, a discussão acerca da abusividade da omissão no exercício de direito subjetivo ainda não possui a maturidade necessária para que se permita a confortável determinação do ato omissivo como ilícito, ou ainda, como caracterizador de responsabilidade civil contratual ou aquiliana.

Por tal razão, o objeto do presente estudo se mostra árduo, pois o único sistema de segurança jurídica estabelecido em favor do devedor para os atos omissivos é o temporal, isto é, a prescrição e a decadência. Porém, os prazos gerais de decadência mostram-se muito longos para que o devedor aguarde o exercício do direito por parte de credor.

Assim, o sistema jurídico civilista, hoje posto, encontra inafastável ponto de ruptura, pois convive com institutos de direito estritamente patrimonialistas e tantos outros institutos de caráter personalista e protetivo dos direitos pessoais. Tal dicotomia deve ser enfrentada sob o prisma das cláusulas gerais dos contratos, em especial a função social do contrato e a boa-fé objetiva.

2.6 PROTEÇÃO DO DEVEDOR EM FACE DO CREDOR

Neste ponto do estudo proposto, é possível estabelecer uma comunicação entre os elementos para chegar ao principal objetivo da pesquisa: a proteção do devedor em face do credor.

É inegável que existem inúmeros meios de proteção ao credor contra aquele popularmente chamado de mal pagador, mas com o avanço das relações jurídicas a níveis mais complexos, se faz necessário possuir também mecanismos para proteger o devedor do credor que abusa do seu direito, ou exerce sua obrigação de forma disfuncional.

Dentro de um histórico mais recente do Brasil, levando em conta o Código Civil de 1916, pode-se observar que não havia muitas garantias ao devedor, um dos poucos benefícios a ser tutelado por essa lei era a proteção do bem de família. Maurício Jorge Pereira da Mota situa o período vivido pelo País, “o Código Civil de 1916, impregnado pelo individualismo jurídico e pela doutrina do laissez-faire, o liberalismo econômico smithiano, não recepcionou muitas das medidas de proteção ao devedor” (MOTA, 2006, p. 330).

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O Código Civil atual, de 2002, desvia-se do individualismo exagerado do Código de 1916, e passa a seguir um caminho de maior proteção ao devedor, pautado pelos princípios de operabilidade, eticidade e socialidade.

A proteção do devedor estende o instituto do abuso do direito,

Por exemplo, na proibição do venire contra factum proprium que protege uma parte (via de regra, o devedor) contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. (MOTA, 2006, p. 338)

Devido a heranças históricas e culturais, por vezes, o acesso do credor aos meios de proteção é mais facilitado. O devedor disponibiliza de recursos de ação contra eventuais abusos, e, cada vez mais, tem recorrido a esses mecanismos, tornando o debate sobre o tema mais frequente, no qual muitas críticas são feitas nessa seara.

2.7 INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL E AUTOTUTELA

A tendência ao monopólio, pelo Estado, do poder de solucionar conflitos se deu de maneira gradual. Houve a substituição da vontade das partes pela jurisdição estatal. Dessa forma, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional foi se afirmando “em todos os Estados modernos, indicando ao mesmo tempo o monopólio estatal na distribuição da justiça (ex parte principis) e o amplo acesso de todos à referida justiça (ex parte populi)” (GRINOVER, 2007, p. 13).

Ao lado do princípio da inafastabilidade estão todas as garantias do devido processo legal, como o contraditório e a ampla defesa. Porém, devido à incapacidade do Estado em resolver todos os conflitos de maneira célere e eficiente fez surgir a necessidade da existência de outras modalidades não jurisdicionais para pacificação social. Além da duração do processo, existem inúmeros outros entraves ao acesso à justiça, como o seu custo.

Cabe ressaltar que os meios alternativos, chamados equivalentes jurisdicionais, não são estatais, mas possuem certas limitações:

Esses meios alternativos de solução das controvérsias podem ser extrajudiciais, mas mesmo assim se inserem no amplo quadro da política judiciária e do acesso à justiça: pode-se falar, portanto, de uma justiça não estatal, mas que também não é totalmente privada. Ou seja, de uma justiça pública não-estatal. (GRINOVER, 2007, p. 15)

Em regra, a autotutela é proibida por nosso direito pátrio, mas em alguns casos excepcionais a própria lei autoriza a satisfação de interesses por meio dela. Podem ser

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citados como exemplos de autotutela no ordenamento brasileiro o direito de retenção, o desforço imediato, a autoexecutoriedade das decisões administrativas, prisões em flagrante e atos realizados em legítima defesa.

A autotutela é justificável nessas situações por dois motivos: falta de confiança no desapego alheio, o que sugere a possibilidade de uma autocomposição; e a não possibilidade do Estado-juiz estar presente quando um direito estiver sendo transgredido ou a ponto de ser (GRINOVER, 2007).

No campo das obrigações de fazer e não fazer, já houve a discussão quanto à fungibilidade delas. Nas obrigações de não fazer

a infungibilidade pode ser puramente jurídica, e nesse caso, quando violada a proibição, surge do inadimplemento um comando positivo e, em substituição à obrigação de não fazer, ter-se-á a obrigação de fazer o necessário para repor o status quo ante (GRINOVER, 2007, p. 16).

Pode-se evidenciar a problemática sobre a tratativa da tutela jurisdicional no âmbito das obrigações de fazer e de não fazer com os ensinamentos de José Barbosa Moreira

O mecanismo começa a “ratear” desairosamente quando se passa das obrigações de dar às obrigações de fazer – sobretudo nos casos de prestação infungível – e às obrigações de não fazer, às quais se pode equiparar, para os fins aqui considerados, as obrigações de tolerar e os deveres de abstenção correspondentes aos direitos chamados “absolutos” (MOREIRA, 1978, p. 119).

É importante destacar que nos casos de obrigações de fazer ou não fazer infungíveis por natureza não cabe a possibilidade de execução forçosa, e a solução singular é a indenização por perdas e danos.

Ainda com relação ao tema das obrigações de fazer ou não fazer, a opção do atual Código Civil pela indenização denota somente que o credor tem o direito de ajuizar ação reparatória por perdas e danos contra o devedor de forma imediata (GRINOVER, 2007).

Existem alguns pressupostos, explícitos e implícitos, para a utilização da autotutela nas obrigações de fazer e não fazer. O requisito explícito é a urgência, os “pressupostos implícitos da autotutela, que impregnam todo o sistema do Código Civil: o princípio da boa-fé, da eticidade, da fustigação do abuso do direito” (GRINOVER, 2007, p. 18).

Os riscos pelo emprego da autotutela correm por conta do credor, pois, embora os dispositivos em questão se tratem de expressões abertas, isso não significa uma licença ilimitada ao credor.

José Carlos Moreira (1978, p. 121) defende uma tutela preventiva, pois se as formas de restituição ou ressarcimento não são suficientes

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o de que precisam os interessados é de remédios judiciais a que possam recorrer antes de consumada a lesão, com o fito de impedi-la, ou quando menos de atalhá-la incontinenti, caso já se esteja iniciando. Em vez da tutela sancionatória, a que alguns preferem chamar repressiva, e que pressupõe violação ocorrida, uma tutela preventiva, legitimada ante a ameaça de violação, ou mais precisamente à vista de sinais inequívocos da iminência desta.

Entretanto, a autotutela do devedor em face do não exercício abusivo do direito pelo credor configuraria um ato ilícito, de modo que a solução mais plausível seria a tutela preventiva pela consolidação da decadência convencional, para somente em um segundo momento se obter o provimento jurisdicional necessário à exoneração do devedor.

2.8 PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA

É unânime na doutrina o entendimento de que os prazos prescricionais e decadenciais diferem. Isto posto, é necessário ter em mente como cada um desses institutos são caracterizados, para tanto, o critério apresentado por Agnelo Amorim Filho (1960) é o mais indicado por sua densidade e clareza.

Uma das máximas amplamente utilizadas quando se tenta diferenciar os dois tipos de prazo é de que a prescrição extingue o direito de ação, ou seja, de reclamar determinado direito no poder judiciário, e a decadência extingue o próprio direito. “O critério mais divulgado para se fazer a distinção entre os dois institutos é aquele segundo o qual a prescrição extingue a ação, e a decadência extingue o direito” (AMORIM FILHO, 1960, p. 2).

partir do Direito Romano surgiu a necessidade de determinar um lapso temporal para encerrar relações jurídicas que apresentam controvérsias, assim nasceu o fundamento da prescrição. Portanto,

com a prescrição, limita-se o prazo para exercício da ação. Esgotado o prazo, extingue-se a ação, mas somente a ação, pois o direito correspondente continua a subsistir, se bem que em estado latente, podendo até, em alguns casos, voltar a atuar (AMORIM FILHO, 1960, p. 13).

Deve-se observar que a pretensão é a primeira a ser atingida pela prescrição, antes mesmo que a própria ação.

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Compreende-se facilmente o motivo da escolha da pretensão como termo inicial do prazo de prescrição. É que o estado de intranqüilidade social que o instituto da prescrição procura limitar no tempo, não resulta somente da possibilidade de propositura da ação, mas também de um fato que sempre lhe é anterior, e que pode até ocorrer sem que haja nascido a ação: a possibilidade de exercício da pretensão. Pouco, ou nada, adiantaria paralisar a ação, com o objetivo de alcançar aquela paz social, se a pretensão permanecesse com toda sua eficácia. (AMORIM FILHO, 1960, p. 16)

Outra observação importante acerca da prescrição é sua aplicação condicionada apenas às ações condenatórias, ou seja, “só as ações condenatórias podem prescrever, pois são elas as únicas ações por meio das quais se protegem os direitos suscetíveis de lesão” (AMORIM FILHO, 1960, p. 16). Isso ocorre porque as ações condenatórias são as únicas que protegem direitos lançadores de pretensões.

Em contra partida, a decadência tem como

efeito imediato [...] a extinção do direito, ao passo que o da prescrição é a extinção da ação. [...]

Há certos direitos cujo exercício afeta, em maior ou menor grau, a esfera jurídica de terceiros, criando para esses um estado de sujeição, sem qualquer contribuição da sua vontade, ou mesmo contra sua vontade. São os direitos potestativos. É natural, pois, que a possibilidade de exercício desses direitos origine, em algumas hipóteses, para os terceiros que vão sofrer a sujeição, uma situação de intranqüilidade cuja intensidade varia de caso para caso. Muitas vezes aqueles reflexos se projetam muito além da esfera jurídica dos terceiros que sofrem a sujeição e chegam a atingir interesses da coletividade, ou de parte dela, criando uma situação de intranqüilidade de âmbito mais geral. Assim, a exemplo do que ocorreu com referência ao exercício das pretensões, surgiu a necessidade de se estabelecer também um prazo para o exercício de alguns (apenas alguns) dos mencionados direitos potestativos, isto é, aqueles direitos potestativos cuja falta de exercício concorre de forma mais acentuada para perturbar a paz social. (AMORIM FILHO, 1960, p. 18)

É fato que a situação de sujeição do devedor ao credor nas obrigações de fazer e não fazer causa uma grande instabilidade jurídica e social. Dessa forma, conclui-se que a essas relações deve ser aplicado o instituto decadencial, por ser o único que atende a todas as necessidades surgidas a partir do avanço desse tipo de negociação. Dito isso, deve-se identificar a forma pela qual a ideia se aperfeiçoa, haja vista a profunda diferença entre a decadência legal e a decadência convencional. Ao se tratar de decadência convencional, seu prazo pode ser negociado entre as partes de forma autônoma, fazendo com que o devedor tenha em seu favor um instrumento de relevo.

A constituição do credor em mora, a partir da sua notificação inequívoca para permitir que o devedor da obrigação de fazer tenha condições suficientes para adimplir sua obrigação concedendo-lhe prazo para constituir seu direito, cria uma nova situação

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jurídica: a decadência convencional em prol do devedor. Em caso de silêncio do credor, seja para constituir seu direito, seja para rechaçar a nova convenção acerca da decadência, cria, em favor do devedor, a presunção de aceitação da decadência convencional, constituindo o credor em mora.

Com isso, tem-se a possibilidade de o devedor obter a eficácia liberatória muito antes do prazo prescricional da ação de obrigação de fazer que poderia perdurar por até 10 (dez) anos, conforme artigo 205 do Código Civil brasileiro.

4 RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES

Diante de todas as informações colhidas durante a pesquisa, pode-se afirmar que a proteção do devedor estende o instituto do abuso do direito

Por exemplo, na proibição do venire contra factum proprium que protege uma parte (via de regra, o devedor) contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. (MOTA, 2006, p. 338)

Quando, nas obrigações de fazer e não fazer, o devedor está sob a sujeição de realizar determinada tarefa ao credor, é correto o devedor ficar submetido à vontade do credor sem nenhuma limitação? Ficar submetido ao momento em que o credor julgar mais conveniente para o exercício da atividade?

Está claro que essa ideia não é a mais adequada. Pois isso gera atos abusivos do direito, e causa a instabilidade e insegurança jurídica e social, pois como pode ficar o devedor esperando por longo período que o credor determine o cumprimento da obrigação?

Portanto, a solução eficaz encontrada para a problemática proposta indica o instituto decadencial, ao passo que a decadência é fundada na segurança e certeza das relações jurídicas.

Inequívoco que o critério doutrinário mais respeitado para distinção dos institutos de prescrição e decadência foi redigido pelo magistrado Agnelo Amorim Filho. A decadência, instituto que possui como efeito a extinção de um direito, conforme visto no estudo de Amorim (1960), abrange o direito potestativo, aquele sobre o qual não recai qualquer discussão, ou seja, é incontroverso, cabendo à outra parte apenas aceitá-lo, sujeitando-se ao seu exercício. Dessa forma a ele não se contrapõe um dever, mas uma sujeição. As únicas ações cuja não propositura implica na decadência do direito são as ações constitutivas, que têm prazo especial de exercício fixado em lei.

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As ações constitutivas, por seu turno, não contêm condenação, mas declaração acompanhada da constituição, modificação ou desconstituição de uma situação jurídica. Portanto, o instituto da decadência se adéqua às situações em que o credor deixa voluntariamente de exercer seus direitos de crédito, ou os exerce de forma disfuncional em relação às obrigações de fazer e de não fazer. A decadência vem se apresentando como o meio de proteção mais eficaz ao devedor nessas obrigações.

Assim, ao final da pesquisa proposta, observou-se a evolução do direito civil com o fenômeno da constitucionalização, o que trouxe maior segurança aos envolvidos em uma relação jurídica.

É perceptível a preferência de parte majoritária da doutrina na proteção do credor, partindo-se da premissa de que como é o devedor que se encontra numa posição de realizar determinada tarefa, sendo apenas ele quem pode descumprir as cláusulas de um contrato, acaba deixando, dessa forma, o credor em uma situação desfavorável.

Porém, com o avanço das relações jurídicas, surgiu a necessidade da criação de mecanismos de proteção mais eficazes também ao devedor, pois ele é parte integrante do vínculo jurídico e deve gozar de igualdade de direitos. Portanto, da mesma forma que o credor possui direito a exigir que o devedor cumpra a obrigação prevista, realizando, assim, o objetivo acordado, o devedor também possui o direito de se defender das atuações escusas do credor, que por vezes abusa de sua condição para obter vantagens, indo além do que dispunham as cláusulas contratuais.

Para que o instituto decadencial cumpra a necessidade de amparar o devedor nas obrigações de fazer e não fazer, é possível estabelecer um prazo de decadência menor, por livre convenção das partes

No tangente à natureza desse instituto, note-se que o prazo decadencial pode ser fixado em lei, tendo em vista os valores sociais supra aludidos (segurança e certeza), revestindo-se, nesta hipótese, de caráter público e imperativo. Ao revés da prescrição, entretanto, as partes podem estabelecer, em vista ao atendimento de seus próprios interesses, lapsos temporais para o exercício de certos direitos. Aqui, ter-se-á a decadência convencional, fruto da autonomia que rege as relações entre particulares, caracterizada pela natureza privada (SILVANY, 2006, p. 3).

Com o término dos estudos, obteve-se o caminho do instituto decadencial como forma de garantir a proteção do devedor em face do credor, que deixa voluntariamente de exercer seus direitos de crédito ou os exerce de forma disfuncional, especialmente em relação às obrigações de fazer e de não fazer.

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RESUMO

Os contratos de locação, como os contratos típicos, possuem regras próprias destinadas à proteção das partes, independente da destinação e uso do bem imóvel locado. A primazia da proteção é dada ao locador que deve possuir respaldo legal suficiente para manter sua fonte de renda em situações adversas como a inadimplência ou o comportamento nocivo do locatário à conservação da propriedade. Também o locatário possui diversas formas de defesa e direitos assegurados contra os excessos praticados pelo locador, entretanto poucas são as soluções oferecidas ao inquilino quando o problema se origina do não exercício de um direito do locador de forma abusiva. É nesse sentido que o presente artigo se coloca sobre a plausibilidade de configurar o não exercício de um direito como ato abusivo e, finalmente, como ato ilícito, a fim de liberar o inquilino de uma imputação que exige o prévio exercício do direito pelo locador.

Palavras-chave: Abuso de Direito. Locação. Segurança Jurídica. Proteção do Hipossuficiente.

O NÃO EXERCÍCIO ABUSIVO DE DIREITO DO LOCADOR COMO ATO ILÍCITO E OS MECANISMOS DE DEFESA DO LOCATÁRIO

Daniel Rogério de Carvalho Veiga*Regis Tocach**

* Aluno do 3º ano de Direito da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Mestre em Organizações e Desenvolvimento pela FAE Centro Universitário. Professor da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

O direito positivista sempre procurou proteger o credor em face do devedor, o proprietário em face do possuidor, e assim por diante. Essa proteção exacerbada é percebida no primeiro Código Civil de 1916, fundado sob um caráter patrimonialista e paternalista, advindo das codificações europeias pós-napoleônicas.

Nesse mesmo sentido, a mora do credor sempre foi vista com reservas por parte do legislador, pois, afinal, é mais lógico e comum que se deveria proteger o credor contra a inadimplência do devedor. Todavia, a inação do credor pode representar um grave risco ao próprio devedor e à sociedade em geral, que deve ter em seu favor um mínimo de segurança [jurídica] para a realização de sua atividade civil e, eventualmente, empresarial.

O atual Código Civil brasileiro incorporou uma série de inovações, dentre elas a adoção das cláusulas gerais dos negócios jurídicos, afastando-se da concepção clássica de proteção exacerbada do credor em face do devedor. Esses institutos são facilmente perceptíveis e aplicáveis em determinados negócios jurídicos, ou determinadas modalidades contratuais; contudo, em outros, pouco se aperfeiçoam em função da complexidade e particularidades da relação jurídica em que se estabelece como ocorre em alguns contratos típicos, como o contrato de locação.

A dicotomia estabelecida entre a proteção dada aos direitos reais e a proteção e lealdade contratuais passa a ser analisada sob o viés da função social do contrato e da boa-fé objetiva, cláusulas gerais dos negócios jurídicos e fonte moderna da segurança jurídica.

Dessa forma, o presente trabalho abordará o exercício inadmissível do locador em face do locatário, assim como os eventuais mecanismos de proteção do locatário em função do abuso de direito por parte do locador.

1 A BOA-FÉ OBJETIVA

Hodiernamente, as discussões que se fazem sobre os mais diversos institutos civis à luz da Constituição são recorrentes, na medida em que tais instrumentos ganham notória aplicabilidade nas análises jurisprudenciais e no meio acadêmico. O caminho inverso também é válido, pois o meio acadêmico e as discussões jurisprudenciais despertam para uma análise que até então a legislação se omitia ou era evasiva.

No Direito Civil isso é facilmente perceptível, pois a legislação civilista vigente é oriunda de um projeto anterior ao atual ordenamento jurídico, dado que o projeto do Código Civil de 2002 é da década de 1970, e a atual Constituição foi promulgada em 1988.

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Nesse sentido, cada vez mais os operadores do Direito têm atotado uma interpretação do Direito Civil à luz da Constituição, visando assegurar às pessoas os direitos e garantias preceituados na Carta Magna. Dessa forma, sobre as relações privadas de natureza contratual também se aplica essa máxima, tal como ensina Flávio Tartuce (2010, p.78), que assevera que os princípios do Direito Civil Constitucional não somente podem como devem ser aplicados aos contratos. Esses princípios são a valorização da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB 1988); a solidariedade social (art. 3º, I, da CRFB de 1988); e a igualdade ou isonomia (art. 5º, caput, da CRFB de 1988).

Uma das inovações advindas da interpretação constitucional da codificação civil brasileira são as cláusulas gerais dos contratos. As cláusulas gerais são princípios que deverão ser seguidos na celebração dos contratos. Aqui se ressalta que o Direito Civil tem caráter supletivo, ou seja, se as partes pactuarem diferentemente considerar-se-á o avençado; contudo, se não pactuarem, sobrevêm o que está expresso na lei. Entretanto, as cláusulas gerais são norma cogente, ou seja, mesmo se as partes celebrarem diferentemente valerá o que está preceituado na lei. Assim também ocorre com outros institutos e princípios que deverão ser seguidos na celebração de negócios jurídicos.

O Código Civil brasileiro procurou deixar expressas duas cláusulas gerais (art. 421 e 422), as quais deverão ser consideradas na celebração, execução e extinção dos contratos, são elas: (i) a boa-fé (objetiva); e (ii) a função social dos contratos.

Quanto à função social dos contratos, Orlando Gomes assevera que:

O princípio da função social do contrato, inovação pioneira do Código Civil de 2002, vem expressamente previsto no seu art. 421: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Trata-se, como é evidente, de norma de ordem pública, como esclarece o art. 2.035, parágrafo único do mesmo Código. A locução “função social” traz a idéia de que o contrato visa atingir objetivos que, além de individuais, são também sociais. O poder negocial é assim, funcionalizado, submetido a interesses coletivos ou sociais (GOMES, 2008, p. 48).

A função social do contrato reflete uma ideia de direito coletivo, ou seja, o contrato não é uma expressão tão somente do interesse das partes, mas sim expressão de uma vontade geral. O contrato deve ser celebrado, executado e extinto a partir de uma concepção de que ele tem um fim coletivo e o seu adequado cumprimento faz-se necessário, pois a sociedade assim espera, e uma eventual execução disfuncional a lesionará. Todavia, esse princípio não é objeto do presente estudo, mas sim o da boa-fé.

Quanto à boa-fé, cabe, preliminarmente, mencionar que este é um dos princípios mais relevantes, pois está ligado a todos os demais aplicáveis aos contratos civis. A boa-fé representa presentemente, possivelmente, a cláusula geral de maior extensão (ASCENSÃO, 2010, p. 146). Esse princípio tem sido aplicável a quase todos os ramos do Direito, pois é

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esperado que os sujeitos [de direito] em suas relações ajam sob a boa-fé. Destarte, faz-se imprescindível a conceituação desse princípio, para desenvolvimento do estudo que este trabalho pretende propor.

De Plácido e Silva conceitua a boa-fé:

Sempre que se teve boa-fé no sentido de expressar a intenção pura, isenta de dolo ou engano, com que a pessoa realiza o negócio ou executa o ato, certa de que está agindo na conformidade do direito, consequentemente, protegida pelos preceitos legais.

Dessa forma, quem age de boa-fé está capacitado de que o ato de que é agente, ou do qual participa, está sendo executado, dentro do justo e do legal.

É, assim, evidentemente, a justa opinião, leal e sincera, que se tem a respeito do fato ou do ato, que se vai praticar, opinião esta tida sem malícia e sem fraude, porque se diz justa, é que está escoimada de qualquer vício, que lhe empane a pureza da intenção.

Protege a lei todo aquele que age de boa-fé, quer resilindo o ato, em que se prejudicou, quer mantendo aquele que deve ser respeitado, pela bonae fidei actiones.

É assim que a boa fé, provada ou deduzida de fatos que mostram sua existência, justifica a ação pessoal, pela qual se leva à consideração do juiz o pedido para que se anule o ato praticado, ou se integre aquele que agiu de boa-fé no direito, que se assegurou, quando de sua execução (SILVA, 2010, p. 120).

Ainda, Miguel Reale assevera que:

É a boa-fé o cerne em torno do qual girou a alteração de nossa Lei Civil, da qual destaco dois artigos complementares, o de nº 113, segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”, e o Art. 422 que determina: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas consequências.

Daí a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial (REALE, s/d).

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Cumpre acrescentar que a boa-fé, assim como outros princípios do Direito, por serem gerais, é, por vezes, muito aberta conceitualmente e pode exprimir um sentido de forma abstrata, de modo que José de Oliveira Ascensão justifica:

O recurso dos princípios generalíssimos, como a repressão da fraude, é muito perigoso, porque cria grande insegurança na aplicação.

É de toda a conveniência substituir o recurso a critérios muito gerais por critérios mais precisos, que são mais úteis por sua maior compreensão. É por isso de desejar que o avanço se faça por desenvolvimentos sociais e de critérios ou subcritérios mais concretos.

A boa-fé não pode servir como panaceia universal, doutro modo arrisca-se a tornar-se um critério nominalístico, suscetível de todos os entendimentos (ASCENSÃO, 2010, p. 146).

Salienta-se que isso tem uma razão de ser, pois o legislador, em determinados casos, intenciona que o intérprete tenha liberdade na aplicação de um princípio, para que venha abarcar a maioria das situações juridicamente possíveis. Todavia, o princípio da boa-fé é demasiadamente extenso quanto à sua aplicabilidade, justamente porque está intimamente ligado a diversos valores sociais (coletivos), como a honestidade, probidade, justiça, entre outros. Assim, para melhor entendimento e aplicabilidade, a doutrina majoritária divide a boa-fé em duas espécies: objetiva e subjetiva.

A boa-fé subjetiva é medida a partir de uma expectativa de conduta da outra parte, ou seja, espera-se que o sujeito em determinada situação, notadamente quando a discussão versa sobre a posse de bens móveis e imóveis, aja de boa-fé. Essa definição parece ser confusa, contudo, fica mais clara quando se define a boa-fé objetiva, que, por sua vez, é um critério normativo de valoração de condutas. A boa-fé subjetiva não possui relevância como cláusula geral dos contratos, mas influi diretamente na caracterização de parte significativas dos vícios do consentimento (ASCENSÃO, 2010, p. 147). Ou seja, a formação do negócio jurídico não possui dependência direta daquilo que a parte contratante pensa ou pretende realizar, porém a sua validade e sua eventual exigibilidade serão analisadas à luz da intenção do sujeito e da eventual tentativa de caracterizar o prejuízo deliberado da parte contrária.

Flávio Tartuce trata da introdução da boa-fé objetiva às codificações europeias, o que refletiu na inserção desse princípio no nosso ordenamento jurídico, pela codificação civil de 2002, in litteris:

Uma das mais festejadas mudanças introduzidas pelo Código Civil de 2002 refere-se à previsão expressa do princípio da boa-fé contratual, que não constava da codificação anterior.

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Como se sabe, a boa-fé, anteriormente, somente era relacionada com a intenção do sujeito de direito, estudada quando da análise dos institutos possessórios, por exemplo. Nesse ponto era conceituada a boa-fé subjetiva, eis que mantinha relação direta com a pessoa que ignorava um vício relacionado com uma pessoa, bem ou negócio.

Mas, desde os primórdios do direito romano, já se cogitava uma outra boa-fé, aquela direcionada à conduta das partes, principalmente nas relações negociais e contratuais. Com o surgimento do jusnaturalismo, a boa-fé ganhou no Direito Comparado, uma nova faceta, relacionada a conduta dos negociantes e denominada boa-fé objetiva. Da subjetivação saltou-se para a objetivação, o que é consolidado pelas codificações europeias. (TARTUCE, 2010, p. 110).

A doutrina tradicional conceitua a boa-fé objetiva a partir de uma concepção de homem médio, ou do homem comum, ou seja, espera-se que determinado sujeito aja em conformidade com os padrões sociais e que sua conduta seja perceptível pela sociedade como não lesiva aos interesses da coletividade.

Assim, o indivíduo quando exerce um direito, espera-se que, no seu exercício, ele não viole o princípio da boa-fé objetiva. Se assim o fizer, estará praticando um ato que, embora tenha previsão legal, pois advém de um direito legalmente previsto, estará ferindo uma expectativa socialmente prevista, a qual seja o exercício não abusivo do direito. O exercício inadmissível ou o abuso de um direito são situações repudiadas pela sociedade, cuja prática procurou o legislador tratar como conduta ilícita suscetível à reparação por eventuais perdas e danos, conforme preconizado no artigo 187, combinado com o artigo 927 da codificação civil.

Entretanto, não há regramento específico para caracterizar o não exercício de um direito como ato ilícito, notadamente no atual sistema jurídico que protege os direitos subjetivos com longos prazos de prescrição e de decadência. Baseando-se em tal constatação, o presente trabalho pretende deitar-se sobre as figuras protetivas existentes, para, de forma analógica, vislumbrar sua aplicabilidade em situações problema de não exercício abusivo de direito por parte do locador.

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2 O ABUSO DE DIREITO

2.1 O ABUSO DE DIREITO E O EXERCÍCIO INADMISSÍVEL

Quando se discorre sobre exercício inadmissível ou abuso de direito, faz-se necessário delimitar que espécies de direitos são suscetíveis à prática abusiva que serão expostas a seguir.

Os direitos, em sua essência, são divididos em direitos objetivos e subjetivos. Os direitos objetivos são aqueles delineados pelo ordenamento jurídico e que independem da manifestação de vontade de um titular. Os direitos subjetivos, por sua vez, são aqueles que advêm de “um interesse protegido pelo ordenamento jurídico mediante um poder atribuído à vontade individual” (GOMES, 2008, p. 98), ou seja, a manifestação do direito subjetivo se dá por meio do seu exercício pelo titular, pois está vinculada a sua faculdade de agir.

Com base na definição exposta, pode-se realizar a seguinte afirmação: como o direito subjetivo advém de uma faculdade de agir, da vontade do seu titular, é possível que em seu exercício este exceda as finalidades da tutela objetivada por aquele direito, ou melhor, que o sujeito ao exercer o seu direito exceda os fins sociais pretendidos por aquela tutela causando prejuízo a outrem. Dessa forma, infere-se que os direitos subjetivos são suscetíveis à prática abusiva, pois decorrem da faculdade de agir do seu titular.

Segundo José Ricardo Alverez Vianna (2009), na História, o abuso de direito tem sido coibido e impugnado com o intuito de proteger o cidadão que age com probidade e boa-fé e de penalizar aquele que não age de acordo com tais princípios ou que tem o interesse de prejudicar outrem. O instituto tem raízes no direito romano que, embora tenha apresentado contornos ao abuso de direito, não procedeu à sistematização enquanto prática contrária ao ordenamento jurídico. Os romanos somente utilizaram-se desse instituto em determinados casos concretos (CARVALHO NETO, 2009, p. 28). Posteriormente, na Idade Média, foi tratado na forma de ato emulativo, consubstanciado num exercício disfuncional e ilegítimo de um direito (ASCENSÃO, 2010, p. 219), cuja aplicabilidade estava mais ligada aos direitos inerentes à propriedade.

O abuso de direito tem sido repudiado pelos aplicadores do Direito, mas poucas são as discussões, doutrinas e jurisprudências existentes, pois dependem da demanda dos efetivamente lesionados. Por vezes, torna-se inviável o ingresso judicial, pois, como se trata de uma interpretação subjetiva do exercício inadmissível de um direito, é mais dificultoso instruir por meio de provas o abuso de direito.

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Quanto às discussões acadêmico-científicas, os doutrinadores se dividem em duas correntes teóricas para definir o abuso de direito: a subjetivista e a objetivista, conforme expressa Orlando Gomes:

A noção de abuso de direito varia conforme o critério que se adote. Para os subjetivistas, consiste no uso do direito com o fim de causar dano a outrem. O defeito dessa orientação está em exigir a investigação do imóvel do ato. Para os objetivistas, num desvio em seu exercício, porque falta ao titular legítimo interesse para exercê-lo daquele modo, ou porque sua destinação econômica ou social foi frustrada. (GOMES, 2008, p. 119).

A codificação civil brasileira, de acordo com o professor Orlando Gomes (2008), preferiu abarcar a definição objetivista1, sob a inspiração do direito português (CARVALHO NETO, 2009, p. 33), nos termos do artigo 187, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, in verbis: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002).

Cumpre destacar que o abuso de direito é equiparado ao ato ilícito, por opção do legislador brasileiro, acompanhando a escolha da legislação portuguesa, contudo, distingue-se deste, conforme afirma Jorge Americano:

se por um lado, a noção do direito exclui a ideia do abuso, porque o abuso desnatura o direito e faz com que deixe de o ser, por outro lado não há contestar a realidade dos fatos, que verifica, numa série de atos ilícitos um falso assento em direito, diversamente do ato ilícito, genericamente considerado, em que se não invoca nenhum assento em direito. (1932, p.5 apud CARVALHO NETO, 2009, p. 190).

Em relação ao campo de aplicação da teoria do abuso de direito, ensina Orlando Gomes (2008, p. 121) que essa não se aplica somente na esfera dos direitos patrimoniais, embora essa classe de direitos foi mais naturalmente tratada ao longo da História, mas a aplicabilidade se dá em todas as relações jurídicas existentes, assim como nas relações estabelecidas entre locador e locatário, ou mais especificamente nos contratos de locação de pessoas jurídicas, objeto do presente estudo.

1 Inácio de Carvalho Neto (2009, p. 33, 84-86) ainda acrescenta que o direito brasileiro, além da teoria objetivista, abarcou a teoria finalista, na qual afirma que os pretensos direitos subjetivos não passam de direitos-funções, “que têm finalidade a cumprir e dela não se podem desviar, sob pena de cometimento de abuso de direito”.

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2.2 O ABUSO DE DIREITO NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO

2.2.1 Breve caraterização dos contratos

As diversas relações jurídicas existentes desencadeiam a prática de determinados atos que são revestidos de juridicidade e validade perante o Direito denominados de atos jurídicos. Os atos jurídicos, por sua vez, são fatos jurídicos que possuem a interferência humana. Dentre os atos jurídicos, há determinados atos que produzem, de alguma forma, responsabilidade civil às partes evolvidas, denominados de obrigações.

Para Arnaldo Rizzardo (2008, p. 1), as obrigações, assim como os direitos, são essenciais para viabilização da convivência social. Dessa forma, as diversas relações jurídicas existentes constituem em criação de direitos e obrigações entre os envolvidos, cuja coexistência implica na efetivação de um negócio jurídico. Tais relações negociais, por vezes, se aperfeiçoam a partir de um instrumento, tal como ensina Arnaldo Rizzardo:

As relações dos indivíduos, visando constituir direitos e obrigações traduzem-se em contratos, verificados quando há convergência de duas ou mais vontades sobre determinado interesse, que é o objeto, e na determinação daquilo que cada uma delas deve fazer, acetar, respeitar, abster-se, e nos resultados positivos ou vantagens que daí decorrem. (RIZZARDO, 2008, p. 21).

Destarte, com base no enunciado, pode-se afirmar que os contratos são negócios jurídicos revestidos de formalidades legais. Em relação ao conceito de contrato, Flávio Tartuce assevera que:

O contrato é um ato jurídico bilateral, dependente de pelo menos duas declarações de vontade, cujo objetivo é a criação, a alteração ou até mesmo a extinção de direitos e deveres de conteúdo patrimonial. Os contratos são, em suma, todos os tipos de convenções ou estipulações que possam ser criadas pelo acordo de vontades e por outros fatores acessórios. (TARTUCE, 2010, p. 32).

O conceito compreendido acima denota que os contratos são atos jurídicos bilaterais ou sinalagmáticos, ou seja, há causalidade entre as prestações, por exemplo, entrega-se o bem em função do pagamento realizado pela outra parte.

No entanto, o conceito de bilateralidade apresentado por Tartuce (2010) é extensivo, pois um contrato não é, unicamente, celebrado por apenas duas partes, mas pode ser celebrado por outras mais, como ocorre nos contratos administrativos de consórcio. Nesse sentido, Orlando Gomes (2008, p. 4) afirma que “o contrato é uma espécie de negócio

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jurídico que se distingue, na formação, por exigir a presença pelo menos de duas partes. Contrato é, portanto, negócio jurídico bilateral, ou plurilateral”.

Acrescenta-se que, sendo bilaterais, os contratos possuem um conjunto de direitos e obrigações para as partes envolvidas, de forma que cada uma das partes responderá por, pelo menos, um dever, e aferirá por, pelo menos, uma vantagem. Por essa razão que se espera que haja boa-fé no cumprimento de um contrato, pois não sendo cumprido, incorrerá num desequilíbrio contratual, uma vez que deverá ser corrigido, seja pela via extrajudicial ou pela via judicial, conforme será visto nos tópicos seguintes.

No Código Civil, instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, os contratos são tratados nos artigos 421 ao 853, tendo a mencionada codificação tratado de contratos em espécie como os contratos de compra e venda, troca ou permuta, contrato estimatório, doação2, empréstimo, prestação de serviços, empreitada, depósito, mandato comissão, agência e distribuição, corretagem, transporte, seguro e o de locação, este último foi objeto do presente estudo.

2.2.2 O Contrato de Locação

O contrato de locação é uma das espécies de contratos típicos organizado na codificação civil brasileira pelos artigos 565 a 578, na qual estão compreendidas as regras contratuais para locação de coisas, pouco sendo tratada a locação de imóveis, cujo regramento é dado, no caso de imóveis urbanos, pela Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991; e para os imóveis rurais, pelo Estatuto da Terra – Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 –, hipótese do arrendamento rural.

De acordo com o artigo 565, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, “na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição” (BRASIL, 2002). Essa definição legal implica caracterização dos contratos de locação em relação a outras espécies de contratos, pois quando se fala em cessão de uso e gozo de coisa fungível há outra espécie de contrato, que não locação, a qual seja o contrato de mútuo3; quando

2 Há discussão doutrinária sobre a bilateralidade dos contratos de doação, contudo, por não se tratar do foco do presente estudo, essa não foi abordada.

3 Existe a possibilidade de locação de coisas fungíveis, de acordo com DINIZ (2006, p.112), ocorre quando seu uso e gozo for concedido ad pompam vel ostentationem, como na hipótese de alguém ceder ao locatário, por certo prazo e aluguel, 20 garrafas de vinho, a fim de que elas sirvam de ornamentação na inauguração de um negócio.

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não há a retribuição pelo uso e gozo da coisa também ter-se-á um contrato de cessão de uso e gozo, contudo, a título gratuito.

Assim, a definição do mencionado diploma legal também implica a caracterização dos elementos essenciais para a existência de constituição dos contratos de locação, que, segundo Pontes de Miranda (1971, p.31, apud LOBO, 2011, p.331), são três: a) promessa (e consequente prestação) do uso; b) promessa (e consequente prestação) da retribuição; c) concordância sobre a duração, que pode ser por tempo indeterminado. Desses elementos, podem-se extrair outros decorrentes deles que são vitais à existência e aperfeiçoamento da locação, os quais, conforme Maria Helena Diniz (2006, p. 109-118), são: (i) consentimento válido das partes; (ii) capacidade civil dos contratantes em contrair obrigações; (iii) cessão da posse do objeto locado; (iv) remuneração; (v) lapso de tempo determinado ou não; e, por fim, (vi) forma livre4.

Em relação à contratualidade da locação de coisas, nos ensina, ainda, Maria Helena Diniz:

[...] tem natureza contratual, constituindo contrato: a) bilateral, porque tanto o locador quanto o locatário se obrigam reciprocamente; b) oneroso, visto que cada contraente busca obter para si determinada vantagem, havendo propósito especulativo; c) comutativo, porque as mútuas vantagens são equivalentes e conhecidas desde a celebração do ato negocial; d) consensual, uma vez que não depende, para a sua formação, de forma especial, exceto em casos muito particulares; p. ex.: na locação comercial, para a renovação compulsória, exige-se contrato por escrito pelo prazo de cinco anos (Lei n. 8.245/91, art. 51, I e II); os bens imóveis pertencentes a menores sob tutela somente poderão ser alugados pelo tutor mediante preço conveniente (CC, art. 1.747, V); a locação de imóveis de União dependerá de concorrência pelo maior preço [...]; e) de execução continuada, pois sobrevive com a persistência da obrigação, apesar de ocorrerem soluções periódicas, até que, pelo decurso de um certo prazo, cessa o contrato. O pagamento de aluguel, salário ou preço não libera os contraentes senão da dívida relativa a certo período, de modo que o vinculo contratual perdurará até o final do prazo avençado para o término do contrato. (DINIZ, 2006, p. 108).

Diz-se, ainda, que a locação não pode ser perpétua, para que não se transforme em alienação da coisa ao locatário, confundindo-se com a compra e venda (LOBO, 2011, p. 332).

Tratando, ainda, sobre as espécies de locação de imóveis, especificamente sobre os fins que se destina, poderá ser realizada para fins residenciais e para fins comerciais ou empresariais, sendo esta última modalidade preferida neste artigo.

4 Segundo Maria Helena Diniz (2006, p.118), a forma livre nos contratos é um princípio em que é permitida a concretização do contrato de forma livre, visto que a lei não exige forma especial. Não será, portanto, necessário que a manifestação contratual se dê por escrito.

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2.2.3 O Abuso de Direito nos Contratos de Locação

Conforme já demonstrado nos tópicos anteriores, são várias as formas de manifestação do abuso de direito, contudo para delimitação do estudo proposto faz-se necessária a caracterização de algumas das formas de exercício abusivo de direito inerentes aos contratos de locação, mais especificamente nos contratos de locação empresarial.

Também já foi abordado que a legislação protege, via de regra, o locador em face do locatário, pois se entende que aquele poderá ser naturalmente lesado pelo último, como no eventual inadimplemento dos valores pagos a títulos de aluguéis. A doutrina pouco discute e a jurisprudência, até então encontrada, é pouco esclarecedora no sentido de debater as práticas abusivas por parte do locador em detrimento do frágil poder argumentativo do locatário.

Na esfera empresarial não é diferente. Por vezes, o locador do espaço destinado à prática empresarial age em descompasso ao que se espera, e há casos em que o empresário fica refém dos desmandos daquele, pois este intenciona proteger seu ponto comercial, tão caro aos esforços dispensados na conquista de sua clientela.

O abuso de direito por parte do locador poderá ser constatado desde a celebração do contrato, pois, conforme exemplifica Pedro Batista Martins (apud CARVALHO NETO, 2010), configura-se o abuso de direito os contratos de locação que vedam ao locatário o direito de sublocar, de forma que cumprirá ao julgador e aplicador do direito verificar se a proibição é fundada em motivos legítimos, e se não contraria a destinação econômica do contrato.

Um exemplo, embora previsto doutrinariamente, mas não muito frequente, de abuso de direito por parte do locador do imóvel, já na execução do contrato e tentativa de conclusão, está na simulação de oferta do imóvel à venda com o intuito de desocupá-lo. A legislação disciplina que o locatário possui o direito de preferência na compra do imóvel, conforme ensina Sílvio de Salvo Venosa:

O art. 27 da Lei da Lei do Inquilinato é minucioso. O direito de preempção ou preferência cabe nos casos de venda, promessa de venda, cessão de direitos ou dação em pagamento do imóvel locado. O locatário terá a preferência na aquisição, em igualdade de condições com terceiros. O parágrafo único exige que a comunicação ao locatário contenha a descrição de todas as condições de venda. Assim, a notificação não pode ser vaga e imprecisa. Deve conter o preço, com condições, prazo, índices de juros e correção monetária se houver. A lei vai mais além, obrigando que o vendedor comunique a existência de ônus reais e indique local e horário em que a documentação referente ao imóvel se encontrará a disposição de inquilino. (VENOSA, 2010, p. 160).

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Assim, o locador deve dar a preferência na compra pelo locatário, de forma que, se for verificada a intenção de tão somente desocupar o imóvel, deve ser aplicada a regra do artigo 29, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, in verbis: “Ocorrendo aceitação da proposta, pelo locatário, a posterior desistência do negócio pelo locador acarreta, a este, responsabilidade pelos prejuízos ocasionados, inclusive lucros cessantes” (BRASIL, 1991).

Quando o locador não exerce seu direito de crédito, ou seja, quando não aceita o pagamento do aluguel ou de alguma forma se exime de recebê-lo, ou, ainda, recusa-se a dar-lhe devida quitação, incorre também numa prática abusiva de um direito. Pois, em primeira análise, conquanto o pagamento da prestação de aluguel (retribuição ao direito de uso da coisa) seja uma sujeição do locatário, portanto um direito do locador, a contraprestação, o recebimento e emissão do recibo, é uma condição de sujeição do locador, que, se não cumprir, incorre num exercício inadmissível de um direito de crédito. Assim, a legislação também protege o locatário, quando o locador recusa-se a dar recibo de quitação, conforme alude Maria Helena Diniz (2006, p. 127): “Com a sua recusa em conceder o recibo, o locador incidirá em contravenção penal à ação consignatória do inquilino, prevista no art. 941 do Código Civil”.

Cumpre registrar que a alusão citada faz referência ao Código Civil de 1916, sendo o referido direito do locatário (devedor) previsto no artigo 319 do Código Civil de 2002, e a referida prática, por parte do locador, também considerada abusiva, conquanto não tenha indicação expressa na legislação vigente. Outro exercício inadmissível de um direito do locador ocorre quando este toma o imóvel sem notificação prévia ao locatário, devendo aquele ressarcir os eventuais prejuízos causados em decorrência de sua prática abusiva.

Outros casos poderão configurar eventual abuso de direito do locador em face do locatário, ao verificar o artigo 22 da Lei de Locações, há um rol não taxativo de deveres do locador, sendo esses a contrario sensu, considerados direitos do locatário. Dessa forma, o descumprimento de tais obrigações legais, por parte do locador, quando invoca sua condição [direito] de proprietário do imóvel, pode ser considerado como prática abusiva.

No inciso II, do artigo 22 do supracitado diploma legal, o legislador procurou deixar expresso que é dever do locador: garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado; assim, o locador que, na vigência da locação, invoca seu direito de proprietário e procura turbar o uso do imóvel também incorre num abuso de direito. Nesse mesmo raciocínio, o inciso IV apresenta um caso clássico de abuso de direito, pois o locador, quando oculta os defeitos da coisa impondo ao locatário o ônus sobre o vício preexistente, incorre numa prática abusiva na condição frágil do locatário que não viu o defeito em tempo da celebração do negócio. Para esses casos e outros mais, as jurisprudências dos

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tribunais têm entendido5 e afirmado que sempre que o proprietário excede a sua condição de senhorio e não cumpre com seus deveres legais, incorre em abuso de direito, devendo ressarcir o locatário de eventuais prejuízos causados.

Nesse diapasão, pode-se afirmar que a supressão dos direitos do locatário por parte do locador, quando este invoca sua condição de proprietário do imóvel, poderá incorrer numa prática abusiva de direito, por exemplo, quando o locador retoma o imóvel sem o devido ressarcimento das benfeitorias úteis e necessárias e suprimindo o direito de retenção do imóvel do locatário.

Sobre esse aspecto, o artigo 35 da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, preceitua que:

Art. 35. Salvo expressa disposição contratual em contrário, as benfeitorias necessárias introduzidas pelo locatário, ainda que não autorizadas pelo locador, bem como as úteis, desde que autorizadas, serão indenizáveis e permitem o exercício do direito de retenção. (BRASIL, 1991)

Cumpre asseverar que segundo a inteligência do citado diploma legal, as benfeitorias úteis e necessárias deverão ser ressarcidas somente quando autorizadas pelo locador. Portanto, o locatário ao término do contrato de locação, se não for ressarcido, tem o direito de retenção. O locador ao tomar o imóvel sem o devido ressarcimento incorre numa prática abusiva do seu direito, sob a qual faz jus a indenização do locatário.

Acrescenta-se, ainda, que a doutrina e a jurisprudência dos tribunais também têm afirmado que o locador que retoma o imóvel deve apresentar os requisitos de seriedade e sinceridade, pois, não sendo apresentados, configura-se abuso de direito, conforme julgado abaixo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO RENOVATÓRIA. PEDIDO DE RETOMADA DO IMÓVEL. REQUISITOS DE SERIEDADE E SINCERIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. O deferimento do pedido de retomada de imóvel comercial formulado pelo locador deve preencher os requisitos de seriedade e sinceridade, sob pena de configurar abuso de direito. (TJMG; AGIN 1.0024.08.073422-1/0011; Belo Horizonte; Décima Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Domingos Coelho; Julg. 03/06/2009; DJEMG 29/06/2009)

Destarte, pode-se inferir que qualquer direito do locatário que seja suprido pelo locador, ou qualquer prática por parte do locador que transcenda os limites impostos pela lei e que venha lesar dolosamente o locatário, poderão ser consideradas práticas abusivas de um [eventual] direito, sendo passíveis de desfazimento e reparação, conforme tratado a seguir.

5 Julgados STJ: REsp 407160 / AM; REsp 159228 / SP

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3 OS INSTITUTOS E MECANISMOS DE PROTEÇÃO DO LOCATÁRIO EM FACE DE ABUSO DE DIREITO DO LOCADOR

No capítulo anterior foram abordadas algumas formas de abuso de direito por parte do locador, que não necessariamente está vinculado a um não exercício de um direito, sendo que tal prática, por vezes, acaba por acarretar em ônus ao locatário, causando prejuízos de grande monta. Dessa forma, passar-se-á a estudar os institutos do Direito que visam proteger o locatário em face de abuso de direito do locador.

Segundo Inácio de Carvalho Neto (2010, p. 195-200) são duas as espécies de sanções para o ato abusivo: direta e indireta. De acordo com o autor (2010, p. 195) a sanção direta é aquela reparação in natura, ou seja, implica o desfazimento do ato. Por outro lado, a reparação indireta implica a reparação do dano pelos princípios da responsabilidade civil. Todavia, a doutrina apresenta uma questão sobre a referida temática a ser saneada: a responsabilidade civil do ato abusivo é objetiva?

Sobre a problemática suscitada, o doutrinador português Fernando Augusto Cunha de Sá esclarece o que segue:

É certo que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio de que só existe obrigação de indenizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei (art. 483º, n. 26) e em lado algum se contempla o abuso de direito como um caso de responsabilidade civil objetiva; mas já atrás houve oportunidade de fazer referência à reinvindicação do abuso do direito como uma das manifestações do dever de indenizar baseado no risco [...] o abuso prescinde quer da causação de danos (pode haver um ato abusivo não danoso), quer, quando os haja, de qualquer elemento subjetivo, na forma de dolo ou de mera culpa: ora, sendo assim, a exigência de culpa como requisito da responsabilidade civil por atos abusivos, depende da possibilidade de emitir um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, pois nisso mesmo é que consiste a culpa. Dito por outras palavras, depende da existência de um dever que impenda sobre o titular do direito subjetivo ou da diversa prerrogativa jurídica a que este tenha violado voluntariamente. (1997, p. 638 apud CARVALHO NETO, 2009, p. 199).

Portanto, a responsabilização civil do ato abusivo, depende de um juízo de valor do intérprete, pois a subjetividade é própria do abuso de direito.

Voltando ao âmbito normativo-legal, a obrigatoriedade de indenizar por perdas e danos é disciplinada no artigo 927, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que diz: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. (BRASIL,

6 A regra mencionada pelo autor é do Código Civil Português, sendo equivalente ao art. 927 da codificação brasileira.

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2002). Dessa forma, o locador que causar prejuízo ao locatário, mesmo que dentro dos limites legais, mas de forma abusiva, deve ressarcir tal prejuízo, indenização que poderá ser demandada judicialmente por meio de ação própria. Nesse sentido, cumpre acrescentar que a jurisprudência dos tribunais tem pactuado dessa premissa, conforme julgados abaixo:

LOCAÇÃO. RETOMADA DO IMÓVEL. ABUSO DE DIREITO POR PARTE DO LOCADOR. Dever de indenizar danos morais e materiais emergentes de sua conduta. (...) (TJRS; AC 505097-65.2010.8.21.7000; Não-Me-Toque; Décima Sexta Câmara Cível; Rel. Des. Paulo Sérgio Scarparo; Julg. 16/12/2010; DJERS 10/01/2011).

JUIZADOS ESPECIAIS. CIVIL. CONTRATO DE ALUGUEL. RETOMADA ARBITRÁRIA POR PARTE DO LOCADOR. DESPESAS REALIZADAS PELO LOCATÁRIO PARA REFORMA DO IMÓVEL LOCADO. CONFIGURAÇÃO DE ABUSO DE DIREITO. DANOS MATERIAS CARACTERIZADOS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. A retomada do imóvel locado de forma arbitrária, sem a devida notificação do locatário e prévia rescisão contratual configura abuso de direito (artigo 187 CC). 2. As despesas realizadas pelo locatário para realizar reforma no imóvel que lhe foi retirado o direito de uso configura danos materiais que merecem ressarcimento. (...) (TJDF; Rec. 2009.09.1.022190-8; Ac. 442.485; Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais; Relª Juíza Giselle Rocha Raposo; DJDFTE 02/09/2010; Pág. 263).

No que diz respeito à omissão do locador no recebimento de coisa/quantia certa, ou seja, quando o locador não exerce o seu direito de crédito ou não dá a devida quitação, de forma injustificada; ou quando ele não recebe as chaves no término do contrato de locação; incorrerá, conforme tratado no capítulo anterior, em abuso de direito. De sorte que a legislação civil protege o devedor, analogicamente o locatário, que de boa-fé intenta realizar o pagamento e não obtém êxito, permitindo-lhe a realização da consignação de pagamento, disciplinada nos artigos 334 e seguintes do código civil, in verbis: “Considera-se pagamento, e extingue a obrigação, o depósito judicial ou em estabelecimento bancário da coisa devida, nos casos e forma legais.”. Dessa forma, o depósito judicial ou bancário, nos termos que a lei definir, são formas de proteger o locador e consequentemente lhe afasta a mora. Assim, ensina Venosa:

A consignação em pagamento tem a ver com a imputação da mora ao credor. No entanto, não é obrigatório ao devedor recorrer à ação de consignação para conseguir esse efeito. A mora do credor pode ser reconhecida na ação que este move contra o devedor: se o devedor é cobrado judicialmente e alega que não paga porque o credor não cumpriu com sua parte na avença, aplicação da exeptio non adimpleti contractus (art. 476), reconhecida essa situação, reconhecida estará a mora do credor. (VENOSA, 2008, p. 228).

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Na codificação civil, há a possibilidade de realização da consignação em pagamento judicial e extrajudicial. No entanto, a lei de locações prevê a modalidade específica para o assunto em comento, a qual seja a Ação de Consignação de Aluguel e Acessórios da Locação, disciplinada no art. 67 do mencionado diploma legal.

No âmbito empresarial, há um instituto muito eficaz, que visa proteger o ponto comercial do empresário: a Ação Renovatória. Tal instrumento consiste na demanda judicial intentada pela empresa (pessoa jurídica) em face do locador com o intuito de renovar o contrato de locação por igual período avençado em instrumento anterior. Os requisitos da Ação Renovatória estão disciplinados no artigo 51 da Lei de Locações (BRASIL, 1991), sendo eles: i. proposição da ação nos primeiros seis do último ano de vigência da locação; ii. o contrato, objeto de renovação, tenha sido celebrado por escrito e por prazo determinado; iii. deve existir um ou sucessivo(s) contrato(s) prévio(s) que representem locação ininterrupta por um período não inferior a 5 (cinco) anos; iv. o empresário deve exercer no mesmo ramo (na mesma atividade) pelo período mínimo de 3 (três) anos ininterruptos.

A prescrição e decadência são institutos que visam a pacificação social e a segurança da ordem jurídica, pois, como é notório, o exercício de um direito não pode ficar pendente de forma indefinida no tempo (TARTUCE, 2010, p. 429). Assim, o legislador brasileiro inseriu no Código de Civil de 2002, nos artigos 189 e seguintes, tais institutos, os quais são aplicados em quaisquer dos negócios jurídicos, incluindo os contratos de locação.

A prescrição, nos termos do artigo 189 do supracitado diploma legal, visa proteger o devedor, in casu o locatário, em intenção de o locador demandar judicialmente eventual pretensão de direito que em tempo não moveu a devida ação judicial. Conforme bem alude Flávio Tartuce:

Se o titular do direito permanecer inerte, tem como pena a perda da pretensão que teria por via judicial. Repise-se que a prescrição constitui um benefício a favor do devedor, pela aplicação da regra de que o direito não socorre aquelas que dormem, diante da necessidade do mínimo de segurança jurídica nas relações negociais. (2010, p. 432)

Entretanto, o locatário, por vezes, torna-se refém de uma condição temporal, que não se efetiva, pois em diversas situações o locador demanda judicialmente indevidamente, de modo óbvio que antes de transcorrido o prazo prescricional, ou age em descompasso com o direito, cometendo abusos de qualquer ordem, conforme já tratado anteriormente, sendo que tais práticas abusivas não podem ser atacadas pelos mecanismos de proteção já citados.

Destarte, o locatário pode lançar mão de outro instituto do Direito Civil, que visa sanar mais facilmente eventuais dificuldades criadas na execução do contrato de locação e coibir eventuais atos abusivos por parte do locador. Esse instituto é o da decadência. A decadência difere-se da prescrição, pois conforme ensina Antonio Luiz da Câmara Leal:

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É de decadência o prazo estabelecido pela lei, ou pela vontade unilateral ou bilateral, quando prefixada ao exercício do direito pelo seu titular. E é de prescrição, quando fixado, não para o exercício do direito, mas par ao exercício da ação que o protege (LEAL, 1939, p. 133 e 184 apud AMORIM FILHO7, s/d).

No tocante às espécies de decadência, Flavio Tartuce (2010, p. 461) assevera que: “a decadência pode ter origem na lei (decadência legal) ou na autonomia privada, na convenção entras as partes envolvidas com o direito potestativo”. Dessa forma, subentende--se que a decadência, se não estiver expressa na lei, poderá ser convencionadas entre as partes, ou seja, locador e locatário.

Assim, o locatário que se vê prejudicado por uma ausência do locador decorrente do não exercício de um direito (abuso de direito), poderá notificá-lo para que venha exercer o seu direito em um determinado prazo sob pena de decair o seu direito. Dessa forma, a partir da notificação expressa, tem-se a convenção da decadência, por parte do locatário. Registra-se que tal prazo deverá ser convencionado aplicando, analogicamente, a regra de responsabilização por vício de produto ou serviço utilizada nos termos do §2º do artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), na qual estabelece o intervalo igual ou superior a sete, e igual ou inferior a 180 dias.

A situação acima se mostra eficaz em situações de obrigações de fazer imputadas ao inquilino, cujo cumprimento depende da exigência prévia do locador, ou, ainda, de concorrência de esforços de locador e locatário.

Várias são as situações abusivas, como o direito de vistorias exercido sem prévio agendamento de horário, ou ainda a determinação de desocupação temporária para manutenção preventiva sem determinação de prazo de início e final das efetivas obras.

O locatário efetua o pagamento pelo uso e gozo da coisa e deve tê-la em sua posse durante todo o lapso temporal, sendo apenas toleradas a interferências inafastáveis, justas e razoáveis, sob pena de caracterização do abuso de direito do locador.

Porém, a situação mostra-se muito mais grave quando o direito do locador deixa de ser exercido de forma deliberada como forma de causar prejuízo ao locatário, hipótese em que deverá o inquilino constituir o locador em mora e estabelecer a decadência convencional como forma de se exonerar da responsabilidade de esperar a boa vontade do senhorio.

7 Agnelo Amorim Filho propõe em sua obra um critério científico para distinguir a prescrição da decadência. Ao aludir sobre essa obra, Flávio Tartuce (2010, p. 466) elucida que “os prazos decadenciais referem-se às ações constitutivas, sejam elas positivas ou negativas, diante da existência de um direito potestativo”.

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Cumpre aludir que a decadência visa prevenir e não solucionar um problema já instaurado, que então caberá somente a reparação de danos, conforme vislumbrado nos comentários iniciais deste capítulo.

CONCLUSÃO

Com base em todo o exposto, pode-se afirmar que as relações locatícias, inclusive nas hipóteses de locação empresarial, podem ser acometidas por práticas abusivas por parte do locador, sejam elas comissivas, ou ainda omissivas.

A legislação brasileira cria poucos institutos de proteção do locatário, em face de abuso de direito pelo locador, justamente porque sempre procurou proteger o credor em face de mora do devedor. Todavia, conforme ilustrado neste trabalho, o locador poderá incorrer em práticas abusivas de direito, por vezes invocando sua condição de senhorio, que prejudicam o locatário e lhe traz prejuízos de grande monta.

Destarte, os aplicadores do direito podem lançar mão de determinados institutos, visando à proteção do locatário, figura mais frágil na relação locatícia, ou, ainda, no caso de eventual prejuízo demandar contra o locador em ação de reparação de danos.

A conversão da obrigação de fazer em perdas e danos, porém, somente poderá ser efetuada após a constituição do credor em mora e a formatação da decadência convencional por meio de notificação formal dirigida ao locador omisso para que exerça o direito no prazo estipulado, sob pena de, em não o fazendo, não poder exigir a obrigação de fazer do locatário.

A figura se aproxima da exceção de contrato não cumprido prevista no CCB, em seu artigo 476, porém mais adequada à situação problema, pois não servirá apenas de hipótese excludente de responsabilidade, mas hipótese extintiva de direitos subjetivos do locador.

Cumpre destacar que, conquanto a legislação seja singela em relação ao instituto da decadência, o locatário poderá usá-lo visando à prevenção a um eventual abuso de direito, pelo não exercício de um direito por parte do locador.

Por fim, ainda que não se vislumbre claramente a solução, senão pela interpretação analógica da legislação vigente, o inquilino e os demais obrigados a prestações de fazer possuem mecanismos eficientes de se eximir da responsabilidade que poderia se eternizar durante um longo período prescricional sem que houvesse a certeza da exigência do direito por parte do credor.

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RESUMO

A clássica submissão do devedor à relação jurídica obrigacional nos contratos de franquia torna sua proteção menos eficaz ante ao abuso de direito ou seu exercício disfuncional por parte do credor. Essas práticas, proibidas desde os primórdios do Direito Civil, permitem que o credor deixe de exercer seus direitos de crédito por longos períodos. Como forma de minimizar o problema, o Código Civil brasileiro vigente adotou o sistema de cláusulas gerais, como a boa-fé objetiva. A partir daí, a sujeição do devedor aos desígnios do credor deixou de ser absoluta para ser efetivamente uma relação bilateral. Mas qual seria então a forma de defesa do devedor? Mesmo com a atual mudança no Código Civil, é quase imperceptível a existência de mecanismos necessários para a liberação do devedor quando o credor exerce seu direito de forma abusiva ou disfuncional. Nesse sentido, a partir de uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório, com o emprego de levantamento bibliográfico, foi possível identificar o instituto da decadência como forma de proteção e liberação do devedor ante a mora do credor.

Palavras-chave: Contrato de Franquia. Abuso de Direito. Exercício Disfuncional. Direito das Obrigações. Mora do Credor.

O NÃO EXERCÍCIO COMO CARACTERIZADOR DO ABUSO DE DIREITO: APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA EM DEFESA DO DEVEDOR EM FACE DA MORA DO CREDOR NOS CONTRATOS DE FRANQUIA

Carina Martini*Regis Tocach**

* Aluna do 5.º ano do curso de Direito da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Professor do curso de Direito da FAE Centro Universitário. Orientador do Programa Acadêmico de Iniciação Científica.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA490

INTRODUÇÃO

O legislador sempre teve como foco a proteção do credor contra os atos de inadimplência do devedor. O oposto nem sempre foi encarado ou mesmo discutido. Ocorre que o credor, ao exercer o seu direito de crédito de forma abusiva ou disfuncional, representa grave risco para o devedor e para a sociedade em geral, pondo em cheque a segurança jurídica nas relações negociais.

A submissão do devedor à relação jurídica obrigacional clássica tornava a sua proteção menos eficaz. Com a evolução do Direito Civil brasileiro, pela adoção de cláusulas gerais, como a Boa-fé Objetiva, o liame existente entre credor e devedor passou a ser efetivamente uma situação e relação jurídica, na qual ambos devem exercer seus direitos de forma adequada, não havendo mais a clássica submissão absoluta do devedor em relação a seu credor. Por óbvio, a adoção das cláusulas gerais dos negócios jurídicos pelo Código Civil afastou a concepção de proteção exacerbada do credor em face do devedor. Contudo, mesmo com tal mudança por parte da legislação, os mecanismos de proteção do devedor ainda se mostram obscuros.

Nesse sentido, o presente trabalho tem como finalidade estabelecer qual ou quais as formas de garantir a proteção do devedor em face do credor que deixa voluntariamente de exercer seus direitos de crédito ou os exerce de forma disfuncional, especialmente no que tange aos contratos de franquia e suas obrigações. Para tanto, é necessário estabelecer a configuração de uma situação e relação jurídica nesse tipo de contrato, bem como verificar a implicação dos prazos prescricionais e medidas judiciais e administrativas específicas como formas de garantia da segurança jurídica e negocial do devedor em face do credor.

Para consecução dos objetivos desse trabalho a metodologia adequada é a de um estudo qualitativo de cunho exploratório a partir de levantamento bibliográfico a fim de demonstrar a viabilidade do instituto da decadência como mecanismo liberatório quando do não exercício do direito de crédito por parte do credor.

1 DESENVOLVIMENTO

Partindo da teoria proposta por José de Oliveira Ascensão (2010) o contrato de franquia empresarial pode ser caracterizado como, além de uma situação, uma relação jurídica bilateral, não mais como uma simples relação de subordinação absoluta do devedor ao credor.

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Para a caracterização do contrato de franquia empresarial como uma situação e uma relação jurídica exige-se a conceituação do que seria tal instituto.

Assim, necessário se faz recorrer ao conceito do contrato de franquia presente na Lei nº 8.955, de 15 de dezembro de 1994, o qual pode ser encontrado no artigo 2º, exposto da seguinte forma:

sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de uma marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semiexclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócios ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado o vínculo empregatício. (BRASIL, 1994).

Como se pode observar a partir do conceito trazido pela própria legislação, nesse tipo de contrato há uma cessão de direitos inerentes à propriedade industrial, por parte do franqueador ao franqueado, sem que isso signifique vínculo empregatício ou que o franqueado se classifique como sócio.

O contrato, também denominado como franchising, traz, na maioria dos casos, vantagens para ambos os contratantes, uma vez que o franqueado investe em um negócio já formatado e o franqueador vê a possibilidade de ampliação, sem que haja necessidade dispêndio de grandes investimentos.

A partir da conceituação daquilo que se entende por contrato de franquia, passou--se a investigar se esse se insere nas categorias de relação e situação jurídica apresentada na obra de José de Oliveira Ascensão (2010).

2 SITUAÇÃO E RELAÇÃO JURÍDICA

Na obra, Direito Civil Teoria Geral, Oliveira Ascensão (2010 ) apresenta a Relação Jurídica como sendo uma espécie do gênero Situação Jurídica. Isso se dá, de acordo com o autor, em virtude da especificidade do conceito de relação que é insuficiente para abarcar todas as situações valoradas pelo Direito.

Nesse sentido, as situações jurídicas são “situações de pessoas, resultante da valoração histórica da ordem jurídica” (ASCENSÃO, 2010, p. 10), embora resultem da aplicação de uma norma não se confundem com esta.

Por ser uma situação de pessoas, a Situação Jurídica tem natureza diversa da norma, uma vez que esta é de natureza geral e não pessoal, como aquela.

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Partindo dessas premissas, podemos dizer que o contrato de franchising enquadra--se perfeitamente no conceito de Situação Jurídica. Isso por se tratar de uma situação em que, a princípio, duas pessoas pactuam a respeito do uso de determinada marca/patente aplicando a norma jurídica que diz respeito a essa situação, em outros termos, é uma relação pessoal resultante da valoração histórica da ordem jurídica.

Como se vê, o contrato de franchising pressupõe uma norma que o regule, mas não se confunde com esta, já que a norma é abstrata e a situação jurídica do contrato em si é concreta e histórica.

3 CLASSIFICAÇÃO DA SITUAÇÃO JURÍDICA NA QUAL SE INSERE O CONTRATO DE FRANCHISING

Ascensão (2010) classifica em sua obra a Situação Jurídica de diversas formas. Nesse diapasão, ela seria Abstrata ou Concreta; Naturais ou Precárias; Simples ou Complexas; Ativa ou Passiva (com especial crítica a respeito dessa classificação); e Pessoal ou Patrimonial.

Situações jurídicas abstratas seriam aquelas abstratamente previstas nas normas jurídicas, as quais se confundem com elas. Em contrapartida, as situações jurídicas concretas seriam aquelas historicamente formadas.

Com relação às situações jurídicas naturais, o autor apresenta um exemplo para conceituá-las – são as obrigações naturais – sendo que sua característica é a de que o devedor não pode ser coagido ao cumprimento. Ainda há que se dizer que as situações jurídicas podem ser precárias em que sua subsistência está dependente da vontade livre de outra pessoa.

Ainda podem ser simples ou complexas. Aquelas que, por sua vez, podem ser compostas ou coletivas. As compostas são formadas por situações simples que perdem sua autonomia no conjunto, já as coletivas são universalidades de direitos em que cada situação simples não perde sua autonomia perante o conjunto.

As situações complexas também podem ser divididas em situações unissubjetivas ou plurissubjetivas. O que as define é a quantidade de sujeitos. Como o próprio nome sugere, as unissubjetivas são aquelas em que as situações jurídicas pertencem apenas a um sujeito, diferente da outra categoria em que há uma pluralidade de sujeitos.

A complexidade, como se vê, pode dar ensejo a uma série de modalidades de situações, por exemplo, a pluralidade de partes, a pluralidade de vínculos jurídicos, cotitularidade de situações jurídicas e conjunção funcional (ASCENSÃO, 2010, p. 17).

Com relação à classificação em ativa e passiva, Ascensão faz uma crítica afirmando que:

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A pretensão de haver em toda a relação jurídica um polo ativo e um polo passivo é falsa, pois o que divisamos normalmente, dentro da relação como figura complexa, é um equilíbrio de posições, em que vários sujeitos são simultaneamente ativos e passivos. Assim, na permuta, há uma relação jurídica, em que é impossível caracterizar qualquer dos participantes como ativo e passivo. (ASCENSÃO, 2010, p.18).

Como se vê, essa classificação é desnecessária. O contrato de franchising é complexo o suficiente para que franqueado e franqueador ocupem, ao mesmo tempo, posições de atividade e passividade. Isso se dá em virtude do franqueador ceder sua patente/marca e ser credor da taxa que o franqueado paga pelo uso pela da celebração do contrato.

Por último, classifica-se a situação jurídica como pessoal, quando há um prevalente aspecto ético, ou patrimonial, cuja essência é compatível com a redução a um valor pecuniário.

A partir dessas classificações apresentadas por Ascensão (2010) pode-se afirmar que o contrato de franchising, desde o momento de sua celebração, é uma Situação Jurídica Concreta, uma vez que nasce a partir da realidade concreta de seus contratantes e não apenas de uma previsão legal; Precária, já que há coercibilidade no pagamento da taxa e na cessão da marca ou patente; e Patrimonial, por ser redutível a um valor pecuniário.

4 RELAÇÃO JURÍDICA

Na mesma linha que todos os outros doutrinadores, Ascensão (2010) aponta o aspecto da qualificação da relação jurídica como uma relação social, dessa forma, “toda relação jurídica é, necessariamente, relação social” (ASCENSÃO, 2010, p. 35).

A relação jurídica se dá entre termos determinados. Essa é a conclusão que se chega a partir da crítica a Relação Absoluta apresentada por José de Oliveira Ascensão. De acordo com o autor, a “relação supõe necessariamente dois ou mais entes em presença. Estes podem ser quaisquer, abstratos ou concretos. Deverá porém mediar entre ele uma afinidade” (ASCENSÃO, 2010, p. 25).

A afinidade é tida como elemento base no conceito ontológico de relação. Dessa forma, concretiza-se, de acordo com Ascensão (2010, p. 45), como independência ou complementaridade. “A situação dum é o que é, porque é o que é a situação do outro. Ou seja, a situação de cada um só se define em referencia à do outro.” É uma referência de dois seres, mútua, e é nisso que consiste a relação.

O surgimento da relação jurídica se dá quando dois sujeitos ficam definitivamente implicados naquela situação comum. Esse é o momento em que se concretiza o preceito jurídico que dá a forma da relação (ASCENSÃO, 2010, p. 46).

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Como se pode extrair daquilo que o autor entende por relação jurídica, o Contrato de Franchising é tido como tal por estabelecer-se entre pessoas que têm afinidade, qual seja o interesse na obtenção de lucro com redução de riscos e de investimentos. Mostra--se, portanto, que o contrato em questão é uma relação jurídica bilateral.

5 CLASSIFICAÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA NA QUAL SE INSERE O CONTRATO DE FRANCHISING

As relações jurídicas são tidas como simples ou complexas.

Para Ascensão (2010, p. 40) a relação jurídica simples é aquela cujo conteúdo se estabelece apenas em uma posição de poder e uma posição de dever, já a relação jurídica complexa seria aquela cujo conteúdo é composto por várias posições de poder ou dever.

O autor ainda apresenta uma subdivisão das relações complexas. Seriam as coletivas e as compostas, que têm as mesmas características das situações jurídicas coletivas ou compostas, ou seja, o que determina se se trata de uma ou outra é a perda, ou não, de autonomia quando presentes em conjunto.

Dessa forma, o contrato de franchising apresenta-se como Relação Jurídica Complexa, pois, embora haja, a princípio, apenas dois sujeitos, há mais que uma posição ocupada por eles dentro na relação, ou seja, o franqueador tem, concomitantemente, posição de dever e de poder, assim como o franqueado. Ainda, se mostra como uma Relação Jurídica Complexa Composta, uma vez que não há autonomia das posições de dever e de poder ocupadas pelas partes dentro do contrato.

6 EXERCÍCIO DISFUNCIONAL

Primeiramente faz-se necessário considerar que os direitos não são absolutos, assim, seu titular não pode exercê-lo como bem entenda sem que haja intervenção da ordem jurídica. Desse modo, verifica-se que as situações jurídicas possuem certas finalidades, ou seja, conforme expõe Ascensão (2010, p. 218) “são criadas para o desempenho de objetivos ou funções”, apresentando-se como categoria de limites aos direitos.

Quando o titular de um direito se afasta da destinação funcional que possui, há o exercício disfuncional, qualificado como exercício ilegítimo. “É ilegítimo o exercício formal quando não há interesse: temos os atos ditos como chicaneiros. Por maioria de razão, é ilegítimo o exercício quando o fim for de prejudicar outrem: temos os atos ditos emulativos” (ASCENSÃO, 2010, p. 219).

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Assim, pela finalidade ou utilidade social de um direito, pode-se dizer que seu exercício não pode se dar de maneira a violar sua destinação básica. A partir daí, considera--se abusivo o exercício quando há manifesto excesso com relação aos limites impostos pelo fim social ou econômico. Esses limites não são apenas de cunho negativo, exprimindo-se em proibições, pode haver a imposição de condutas positivas que condenam a omissão do agente.

Além da limitação funcional ao exercício de direitos, há também a limitação imposta pelos bons costumes e a boa-fé que abrange o exercício incorreto, resultado de violações de cláusulas gerais.

O ato abusivo, seja pelo exercício incorreto, seja pelo exercício disfuncional é ilegítimo, podendo ser ilícito ou não, inválido ou não. O exercício inadmissível é medido objetivamente e abrange situações em que nada há de negativo na vontade do agente e pode ter como consequência o dever de indenizar, sendo necessária a ilicitude. “Sendo assim, o abuso pode não se repercutir na constituição de responsabilidade civil. Se o ato abusivo for também ilícito, dá-se uma aplicação cumulativa dos dois institutos.” (ASCENSÃO, 2010, p. 228).

A conclusão de Ascensão (2010, p. 230) é a de que o abuso de direito “é apenas uma capa, que cobre uma pluralidade de figuras muito distintas entre si.” E devido a essa característica, deve-se concretizar o princípio da boa-fé tendo como base uma pluralidade de princípios dele derivados, por exemplo, o principio da lesão ou da reação contra esta, que se ilustra a partir da desproporção entre vantagens e sacrifícios.

Assim, enuncia-se o princípio geral de que “o exercício do direito encontra o seu limite quando houver uma grande desproporção entre o benefício recebido e o prejuízo imposto a outrem.” (ASCENSÃO, 2010, p. 234).

Por fim, o não exercício é caracterizado como uma forma de abuso, uma vez que, em certos casos, “a passividade pode levar a perda do direito.” (ASCENSÃO, 2010, p. 242) surgindo como violação da função social.

Por tudo quanto exposto acerca do exercício disfuncional, pode-se dizer que quando o franqueador deixa de exercer seu direito de crédito está praticando conduta abusiva, não ilícita, mas passível de repreensão, uma vez que não há observância dos limites impostos pelo fim social ou econômico, pelos bons costumes e a boa-fé.

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7 MECANISMO DE LIBERAÇÃO DO DEVEDOR QUANDO DO NÃO EXERCÍCIO DE CRÉDITO POR PARTE CREDOR: PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA

Antes da determinação de qual desses institutos podem ser tidos como instrumento de proteção do devedor em face da mora do credor, é necessário estabelecer em qual classificação dos direitos o contrato de franquia se insere. A partir daí ter-se-á um critério científico para delimitar o que seria abarcado pela prescrição ou pela decadência.

Dessa forma, faz-se necessário a adoção da moderna classificação entre direitos e direitos potestativos, proposta por Chiovenda (1961). Partindo dessa classificação, pode-se dizer que direitos são aqueles que têm por finalidade um bem da vida, atingidos por meio de uma prestação, seja ela negativa ou positiva, como é o caso dos direitos reais e pessoais. Direitos potestativos são entendidos como um poder que a lei confere a determinadas pessoas de influírem sobre as situações jurídicas de outros sujeitos. Essa influência se dá mediante simples declaração da vontade, mesmo que contra a vontade da pessoa sobre a qual recai o exercício do direito potestativo é o que Chiovenda (1961) chama de sujeição.

Os direitos potestativos podem ser exercidos de três formas distintas: a primeira delas é pela simples declaração de vontade de seu titular; a segunda se dá quando o direito potestativo pode ser exercido mediante simples declaração da vontade de seu titular, sem apelo ao judiciário, desde que quem sofre a sujeição concorde com a forma de exercício do direito; por fim, a terceira forma de exercício é mediante ação judicial de caráter obrigatório.

A partir dessa moderna divisão entre direitos e direitos potestativos, fez-se necessário uma nova classificação das ações a qual também foi proposta por Chiovenda (1961), que segundo esse autor, as ações podem ser divididas em condenatórias, constitutivas e declaratórias. As ações condenatórias são aquelas em que se pretende obter do réu determinada prestação. Já as ações de cunho constitutivo são aquelas em que se objetiva a criação de um estado jurídico, ou a modificação, ou a extinção de um estado jurídico preexistente, sem que haja lesão a um direito. Por fim, as ações declaratórias têm por objetivo conseguir uma certeza jurídica.

Postas essas considerações, Agnelo Amorim Filho (1961) passou a efetivamente estabelecer os fundamentos da prescrição e da decadência.

No que diz respeito à prescrição, pode-se dizer que seu termo inicial é o nascimento da ação (actio nata), a qual, por sua vez, nasce pela violação de um direito. A actio nata caracteriza-se por dois elementos: existência de um direito atual, passível de ser reclamado em juízo, e sua violação. Entende-se ação como pretensão.

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Conforme exposto pelo autor, não é correto dizer que o prazo prescricional começa fluir do nascimento da ação processual, oriunda da lesão a um direito. Isso porque da violação do direito não se origina a ação de forma direta. O início do prazo prescricional se dá com o nascimento da pretensão, assim, pode-se dizer que a primeira coisa atingida pela prescrição é a pretensão e não a ação. É por isso que há casos em que a prescrição se opera com relação à pretensão, sem que haja sequer o nascimento da ação.

A partir dessas considerações acerca da prescrição, o autor chega à conclusão de que somente os direitos a uma prestação conduzem à prescrição, uma vez que somente esses direitos são passíveis de lesão ou de violação, somente os quais dão origem a pretensões. Já os direitos potestativos são, por definição, direitos sem pretensão, ou sem prestação, não podendo, jamais, darem ensejo ao prazo prescricional.

Com relação aos fundamentos da decadência, Amorim Filho (1961) indica que o efeito imediato desse instituto é a extinção do direito, ou seja, extingue a possibilidade de exercício do direito. O exercício dos direitos pode ser regido por dois princípios: o da disponibilidade, segundo o qual o direito é exercido de forma facultativa; e o da inesgotabilidade, segundo o qual os direitos não se esgotam pelo uso – seria o caso das ações constitutivas sem prazo especial estabelecido em lei.

A possibilidade de exercício dos direitos potestativos, em algumas situações, pode gerar uma intranquilidade para os terceiros que sofrerão a sujeição e, não só para esses, como também para toda a coletividade. Daí vem a necessidade de estabelecer um prazo para o exercício de alguns dos direitos potestativos (aqueles que são disponíveis, ou seja, de exercício facultativo), cuja falta de exercício perturba a paz social. Certos direitos potestativos são subordinados a prazo e se exercitam por meio de ação. Esses prazos são estipulados pela lei e o decurso desse sem o exercício do direito implica sua extinção.

A partir daí, Amorim Filho (1961) indica que somente os direitos potestativos podem estar subordinados à decadência, uma vez que o objetivo dessa é a extinção dos direitos não exercitados no prazo fixado em lei.

os únicos direitos para os quais podem ser fixados prazos de decadência são os direitos potestativos e, assim, as únicas ações ligadas ao instituto da decadência são as ações constitutivas que tem prazo especial de exercício fixado em lei” (AMORIM FILHO, 1961, p. 26).

A título de conclusão, Amorim Filho (1961) apresenta o critério científico para diferenciação entre prescrição, decadência e ações imprescritíveis: adoção da moderna classificação das ações e a diferença entre direitos e direitos potestativos. Assim, estão sujeitas à prescrição todas as ações condenatória, e somente elas; estão sujeitas à decadência as ações constitutivas, as quais têm prazo especial fixado em lei, ou pela vontade das partes,

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já que existe a possibilidade de convencionarem a seu respeito; por fim, são perpétuas as ações constitutivas sem prazo especial fixado em lei e todas as ações declaratórias.

A partir daí, diz-se que não há ações condenatórias perpétuas, nem sujeitas à decadência; não há ações constitutivas sujeitas à prescrição; e não há ações declaratórias sujeitas à prescrição ou decadência.

Contextualizando as considerações de Agnelo Amorim Filho (1961) acerca dos institutos da prescrição, da decadência e das ações imprescritíveis, pode-se dizer que com relação ao contrato de franquia os direitos de crédito são direitos potestativos. Isso porque são entendidos como um poder que a lei confere a determinadas pessoas de influírem sobre as situações jurídicas de outros sujeitos. No caso, o poder que o franqueador tem de influir na situação jurídica do franqueado.

O direito de crédito nas obrigações de fazer e não fazer nos contratos de franquia pode ser exercido pelo franqueador mediante simples declaração de vontade, mesmo que contra a vontade do franqueado sobre qual recai tal direito. Tal exercício também pode se dar por uma ação judicial de caráter obrigatório. No caso, a ação será constitutiva, já que se trata de direito potestativo.

Por se tratar de um direito potestativo, por definição, direito sem pretensão, ou sem prestação, jamais haverá possibilidade dos direitos de créditos das obrigações de fazer e não fazer advindas do contrato de franquias darem ensejo a prazo prescricional.

Existe a possibilidade de o exercício dos direitos potestativos relativos ao contrato de franquia gerar certa intranquilidade para o devedor que sofrerá a sujeição, e não apenas para ele, como também para toda a coletividade. Daí vem a necessidade de estabelecer um prazo para o exercício do direito de crédito, cuja falta de exercício, pelo credor, perturba a paz social.

Nesse sentido, como o exercício dos direitos relativos ao contrato de franquia podem ser regidos por dois princípios: o da disponibilidade e o da inesgotabilidade, o prazo decadencial pode ser convencionado entre as partes.

Portanto, o instituto da decadência mostra-se como instrumento hábil para a liberação do devedor nas obrigações de fazer e não fazer relativa aos contratos de franquia. O procedimento a ser aplicado é simples: por meio de uma notificação extrajudicial, o devedor estabelecerá um prazo para que o credor se manifeste acerca de seu interesse no exercício do respectivo crédito sob pena de decair do direito. Caso o credor insista em manter-se silente, o devedor estará liberado de sua obrigação.

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CONCLUSÕES

O contrato de franchising, mesmo não sendo previsto pelo Código Civil de 2002, deve obedecer aos imperativos do princípio da boa-fé objetiva, que rege o Direito dos Contratos em geral. Isso porque esse, por sua natureza, se enquadra plenamente nos conceitos de situação e relação jurídica, características de todos os contratos.

Esse contrato é tido como Relação Jurídica Bilateral por estabelecer-se entre pessoas que têm afinidade, qual seja o interesse na obtenção de lucro com redução de riscos e de investimentos. Dessa forma, apresenta-se como Relação Jurídica Complexa em que seus sujeitos ocupam mais que uma posição dentro da relação, não havendo autonomia das posições de dever e de poder ocupadas pelas partes dentro do contrato, mostrando seu caráter de Relação Complexa Composta.

Com relação ao exercício disfuncional dentro dessa categoria de contrato, é possível afirmar que se trata de uma forma de abuso, mesmo não sendo um ato ilícito, uma vez que a passividade do credor pode levar a perda do direito devido à violação da função social. O deixar de exercer o direito de crédito mostra-se como uma conduta passível de repreensão por violar o sistema de cláusulas gerais dos negócios jurídicos. Nesse sentido, o instrumento de liberação do devedor e consequente repreensão do credor é o instituto da decadência. Isso se dá em virtude de os direitos de crédito no contrato franquia serem de natureza potestativa.

Como o direito de crédito nas obrigações de fazer e não fazer nos contratos de franquia pode ser exercido pelo franqueador mediante simples declaração de vontade, sua inação gera certa intranquilidade para o devedor que sofrerá a sujeição. Como também afeta a segurança jurídica das relações negociais, vem a necessidade de estabelecer um prazo para o exercício do direito de crédito pelo credor. Tal prazo pode, inclusive, ser convencionado.

O instituto da decadência mostra-se como instrumento hábil para a liberação do devedor nas obrigações de fazer e não fazer relativa aos contratos de franquia, tendo em vista que há possibilidade das partes convencionarem a seu respeito. Dessa forma, bastaria a elaboração de notificação extrajudicial, estabelecendo prazo para que o credor se manifeste acerca do interesse no exercício do respectivo crédito, sob pena de decair do direito. Entretanto, se mesmo assim, o credor insistir em permanecer inerte, o devedor estará liberado de sua obrigação.

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RESUMO

O objetivo do presente trabalho é identificar de que maneira as premissas defendidas pelos autores do nacional desenvolvimentismo, em especial Celso Furtado, podem ser aplicadas às cooperativas no cenário econômico brasileiro atual. A partir do estudo das obras nacional desenvolvimentistas, bem como de diversas obras que tratam da gestão cooperada de trabalho, foi possível depreender que o ideal de economia autossustentável defendido pelos referidos autores não encontra aplicabilidade imediata junto às cooperativas. Muito embora os princípios aplicados a essa gestão de trabalho incluam o princípio da intercooperação, nenhuma das cooperativas consegue manter sua infraestrutura e desenvolver suas atividades contando exclusivamente com seu próprio capital de giro. Nesse sentido, o governo federal, por meio de parcerias realizadas com instituições públicas, fornece subsídios para o desenvolvimento do trabalho cooperado. Ainda que despontem grandes cooperativas de produção no mercado, isso somente é possível em razão da disponibilização, por parte do governo, de linhas de crédito e financiamentos. De qualquer modo, em relação à gestão de trabalho assalariado, pode-se afirmar que o trabalho cooperado vem sendo desenvolvido timidamente, não podendo ser unicamente considerado como alternativa viável e consistente para promover o desenvolvimento econômico brasileiro.

Palavras-chave: Nacional desenvolvimentismo. Cooperativas. Economia solidária.

O NACIONAL DESENVOLVIMENTISMO BRASILEIRO: CONTRIBUIÇÕES PARA UMA POSSIBILIDADE DE ORGANIZAÇÃO COLETIVA DO TRABALHO

Heloise Moreira*Paulo Ricardo Opuszka**

* Aluna do 5º ano de Direito da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica da Fundação Araucária. E-mail: [email protected].

** Doutor em Direito (UFPR). Professor do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Organizações e Desenvolvimento da FAE Centro Universitário. Professor de Economia no curso de Direito da Universidade Positivo. Pesquisador do CNPq. Advogado Trabalhista. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

A partir da análise aprofundada das ideias defendidas por Celso Furtado, acredita-se que seja possível realizar projeções sobre as possibilidades de aplicação da gestão cooperada de trabalho nas regiões em que há maiores índices de pobreza no cenário nacional. Para tanto, o presente estudo tem o objetivo geral de analisar a potencialidade da atividade cooperada a partir da contribuição da análise da economia brasileira, em especial pelas obras de Celso Furtado, distinguindo suas principais características e especificidades em relação aos demais sistemas de gestão de trabalho.

A operacionalização dos objetivos específicos pretende averiguar se o sistema de trabalho cooperado pode funcionar como saída viável e inovadora para o desenvolvimento econômico nacional ante as análises já realizadas do caso brasileiro. Por meio de pesquisas realizadas em obras nacional desenvolvimentistas, bem como com o levantamento dos aspectos históricos do trabalho cooperado, foi possível desenvolver o presente estudo, visando atingir os objetivos delineados.

O cooperativismo teve sua origem na Inglaterra, por volta do ano de 1844. Durante o regime de economia liberal, surgiu a necessidade de o homem unir-se para solucionar problemas. Ainda que a ideia de ajuda mútua seja antiga, foi apenas a partir do século XVIII que começaram a ser repensadas e formalizadas estruturas que viabilizariam a realização desse ideal. O trabalho cooperado iniciou-se originariamente com um grupo de tecelões que tinha por objetivo principal a aquisição de bens de primeira necessidade. Posteriormente, expandiram seus objetivos à construção de casas para os associados, fabricação de alguns bens e arrendamento de terras, com a finalidade de minorar os efeitos da Revolução Industrial.

Segundo Polonio (1999, p. 23)

no Brasil as cooperativas deram início em 06 (seis) de janeiro de 1903 pelo Decreto nº 979 que regula a classe dos sindicatos e cooperativas rurais e de consumo, antes em 1890, existiam movimentos formados pelos militares, mas não vigoraram, posteriormente em 05 de janeiro de 1907 pelo Decreto nº 1.637, este então instituíram formas de constituição as cooperativas, vinte anos mais tarde em 1932 com o Decreto n º 22.239 formou-se o marco do cooperativismo no Brasil, dando formalização legal as cooperativas, o qual era denominado “o estatuto do cooperativismo”. No ano seguinte este Decreto foi substituído pelo Decreto nº 23.611.

Em 1964, destacam-se três legislações que regulam a atividade cooperada: a) Lei nº 4.380, que aborda sobre as Cooperativas Habitacionais; b) Lei nº 4.504, que aborda a Cooperativa Integral de Reforma Agrária; e c) Lei nº 4.595, que aborda a Cooperativa de Créditos.

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Já em 1966, apropriou-se o regime jurídico das cooperativas, e, finalmente em 16 de Dezembro 1971, foi promulgado o Estatuto Geral do Cooperativismo a partir da Lei nº 5.764, vigente até hoje. Essa lei define a Política Nacional do Cooperativismo e institui o regime jurídico das Cooperativas. Logo, a Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso XVIII, o qual recepcionou a legislação das cooperativas, autoriza aos cidadãos brasileiros a iniciativa de constituição de associação (Cooperativas), sem intervenção Estatal.

Nos primeiros anos, estudar as Cooperativas Populares parecia ser um belo sinal de resistência, visto que, no início dos anos 2000, o Movimento Sindical apresentou sérios sinais de esgotamento, no que tange ao modo de organização do operariado. Atualmente, o Movimento Sindical, especialmente a partir do governo Lula, transformou-se em um verdadeiro espaço de chancelamento (funcionando quase como um Cartório) de rescisão de contratos de trabalho ou mediadores de Negociações Coletivas para designação de correção salarial a partir da inflação Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Pouco se teve de aumento real nos salários da classe trabalhadora via Negociação Coletiva do Trabalho, ou pouco se ouviu falar em lutas do Movimento Sindical nas questões relevantes do País.

Infelizmente, pouquíssimas são as experiências exitosas de lutas no espaço de mobilização sindical. Parece que o sistema está superado. Por outro lado, os empreendimentos populares, desde 2003, são objetos de políticas públicas do governo federal, especialmente Cooperativas e Associações Populares a partir de diversas ações de diferentes Ministérios (Justiça, Turismo, Desenvolvimento Social, Pesca, Desenvolvimento Agrário, do Trabalho).

Entretanto, não se define ao certo o alcance das referidas políticas, porque se dividem em políticas de governo ou sociais e políticas públicas, nos casos que tais ações se converteram em leis – nova Lei da Pesca, de junho de 2009; leis que fundam o Programa Fome Zero; inclusão de 30% de alimentos orgânicos na merenda escolar (programa de segurança alimentar); entre outros projetos e programas de transferência de renda.

1 FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL: INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA DO CENÁRIO ECONÔMICO BRASILEIRO QUE RESISTE À PASSAGEM DO TEMPO

A obra Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado (2003), divide-se em cinco partes e 36 capítulos. Para a elaboração e o desenvolvimento da obra, o economista utiliza--se de linhas de argumentação sobre o desenvolvimento da economia brasileira. Verifica-se inicialmente que o autor contrasta a economia subdesenvolvida do cenário nacional com o desenvolvimento norte-americano.

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Numa análise econômica em ampla visão, é possível identificar os elementos que podem ser compreendidos como obstáculos à expansão de renda, formação do mercado interno e diversificação da estrutura produtiva ao longo dos diversos períodos da economia nacional.

O autor discute, já nos primeiros capítulos da obra, a questão da colonização da América, inferindo dados sobre a ocupação territorial, a economia escravista açucareira, e indica como fatores particularmente favoráveis a esse desenvolvimento agrícola a indústria portuguesa de equipamento de engenho, que já tinha a experiência da colonização das ilhas do Atlântico. Aponta, também, como fator favorável à exploração açucareira no Brasil, a contribuição dada pelos holandeses, que eram os únicos que dispunham de estrutura para uma organização comercial de um mercado de grandes dimensões para um produto que ainda era considerado novo. Importante ressaltar que essa contribuição não se deu somente na experiência comercial, mas também com ajuda financeira, uma vez que a Holanda, além de financiar as instalações produtivas no Brasil, também financiou a refinação e comercialização do açúcar no mundo.

A questão da mão de obra também foi de salutar reflexo para o desenvolvimento da economia brasileira. A oferta de retribuir com terras o trabalho realizado não foi muito atrativa na Europa, uma vez que as terras brasileiras não possuíam ainda valia econômica. O que veio a facilitar a situação foi que, à época, Portugal já detinha um completo conhecimento do mercado de escravos africanos e, mediante a expansão desse mercado, seria possível ampliar o negócio e organizar a transferência para a nova colônia. Portanto, a mão de obra barata também é indicada como fator que viabilizou a exploração econômica do Brasil.

Ainda em relação à economia açucareira, um dos pontos de destaque dado pelo autor, é de que reunia algumas das condições necessárias à geração de um desenvolvimento econômico dinâmico. Isso porque se tratava de ampla disponibilidade de terras com elevada rentabilidade exportadora. A renda, no entanto, permanecia concentrada nas mãos dos senhores de engenho e, além disso, era revertida em quase sua totalidade para o exterior por intermédio de importações ou pela mera retenção de parte da renda fora do País em razão do controle da produção interna feito por empresários não residentes no Brasil. A renda interna era, portanto, praticamente nula.

Em razão dessa concentração de renda, não haveria possibilidade de um desenvolvimento econômico com base no impulso externo. Apesar do rápido crescimento demográfico, não haveria como balancear o consumo e a produção, motivo pelo qual o dinamismo desse desenvolvimento econômico restou prejudicado.

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Celso Furtado (2003) defende, ainda, que a economia escravista reagia às crises de forma diferente das economias capitalistas de trabalho assalariado. Isso porque, diante de uma redução da demanda externa, não era vantajoso ao empresário reduzir a produção, já que seus custos consistiam quase que unicamente em gastos fixos. A redução da capacidade produtiva se dava de maneira extremamente morosa, em razão de que, com a queda dos preços das exportações, o empresário ficava impedido de enfrentar os gastos de reposição da forma de trabalho e de equipamentos importados. A unidade exportadora, portanto, tinha condições de sustentar sua estrutura mesmo com uma crise de grandes proporções, como a que ocorreu em razão da concorrência das Antilhas.

A explicação sobre a preservação da estrutura do setor açucareiro é um dos elementos empregados pelo autor para explicar o que chama de “complexo econômico nordestino”, composto pela economia açucareira e seu reflexo, a pecuária. A atividade pecuarista se desenvolveu a fim de atender a demanda de carne e de transporte para o setor açucareiro, tendo se deslocado da área de plantação de cana-de-açúcar para o interior. Mesmo sendo uma atividade considerada dependente da exploração açucareira, a pecuária era, de certa forma, uma atividade completamente diferida. Predominava a criação de subsistência, o que também colaborou para o desenvolvimento nordestino, principalmente o interiorano.

Ainda sobre a economia açucareira, Furtado pontua que a retração da atividade e o crescimento demográfico aumentavam a importância da atividade de menor produção no complexo econômico nordestino. Ao contrário do caso das plantações de cana-de-açúcar, a reposição e ampliação do capital se davam pela incorporação de novas terras e de mão de obra livre, o que gerou um lento atrofiamento na economia nordestina, com declínio da renda per capita. Para o economista, as duas formas de economia que se desenvolveram no Brasil nessa época, quais sejam: a exploração açucareira e a pecuária, as quais foram fatores de essencial importância para o subdesenvolvimento brasileiro.

Na referida obra, toda a análise da economia nordestina é feita em simultânea comparação com a norte-americana. A atividade econômica que predominava na América do Norte até o século XVII era compatível com a pequena propriedade de base familiar e desvinculada da geração de capital para envio ao exterior. Desse modo, verificou-se o primeiro momento de distinção entre as duas economias a partir da sua colonização e atividades iniciais. Segundo o autor, as diferenças existentes foram provenientes dos grupos sociais dominantes nos dois tipos de colônia, ou seja, a colonização norte-americana (enquanto colônia setentrional) se deu de maneira autônoma em relação à metrópole, essencialmente o oposto ao que ocorreu com o Brasil. Nesse sentido ainda, a colonização norte-americana contou com um conjunto de fatores, como exemplo: estímulo à expansão da produção doméstica, corrente de capitais vindos da Inglaterra, base técnica e empresarial e classe de dirigentes dinâmica.

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Após a análise da atividade açucareira, tem início a análise do ciclo cafeeiro na economia nacional. Diferentemente do primeiro ciclo abordado na obra, preexistia uma atividade pecuarista rudimentar à atividade mineradora, espalhada pela região centro-sul. A população nessas áreas era considerada escassa, e com o advento da exploração de minérios destacam-se dois importantes fatores: primeiro, buscava-se decuplicar a população de origem europeia na colônia; e, segundo, as características da atividade mineradora seriam de difícil manutenção, uma vez que se constituíam mecanismos de irradiação dos benefícios econômicos da mineração pela elevação dos preços dos alimentos e dos animais de transportes das regiões vizinhas.

A parcela de população livre e reunida em centros urbanos na região mineira era muito maior que a nordestina durante o ciclo do açúcar, embora a renda média ainda fosse inferior. Afirma Furtado (2003) que a principal causa disso seria a incapacidade técnica dos imigrantes para iniciar atividades manufatureiras em escala apreciável. A economia baseada na mineração desfez-se em poucas décadas, com a dispersão de seus elementos em uma economia de subsistência, tendo se espalhado os grupos dos centros urbanos. Essa população dispersa viria a constituir um dos principais núcleos demográficos do País.

Da mesma forma que analisou as economias açucareira e mineira, o autor também realizou a análise da estrutura econômica da economia cafeeira, de modo a indicar como fatores de importância para o desenvolvimento desse ciclo econômico: a) as características demográficas (por meio da distribuição da população); e b) o fluxo de renda gerado a partir do setor.

O problema da mão de obra resolveu-se com a imigração europeia, dirigida especialmente para as lavouras de café. A partir da vinda dos imigrantes, foram duas situações enumeradas no corpo da obra que mereceram destaque: a vinda de estrangeiros para trabalhar nas lavouras, que poderia ser um indicativo da escassez de mão de obra nacional; e também se questionou o que teria acontecido com a mão de obra escrava tornada livre com a extinção do trabalho servil.

Sobre as duas situações apontadas, discorreu Furtado (2003) que, em relação à primeira, a população estava tão dispersa em razão do atrofiamento da economia mineira que o recrutamento da mão de obra exigiria grande mobilização de recursos, além de ser necessário contar com o apoio dos grandes latifundiários. Por isso, na metade do século XIX coexistia no País uma grande reserva de potencial mão de obra na economia de subsistência e escassez de braços na lavoura de café. Em relação à segunda situação descrita, sobre a abolição da escravidão, teria resultado em ampliação da economia de subsistência e, por outro lado, acirramento da escassez de executores para o trabalho. Isso porque, em razão da abundância de terras, os ex-escravos se deslocavam para as áreas de terras mais férteis. Parte dessa população que foi para as lavouras de café conseguiu aumentar sua renda, o que gerou, simultaneamente, queda na produtividade, porque teria induzido aos ex-escravos a reduzir suas horas de trabalho.

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Ao irromper a crise de 1929, o setor cafeeiro estava debilitado por uma crise de superprodução, que acarretou drástica queda no preço do produto. O nível de produção e a renda do setor, no entanto, não foram profundamente afetados. Primeiramente, em razão da desvalorização cambial, e também porque se iniciou uma política de retenção e destruição de parte da produção. Com isso, foi possível preservar os empregos não somente no setor exportador, mas inclusive daqueles setores produtivos ligados ao mercado interno. Para o autor, a destruição de parte da produção de café funcionou como um “programa de fomento nacional”.

Em seguida, Celso Furtado dá sequência analisando o processo de crescimento que ocorreu no período de transição da economia cafeeira para a economia industrial. Nessa parte é possível verificar que a abordagem torna-se mais propriamente estruturalista.

O processo de industrialização na economia brasileira é visto como problemático, porque ocorreu com grande rapidez sobre uma estrutura considerada atrasada. Dada a abundância da mão de obra e das terras subutilizadas, o fluxo de renda criado pelo setor exportador passava a disseminar-se para o restante da economia, gerando a necessidade de produção e comercialização local de uma série de bens de consumo e melhor uso dos fatores de produção disponíveis. Com isso, verifica-se o desenvolvimento do chamado mercado interno, com aumento da produtividade não ligado à transferência de trabalhadores do setor de subsistência para o setor exportador e também com a absorção da economia de subsistência nas novas atividades ligadas ao mercado exportador.

No entanto, a elevação da produtividade não refletia numa elevação de salários reais, mas numa elevação da renda média, porque crescia a população ocupada nos setores monetários de exportação e mercado interno. Afirma o economista que “a massa de salários monetários – base do mercado interno – aumentava mais rapidamente que o produto global” (FURTADO, 2003, p. 153). A partir disso, o autor posiciona-se no sentido de que se os salários absorvessem parte da elevação da rentabilidade auferida no auge do ciclo, haveria maior capacidade de defesa contra a queda de preços e a deterioração dos termos de intercâmbio na fase de baixa. Por esse motivo, caracteriza-se o mecanismo de ajuste à contração cíclica típica das economias dependentes, ou seja, seria de se esperar que a concentração de renda produzida na fase alta cíclica se reduzisse na fase baixa. Porém, ão foi o que não aconteceu, porque os empresários conseguiram transferir a pressão para os demais setores da economia pelo mecanismo de depreciação cambial. A depreciação cambial consistia num mecanismo de socialização de perdas resultante da contração cíclica das exportações. Utilizando-se desse mecanismo, além de manter a renda concentrada, foi possível que a economia resistisse à crise como um todo.

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Nesse momento, há o chamado “deslocamento do centro dinâmico” da agricultura de exportação para as atividades do mercado interno. Um mecanismo que teria funcionado como estímulo seria a política do câmbio fixo, instaurada em 1947, resultante de uma decisão tomada após a forte evasão de divisas ocorrida após a Segunda Guerra. Desse modo, protegia-se a indústria de bens de consumo nacional e nascia a possibilidade de ampliação da importação de bens de capital e matéria-prima industrial, em razão da inflação interna. Por esse motivo, a elevação da produtividade associada à melhoria nos termos de troca estaria sendo capitalizada no setor industrial. Nessa época, a renda nacional aumentou cerca de 50%, mas a capacidade de importar seria a mesma que em 1929. Com isso, esperava-se que houvesse desequilíbrio no balanço de pagamento e pressões inflacionárias.

O problema da inflação decorrente do duplo quadro de rigidez de oferta, tanto externa quanto interna, ainda seria agravado pelo fato de que a elevação dos preços das exportações necessitaria desviar recursos da agricultura de mercado interno para o externo. Com isso, haveria redução da oferta de alimentos, justamente quando a renda da população estava aumentando.

O autor ainda aponta as disparidades regionais verificadas com o processo de industrialização, que desenvolveu principalmente a região Sudeste de forma tal que afirma que crescimento intenso de uma região é necessariamente a contrapartida da estagnação de outras.

Como é possível perceber, a obra de Celso Furtado, ainda que editorada há mais de 50 anos, mantém uma atualidade inquestionável. Toda a análise histórica realizada pelo autor para esclarecer ao leitor a atual situação econômica brasileira, também permitiu que fossem feitas projeções sobre o desenvolvimento econômico brasileiro nas próximas décadas.

O processo de integração econômica dos próximos decênios, se por um lado exigirá a ruptura de formas arcaicas de aproveitamento de recursos em certas regiões, por outro requererá uma visão de conjunto do aproveitamento de recursos e fatores no país. [...] Demais, as inversões de capital na infra-estrutura poderão ser melhor aproveitadas, em razão da menor dispersão de recursos. É de supor que, caso progrida essa integração, a taxa média de crescimento da economia tenderá a elevar-se.[...] Sendo assim, o Brasil por essa época ainda figurará como uma das grandes áreas da terra em que maior é a disparidade entre o grau de desenvolvimento e a constelação de recursos potenciais. (FURTADO, 2003, p. 242)

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Ao final da obra, o economista indica as características ideais para o desenvolvimento de uma política econômica satisfatória para o cenário nacional, afirmando que:

A solução desse problema constituirá, muito provavelmente, uma das preocupações centrais da política econômica no correr dos próximos anos. Essa solução exigirá uma nova forma de integração da economia nacional, distinta da simples articulação que se processou na primeira metade do século. A articulação significou, simplesmente, desviar para os mercados da região cafeeira-industrial produtos que antes se colocavam no exterior. Um processo de integração teria de orientar-se no sentido do aproveitamento mais racional de recursos e fatores no conjunto da economia nacional. A medida que se chegar a captar a essência desse problema, se irão eliminando certas suspeitas como essa de que o rápido desenvolvimento de uma região tem como contrapartida necessária o entorpecimento do desenvolvimento de outras (FURTADO, 2003, p. 242).

Em razão da própria viabilidade do processo de integração futuro, no sentido de aproveitar recursos e fatores no conjunto da economia nacional, é que se busca descobrir se o trabalho cooperado pode ser considerado como alternativa viável ao desenvolvimento econômico brasileiro.

2 DESENVOLVIMENTO E SUBDESENVOLVIMENTO: INFLUÊNCIA NO DEBATE SOBRE A QUESTÃO REGIONAL BRASILEIRA

A questão do subdesenvolvimento brasileiro é incitada pelo autor Celso Furtado na obra Formação Econômica do Brasil (2003) em diversos momentos. A partir da comparação feita com o caso da Antilhas e das colônias norte-americanas, e também em relação às implicações da especialização produtiva para o dinamismo econômico, o economista defende aquilo que chama de A teoria do subdesenvolvimento.

Num primeiro momento, consistiu em confrontar o processo de industrialização de países desenvolvidos com os países considerados subdesenvolvidos. Com esse levantamento histórico realizado, o autor indica que o processo de acumulação, pela elevação do setor de bens de capital (fértil para adoção de inovações de capital, a partir da qual haveria barateamento dos bens de capital e aplicação desses em diversos setores da economia), poderia se tornar autossustentado e o progresso técnico seria a principal força que impeliria a acumulação. Em relação ao subdesenvolvimento, são apontados como problemas específicos a dualidade tecnológica, ou seja, a coexistência de setores modernos e subsistência, e a escassa diversificação do aparelho produtivo.

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Seriam, portanto, esses os três determinantes históricos para que se estabelecesse a condição de subdesenvolvimento brasileira: a) o atraso relativo do Brasil nas correntes em expansão do comércio mundial; b) as suas profundas “dissimilitudes” em relação aos países adiantados que compreendem a dualidade tecnológica; e c) a pequena diversificação do aparelho produtivo.

Com o aumento e diversificação da oferta de bens de capital, a expansão do setor iria, gradativamente, permitir que o empregado alcançasse um nível próximo ao pleno emprego. A partir desse momento, a pressão da classe trabalhadora por melhores salários, condições de emprego e redução das horas de trabalho modificaria a dinâmica da distribuição de renda nos países desenvolvidos, fazendo com que os frutos dos avanços tecnológicos fossem redistribuídos na sociedade. Seria essa a condição ideal de um país considerado como desenvolvido.

Nos países subdesenvolvidos, o motor do crescimento era o setor exportador de bens primários, cuja atividade era totalmente desvinculada dos demais setores da economia. Acredita-se, a partir de afirmações do economista, que a falta de ligação direta com o setor de subsistência fez com que a produtividade aumentasse no setor exportador sem que houvesse significativos avanços tecnológicos e grandes investimentos em capital. É esse o caso brasileiro, no qual a economia não atingiu esse ideal autossustentável, indicado pelo autor como possível na economia nacional.

Apesar da economia cafeeira e seu elevado nível de emprego, em razão das dimensões geográficas do território nacional, o desenvolvimento econômico não foi pleno e simultâneo em todas as regiões, resultando em desigual distribuição de renda para a população. Os fluxos migratórios inter-regionais atuaram como equalizadores do custo da mão de obra, uma vez que a oferta era limitada, o que reforçou a rentabilidade das inversões capitalistas na região dinâmica.

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3 A ORGANIZAÇÃO COLETIVA DO TRABALHO: REALIDADES CONTRAPOSTAS E SIMULTÂNEAS NO CONTEXTO ECONÔMICO NACIONAL

O cooperativismo é um movimento social originário do final do século XVIII e início do século XIX, período no qual o conflito entre capital e trabalho atingiu o seu ápice. As péssimas condições de vida da classe trabalhadora fizeram com que homens, como Robert Owen (1771-1858), Charles Fourier (1772-1837), Benjamin Buchez (1796-1865), Louis Blanc (1812-1882), entre outros que compunham a corrente socialista utópica, viessem a propor um ideal alternativo ao individualismo (o cooperativismo) e uma organização alternativa à empresa capitalista (a cooperativa). A partir da iniciativa desses homens, a classe trabalhadora começou a se organizar e a reivindicar melhores condições de trabalho e de vida. A partir desse momento, surgiram as associações, os sindicatos, os partidos políticos da classe trabalhadora, e, em particular, as cooperativas.

Segundo Namorado (2005, p. 3-4),

[...] as cooperativas eram algo mais do que um dos pilares do movimento operário, já que, como sua própria designação sugere, sempre foram também uma expressão da cooperação entre os homens. Uma expressão organizada da cooperação que a tem como eixo. Ora, como sabemos, a cooperação é o verdadeiro tecido conjuntivo das sociedades humanas. Nos primórdios da civilização, foi mesmo uma das condições básicas para a sobrevivência da espécie. Por isso, as cooperativas estão longe de ser um fenômeno circunstancial historicamente datado e passageiro. Pelo contrário sendo organizações movidas pelo impulso da cooperação, radicam-se através dele no que há de mais essencial das sociedades humanas. [...] Propostas estas razões pela via cooperativa e dada a evolução do respectivo fenômeno, é legítimo que se pergunte se continua a ter sentido valorizar--se para a sua compreensão o código genético, na parte que o radica historicamente no movimento operário. Incluo-me para uma resposta afirmativa, uma vez que essa ligação ao movimento operário deixou marca no universo cooperativo, em termos verdadeiramente estruturantes. E deixou-o através dos princípios de Rochdale. [...] como podemos facilmente verificar comparando a sua versão atual, datada de 1995, com a versão original de Rochdale, que remonta 1844, há uma identidade profunda e evidente entre ambas. Refletem uma mesma visão do cooperativismo. Ora, na primeira versão dos princípios cooperativos está bem presente o enraizamento da cooperatividade no movimento operário, o qual, por essa via, continua a ser uma raiz viva da atualidade cooperativa. Por isso, esquecer essa marca genética pode significar a subalternização da lógica mais profunda da cooperatividade.

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Embora sejam encontradas experiências cooperativas e associativas em períodos bastante remotos, elas não passam de manifestações de sociabilidade característica do homem enquanto ser social. Não é possível considerá-las partes do movimento cooperativista, que é genuinamente moderno.

O cooperativismo enquanto doutrina, teoria, sistema ou movimento associativista de trabalhadores é um fenômeno moderno oriundo da oposição operária às consequências do liberalismo econômico praticado na Inglaterra e na França dos séculos XVIII e XIX. Embora etimologicamente cooperação, cooperativa e cooperativismo derivem do verbo cooperar, de origem latina cooperari (cum e operari), que significa trabalhar com alguém, a aplicabilidade de tais vocábulos se dá de maneira diversa na prática. Enquanto a cooperação significa ação conjunta com vista ao mesmo objetivo, o cooperativismo, por sua vez, significa sistema, doutrina ou ideologia, e, finalmente, a cooperativa seria uma entidade ou instituição onde as pessoas cooperam objetivando o mesmo fim.

Defende Pinho (1996, p. 8) que:

Cooperativismo no sentido de doutrina que tem por objeto a correção do social pelo econômico através de associações de fim predominantemente econômico, ou seja, as cooperativas; cooperativas no sentido de sociedades de pessoas organizadas em bases democráticas, que visam não só a suprir seus membros de bens e serviços como também a realizar determinados programas educativos e sociais. Trata-se, insistimos, de sociedade de pessoas e não de capital, sem interesse lucrativo e com fins econômico-sociais.

Seu funcionamento se inspira nos chamados “Princípios dos Pioneiros de Rochdale”: adesão livre, gestão democrática, juros módicos ao capital, retorno proporcional às operações, transações a dinheiro, neutralidade política, religiosa e ética e desenvolvimento do ensino.

As primeiras experiências de cooperativas de que se tem notícia são: dos trabalhadores dos estaleiros Woolwinch e Chatham, na Inglaterra (1760); de consumo dos tecelões de Fenwich, na Escócia (1769); e de consumo inglesa, a Oldhan Co-operative Supply Company (1795). Depois desse período, houve uma grande proliferação de cooperativas de consumo na Inglaterra. Entretanto, antes de 1844, todas as tentativas de se implantar cooperativas de consumo foram fracassadas, sobretudo em Brigton (1827), na Inglaterra, e em Guebwiller (1828) e Lyon (1835), na França.

Em 1844, por ocasião da constituição da primeira cooperativa formal em Rochdale, na Inglaterra, os 28 pioneiros estabeleceram alguns princípios que são observados até

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hoje. Em 1995, por ocasião do Congresso da Aliança Cooperativa Internacional (ACI), em Manchester, Inglaterra, a adoção dos Princípios dos Pioneiros de Rochdale como linhas orientadoras à prática dos valores cooperativos, de acordo com Benato (1994, p.37-59), levou ao estabelecimento dos seguintes princípios: adesão livre e voluntária, controle democrático pelos sócios, autonomia e independência, participação econômica dos sócios, preocupação com a comunidade, educação, treinamento, informação e cooperação entre cooperativas.

Segundo o autor (BENATO, 1994, p.37-40):

As cooperativas são organizações voluntárias, abertas a todas as pessoas aptas a usar seus serviços e dispostas a aceitar as responsabilidades de sócio, sem discriminação social, racial, política ou religiosa e de gênero.

[...]

As cooperativas são organizações democráticas controladas por seus sócios, os quais participam ativamente no estabelecimento de suas políticas e na tomada de decisões. Homens e mulheres, eleitos como representantes, são responsáveis para com os sócios.

Os princípios norteadores do cooperativismo envolveram a sociedade, de um modo geral, a partir do século XX, tendo início no Congresso Internacional realizado em 1966, em Viena, e revisto em Manchester, Inglaterra, em setembro de 1995. Esses princípios podem ser sinteticamente assim elencados: 1. Princípio da livre adesão; 2. Princípio da neutralidade política, social, racial, sexual e religiosa; 3. Princípio de um homem, um voto; 4. Princípio do retorno das sobras; 5. Princípio da limitação dos juros ao capital; 6. Princípio da educação cooperativista permanente; e 7. Princípio da cooperação intercooperativas.

Os benefícios da ajuda mútua foram estendidos a todos os povos. Isto é, por ser cooperado, a preocupação com a sociedade em termos de cultura, solidariedade, educação, participação, comprometimento e de responsabilidade passou a ser mais um dos objetivos do cooperativismo. Nesse sentido, as cooperativas trabalham para o bem-estar comunitário, por meio de programas socioculturais que podem ser realizados em parceria com o Estado ou outras entidades não cooperativistas.

Ainda segundo a visão de Benato (1994, p. 52):

A educação cooperativista dos sócios, dirigentes, administradores, funcionários e da comunidade em geral é um dos objetivos permanentes desse tipo de organização. Desde os Probos de Rochdalle, “a educação prepara o homem para a liberdade e para a cidadania”.

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Desse modo, o cooperado torna-se participativo, receptivo a novas tecnologias, a novos conceitos e a novas regras de mercado. Essas experiências tornam o ser humano mais comprometido com o sistema. Enfim, a educação molda o homem para a sociedade e para toda a sua vida. A Educação, treinamento e informação derivam do valor “justiça social” (IRION, 1994, p. 40).

Vale ainda ressaltar que a interação e a colaboração recíproca, no sentido de ajuda mútua, entre as empresas cooperativistas criam uma visão de conjunto. Ao interagir, as cooperativas integram-se, reduzem custos operacionais, estruturais, financeiros e, consequentemente, beneficiam diretamente os sócios e fortalecem o sistema.

No Brasil, a cultura do sistema cooperativista revela suas origens desde a época da colonização portuguesa. Esse processo de inserção do sistema cooperado de trabalho no cenário nacional emergiu no Movimento Cooperativista Brasileiro, surgido no final do século XIX, estimulado por funcionários públicos, militares, profissionais liberais e operários, para atender às suas necessidades.

O movimento cooperativista brasileiro teve início na área urbana, com a criação da primeira cooperativa de consumo de que se tem registro no Brasil, em Ouro Preto (MG), no ano de 1889, com a denominada Sociedade Cooperativa Econômica dos Funcionários Públicos de Ouro Preto. Além de se espalhar no próprio estado de Minas Gerais, o movimento cooperativista se expandiu para outros estados, como Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul.

Em 1902, surgiram cooperativas de crédito no Rio Grande do Sul, por iniciativa do padre suíço Theodor Amstadt. A partir de 1906, nasceram e se desenvolveram as cooperativas no meio rural, idealizadas por produtores agropecuários, muitos deles de origem alemã e italiana. Os imigrantes trouxeram de seus países de origem a bagagem cultural, o trabalho associativo e a experiência de atividades familiares comunitárias, que os motivaram a organizar-se em cooperativas.

Em 2 de dezembro de 1969, foi criada a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e, no ano seguinte, a organização foi registrada em cartório. Nascia formalmente a entidade representante e defensora dos interesses do cooperativismo nacional, instituída sob formato de sociedade civil e sem fins lucrativos, com neutralidade política e religiosa. Em 1995, o cooperativismo brasileiro ganhou o reconhecimento internacional. Roberto Rodrigues, ex-presidente da Organização das Cooperativas Brasileiras, foi eleito o primeiro não europeu para a presidência da Aliança Cooperativista Internacional (ACI). Esse fato contribuiu também para o desenvolvimento das cooperativas brasileiras.

Em relação ao trabalho assalariado, ao analisar o processo histórico, social e econômico que envolveu a introdução do trabalho imigrante no Brasil, tornou-se de fundamental importância estabelecer correlações com fatos e acontecimentos anteriores. A evolução da sociedade brasileira baseada na economia agrária cafeeira possibilitou a acumulação de capital e, consequentemente, o desenvolvimento da economia capitalista no Brasil.

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4 ANÁLISE E APLICABILIDADE DAS PREMISSAS DO NACIONAL DESENVOLVIMENTISMO BRASILEIRO E AS POSSIBILIDADES E LIMITES DA ORGANIZAÇÃO COLETIVA DO TRABALHO

Segundo Roberto Rodrigues1 (1999), Presidente da Aliança Cooperativa Internacional, o mercado global vive a chamada “segunda onda” do cooperativismo. Isso significa que o cooperativismo mundial está desenvolvendo um novo fluxo em que a globalização da economia e a liberalização de mercado são elementos marcantes. Embora mantendo os princípios e valores do ideal cooperativista, essa nova visão cooperativista permite a conscientização da necessidade de acompanhar as evoluções da economia mundial para que consigam atuar em igualdade de concorrência.

No entanto, no cenário brasileiro, verifica-se que o desenvolvimento da atividade cooperativista apenas é possível a partir das políticas públicas de incentivo. O trabalho cooperado, em especial o cooperativismo popular, encontra apoio em projetos desenvolvidos por universidades públicas. Como exemplo, cita-se a atuação feita pela UFPR (Universidade Federal do Paraná): por meio da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), a universidade desenvolve o assessoramento e apoio a diversas cooperativas. São exemplos: Cooperativa Mista dos Trabalhadores da Capital Paranaense (Coopercamp), Cooperativa dos Trabalhadores em Portaria, Conservação e Limpeza (Cooperativa XXI), Cooperativa dos Profissionais em Tecnologia de Informática do Paraná (Coptech), dentre outras.

Não obstante, as cooperativas respondem por 5,39% do PIB brasileiro e têm uma movimentação econômico-financeira na ordem de R$ 88,7 bilhões. Por esse motivo, também têm forte atuação frente ao Congresso Nacional. Para realizar essa articulação em defesa das causas cooperativas, a OCB conta com apoio direto da Frente Parlamentar do Cooperativismo (Frencoop). O sistema cooperativista busca seu espaço no Legislativo a partir da propositura de Projetos de Emendas Constitucionais, que são analisadas nas duas Casas – Câmara dos Deputados e Senado Federal.

Além das possibilidades acima descritas, para o desenvolvimento das grandes cooperativas o governo federal, em parceria com empresas públicas e privadas, conta com a disponibilização de linhas de crédito. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) desponta como parceiro do trabalho das cooperativas, trabalhando com o repasse financeiro e aumentando os benefícios para concessão e liberação de crédito. O referido banco é empresa pública federal e é, hoje, o principal instrumento de

1 Fonte: Revista Preços agrícolas – Mercado e Negócios Agropecuários.

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financiamento de longo prazo para a realização de investimentos em todos os segmentos da economia, tendo uma política que inclui as dimensões social, regional e ambiental2.

O apoio do BNDES se dá por meio de financiamentos a projetos de investimentos, aquisição de equipamentos e exportação de bens e serviços. Além disso, o Banco atua no fortalecimento da estrutura de capital das empresas privadas e destina financiamentos não reembolsáveis a projetos que contribuam para o desenvolvimento social, cultural e tecnológico3. Cerca de 40% da carteira de microcrédito do BNDES é constituída de repasses para as cooperativas que operam com micro e pequenas empresas e empreendedores individuais.

Ao final de 2010, o BRDE possuía 35.207 clientes ativos, cujos empreendimentos financiados estão localizados em 1.047 municípios, abrangendo 88,1% dos municípios da Região Sul. A carteira de financiamentos do Banco era composta por 42.481 operações ativas de crédito de longo prazo, com saldo médio de R$ 147,0 mil, o que atesta a vocação da Instituição para o atendimento às micro, pequenas e médias empresas e aos mini e pequenos produtores rurais4. O BRDE disponibiliza linhas adequadas de financiamento às empresas de todos os portes que atuam na área de indústria, comércio e serviços. O objetivo é fomentar, estruturar e acompanhar o desenvolvimento de projetos relativos ao setor, sempre visando ao aumento da produtividade e à eficiência das empresas da região de atuação do banco5.

Logo, é possível afirmar que o trabalho cooperado somente pode ser desenvolvido com o apoio e incentivo do fundo público de investimentos, seja por meio de linhas de crédito ou de programas de assessoramento realizados por universidades públicas ou ainda a partir de Projetos de Emendas Parlamentares.

2 Dados obtidos em: < http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/O_BNDES/A_Empresa>3 Dados obtidos em: < http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/O_BNDES/A_Empresa>4 Dados obtidos em: <http://www.brde.com.br/index.php/default/institucional/mostrar/id/50/secao/55/tipo/

conteudo/titulo/index>5 Dados obtidos em: < http://www.brde.com.br/index.php/financiamento/mostrar/id/68/secao/83/tipo/conteudo/

titulo/index>

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após os estudos desenvolvidos para realização do presente trabalho, é possível inferir que, para que seja possível o desenvolvimento do trabalho cooperado, as cooperativas precisam contar com o incentivo público. Cada espécie de cooperativa, seja ela popular, de crédito, de serviço ou grande cooperativa conta com um diferenciado auxílio do governo federal. A partir deste estudo, em especial da percepção de que o trabalho cooperado no território nacional é exclusivamente financiado pelo próprio Estado (por meio de linhas de crédito oferecidas para financiamento), denota-se que o Brasil ainda não atingiu o ideal autossustentável defendido pelo nacional desenvolvimentismo.

Portanto, o trabalho das cooperativas populares não assume destaque como o das grandes cooperativas financiadas com fundos públicos, e, ainda que a participação do trabalho cooperado fosse tão expressiva na economia nacional, a disparidade do desenvolvimento econômico com os objetivos traçados pelo nacional desenvolvimentismo se dá em razão da dissonância endêmica proveniente já da época da colonização. Desde aqueles tempos, o Brasil traçou com o comércio internacional fortes laços, de modo que o desenvolvimento e a industrialização nacionais ficaram em segundo plano, o que desfavoreceu o desenvolvimento econômico brasileiro e, indiretamente, o sistema de gestão de trabalho cooperado.

Desse modo, verifica-se que o apoio do governo, por meio de incentivos ao desenvolvimento interno, somente ocorre em razão da condição de subdesenvolvimento exposta pelo economista Celso Furtado e por tantos outros autores do nacional desenvolvimentismo brasileiro. Assim, apesar da aparente simplicidade, a gestão cooperada de trabalho apresenta um ideal de estabelecimento de redes de interesses, permitindo a fluidez da economia de uma maneira limitada, podendo-se até mesmo dizer insuficiente para a fase econômica em que o Brasil se encontra.

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RESUMO

Após a descoberta das estruturas genéticas da vida, principalmente na atualidade, abrem-se diversas possibilidades de manipulação das mais variadas formas de vida trazidas pelas pesquisas biotecnológicas. Dependendo das aplicações práticas, é possível levantar várias questões polêmicas que demandam respostas, muitas vezes interdisciplinares, nos campos legais e éticos que, aplicados ao campo biológico, recebem a denominação de bioética e biodireito. Diante de tal panorama, há o questionamento: como é possível haver progresso na biotecnologia, respeitando os limites éticos e jurídicos necessários na pesquisa e manipulação com as mais variadas formas de vida? O presente estudo guia-se pela tentativa de aproximação de resposta para tal questionamento, tendo como principal objetivo analisar a questão da pesquisa biotecnológica e apresentar possíveis reflexões e parâmetros de seu desenvolvimento e progresso guiado pela bioética e pelo biodireito, apresentando, por conseguinte, fundamentos de reflexão e princípios valorativos legais e constitucionais mais relevantes e dignos de proteção. Para satisfazer esse objetivo, a metodologia de pesquisa utilizada foi a bibliográfica e legislativa, principalmente a constitucional.

Palavras-chave: Biotecnologia. Manipulações genéticas. Bioética. Biodireito. Filosofia. Princípio da dignidade da pessoa humana. Constituição Federal.

CIÊNCIA E TECNOLOGIA DA VIDA: EM BUSCA DE UM CONSENSO POSSÍVEL ENTRE BIOTECNOLOGIA, BIOÉTICA E BIODIREITO – UMA REFLEXÃO ÉTICO-JURÍDICO-FILOSÓFICA

Rudinei Jose Ortigara*Dennys Robson Girardi**

* Aluno do 5° ano de Direito da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Mestre em Tecnologia em Saúde (PUCPR). Professor da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

As coisas começaram antes mesmo do capitalismo, com Prometeu. Na mitologia, Zeus o castiga porque ele furtou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens. “Prometeu”, em grego, é “o que enxerga ou vê antes”. Prometeu poderia ser patrono da pesquisa científica: ele fornece ao homem o primeiro grande equipamento tecnológico – o fogo –, enxerga longe, e sofre por isso, tendo todo dia o fígado perfurado por um abutre, até que Hércules finalmente o liberta dessa punição. Temos aqui tudo o que compõe o difícil ethos científico: primeiro, a inovação; segundo, a ambição de ser como Deus (ambição que está na agenda da ciência moderna desde seus primórdios); terceiro, a aplicação prática, tecnológica, do conhecimento; e, finalmente, a dor, a culpa de romper a fronteira entre o humano e o divino, entre a ignorância e o conhecimento, entre a submissão e o poder.

Renato Janine Ribeiro (2002)

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA522

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O mundo atual é conhecido e caracterizado pela vasta e cada vez mais intensiva cientifização de todas as relações e atividades humanas. A ciência e seu método de pesquisa perpassam e ultrapassam todas as atividades desenvolvidas, buscando compreender e dar respostas à realidade ao entorno do ambiente humano. Esse fenômeno é ainda mais marcante e visível no campo das chamadas ciências genéticas, principalmente na biotecnologia.

A biotecnologia não é um movimento recente da ciência. A seleção de melhores espécies, tanto animal quanto vegetal, é algo que remonta e perpassa todo o desenvolvimento humano, constituindo-se enquanto as primeiras formas de intervenções de melhoria de características, sendo essas, em menor escala, as primeiras formas de desenvolvimento biotecnológico.

Ocorre que com a descoberta da base genética da vida, a seleção passou a ser desenvolvida em níveis que antes sequer eram pensados. Nesse sentido,

Dados os avanços tecnológicos, as transformações evolutivas do mundo moderno, voltadas à utilização de técnicas de manipulação de material genético com vistas à obtenção de resultados proveitosos nos ramos da biotecnologia, surgiram nos últimos anos uma série de situações as quais há poucas décadas pareciam simplesmente inconcebíveis, tais como a fertilização in vitro; a clonagem de animais; e a possibilidade de serem criados seres geneticamente modificados, mediante a utilização de técnicas de manuseio do material genético que antes não existiam e, portanto, não eram ainda abrangidos pelo Direito (VIANA; TEIXEIRA, 2009, p. 12).

As variedades agora podem ser selecionadas a partir de seu biótipo genético, o que confere maior precisão na escolha; e com a combinação genética, possibilitada pela técnica do DNA recombinante, pode-se até transferir características a determinadas plantas para outras ou para animais, ou vice-versa. “Nesse sentido, a moderna biotecnologia, através das técnicas de engenharia genética, trouxe grandes contribuições, adicionando precisão e rapidez no desenvolvimento de novas variedades” (PENNA; CANOLA, 2009, p. 76).

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As múltiplas formas de manipulação das estruturas vitais de plantas, animais ou seres humanos trazem inúmeras possibilidades de benefícios, porém também podem trazer riscos1. Isso se torna ainda mais relevante quando gigantescas empresas destinam cargas econômicas do tamanho do Produto Interno Bruto (PIB) de muitos países na busca de desenvolver novas variedades de plantas ou animais pela transgenia, e até mesmo de patentear seus desenvolvimentos, garantindo, assim, a apropriação dos resultados produzidos, ou melhor, se apossando daquela parte considerável de vida, detendo, portanto, a exclusividade intervenção.

A partir desses aspectos, começa a surgir discussões sobre os reais impactos das pesquisas, os limites de aplicação e os impasses éticos. Nessa toada, configuram-se os usos inadequados de fontes de preocupação, uma vez que podem acarretar danos irreparáveis ao

1 Em sentido semelhante e associando à questão atual do meio ambiente e os riscos trazidos pela má utilização das biotecnologias, San Epifanio, em artigo intitulado Avanços biotecnológicos e meio ambiente: implicações éticas e jurídicas da biossegurança, procede um rápido esboço sobre a evolução das técnicas de manipulação das espécies vivas para a finalidade de utilização humana: “Milhões de anos depois da última era glacial o ser humano se comporta [...] como se estivesse em cima da árvore genealógica de todo ser vivo, convencido de que chegou a essa posição – se não através de Deus – ao menos como vencedor da luta pela sobrevivência. O início do processo que lhe permitiu alcançar essa posição de privilégio é situado historicamente na substituição da caça e da coleta de frutos silvestres por um conjunto de técnicas que, alterando deliberadamente os sistemas naturais, lhe permitem conseguir a abundância de uma espécie ou de um conjunto de espécies submetidas a exploração: a agricultura. No princípio do século XXI, o ser humano, que ameaça com seu mundo artificial superpovoar o planeta, segue dependendo da exploração das demais espécies. Mas, com o passar do tempo, suas técnicas de exploração têm melhorado, e há relativamente poucos anos, conta com uma série de avanços que otimizarão – até mesmo em níveis antes só sonhados – a gestão da Biodiversidade. Para referir-se a tais avanços, fala-se de nova ou moderna Biotecnologia.

A expressão moderna provém de que, no desenvolver das técnicas de melhoria genética tradicional – com base no sistema de prova e erro –, se tem introduzido elementos que permitem destacar qualitativamente os últimos avanços nas técnicas de exploração de seres não humanos. Referimo-nos, claro está, à precisão das bases científicas da melhoria da genética tradicional (através da Biologia Molecular e da Genética) e ao desenvolvimento de instrumentos de precisão para experimentação de ditas bases científicas, entre os quais se destaca a Engenharia Genética. A Biotecnologia tradicional e a moderna aparecem assim aparentadas em seu fundamento e finalidade, que podem resumir-se em ‘o manejo dos organismos vivos – ou de suas partes – com o fim de obter assim bens e serviços que satisfaçam necessidades humanas’.

Aceito esse vínculo genealógico entre Biotecnologia tradicional e a moderna; a principal diferença entre ambas parece situar-se nos meios de que dispões esta última. A esses meios atribui-se um potencial de impacto ambiental que supera, em muito, os efeitos da melhoria tradicional, especialmente quando permitem cruzar com precisão massas hereditárias de espécies animais ou vegetais que na natureza se acham muito distanciadas entre si. De um ponto de vista sociopolítica, a adoção de decisões sobre esta tecnologia se vê dificultada não só pelo escasso conhecimento sobre a entidade e magnitude dos riscos que se associam à mesma, mas também pela própria situação do meio ambiente no princípio do século XXI. Trata-se de um meio de vida já muito degradado como consequência de inúmeras causas acumuladas – muitas delas atribuíveis ao ser humano – e, o mais importante, um meio cuja degradação segue avançando a uma velocidade vertiginosa. A assunção de quaisquer novos riscos ambientais nos afasta de uma utilização sustentável dos recursos biológicos e põe em sério perigo a preservação da Biodiversidade. Isso, segundo a Comissão Européia, é ‘negativo em si mesmo e, ademais, incide negativamente no desenvolver socioeconômico’. (2004, p. 377 – 379).

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meio ambiente e à saúde humana. Destarte, “a utilização das novas biotecnologias sobre o ser humano e, igualmente, sobre a fauna e a flora, comporta repercussões de toda ordem: interesses de mercado, interesses políticos e interesses sociais” (BRAUNER, 2005, p. 34).

Dentre os principais questionamentos e repercussões, encontra-se a dicotomia aparente entre ciência e ética. Pergunta-se: até que ponto a ciência e a ética podem caminhar separadas, uma vez que, em última análise, todo desenvolvimento científico deveria estar voltado para o ser humano e estar embasado em princípios e valores essenciais à toda humanidade. Por conseguinte, não se conforta mais a realidade de se desenvolver a ciência, principalmente à manipulação da vida, sem levar em consideração o seu impacto ético e os seus limites de atuação social ético, científico e legal. Nesse sentido, o Direito encontra-se também pressionado e conclamado a traçar possíveis respostas normativas aos problemas levantados por essas novas realidades.

1 BIOTECNOLOGIA, BIOÉTICA E BIODIREITO – INTERSECÇÕES NECESSÁRIAS

As possibilidades abertas pela biotecnologia trazem novos desafios de grandes proporções tanto para a reflexão ética quanto para a regulamentação das atividades biotecnológicas. Esses desafios se apresentam em diferentes e diversos contextos, por isso a necessidade de serem tratados em seu aspecto interdisciplinar. Nessa tentativa, a reflexão aqui trazida será orientada para a abordagem sucinta de perspectivas do problema nos campos da biotecnologia, bioética e biodireito.

1.1 BIOTECNOLOGIA: ENGENHARIA GENÉTICA E AS POSSIBILIDADES DE MUDANÇAS NAS ESTRUTURAS DA VIDA

Os estudos e o desenvolvimento da genética deram um grande salto quando, na década de 1970, surgiu o estudo das estruturas genéticas. A compreensão de diversos mecanismos biológicos e sua pesquisa pela Engenharia Genética abriu portas para aplicações nas áreas da saúde, com a possibilidade de solução de problemas genéticos e hereditários, bem como na de técnicas industriais, como a clonagem animal e a produção de alimentos transgênicos (Cf. IACOMINI, 2008, p. 27).

De posse dessas possibilidades, o foco de interesse da ciência muda. Deixa de ser feita por poucos e passa a ser regida por vários interesses e entranhar-se cada vez mais nas estruturas sociais e na vida cotidiana. Segundo Möller,

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Neste período, a ciência deixa de restringir-se ao objeto de interesse do cientista e do homem culto, e passa a incitar fortes transformações nas mais diversas esferas da vida: das organizações sociais às organizações políticas e econômicas, do ambiente natural à indústria, ao trabalho intelectual e à Vida Familiar (2007, p. 154).

As discussões sobre a aplicação das técnicas são várias, principalmente em seres humanos. Para alguns autores e cientistas, é conveniente a manipulação e o aperfeiçoamento genético da humanidade como meio natural trazido pelo próprio progresso tecnológico, uma vez que pelo conhecimento científico a humanidade tornou-se gestora de seu próprio destino, criando relativa independência de sua condição puramente natural2. Por outro lado, posicionam-se autores contrários à manipulação genética, principalmente a dignidade humana, com fins de melhorias artificiais. Para esses, a vida e o próprio ser humano são portadores de dignidade em si mesmos, sendo a humana, especificamente, resguardada por previsão constitucional3. Nesse sentido, as únicas intervenções aceitáveis seriam aquelas com fins terapêuticos, sem interferência nas estruturas essenciais.

Esse embate traz à tona grande debate ético de até que ponto isso realmente deve ser feito. Segundo Jonas, é de longo tempo na humanidade que o

[...] sonho ambicioso do Homo faber, condensado na frase de que o homem quer tomar em suas mãos a sua própria evolução, a fim não meramente de conservar a espécie em sua integridade, mas de melhorá-la e modificá-la segundo seu próprio projeto. Saber se temos o direito de fazê-lo, se somos qualificados para esse papel criador, tal é a pergunta mais séria que se pode fazer ao homem que se encontra subitamente de posse de um poder tão grande diante do destino. Quem serão os criadores de ‘imagens’, conforme quais modelos, com base em qual saber? Também cabe a pergunta sobre o direito moral de fazer experimentos com seres humanos futuros. Essas perguntas e outras semelhantes, que exigem uma resposta antes que nos deixemos levar em uma viagem ao desconhecido (2006, p. 61).

2 Como exemplo, cita-se Peter Sloterdijk. Em seu livro Regras para o parque humano, o autor se mantém favorável à continuidade do processo de aperfeiçoamento da humanidade pelos instrumentos trazidos pela biotecnologia, ainda que isso possa apresentar alguns riscos. Entende que as aplicações da biotecnologia em seres humanos pode ser uma possibilidade de evolução da própria humanidade. (Cf.: SLOTERDIJK, Peter, 2000)

A Dignidade da Pessoa Humana encontra-se erigida a categoria de Princípio Fundamental e fundamento da República Federativa do Brasil na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que assim preceitua em seu artigo 1º, inciso III:

3 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:I - a soberania;II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana. (grifo nosso).IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V - o pluralismo político.

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A partir da possibilidade dos resultados dessas pesquisas serem aplicados para fins escusos é que nasce a preocupação e a reflexão ética4 sobre tais práticas. Dessa forma, a bioética se apresenta enquanto aplicação prática da ética em relação às possíveis intervenções nas estruturas vitais de todos os seres vivos, mas também se propõe a fazer uma reflexão sobre a relação das possibilidades humanas abertas pela tecnociência e seus impactos na vida no Planeta.

O desenvolvimento das pesquisas científicas está voltado ao caráter experimental, regido pelo princípio da liberdade de investigação, o que não significa que tudo deverá ser permitido em nome do acúmulo do conhecimento científico. Dessa forma, mesmo a bioética partindo da análise da realidade das aplicações científicas no campo da vida, deve ser feita uma ponderação de valores tanto aqueles preservados e sagrados para toda a sociedade como aqueles trazidos pela pesquisa científica em benefício da própria sociedade, pois “toda inovação na ciência deve guarnecer uma preocupação e responsabilidade social da utilização de informações genéticas na sociedade” (DALVI, 2008, p. 31).

4 Segundo Adolfo Sanchez Vázquez, “a ética é teoria, investigação ou explicação de um tipo de experiência humana ou forma de comportamento dos homens, o da moral, considerado porém na sua totalidade, diversidade e variedade. O que nela se afirme sobre a natureza ou fundamento das normas morais deve valer para a moral da sociedade grega, ou para a moral que vigora de fato numa comunidade humana moderna. É isso que assegura o seu caráter teórico e evita sua redução a uma disciplina normativa ou pragmática. O valor da ética como teoria está naquilo que explica, e não no fato de prescrever ou recomendar com vistas à ação em situações concretas” (2010, p. 21).

No caso da bioética, por outro lado, como muito bem explica Olinto Pegoraro (2002, p. 75 – 76), consagrou-se a afirmação de ser essa “a disciplina ética que se formou em torno de pesquisas, práticas e teorias que visam interpretar os problemas levantados pela biotecnociência e pela biomedicina. Por isso, a bioética é necessariamente interdisciplinar e de identidade instável, pois não é uma filosofia global, nem uma ética geral e muito menos uma ciência. Ela se situa na confluência do saber tecnocientífico, especialmente biológico, com as ciências humanas, como a sociologia, a política, a ética e a teologia.

Sendo de uma identidade instável, a bioética tem a importante característica de situar-se ‘no espaço aberto’ de uma sociedade pluralista, onde se confrontam concepções diferentes e até irredutíveis umas às outras [...]. Isso constitui a singularidade ou originalidade da bioética como interação dos saberes e será tanto mais criativa quanto mais for praticada no espaço público das sociedades pluralistas, onde os problemas éticos são discutidos pela tecnociência, pelas crenças religiosas e concepções filosóficas que, coexistindo pacificamente, debatem o sentido ético da vida e da morte.

Neste amplo espaço, é fundamental que a bioética mantenha sua identidade filosófica quando discute pressupostos éticos, esclarece conceitos e valores e toma decisões sobre situações concretas, como pronunciar-se pró ou contra o congelamento de embriões excedentes. Caso a bioética se afaste dessa posição, poderá tornar-se casuística, pragmática, sem raízes éticas, guiando-se apenas por uma espécie de jurisprudência, que toma decisões semelhantes em casos semelhantes. Isto não significa que a bioética deva distanciar-se das situações cotidianas. Mas, se ela abandonar o juízo ético-prático sobre casos concretos, suscitados pela tecnociência, perde-se em abstrações e concepções universais, sem força para decidir eticamente sobre os problemas da biomedicina.

Por isso mesmo, a bioética, que precisa conviver com os marcos teórico e prático, está longe de ser uma teoria ética precisa, com objetivos bem determinados. Felizmente, ela é necessariamente imprecisa, devendo sempre repensar seus marcos teóricos, em função dos novos avanços da tecnociência.”

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Essa responsabilidade caminha ao lado da normatização de condutas, delimitando as permitidas e as não permitidas, apontando as condutas lícitas e ilícitas, de acordo com observâncias éticas e valores sociais a ser preservados. Dessa forma, a reflexão ética da vida deve sempre estar acompanhada da busca de resultados práticos que balizem ações práticas da ciência.

Assim, a preocupação ética de manter intacta a estrutura essencial da espécie humana e de outras formas de vida baliza as possibilidades de regulamentação enquanto barreiras normativas baseadas na reflexão bioética, no trato para com as formas e variantes da vida, evitando a banalização. A possibilidade de coisificação das formas de vida pela pesquisa genética é real, sobretudo diante do atual sistema econômico e do estágio de conhecimentos acumulados com a manipulação genética.

Nesse sentido, pelas possibilidades abertas há

[...] aumento do poder do homem sobre o próprio homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou criar novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permitir novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor. (BOBBIO, 1992, p. 6)

Apesar disso, o poder atribuído pelas descobertas científicas necessita de um uso racional, acompanhado de um mínimo de padrões, de reflexões éticas e valores socialmente aceitos enquanto fundamentais para determinada sociedade e de normatização e regulação de tais atividades.

1.2 BIODIREITO: A REGULAMENTAÇÃO DAS INTERVENÇÕES NAS ESTRUTURAS DA VIDA

O Direito deve preocupar-se com a realidade e com os anseios sociais, bem como dar uma resposta normativa para a sociedade, de forma a regular posturas e ações que venham ferir ou lesar determinados valores caros à sociedade e às relações sociais.

No entendimento de Miguel Reale,

[...] a norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto a ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor. [...] Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor. [...] O Direito, repito, é uma integração normativa de fatos segundo valores (1994, p. 118-119).

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Nesse sentido, se as pesquisas científicas ultrapassam o nível do aceitável ou tolerável, atingindo ou lesando determinado direito ou valor social, seja individual, difuso ou coletivo, há a necessidade de limites impostos tanto no sentido ético quanto no campo normativo do Direito.

Portanto, apesar de ser livre a ação da pesquisa científica, não pode ser ilimitada e

passa a deparar-se com um ‘freio’ posto pela ética, pela bioética, e também pelo direito. Estes âmbitos de reflexão, valoração e regulação normativa iniciam, assim, a traçar certos limites às realizações da ciência, a seus procedimentos e a suas aplicações (MÖLLER, 2007, p. 155).

Nem sempre os freios apontados pela bioética são suficientes para balizar as ações da biotecnologia, uma vez que falta à ética força coercitiva. Nesse sentido,

La función esencial de la Bioética consiste en dotarnos de unas pautas con las que afrontar los complicados problemas relacionados con la vida humana. Ello no obstante, las exigencias que nos impone la protección de valores fundamentales no pueden ser satisfechas de forma completa por la Bioética, sino que ésta necesita que otras disciplinas la complementen adecuadamente. De entre todas ellas, una de las más importantes es el derecho, en cuanto que éste outorga a la Bioética los instrumentos esenciales para que pueda transitar desde el marco de lo teórico a una ordenación real de la vida humana (MIGUEL BERIAIN, 2004, p. 63).

Nesse âmbito, entra a necessidade de normas com conteúdos coercitivos e legais balizadas em valores éticos caros à sociedade, contendo direitos fundamentais ligados à vida que devam ser protegidos. Porquanto, “a Bioética, quando sai do campo axiológico e é positivada no ordenamento jurídico, transmuda-se em Biodireito” (DUARTE, 2009, p. 191).

A questão sobre a proteção legal do patrimônio genético humano e das demais formas de vida, com o estabelecimento de um sistema normativo para tal, é a preocupação de vários países, sendo várias as manifestações internacionais sobre a necessidade de proteção do patrimônio genético e da limitação de intervenções desenfreadas. Dentre essas manifestações, destaca-se a Declaração Universal sobre o Genoma humano5, da Unesco6.

5 A reunião dos países participantes da Unesco para definir o texto final da Declaração ocorreu entre os dias 6 e 8 de abril de 2005 e, posteriormente, entre 20 e 24 de junho do mesmo ano, em Paris, França. O Brasil também estava representado entre os países participantes.

6 A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) foi criada no dia 16 de novembro de 1945, quando representantes de 37 países se reuniram em Londres para assinar a Constituição da Unesco. Essa constituição entrou em vigor em 4 de novembro de 1946, quando 20 Estados-Membros a ratificaram. “A UNESCO trabalha com o objetivo de criar condições para um genuíno diálogo fundamentado no respeito pelos valores compartilhados entre as civilizações, culturas e pessoas e das exigências de desenvolvimento sustentável com base na observância dos direitos humanos, no respeito mútuo e na erradicação da pobreza. Temas esses que estão no cerne da UNESCO e em suas Atividades” (Cf.: Unesco, 2007).

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Essa declaração ressalta a preocupação com as possibilidades abertas pela pesquisa e aplicação biotecnológica que podem levar a novas violações de direitos humanos, por exemplo, a descriminação genética de determinadas pessoas, tornando-se base de bandeiras políticas e rejeitando direitos assumidos internacionalmente, como os direitos humanos.

2 REFLEXÕES JURÍDICAS E FILOSÓFICAS: PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E FILOSÓFICOS

Reconhece-se na quase totalidade da Comunidade Internacional que o ser humano, enquanto pessoa, preserva em si dignidade anterior e transcendente a qualquer sistema normativo, estando, inclusive, internacionalmente reconhecidos enquanto direitos humanos7.

Nesse sentido, Garcia destaca que

o homem – na sua condição humana – é um ser universal. Os direitos humanos decorrem da condição humana; são, portanto, de caráter universal, aplicando-se ao ser humano, onde se encontre, bem como a tudo que detiver a qualidade humana (2004, p. 211).

Os direitos humanos, ao serem albergados pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, são reconhecidos enquanto direitos fundamentais8. Dessa forma, “os Direitos Humanos a serem agasalhados em seio constitucional transformam-se em Direitos Fundamentais” (DUARTE, 2009, p. 191). A proteção basilar dos direitos humanos deve ser levada em consideração na comunidade internacional

dado que los valores que están en juego afectan a toda la especie humana como tal, nungún Estado puede utilizar el paraguas de la soberania nacional para permitir que bajo él se cobijen las más flagrantes violaciones de la dignidad humana (MIGUEL BERIAIN, 2004, p. 66).

7 a necessidade dos direitos humanos foi esboçada de forma mais universal por documento aprovado em Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, definido como a Declaração Universal de Direitos Humanos. Segundo Comparato (2007, p. 226-227), “tecnicamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma recomendação que a Assembléia Geral das Nações Unidas faz a seus membros (Carta das Nações Unidas, artigo 10)”, não possuindo esse documento, portanto, força vinculante. No entanto, o referido autor ressalta que “esse entendimento, porém, peca por excesso de formalismo. Reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. A doutrina jurídica contemporânea, de resto, [...] distingue os direitos humanos dos direitos fundamentais, na medida em que estes últimos são justamente os direitos humanos consagrados pelo estado mediante normas escritas.” (Cf.: COMPARATO, 2007, p. 226-227).

8 Esse reconhecimento provém de previsão legal e de observação de incorporação dessas normas internacionais, como os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos, conforme o trâmite apresentado pelo artigo 5º, § 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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Como o progresso científico é constante, dificilmente se poderá prever legislativamente todas as possibilidades e formas de lesões, o que, consequentemente, acarreta numa contínua evolução legal, buscando se adequar sempre a finalidade de proteção do ser humano e de sua dignidade. Portanto, é necessário partir de princípios fundamentais mínimos e universalmente aceitos. Dentre esses princípios basilares, destaca-se, por sua importância e abrangência, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o qual se configura atualmente enquanto princípio basilar do Estado brasileiro e constitucionalmente protegido no artigo 1º, Inciso III, da Carta Magna da República Federativa do Brasil de 1988.

A concepção atual é a de que todo ser humano possui o direito inarredável de levar uma vida digna, não podendo, de forma alguma, ser usado como instrumento para algum fim, pois é fim em si mesmo, portanto, dotado de dignidade, sendo essa, inclusive, anterior e transcendente da condição de proteção normativa por seu valor e importância para a humanidade.

Nesse sentido, Moraes afirma que

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que as pessoas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (2003, p. 128).

Dessa forma, à dignidade da pessoa humana transcende o campo jurídico, sendo ela preexistente e dependente deste e da reflexão filosófica, principalmente a de Kant, uma vez que é em seu pensamento “[...] que a doutrina jurídica mais expressiva – nacional e alienígena – ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana” (SARLET, 2007, p. 34).

2.1 DIGNIDADE DA PESSOA EM IMMANUEL KANT

Transcende aos escritos de Kant a ênfase dada ao ser humano enquanto portador de valor em si mesmo, não podendo, portanto, ser tomado enquanto meio ou objeto, pois possui dignidade9 em si considerado. Por ser considerado como fim em si mesmo, não há possibilidade de fazer da pessoa humana objeto como meio para atingir determinado fim. Dessa forma, ela é autônoma devido à sua racionalidade, que lhe é inerente, não podendo

9 De acordo com Petterle, “[...] a idéia da dignidade como valor intrínseco da pessoa humana tem sido pensada e reconstruída ao longo da história dos homens, isso desde os filósofos da antiguidade clássica, passando pelos aportes dos pensadores da idade média, especialmente impregnados do ideário cristão, cuja evolução histórica, nos períodos subsequentes, apontou a racionalidade inerente ao ser humano como parâmetro norteador. [...] Kant, abrindo outros caminhos, culminou o processo de secularização da dignidade, buscando o seu fundamento na autonomia da vontade do ser humano, como ser racional, o que, por si só, já explica a marcante influência da matriz Kantiana no pensamento contemporâneo ocidental” (2007, p. 61).

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ter, como os demais seres, um valor equivalente de troca, pois está acima de todo valor, por isso possuidor de dignidade.

Tal imperativo se apresenta enquanto categórico, sendo formulado da seguinte forma: “age apenas segundo uma máxima tal que pessoas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2005, p. 59). Desse imperativo é que deve derivar os imperativos do dever. Nesse sentido, por ser racional e livre, o ser humano é capaz de impor a si normas morais de conduta, que possam ser, ao mesmo tempo, universais e válidas a todos os seres racionais. Ademais, a dignidade é intrínseca à pessoa humana por ser racional, portanto, capaz de determinar-se, sendo que, por esse aspecto, não há a possibilidade de sujeitá-la enquanto meio, mas apenas como fim em si mesma, “porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo arbítrio [e é um objeto de respeito]” (KANT, 2005, p. 68).

Em outra passagem, Kant destaca que

O homem [...] existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim (2005, p. 68).

Dessa forma, a dignidade parte da autonomia ética do ser humano. Essa autonomia se constitui enquanto fundamento do ser humano, pois existe como fim em si mesmo, não podendo, portanto, ser tratado como objeto considerado enquanto meio para alcançar determinado fim (Cf. SARLET, 2007, p. 32). Assim, como ser racional, cada indivíduo deve estar submetido à lei do agir moral, de acordo com o imperativo categórico, tratando os demais enquanto fins em si mesmos. Logo, “seres racionais estão, pois todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si” (KANT, 2005, p. 76). Por ser racional, a pessoa possui dignidade. Portanto, é merecedora de respeito devendo todo ato arbitrário ser afastado.

Nesse sentido, Kant afirma que

No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade (2005, p. 77).

Portanto, Kant reconhece alguns valores que possuem fim em si mesmo, como é o caso da dignidade do ser humano. Nesse caso, a pessoa humana deve ser preservada como algo de valor em si, por normas universalmente reconhecidas, uma vez que,

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como imperativo categórico, é reconhecido seu valor em si, isentando da coisificação e impossibilitando trocas por equivalentes10.

2.2 HANS JONAS E O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE

Jonas deu nova roupagem ao entendimento de Kant buscando delimitar o novo papel da responsabilidade ética do ser humano diante do desenvolvimento tecnológico. Para esse autor, isso é necessário, uma vez que a técnica pela tecnologia contemporânea inaugurou novo agir humano que não se enquadra mais na ética tradicional, sendo seus imperativos insuficientes para balizar a ação humana na civilização tecnológica, uma vez que a ação humana, expandida pela atividade tecnológica, extrapola o círculo entre as pessoas tanto no espaço quanto no tempo.

Diante de tal diagnóstico, buscou assentar as bases de uma nova ética baseada na responsabilidade, mais adequada ao desenvolvimento tecnológico, e voltada para a responsabilidade pela existência futura do ser humano e de todas as estruturas e formas de vida. Dessa forma, a reflexão sobre o círculo de dignidade se expande para além dos seres racionais, assumindo, para além do que pensou Kant, todas as formas de vida e suas estruturas de dignidade.

A partir disso, o agir imperativo adquire nova roupagem: “Aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra”, ou formulado negativamente “não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a terra” (JONAS, 2006, p. 47-48).

10 Apesar da grande influência do pensamento de Kant para várias áreas da reflexão contemporânea, alguns autores tecem críticas à sua concepção de dignidade, afirmando ser essa excessivamente antropocêntrica, uma vez que sustenta a dignidade enquanto atributo exclusivo na pessoa humana: “[...] notadamente naquilo em que sustentam que a pessoa humana, em função de sua racionalidade [...] ocupa um lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos. Para além disso, sempre haverá como sustentar a dignidade da própria vida de um modo geral, ainda mais numa época em que o reconhecimento da proteção do meio ambiente como valor fundamental indicia que não está em causa apenas a vida humana, mas a preservação de todos os recursos naturais, incluindo todas as formas de vida existentes no planeta, ainda que se possa argumentar que tal proteção da vida em geral constitua, em última análise, exigência da vida humana e de uma vida humana com dignidade” (SARLET, 2007, p. 34). No entanto, apesar de considerações desse cunho, há o reconhecimento de que “a dignidade da pessoa humana, esta (pessoa) considerada como fim, e não como meio, repudia toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano” (SARLET, 2007, p. 36).

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A partir disso, o agir imperativo adquire nova roupagem: “Aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra”, ou formulado negativamente “não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a terra” (JONAS, 2006, p. 47-48).

A necessidade desse novo imperativo se deve ao fato do aumento do poder de mudança na estrutura da natureza pelo domínio e supremacia técnica do homem sobre a natureza, o que nem sempre se traduz automaticamente em benefícios. Dessa forma, não é mais um agir individual e contemporâneo, mas está voltado para o agir coletivo enquanto bem público para as atuais e futuras gerações. Jonas chamou atenção para essas mudanças históricas afirmando que inicialmente a relação humana com a natureza possuía contornos diferentes dos atuais:

Todas as concepções eram sustentáveis porque as incursões do homem na natureza, tal como eram encaradas por ele, eram essencialmente superficiais e impotentes para perturbar o seu afirmado equilíbrio. Nem há indício, no cora da Antígona ou noutro lado qualquer, de que isto é apenas o princípio e que maiores cometimentos do engenho e poder humanos hão de vir – de que o homem embarcou numa infindável rota de conquista. Tão longe tinha ele ido na eliminação da necessidade, aprendido com a sua agudeza de espírito a tanto tirar dela para a humanização da sua vida, que por aí podia ficar. O espaço que assim tinha aberto era preenchido pela cidade dos homens – destinada a conter e não a expandir – e por intermédio dela um novo equilíbrio se estabelecia no interior do mais vasto equilíbrio do todo. Todo o bem ou o mal a que em qualquer altura a agudeza do engenho do homem pode levá-lo fica dentro do enclave humano e não afecta a natureza das coisas [...]. A vida do homem consumia-se entre a permanência e a mudança: o permanecer da Natureza, o mudar das suas próprias obras (JONAS, 1994, p. 31).

Essas mudanças, por sua vez, deixam registros profundos nas relações naturais. Sua extensão não se prende apenas ao presente. Porém, seus resultados se prolongam no espaço e no tempo, ou seja, o resultado das ações pode agora ultrapassar gerações. Estabelece-se, portanto, uma nova forma de relação com a natureza pela técnica. Esses efeitos podem ser mais severamente sentidos nas estruturas essenciais da vida, uma vez que o homem agora é capaz de, pelo domínio das técnicas de manipulação do DNA, modificar as bases essenciais de várias espécies. Para além disso, ainda, o ser humano passa a ser objeto de si mesmo, passível de pesquisa e de mudanças em sua estrutura. Sem dúvida nenhuma, esse agir da ciência assume grandes dimensões, sendo que essas trazem impactos em várias estruturas sociais e em todas as esferas de conhecimento, traduzindo-se, portanto, em poder de quem as detém.

Dessa forma, Jonas acredita que todo agir humano, por estar perpassado pelo poder, deve ser responsável, uma vez que pode redefinir o futuro da humanidade. Portanto, a esfera de dignidade também é estendida à natureza e não apenas ao ser humano, pois ela

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também é objeto de cuidado e deve ser preservada em sua estrutura essencial, uma vez que dela é dependente a humanidade, não estando metafisicamente isolada das demais estruturas naturais. Assim, acredita-se que o poder do homem sobre a natureza representa também perigo para os próprios seres humanos, necessitando, portanto, de controle.

Nesse sentido, Jonas constata a necessidade de uma nova ética, capaz de trazer ao bojo de sua reflexão a necessidade de responsabilidade por gerações futuras e pelo cuidado para com as estruturas essenciais da natureza, para que elas possam ser preservadas para as vindouras gerações. “Isso significaria procurar não só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas, isto é, ampliar o reconhecimento de ‘fins em si’ para além da esfera do humano e incluir o cuidado com estes no conceito de bem humano” (JONAS, 2006, p. 41).

A partir disso, toda ação de interferência tecnológica nas estruturas da vida ou da natureza, com suas possíveis manipulações ou alterações, deve estar permeada ou balizada por limites de previsão e responsabilidade pela preservação das estruturas essenciais da vida e de futuras gerações. Assim, todo agir tecnológico humano deve ser permeado por uma ética de responsabilidade de longo alcance, proporcional à extensão da atuação e das consequências do poder tecnológico.

2.3 DIGNIDADE E RESPONSABILIDADE: CIÊNCIA E DIREITO

Levando em consideração as reflexões anteriormente esboçadas, tem-se, portanto, que é dever atual da humanidade perceber que as ações presentes podem interferir na existência futura de todas as formas de vida. Sendo devido a esse poder que se tem a responsabilidade pelo desenvolvimento tecnológico equilibrado, preservando as estruturas essenciais e vitais da vida para a existência humana futura e de forma digna.

Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 assegura a atividade e a expressão científica de forma livre e independentemente de censura ou licença (Cf. art. 5º, inc. IX, CRFB/1988), encontrando-se, inclusive, no capítulo dos direitos fundamentais, portanto, valor essencial à sociedade brasileira. Apesar disso, essa liberdade não pode ser tomada por suprema. Sua atividade e desenvolvimento devem ser livres desde que não contrariem o fundamento do Estado Democrático de Direito, qual seja, o da dignidade da pessoa humana, pois a finalidade última do estado encontra-se na proteção integral da pessoa humana, preservando, para isso, todas as estruturas essenciais para o pleno desenvolvimento da coletividade.

Encontra-se, aqui, consequentemente, um limite constitucional à atividade científica. Dessa forma, “nenhuma liberdade de investigação científica poderá ser aceita se colocar em perigo a pessoa humana e sua dignidade. A liberdade científica sofrerá as

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restrições que forem imprescindíveis para a preservação do ser humano na sua dignidade” (DINIZ, 2002, p. 7-8). Em outra passagem, a autora destaca que

Com essa nova faceta criada pela biotecnologia, que interfere na ordem natural das coisas para “brincar de Deus”, surgiu uma vigorosa reação da ética e do direito [...] fazendo com que o respeito à dignidade da pessoa humana seja o valor-fonte em todas as situações, apontando até onde a manipulação da vida pode chegar sem agredir (2002, p.4).

Isso não significa enfaixar todas as possibilidades de pesquisas e as atividades econômicas que se desenvolvem a partir delas. Há, sim, que preservar valores essenciais à sociedade e ter cuidado com as bases da vida, ou seja, com os elementos essenciais do meio ambiente natural e humano. Daí que toda atividade de pesquisa, e sua derivação econômica, além do princípio da dignidade da pessoa humana, deve observar o seguinte:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[...]

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (CRFB/1988).

Por isso, os cuidados para a realização de pesquisas, possuindo finalidade econômica ou não, devem repousar dentro de limites humanos e ambientais enquanto consequências negativas que possam acarretar. Há, inclusive, um capítulo específico na Constituição da República Federativa do Brasil que trata das questões ambientais e que deve ser trazido para dentro das discussões biotecnológicas e bioéticas. Nesse sentido, o artigo 225 é exato:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Vem estampado nesse artigo constitucional um princípio jurídico basilar e indiscutível, que é o Princípio da Precaução. Por ele, o Estado e a sociedade devem adotar medidas que visem impedir o início da ocorrência de atividades potencialmente ou lesivas ao meio ambiente como um todo. Dessa forma, depreende-se que é dever do Poder Público a preservação do patrimônio genético e de assegurar sua integridade, para tal, estabelecendo parâmetros legais e fiscalizando as entidades que trabalham com a manipulação de materiais vivos e genéticos nas pesquisas biotecnológicas. Deve-se tal cuidado, uma vez que o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado aparece aqui elevado à categoria de direito fundamental, pois ele é essencial à vida humana com qualidade tanto para as gerações presentes quanto para as futuras.

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Dessa percepção, portanto, nasce a necessidade de um novo contexto, baseado em valores essenciais e necessários para balizar ações responsáveis e que preservem os valores supremos para a sociedade, principalmente o da dignidade da pessoa humana, que baliza os demais valores (Cf. art. 1º; art. 5º, CRFB), proporcionando aos indivíduos uma “existência digna” (Cf. art. 179, CRFB) e a preservação do meio ambiente natural e humano, equilibrado e preservado em sua essência para “as presentes e futuras gerações” (Cf. art. 225, CRFB).

3 POSSÍVEL CONSENSO NORMATIVO E DIRETIVO ENTRE BIOTECNOLOGIA, ÉTICA E DIREITO

A dinâmica atual das pesquisas científicas, principalmente nas áreas de biotecnologia, cria novas situações que exigem respostas adequadas. Pela complexidade que exige o tema, tais respostas não derivam de apenas uma vertente, sendo, portanto, fruto de reflexões científicas, éticas e jurídicas. Essa dinâmica de interdisciplinaridade se aplica ao direito atual, uma vez que

[...] há princípios que, mesmo não sendo objeto de uma específica legislação, impõem-se a todos aqueles para quem o direito é expressão não somente da vontade do legislador, mas também dos valores que este tem por missão promover, dentre os quais figura, em primeiro plano, a dignidade da pessoa humana (PERELMAN, 1998, p. 95).

Como direito fundamental garantido, o desenvolvimento científico aparece também ao lado de outros valores e bens jurídicos reconhecidos constitucionalmente. O mau uso dessa liberdade científica pode interferir de forma negativa nos demais direitos e valores éticos caros à sociedade. Portanto, se faz cada vez mais necessário o caráter complementar da reflexão ética e mesmo científica para a formulação de normas legais, tendo em vista o caráter complexo deixado pelas novas relações sociais, as quais exigem do Direito uma resposta normativa. Nesse sentido,

A evolução das diversas áreas do conhecimento e a constante especialização da ciência e da tecnologia convergem, como já mencionado, para reflexões sobre a pessoa humana e sua dignidade, buscando conciliá-la aos princípios éticos a serem adotados e aos riscos aos quais deve se submeter para viabilizar as conquistas científicas e tecnológicas, em prol dos interesses de determinadas comunidades (científica, empresária, política, etc.), provocando uma postura pró-ativa do Direito, o qual tem sido chamado para uma constante reavaliação de seus conceitos, princípios e valores, de modo a acompanhar e controlar impactos e expectativas, garantindo a proteção dos direitos humanos e fundamentais e a equalização entre os interesses individuais e coletivos (PÁDUA, 2008, p. 72-73).

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Logo, é necessária uma delimitação de valores caros à sociedade. Essa delimitação pode ser alcançada a partir de um consenso. Para Jürgen Habermas (2003), filósofo consagrado por sua teoria do agir comunicativo, o consenso possível deve girar em torno da racionalidade comunicativa que tem por tarefa identificar e reconstruir condições universais de entendimento possível. No caso em análise, é pelo consenso comunicativo que se pode traçar valores caros à sociedade, preservando-os em normas constitucionais e construir o progresso científico baseado em valores essenciais, estabelecendo regulamentos e diretrizes claros sem deixar de lado os benefícios humanos e sem descuidar da vida de um modo geral.

3.1 VALORES CONSTITUCIONAIS ASSEGURADOS E A PESQUISA BIO-CIENTÍFICA

Os valores constitucionais assegurados dizem respeito à preservação de bens jurídicos e de direitos fundamentais caros à sociedade. Nesse sentido, também a atividade científica deve se embasar nesses valores, uma vez que

limitações ou proibições de pesquisas sobre o genoma devem ser determinadas a partir de colisões com direitos fundamentais, com outros bens jurídicos protegidos ou outros instrumentos jurídicos semelhantes, inclusive as Declarações de Direitos Humanos (MYSZCZUK, 2005, p. 78).

A Constituição Federal pátria traz um rol de bens jurídicos a ser preservados, presentes também nas legislações infraconstitucionais. Visível é o fato de que não há a possibilidade de se estabelecer um bem jurídico comum a todas as pesquisas genéticas possíveis, uma vez que cada uma possui suas peculiaridades e formas de atuação. Dessa forma, “los problemas y los riesgos que presenta una realidad de esta magnitud debe llevarnos a reconocer en que son muchos y muy variados los bienes jurídicos que pueden llegar a verse afectados” (ROMEO MALANDA, 2006, p. 120).

Diante das novas tendências das pesquisas genéticas, apresenta-se, a seguir, os principiais bens ou valores sociais, ao lado da dignidade da pessoa humana, a ser preservados na adequação das atividades biocientíficas.

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3.1.1 Principais Bens Jurídicos Tradicionais

Tradicionalmente, a constituição preserva alguns valores fundamentais. São inúmeros os bens preservados, porém, limitando o objeto do estudo, descreve-se os princípios basilares quando se trata das pesquisas de manipulação da vida, ao lado do já destacado princípio da dignidade da pessoa humana.

3.1.1.1 Vida

Acompanhando as técnicas de pesquisas genéticas de sua aplicação prática, ou simplesmente de sua pesquisa em seres vivos, há o risco de trazer lesões, principalmente no sentido de privação da vida. Nesse sentido, é clara a previsão constitucional quando quer preservar toda forma de vida e sua dignidade como valor fundamental a toda sociedade. Em relação aos seres humanos, essa proteção, por claro, não deve se estender somente aos seres nascidos, como também aos que ainda não nasceram; é o caso dos nascituros, cuja proteção se encontra na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o Código Civil de 2002, que em seu artigo 2º garante a proteção e a integridade, desde a concepção, dos ainda não nascidos.

Assim, Alexandre de Moraes (2000, p. 61) destaca que “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito a existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive a uterina.” Dessa forma, a vida constitui-se enquanto princípio basilar de proteção, uma vez que é essencial para o exercício de todos os outros direitos.

Há doutrinadores que apresentam tal direito sem a possibilidade de reservas, destacando que o entendimento desse conceito deve ser amplo. Como afirma José Afonso da Silva (1994, p. 182),

a vida humana de que trata a Constituição Federal, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais), sendo abrangente do direito à dignidade da pessoa humana, do direito à privacidade, do direito à integridade físico-corporal, do direito à integridade moral, e, especialmente, do direito à existência.

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Nesse sentido, a preservação e tudo o que envolve a proteção à vida se constitui enquanto direito e garantia fundamental de todos, tanto dos seres humanos quanto das demais formas de vida, conforme exposto nos artigos 225 e 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

3.1.1.2 Integridade física pessoal

Esse princípio encontra-se mais focado às possibilidades de intervenção em seres humanos, devido às possíveis lesões físicas causadas por experimentações genéticas. A aplicação de novas técnicas não plenamente pesquisadas, ou mesmo a intervenção sem pesquisas conclusivas prévias, pode ter várias consequências negativas. Por isso, a integridade física pessoal funciona como um grande limitador para aplicações de todo e qualquer tipo de pesquisas e intervenções gênicas para preservar a integridade a todos. A partir disso, Romeo Malanda destaca que

En efecto, una intervención genética, como puede ser el caso de una terapia génica, puede causar al paciente consecuencias imprevistas (o previstas) para su salud, aunque no llegue a ocasionarle la muerte, siendo el paciente, a estos efectos, tanto el ser humano nacido como ser humano no nacido. [...] Este riesgo aumenta cuando se trata de técnicas experimentales, pues en tales casos son totalmente desconocidos los efectos de dicha actuación pueda producir en el sujeto objeto de experimentación (2006, p. 137).

Essa proteção deve ser extensiva a todo e qualquer momento da vida, ou seja, desde a concepção até o último suspiro, sob pena de degradação da integridade e da vida, ferindo outro princípio constitucional, qual seja, o da dignidade da pessoa humana. Ligado a esse e digno de proteção, encontra-se o direito à saúde como meio essencial de se evitar lesões.

3.1.2 Novos Bens Jurídicos em Relação às Pesquisas e Intervenções Genéticas

Para além dos chamados bens tradicionais, as intervenções sobre a estrutura da vida trazida pelas novas tecnologias abrem várias reflexões de seu alcance e possibilidade, impondo, também, a necessidade de consideração e ponderação de novos valores.

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3.1.2.1 Superveniência da espécie humana

As intervenções e manipulações genéticas podem produzir vários aspectos significativos, desde os benéficos até a quebra do equilíbrio natural, desenvolvido paulatinamente durante milhões de anos. A possibilidade de várias intervenções e manipulações genéticas traz riscos não apenas à espécie humana como às demais. Nesse sentido, Romeo Malanda (2006, p. 147) destaca que “la evolución tecnológica (no solo a biotecnológica) ha venido acompañada del aumento de los riesgos, no ya únicamente para parcelas aisladas de la población, sino incluso para la especie humana en su conjunto”.

Portanto, pelas possibilidades de desenvolvimento, pode o ser humano alterar significativamente as estruturas vitais existentes, e isso possui duplo significado. Ao mesmo tempo em que é capaz de alterar a natureza ao seu entorno, também é igualmente capaz de alterar sua natureza. Detendo-se à modificação capaz da estrutura humana, Malanda destaca que

La superveniencia de la especie humana debe ser entendida en un doble sentido. Por un lado deben evitarse aquellas técnicas que pueden suponer, no tanto la desaparición de la vida, sino su evolución no natural hacia outra especie distinta. Ello podría suceder mediante la provocación artificial de modificaciones genéticas en el ser humano, de tal forma que lleguen a sustituirse los caracteres próprios de la espécie humana por otros, que quizás consigam que los nuevos seres se adapten mejor a las nuevas circunstancias, pero que suponen la extinción de la especie humana tal e como se conoce em la actualidad. La evolución natural es un elemento innato a la especie humana. Ahora, bien, la provocación artificial de la evolución puede producir consecuencias desconocidas e imprevisisbles para las cuales el hombre no se encuentra preparado (2006, p. 147).

Destaca-se, ainda, que a superveniência da espécie humana não acontece e não poderá acontecer tomando-se em consideração o ser humano isolado no Planeta, uma vez que cada vez mais se demonstra a ligação essencial entre todas as espécies. Dessa forma, a diversidade genética e a preservação das demais formas de vida é essencial para a manutenção da espécie humana. Portanto, atos atentatórios a essa diversidade também devem ser considerados como atentatório à própria espécie humana. Esse ato é importante para a coletividade do homem, sendo, portanto, um bem jurídico coletivo. Nesse sentido, “la existencia del presente bien jurídico carece de toda duda pues con él se pretende garantizar nada menos que la propria existencia de los seres humanos” (ROMEO MALANDA, 2006, p. 151).

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3.1.2.2 Identidade genética enquanto digna de proteção

É por claro que na Constituição pátria do Brasil não há menção à proteção à integridade genética como um bem-jurídico fundamental. No entanto, devido às possibilidades atuais de suas alterações pelas novas biotecnologias, há a nascente e crescente preocupação doutrinária, por parte do Direito e da ética, com sua consequente reflexão filosófica, sobre tal proteção. Nesse sentido, enquanto proteção específica da identidade genética humana, Romeo Malanda destaca que

En la actualidad puden encontrarse disposiciones que aparentemente apuntan en dicha dirección. Así, la Declaración Universal Sobre el Genoma Humano y los Derechos Humanos, de 11 de noviembre de 1887, estabelece en su art. 11 que “no deben permitirse las prácticas que sean contrarias a la dignidad humana, como la clonación con fines de reproducción de seres humanos [...]”. Igulamente, el art. 2b.) dice que la dignidad impone el respeto a la unicidad de todos los indivíduos (2006, p. 163).

Por sua importância, a preservação da integridade genética deve estar elencada no patamar de bem jurídico a ser preservado enquanto bem jurídico fundamental, mesmo que não previsto constitucionalmente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações sobre biodireito, bioética e biossegurança, elencadas no decorrer deste trabalho, não tiveram o intuito de serem conclusivas, porém a pretensão foi a de iniciar um esboço de reflexão sobre tema tão amplo e cada vez mais relevante para as relações sociais atuais.

A reflexão sobre as possibilidades desenvolvidas pelas ciências e tecnologias de manipulação genética envolvem vários fatores práticos, éticos e legais, que, em última análise, devem se entrelaçar no desenvolvimento das atividades científicas e biotecnológicas. Assim, a reflexão (bio)ética encontra seu fundamento na problematização das técnicas aplicadas e seus limites de atuação, principalmente sobre técnicas desenvolvidas pela biotecnologia, e da aplicação das descobertas e dos produtos finais provindos de técnicas industriais. O (bio)direito, por sua vez, preocupa-se com a regulação e os limites normativos e legais de interferência nas estruturas essenciais e na aplicação das tecnologias em casos concretos, partindo das preocupações sociais e das reflexões da bioética para formular preceitos normativos fundamentais e mínimos para regular as práticas biotecnológicas na sociedade, sem deixar de lado, porém, a universalidade característica do direito.

Essencial a esse entendimento é, portanto, a preservação de valores caros à sociedade e passíveis de serem protegidos a nível constitucional. O primeiro valor, e o mais fundamental entre eles, é o da dignidade da pessoa humana, centro e cerne do sistema normativo nacional, que, por sua importância, é fundamento da República Federativa do Brasil, assim definido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1982. Ao lado desse, outros princípios devem ser observados, tais como: a inviolabilidade da vida humana, a superveniência da espécie humana e a integridade genética. Esses dois últimos não previstos constitucionalmente, mas por sua importância, a proteção deve a eles ser estendida devido às vastas possibilidades alcanças pela atualmente pela biotecnologia.

Nesse sentido, é relevante a contribuição de Hans Jonas quanto à proposta e à observação do Princípio Responsabilidade nas atividades científicas e biotecnológicas, embasando as ações tecnológicas e apresentando fundamentos éticos de ação. Ao encontro dessa proposta, é essencial a compreensão da necessidade da preservação das estruturas essências, tanto às presentes quanto às futuras gerações. Reflexão esta que vai de encontro ao previsto constitucionalmente no artigo 225, guarnecendo que o meio ambiente equilibrado é um bem da presente e das futuras gerações e digno de preservação. Entendimento o qual deve se estender também ao cuidado com a integridade genética.

Portanto, a biotecnologia, a bioética e o biodireito, em sua ação, devem levar em consideração os valores expostos acima. Dessa forma, a construção de uma sociedade eticamente responsável passa pelo conhecimento complexo, ou seja, pelo diálogo interdisciplinar entre as diversas áreas do saber, levando em consideração a realidade que a envolve e o conjunto de conhecimentos, uma vez que o desenvolvimento científico ultrapassa a fronteira individual e atinge a sociedade como um todo, exigindo, portanto, respostas múltiplas, albergando as riquezas do pensamento humano como um todo.

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545Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

O presente artigo propôs buscar informações sobre a iniciação científica desenvolvida no Brasil entre os anos de 2001 a 2010, traçando como objetivo geral apresentar o perfil da iniciação científica no Brasil nesse período especificado. A pesquisa parte de uma análise histórica sobre iniciação científica, conceitos de pesquisa, conceitos de bolsa e de auxílio e, por fim, uma análise dos dados extraídos do site do CNPq para analisar a evolução da iniciação científica no Brasil ao longo da década analisada. A metodologia desenvolvida tem como ponto de partida o referencial teórico sobre o histórico da iniciação científica e definição de variáveis a serem analisadas, tais como: número de bolsas, modalidades de pesquisa e nível de investimento. As variáveis definidas serviram de base de dados para o desenvolvimento de análises, possibilitando, dessa forma, uma compreensão sobre a evolução da iniciação científica. Como resultado, tornou-se possível identificar que, embora a iniciação científica apresente um grau de relevância em relação às demais modalidades de pesquisa, seu crescimento apresenta-se pouco significativo no tocante ao número de bolsas concedidas e níveis de investimento, além de uma significativa predileção por determinadas áreas do conhecimento.

Palavras-chave: Pesquisa. Iniciação Científica. Bolsa de pesquisa. Investimento.

INICIAÇÃO CIENTÍFICA NO BRASIL – PERÍODO DE 2001 A 2010

* Aluna do 3º ano de Administração, da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012). E-mail: [email protected]

** Doutora em Engenharia da Produção (UFSC). Professora de graduação e pós-graduação da FAE Centro Universitário. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Acadêmica da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

Nathalia Johanna Greidanus* Cleonice Bastos Pompermayer**

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA546

INTRODUÇÃO

A ciência e a tecnologia, como já se sabe, é uma das chaves para o sucesso no crescimento e desenvolvimento de uma sociedade ou nação. A ciência é o estudo rigoroso de um objeto, dentro de uma norma ou método científico; e a tecnologia, termo originado do grego que significa estudo da técnica, arte, ofício, é o conhecimento técnico e científico, e suas ferramentas são os processos e materiais utilizados a partir de tal conhecimento. Em termos econômicos, a tecnologia é o emprego do conhecimento para combinar recursos e produzir algo desejado.

A pesquisa científica é um dos meios de se atingir a ciência e a tecnologia. Para autores como Gil (2002) é um procedimento racional sistemático que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas formulados. A pesquisa é muito importante quando não se tem muita informação sobre o objeto a ser estudado, ou as informações são desconexas. Outros autores, como Ludke e André (1986), citam que ao se fazer uma pesquisa é preciso que haja um confronto de dados entre evidências e informações coletadas sobre um determinado assunto, além do conhecimento teórico sobre ele, que muitas das vezes ocorre a continuidade de uma pesquisa já iniciada por outros pesquisadores. Azevedo (1999) diz que é importante que a pesquisa tenha um tema suficientemente importante, que tenha relevância científica e social, para que possa ser explorada posteriormente. Santos (1999) comenta que existem três grandes beneficiários com a pesquisa: sociedade, ciência e escola.

De acordo com os autores mencionados, é possível refletir sobre a influência que o Estado tem sobre o desenvolvimento, incentivo e investimento da ciência e tecnologia. Além desses fatores externos, para se realizar uma pesquisa exige-se rigor, tempo e recursos dos mais variados tipos, como o humano e o financeiro. Além disso, é um processo que demanda paciência também aos que estão investindo, pois os resultados são vistos, observados num longo prazo, já que esse processo é gradual e fragmentado, a fim de que se chegue à compreensão do todo.

Partindo-se da importância da pesquisa e seu papel na sociedade, tornam-se necessários estudos, incentivos e acompanhamentos sobre o seu desenvolvimento nas esferas educacionais e governamentais. Esse acompanhamento pode se dar por meio de investigações constantes sobre as ações e políticas empreendidas por esses segmentos.

O presente artigo se propôs buscar informações sobre a iniciação científica desenvolvida no Brasil entre os anos 2001 a 2010. Diante do exposto, a questão central deste artigo é apresentar o perfil da pesquisa científica desenvolvida no Brasil na última década, e observar a evolução da iniciação científica no âmbito da pesquisa. Para tanto, o

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objetivo geral concentra-se em apresentar o perfil e características da iniciação científica no Brasil no período de 2001 a 2010.

Para o desenvolvimento, foram traçados os seguintes objetivos: contextualizar a origem da iniciação científica no Brasil, identificar a evolução da iniciação científica segundo modalidades de pesquisa e investimentos, e avaliar a representatividade da iniciação científica em relação a outras modalidades de pesquisas realizadas por programas de fomento.

A metodologia adotada partiu de uma pesquisa exploratória, com pesquisa bibliográfica em livros relacionados à temática proposta, bem como em publicações periódicas, artigos científicos, principalmente da base Scientific Electronic Library Online (ScIELO), e em pesquisa documental, retirados de sítios eletrônicos, como o do órgão de fomento CNPq e Fundação Araucária.

Após a análise das variáveis a serem estudadas, os dados referentes a elas foram coletados e extraídos junto a um dos principais órgãos de fomento, o CNPq. A técnica utilizada para realização da análise foi por meio de uma abordagem vertical e horizontal na série histórica de 2001 a 2010, relacionada ao número de bolsas de iniciação científica, na modalidade de pesquisa e investimentos em pesquisa.

O artigo encontra-se estruturado na seguinte série: contexto histórico, conceitos de pesquisa, conceito de bolsa-auxílio, evolução da iniciação científica (IC) no Brasil e análise dos dados levantados e, finalmente, as considerações finais.

1 CONTEXTO HISTÓRICO

Na década de 1940, já havia práticas de atividades entre professores e alunos de pesquisa acadêmica (BARIANI, 1998), porém a sua institucionalização se deu a partir da década de 1950, quando foi criado o CNPq, o qual criou o programa de iniciação científica, concedendo bolsas anuais para fomentar a pesquisa na graduação.

A Iniciação Científica (IC) como atividade universitária institucionalizada foi uma reprodução de modelos estrangeiros “Para criar o programa de Iniciação Científica, as universidades brasileiras foram buscar inspiração nos países que já tinham uma atividade científica institucionalizada: Estados Unidos e França.” (BAZIN, 1983, p. 82). Por consequência, surgiu a Iniciação Científica no Brasil, a qual, desde sua implantação, se tornou algo seletivo, elitista e limitado desde sua criação, destinado a uma pequena parcela dos alunos do Ensino Superior.

Para que houvesse um efetivo financiamento das atividades de IC, as universidades conseguiram apoio na Lei da Reforma Universitária de 1968 (Art. 2º, da Lei nº 5.540, de

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA548

28/11/1968), a qual determinou o “princípio da indissociabilidade ensino-pesquisa” como uma “norma disciplinadora do ensino superior” (MALDONADO, 1998). E, em 1988, foi incorporada à nova Constituição brasileira essa associação entre pesquisa e ensino, o que pode proporcionar um pouco mais de visibilidade e volume de investimento à modalidade de pesquisa.

Nesse novo cenário da pesquisa para universitários, em 1988 foi criado pelo CNPq o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). O programa traçou alguns objetivos principais como:

•AvaliaçãodaICcomoatividadedeformaçãodouniversitário;

•AvaliaçãodoPIBICcomrelaçãoaosobjetivosalmejadospeloprograma;

•CaracterizaçãodealgumasparticularidadesdodesenvolvimentodaatividadedeIC.

De acordo com dados do CNPq (BRASIL, 2010), o aumento de bolsas concedidas para o programa de IC tem sido expressivo desde a sua implementação até os dias atuais. Massi e Queiroz (apud MARTINS; MARTINS, 1999) definem a década de 1990 como a fase de valorização da modalidade IC, “período da IC”, na qual houve maior investimento por parte do Estado para a pesquisa.

Luciana Massi, em sua tese de doutorado, mostrou que estudos comprovam que a IC tem tido cada vez mais influência na formação educacional, e esses dados são confirmados pelos autores Aragón, Martins e Velloso (1999), em uma pesquisa encomendada pelo CNPq. Nessa pesquisa foi possível constatar que um ex-aluno bolsista do PIBIC tem seis vezes mais chance de iniciar uma pós-graduação do que um graduado não bolsista. Isso porque “3 em cada 10 bolsistas PIBIC chegam ao mestrado [...] o prazo médio de transição entre a conclusão da graduação e o ingresso no mestrado, para um ex-bolsista PIBIC, é de 1,2 ano”, enquanto para os não bolsistas chega a 6,8 anos em média (ARAGÓN; MARTINS; VELLOSO, 1999), ratifica Massi.

Apesar de nos últimos anos ter sido crescente o número de bolsas concedidas para a IC, nos últimos cinco anos houve uma estabilização, mantendo uma média de participação de 12% com relação às demais modalidades de pesquisa científica (CNPq, 2010).

A Iniciação Científica está inserida no conjunto da Ciência e Tecnologia de uma determinada nação, e para entender melhor como a posição dessa modalidade no rol de desenvolvimento de um país, é preciso, primeiramente, analisar o contexto histórico.

Um estudo realizado nos anos 1980 por Eduardo M. Krieger e Fernando Galembeck mostrou que o Brasil não estava preparado para um investimento massivo em pesquisa, tampouco se observou a necessidade do desenvolvimento da pesquisa. Desde o início da implantação da iniciação científica, o comprometimento do governo com a pesquisa

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tem sido pequeno, lento e muito elitizado em comparação a outros países, nos quais, por exemplo, alinham a pesquisa à prática concomitantemente desde a graduação (BAZIN, 1983).

Historicamente, pode-se notar que o governo brasileiro, maior investidor em pesquisa, não se preocupou com esse assunto. Nos anos 1930, com o governo de Getúlio Vargas, houve importação e não a criação de tecnologia no Brasil, o que estimulou apenas a formação de recursos humanos treinados para a reprodução e manuseio das novas técnicas, e não um desenvolvimento de novas técnicas, novos meios.

Com o Golpe de 1964, houve uma separação do setor acadêmico do setor econômico, o que aprofundou ainda mais a situação. Segundo Krieger e Galembeck, SCHWARTZMAN(1995), verificou-se que:

- perenidade de um conflito estéril de interesses entre os defensores da “pesquisa básica” e os da “pesquisa aplicada”, ignorando a dependência inerente entre ambas e a necessidade de atividade simultânea entre elas.

- a ausência de argumentos de rejeição mútua, entre profissionais e pesquisadores universitários; sociedades científicas e sociedades profissionais são corpos distintos, que não interagem entre si, com exceção de alguns casos notáveis.

- a existência de argumentos de rejeição mútua, entre profissionais de empresas e pesquisadores universitários, embora tenham todos a mesma origem – a universidade.

Ainda hoje não houve uma mudança radical no pensamento, apesar de números apontarem um maior investimento brasileiro no âmbito da pesquisa Krieger e Galembeck (1996).

Como a iniciação científica é a porta de entrada para iniciar um jovem nos ritos, técnicas e tradições da ciência, este programa foi instituído dentro das universidades brasileiras como uma atividade desempenhada na graduação, com a orientação de um docente. Além do CNPq, existem também as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs), que também financiam a IC.

Mesmo com um aumento no número de bolsas para a iniciação científica nas últimas décadas, ainda não são suficientes para o número de estudantes na graduação. Conforme a com a tabela abaixo, pode-se notar que as quantidades ofertadas são consideravelmente pequenas, bem como distribuídas de forma desigual. Isso, todavia, impossibilita que os alunos de graduação obtenham a experiência com pesquisa científica.

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TABELA 1 – Número de bolsas segundo região

ANO

REGIÃO

TOTAISNORTE NORDESTE SUDESTE SUL

CENTRO-

OESTE

2001 796 3.842 9.091 3.644 1.404 18.778

2002 775 3.725 9.095 3.892 1.377 18.864

2003 784 3.421 8.923 3.758 1.352 18.237

2004 820 3.595 9.589 3.717 1.535 19.255 2005 850 3.884 9.774 3.745 1.658 19.912

2006 980 4.174 9.957 3.790 1.802 20.703

2007 1.050 4.313 10.033 3.839 1.786 21.022

2008 1.157 4.602 10.413 4.020 1.826 22.018

2009 1.320 5.131 11.266 4.447 2.031 24.195

2010 1.604 6.348 15.359 5.143 2.370 30.823

TOTAIS 10.135 43.033 103.502 39.997 17.140 213.807 FONTE: CNPq/AEI. Adaptação dos dados do período 2001 a 2010 feito pelos autores. (2012)

2 CONCEITOS DE PESQUISA

Para se esclarecer sobre os conceitos de pesquisa, buscou-se entender os dois tipos de conhecimento que existem: o conhecimento com base em dados empíricos, por dedução, baseado em imitação e transmitido de maneira informal; e o científico embasado, ou seja, é um pensamento treinado, regido pela razão, conduzido de forma racional. O que diferencia um conhecimento um do outro não é seu conteúdo nem o objeto, mas sim a forma como ele é adquirido, o método que é utilizado para cada um.

Há ainda outros dois tipos de conhecimento: o filosófico e o religioso. O filosófico é baseado essencialmente em hipóteses, é racional, vem da experiência, sendo fundamentalmente racional – já que seu aprofundamento é baseado em lógica e não em métodos empíricos. Por fim, o conhecimento religioso é um conhecimento que também se caracteriza pelo modo valorativo, vem por intermédio da inspiração, sendo regido, necessariamente, por doutrinas. Seu conhecimento não é verificado, e é aceito pela fé.

Por sua vez, a ciência é a sistematização dos conhecimentos “um conjunto de proposições logicamente correlacionadas sobre o comportamento de certos fenômenos que se deseja estudar” (LAKATOS; MARCONI, 2003, p. 80).

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3 ORGÃOS DE FOMENTO À PESQUISA

Para tornar a pesquisa viável, são necessários veículos que fomentem os processos, para que possa ser realizada a pesquisa. Segundo o site das Fundações e Entidades de Amparo a Pesquisa (FAPs), “As agências de fomento têm como objeto social a concessão de financiamento de capital fixo e de giro associado a projetos na Unidade da Federação onde tenham sede”, com o intuito de desenvolver e melhorar o País.

No Brasil, atualmente, conta-se com órgãos federais, estaduais, e privados. Para os institutos federais conta-se com:

• ANP – Agência Nacional do Petróleo;

• Capes – Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior;

• CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico;

• Finep – Financiadora de Estudos e Projetos;

• MRE – Bolsas de Pós-Graduação para estudantes Estrangeiros (PEC-PG);

• Pronex – Programa de Apoio a Núcleos de Excelência;

• Prossiga – Programa de Informação e Comunicação para Pesquisa.

Nos estados brasileiros conta-se, principalmente, com as FAPs. O Brasil dispõe, em quase todos os estados, uma FAP para fomento próprio à pesquisa local, somando no total 23 agências.

Como alguns exemplos, as principais agências são:

1. Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo;

2. Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná;

3. Facepe – Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco;

4. FAP-DF – Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal;

5. Fapemig – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais;

6. Fapergs – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul;

7. Faperj – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro;

8. Funcitec – Fundação de Ciência e Tecnologia do Estado de Santa Catarina.

Os órgãos de fomento à pesquisa têm como diretriz propiciar aos mais jovens a experiência no universo da pesquisa científica, como, por exemplo, a iniciação científica; e aos pesquisadores por profissão, mestre e doutores, um canal que viabiliza e oportuniza produção de mais conhecimento e informação.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA552

O objetivo essencial dos órgãos de fomento é de oferecer condições para se realizar pesquisa, principalmente relevância para o desenvolvimento econômico, cultural e social da sociedade. Visa, sobretudo, à inovação tecnológica do setor produtivo, ao intercâmbio e à divulgação científica, tecnológica e cultural; além de estimular a formação de recursos humanos, o fortalecimento e a expansão da infraestrutura de pesquisa no Estado.

Os recursos financeiros custeiam projetos de pesquisa científica e tecnológica, e são advindos, principalmente, dos tributos das receitas estaduais. Nos sites das FAPs do estado de São Paulo e Paraná, divulga-se que os investimentos são de, aproximadamente, 1% e 2%, respectivamente.

4 CONCEITO DE BOLSA-AUXÍLIO

A bolsa (mensalidade) e os auxílios são os meios mais tradicionais de se amparar a pesquisa científica. São concedidos por meio de acordo com o tipo de pesquisa a ser realizada, seja ela iniciação científica ou pós-graduação. Concedidos em circunstâncias normais por período de um ano, não sendo permitido um período menor que seis meses para a concessão de bolsas pelo CNPq.

A bolsa para iniciação científica, por exemplo, pode ser renovável após uma análise do desempenho do bolsista e de seu histórico escolar; já para o mestrado, o período de sustento a pesquisa é de 24 meses, assim como para as demais modalidades com seus critérios.

Além da concessão de bolsas, o CNPq, assim como outras fundações de amparo à pesquisa, proporciona auxílio à pesquisa como detalhado no site do próprio CNPq: participação em eventos e congressos científicos, editoração de revistas cientificas.

O quadro abaixo mostra a relação que é feita, para a concessão de bolsas de pesquisa científica, dados coletados e adaptados do site do CNPq.

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QUADRO 1– Critério de concessão de bolsas e auxílios / CNPq

Bolsas no País

Graduação

MODALIDADE FINALIDADE BENEFÍCIOS DURAÇÃO MENSALIDADE

Iniciação Científica - IC

Despertar vocação científica e incentivar talentos potenciais entre estudantes de graduação universitária, mediante participação em projeto de pesquisa, e orientados por pesquisador qualificado.

Mensalidade

Até 12 meses ao estudante, renovável, sucessivamente, por tempo indeterminado à entidade parceira.

R$360,00

Pós-graduação

MODALIDADE FINALIDADE BENEFÍCIOS DURAÇÃO MENSALIDADE

Mestrado - GMApoiar a formação de recursos humanos no âmbito de pós-graduação.

MensalidadeAté 24 meses ao estudante, improrrogáveis.

R$1.200,00

Doutorado Pleno - GDApoiar a formação de recursos humanos no âmbito de pós-graduação.

MensalidadeAté 48 meses ao estudante, improrrogáveis.

R$1.800,00

FONTE: CNPq/AEI. Adaptado pelos autores (2012)

5 A EVOLUÇÃO DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA NO BRASIL

Para melhor compreensão sobre o comportamento da IC no Brasil, o item a seguir apresenta seu comportamento evolutivo no período analisado.

Para tanto, considera-se o número de bolsas destinadas à pesquisa no Brasil segundo modalidade de pesquisa e investimentos em iniciação científica, estimados em reais, e o número de bolsas segundo grande área do conhecimento e investimentos nas grandes áreas.

5.1 ANÁLISE POR MODALIDADE DE PESQUISA

A análise dos dados a seguir foi feita a partir de duas variáveis: número de bolsas por modalidade de pesquisa, e investimento, em reais, segundo modalidades de pesquisa. Tomado por esse pressuposto, verifica-se a evolução das modalidades de pesquisa no período de 2001 a 2010 sob uma análise vertical e outra horizontal.

Em uma análise ano a ano, para cada modalidade de pesquisa, observa-se que a evolução da concessão de bolsas de IC é superior às demais, contudo seu número não

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aumentou, sendo que nos últimos dez anos caiu 23%, enquanto para o doutorado 18%, e o mestrado apresentou média de 13% ao longo da década.

A representatividade e a importância quanto ao número de bolsas concedidas para IC em 2001 mostra-se considerável – 223% superior ao volume de bolsas para doutorado e mestrado, e 31% a mais do número de bolsas que é fornecido para o agrupamento das demais modalidades de pesquisa, o que revela a importância da IC para o CNPq.

Para o ano de 2010, mesmo com uma queda no número de bolsas proporcionadas para a IC com relação às demais modalidades, o volume de bolsas continuou superior às quantidades proporcionadas ao doutorado e mestrado, sendo de 209% e 223%, respectivamente, conforme a tabela 1 a seguir:

TABELA 1 – Número de Bolsas segundo modalidade de pesquisa

ANO

MODALIDADES DE PESQUISA

TOTAISINICIAÇÃO

CIENTÍFICADOUTORADO MESTRADO

DEMAIS

MODALIDADES

2001 42% 13% 13% 32% 100%

2002 42% 13% 12% 34% 100%

2003 39% 13% 13% 35% 100%

2004 38% 12% 13% 37% 100%

2005 38% 13% 14% 35% 100%

2006 37% 13% 14% 36% 100%

2007 35% 13% 14% 39% 100%

2008 35% 13% 14% 38% 100%

2009 35% 12% 15% 38% 100%

2010 34% 11% 13% 41% 100%

FONTE: CNPq/AEI. Adaptado pelos autores (2012)

Do ponto de vista de investimentos monetários, a IC, com relação às demais modalidades de pesquisa, apresentou uma média de 12% ao longo do período; o doutorado apresentou uma média de 24%; o mestrado, 14%; e as demais modalidades agrupadas, 50% do total.

Em uma análise vertical, houve um decréscimo nos investimentos de 2% para a iniciação científica; um aumento de 3% para o doutorado; o mestrado aumentou 1%; e as demais modalidades os investimento caíram 2%, analisando apenas o primeiro e o último ano do período.

Fazendo uma comparação entre os investimentos médios, relativos ao período estudado, com relação à IC e ao doutorado há uma diferença significativa de -50% para

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IC; e observando o IC e o mestrado, nota-se uma diferença de 14%, conforme mostra a tabela 2, logo abaixo.

TABELA 2 – Investimentos na Modalidade de Iniciação Científica

ANO

MODALIDADES DE PESQUISA

TOTAISINICIAÇÃO CIENTÍFICA

DOUTORADO MESTRADODEMAIS

MODALIDADES

2001 15% 21% 14% 50% 100%

2002 14% 20% 13% 53% 100%

2003 12% 22% 12% 53% 100%

2004 10% 23% 13% 53% 100%

2005 11% 24% 13% 52% 100%

2006 12% 25% 14% 49% 100%

2007 11% 25% 14% 50% 100%

2008 11% 26% 16% 47% 100%

2009 10% 27% 18% 45% 100%

2010 13% 24% 15% 48% 100%FONTE: CNPq/AEI. Adaptado pelos autores (2012)

Pode-se afirmar que essa diferença negativa apresentada anteriormente se dê devido ao valor unitário da bolsa de IC ser bastante inferior às de doutorado e mestrado, conforme pôde ser visto no quadro 1, apresentado anteriormente no item 4.

5.2 ANÁLISE POR GRANDE ÁREA DO CONHECIMENTO

Um aspecto importante a ser considerado quanto ao estudo de evolução ao estudo em pesquisa refere-se à distribuição da mesma em relação às áreas de conhecimento, uma vez que essa distribuição evidencia as prioridades determinadas em políticas econômicas e educacionais.

A análise dos dados a seguir foi desenvolvida com os dados da iniciação científica a partir de duas variáveis: número de bolsas, e investimento, em reais, segundo as grandes áreas do conhecimento. Tomado por esse pressuposto, verifica-se na tabela abaixo a evolução das grandes áreas do conhecimento no período de 2001 a 2010 sob uma análise vertical e outra horizontal.

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TABELA 3 – Número de bolsas de IC segundo grandes áreas do conhecimento

FONTE: CNPq/AEI. Adaptado pelos autores (2012)

ANO

GRANDE ÁREA DO CONHECIMENTO

TOTAISCiências Humanas

Ciências Sociais

Aplicadas

Linguística Letras Artes

Ciências Agrárias

Ciências Bioló-gicas

Ciências da

Saúde

Ciências Exata e da Terra

Enge-nharias

Outros

2001 15% 7% 5% 17% 17% 13% 13% 14% 0% 100%

2002 15% 8% 4% 13% 18% 13% 13% 16% 0% 100%

2003 15% 8% 5% 13% 18% 13% 14% 16% 0% 100%

2004 15% 7% 5% 13% 17% 12% 15% 15% 0% 100%

2005 14% 7% 5% 14% 17% 13% 15% 15% 1% 100%

2006 14% 7% 5% 14% 17% 14% 14% 14% 1% 100%

2007 14% 7% 5% 14% 17% 14% 14% 14% 1% 100%

2008 14% 7% 4% 14% 17% 14% 14% 14% 1% 100%

2009 14% 7% 5% 14% 17% 14% 15% 13% 1% 100%

2010 13% 6% 4% 13% 14% 13% 24% 12% 1% 100%

Para melhor entendimento dos dados, foram criados dois agrupamentos, classificando grupo I as áreas mais beneficiadas pelo CNPq, e o grupo II são as menos favorecidas.

O grupo I é composto pelas áreas de: Ciências Humanas, Ciências Agrárias, Ciências Biológicas, Ciência da Saúde, Ciências Exatas e da Terra, e Engenharias, com percentuais do número de bolsas concedidas à IC variando de 17% a 13%. Já o grupo II é composto pelas áreas de Ciências Sociais e Aplicadas; Linguística, Letras e Artes; e outros, com percentuais variando de 8% a 0%.

Examinando e comparando o grupo I com relação ao grupo II, pode-se perceber um volume bastante superior, 257% a mais para o grupo I.

Analisando isoladamente as áreas de conhecimento que possuem uma média de, aproximadamente, 17% em relação às áreas de Linguística, Letras e Artes – média de 4,5%, nota-se essa desarmonia, que chega a ser 273% superior às Ciências Biológicas.

Para a tabela de investimentos em IC segundo as grandes áreas de conhecimento (TAB 4), partiu-se também da classificação em grupos, como explicado anteriormente.

557Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

FONTE: CNPq/AEI. Adaptação dos dados do período 2001 a 2010 feito pelos autores. (2012)

TABELA 4 – Investimentos em IC Segundo Grande Área do Conhecimento

ANO

GRANDE ÁREA DO CONHECIMENTO

TOTAISCiências Humanas

Ciências Sociais

Aplicadas

Linguística, Letras Artes

Ciências Agrárias

Ciências Bioló-gicas

Ciências da

Saúde

Ciências Exatas e da Terra

Enge-nharias

Outros

2001 11% 6% 3% 13% 17% 8% 17% 24% 0% 100%

2002 12% 7% 3% 14% 16% 8% 16% 23% 1% 100%

2003 12% 6% 3% 14% 18% 8% 16% 21% 2% 100%

2004 11% 5% 3% 12% 16% 8% 17% 21% 7% 100%

2005 11% 5% 3% 13% 18% 10% 18% 20% 4% 100%

2006 11% 5% 3% 12% 18% 11% 16% 20% 4% 100%

2007 9% 4% 2% 12% 18% 10% 17% 20% 8% 100%

2008 9% 5% 3% 14% 19% 11% 17% 18% 5% 100%

2009 9% 4% 2% 17% 18% 10% 16% 18% 6% 100%

2010 9% 5% 2% 16% 18% 11% 17% 18% 5% 100%

O grupo I contou com percentuais de bolsas concedidos à IC para as ciências variando de 17% a 9%; e o grupo II com percentuais variando de 5% a 4% dos investimentos totais para a modalidade de IC.

Pode-se notar uma diferença percentual de 263% do grupo I com relação ao grupo II, o que significa 263% a mais de investimentos para o grupo I.

Analisando isoladamente as áreas de conhecimento de Ciências Biológicas – a mais favorecida de todas as áreas com aproximadamente 17% em média – em relação a área de Linguística, Letras e Artes – com 2,7% em média –, pode-se notar ainda mais a discrepância vista na análise de concessão de bolsas por áreas do conhecimento, que chega a ser de 529% superior para as Ciências Biológicas, como pode ser observado na tabela.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomando-se as etapas e as análises do tema estudado, torna-se possível tecer alguns comentários sobre a importância que a modalidade IC tem para a pesquisa no Brasil, sua representatividade apresenta-se superior às demais modalidades de pesquisa praticadas no sistema de pesquisa brasileiro, tais como mestrado e o doutorado.

Outro fator relevante e informativo é o de que a distribuição das bolsas de IC se dá de forma heterogênea entre as regiões brasileiras, destacando-se, em primeiro lugar, o Sudeste; em seguida, o Nordeste, ficando em terceira posição o Sul.

Outro fator preponderante trata-se da prioridade às áreas de conhecimento nas quais se pôde observar destacada participação das Ciências Biológicas, seguidas das Ciências Agrárias, Ciências Exatas e da Terra e Engenharias.

No tocante aos investimentos totais, os dados também demonstraram a importância da IC em relação às demais modalidades desenvolvidas, fator fundamental para a educação brasileira na busca da capacitação e produção do conhecimento.

É possível apontar também outro aspecto importante no desenvolvimento da pesquisa, ou seja, a caracterização entre a percepção sobre a pesquisa auferida por meio de leitura e pesquisa bibliográfica, bem como os indicadores quantitativos informados nos órgãos responsáveis pela pesquisa no Brasil.

559Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

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561Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

O presente artigo trata de um estudo sobre as condições necessárias para que o estudante na modalidade a distância alcance bom êxito no processo de ensino-aprendizagem. Além de revisar a literatura sobre a educação a distância, baseia-se nas teorias pedagógicas, consulta a História e analisa dados de questionário anteriormente aplicado aos alunos ingressantes nos cursos on-line da instituição de ensino mantenedora da FAE. Por considerar que a modalidade a distância está inserida no contexto dos paradigmas educacionais como propulsor de reflexões sobre todo o sistema e teorias da educação, buscou-se demonstrar a oportunidade presente nessa modalidade para um aprofundamento dessas reflexões. Os pressupostos adotados levam a crer que o sucesso dos alunos bem como o perfil ideal para o bom desempenho na aprendizagem está intimamente ligado à uma postura inovadora e democrática para a educação. A história da educação a distância e as teorias pedagógicas foram revistas com o intuito de trazer a tona aspectos que sejam comuns na evolução desses campos entre si e com o principal objeto de estudo. A análise dos dados, levantados em pesquisa documental, foi centrada no estilo de vida que melhor se ajusta aos critérios indicados para o perfil do aluno bem sucedido em cursos de graduação baseados na web. A pontuação alcançada pelos respondentes permite evidenciar a aptidão dos alunos para o bom desempenho em atividades educativas na plataforma web.

Palavras-chave: Educação a distância. Competências. Ensino-aprendizagem.

PERFIL DE ESTUDANTES DE GRADUAÇÃO NA MODALIDADE A DISTÂNCIA EM CURSOS BASEADOS NA WEB

Marta Costa Vaz*Carlos Roberto de Oliveira de Almeida Santos**

* Aluna do 4° ano de Pedagogia da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011 - 2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected]

** Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

O Plano Nacional de Educação (PNE), atualmente em vigência, contempla entre suas propostas, mecanismos legais para formação profissional e à promoção humanística, científica e tecnológica do País, bem como o aprimoramento da qualidade da educação.

Ao propor modalidades de ensino, uma em especial, a Educação a Distância e Tecnologias Educacionais, o PNE indica que, não somente o docente ou os modelos de gestão, mas também o discente/aprendiz, principal foco da educação, possua perfil diferenciado em relação à educação tradicional e conservadora.

É desafiante fugir do paradigma atual, em que professor e aluno ocupam o mesmo espaço e tempo. O desafio é fazer educação sem a presencialidade de ambos simultaneamente. Cita-se o Artigo 1º do Decreto nº 5.622/2005, no qual a Educação a Distância caracteriza-se como

modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos.

Mas como estimular o desenvolvimento de habilidades e competências por parte do aluno para que ele obtenha sucesso em cursos modelados na plataforma web?

A investigação dessa questão poderá, por meio de sua divulgação, contribuir para o aprimoramento de metodologias nas quais o aluno, ao cursar disciplinas a distância, possa cumprir ao máximo os objetivos pedagógicos definidos.

O grande desafio em levantar o perfil adequado para a aprendizagem online está em identificar as habilidades, atitudes e competências que o aluno deverá possuir para obter sucesso em cursos a distância oferecidos via web. Um dos grandes problemas enfrentados nessa modalidade é a evasão escolar, por diversas razões. Os argumentos mais contundentes para a desistência variam desde a falta de tempo para dedicar-se aos estudos até a ausência de assistência por parte do corpo docente.

Autores especialistas como Palloff e Pratt (2004) indicam propostas de pesquisa para levantamento das habilidades, atitudes e competências em cursos online.

563Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

1 PANORAMA DA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

À medida que as tecnologias mediadoras da informação e da comunicação se desenvolvem, transformam a educação a distância, que vem se aperfeiçoando e se especializando tanto em formatos quanto em metodologias.

Os investimentos na modalidade de ensino a distância para 2011, segundo os dados publicados no censo EaD-Br de 2010, realizado pela Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed) mostram crescimento para os cursos autorizados, com foco especialmente na ampliação da oferta de cursos. (ABED, 2011, p.15).

Segundo Moore (2007, p.25) a primeira geração da educação a distância, seria “quando o meio de comunicação era o texto, e a instrução por correspondência”. Com o desenvolvimento de tecnologias, como as aplicadas às redes ferroviárias que facilitaram a distribuição de correspondência, iniciou-se nos Estados Unidos, em 1880 a expansão dessa modalidade. Os cursos ofertados podiam conceder graus de bacharel ou vocacionais, sendo estes últimos cursos do tipo que atualmente classificaríamos como sem crédito. Tempos depois a rejeição de um projeto para cursos acadêmicos, que beneficiariam trabalhadores na Inglaterra, levou aos Estados Unidos o seu defensor, o pastor Richard Mouton. O pastor, junto com outro teólogo, criou cursos universitários, iniciando-se assim uma prática replicada em diversas instituições e níveis de ensino.

No Brasil o ensino a distância é praticado desde 1904. Inicialmente com o uso do Sistema de Correios para envio de material impresso mais tarde, aproveitando-se da tecnologia da radiofonia, gravação em vinil e cassete, e televisão, chegando à atualidade, em que as diversas tecnologias permitem variadas combinações e recursos para a aprendizagem.

De acordo com ALVES (2011) não há notícia das primeiras experiências com educação a distância antes do século XX no País.

Segundo a retrospectiva histórica da EaD em Maia e Mattar (2007, p.24-25) o primeiro registro de curso por correspondência consta na página de classificados do Jornal do Brasil em 1904, na forma de um anúncio, oferecendo instrução profissionalizante em datilografia.Com a difusão radiofônica, novos cursos via rádio foram ofertados em 1923, e, em 1934, além do rádio, somou-se o recurso da correspondência e do material impresso. Em 1939, tem-se nova iniciativa com o surgimento do Instituto Monitor oferecendo sistematicamente cursos profissionalizantes por correspondência. Em 1941 foi criado o Instituto Universal Brasileiro que atendeu a milhões de alunos em cursos abertos e atua até hoje. O Senac iniciou como patrocinador de cursos a distância em 1947 e ainda atua na área.

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Maia e Mattar (2007) relatam que a partir da década de 1990, Instituições de Ensino Superior (IES) começaram a desenvolver cursos a distância baseados nas novas tecnologias de informação e comunicação. Em 1996 surgem as bases legais para a modalidade de educação a distância na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 (LDB/96), e é criada a Secretaria de Educação a Distância (SEED) pelo MEC, e o Programa TV Escola da Secretaria de Educação a Distância do MEC. Em 2000 é formado um consórcio que reúne 70 instituições públicas do Brasil oferecendo cursos de graduação, pós-graduação e extensão (MAIA; MATTAR, 2007, p. 28-35).

Com a chegada do computador, da internet e a simplificação do acesso a esses recursos levam pensadores a considerar como exequível a democratização do conhecimento. Andrew Feenberg (2008) defende a busca de uma sociedade em que se reconheça o direito de todos à participação no poder, que é atributo do uso da tecnologia. Essa tecnologia é fruto e pode ser também mediadora dos conhecimentos historicamente construídos pela humanidade. Segundo Feenberg (2008. p. 9) a filosofia deve ocupar-se da questão tecnológica mais do que é comum nas ciências humanas “e explicar como a tecnologia moderna pode se resignar a se adaptar às necessidades de uma sociedade mais livre.” O desenvolvimento de uma comunidade global e informatizada que permeia e transforma relações sociais, comerciais e do conhecimento, vai refletir nas políticas públicas da educação e na legislação que as regulamentam.

De acordo com a LDBEN, (Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional nº 9.394, de dezembro de 1996), “Art. 80. O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada.” (BRASIL 1996). O Decreto nº 5.622 de 2005 vem regulamentar o art. 80 da LDBN caracterizando a EaD como

modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversas.” (BRASIL, 2005)

Em 2006 o Decreto nº 5.773 dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das IES de graduação no Sistema Federal de Ensino, incluindo os da modalidade a distância, constando no Capítulo II, na Seção I, Subseção V a disposição sobre Credenciamento Específico para a Oferta de Educação a Distância. (BRASIL, 2006) Outro marco importante para o desenvolvimento da educação a distância é percebido nos Referenciais de Qualidade para a Educação Superior a Distância, em 2007. (BRASIL 2007)

565Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

2 O ENSINO E APRENDIZAGEM PARA A ATUALIDADE

O desafio na formação do cidadão capaz para atuar na sociedade contemporânea, em constante transformação, reflete-se no sistema educativo.

Segundo Libâneo, (2011, p.33) “as reformas educativas executadas em vários países do mundo europeu e americano, nos últimos 20 anos, coincidem com a recomposição do sistema capitalista mundial”.

Conforme Luckesi (1991), a Pedagogia progressista caracteriza-se pelas “finalidades sociopolíticas da educação e manifesta-se em três tendências: a libertadora, a libertária e a crítico-social dos conteúdos. As duas primeiras, de acordo com Luckesi (1991, p.64) “têm em comum o antiautoritarismo, a valorização da experiência como base da relação educativa e a ideia de autogestão pedagógica.” A pedagogia crítico social dos conteúdos valoriza a “ação pedagógica enquanto inserida na prática social” com vistas à apropriação do conhecimento, pelo estudante, de modo contextualizado à realidade do aluno e aos seus interesses. É o resultado da transformação do conhecimento do aluno frente à experiência adquirida com o novo conhecimento. Aprender, dentro da visão da pedagogia dos conteúdos, é desenvolver a capacidade de processar informações e lidar com os estímulos do ambiente, organizando os dados disponíveis da experiência

Para Gadotti (2006, p. 3) “é preciso mudar profundamente os métodos de ensino para reservar ao cérebro humano o que lhe é peculiar, a capacidade de pensar, em vez de desenvolver a memória.” Pensar de modo crítico segundo o autor, requer domínio sobre todas as linguagens, dentre elas, a eletrônica. Ainda de acordo com Gadotti os sistemas educacionais ainda não perceberam o potencial da comunicação audiovisual e da informática para alcançar os jovens.

Segundo o autor,

As consequências da evolução das novas tecnologias, centradas na comunicação de massa, na difusão do conhecimento, ainda não se fizeram sentir plenamente no ensino, [...] mas a aprendizagem a distância, sobretudo a baseada na internet, parece ser a grande novidade educacional neste início de milênio. (GADOTTI, 2006, p. 3)

Ramón Flecha e Iolanda Tortajada, (2000 p. 22) analisam as mudanças no novo século como uma transformação da sociedade e economia “com o surgimento da sociedade da informação.”

Para Gadotti (2006) a escola deve impulsionar a produção da inovação tecnológica, ou seja, mudanças são requeridas para o ensinar. Essa demanda projetada pelas profundas transformações na organização da sociedade tem em sua origem o desenvolvimento de “uma Revolução da Informação como ocorreu no passado a revolução Agrícola e a Revolução Industrial.” (GADOTTI, 2006, p. 6)

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Pfromm Neto (2001, p.56) critica a falta de cuidados de ordem científica no uso das tecnologias. Para o autor, nas primeiras iniciativas de ensino a distância houve pouca consideração pelo “planejamento e produção de unidades de ensino e aprendizagem, solidamente fundamentados em conhecimentos sobre os processos mentais da aprendizagem humana.”

3 O ALUNO NA EDUCAÇÃO ONLINE

O domínio da linguagem eletrônica é considerado atributo para a adaptação do aluno ao estudo em via web, mas quando não faz parte da competência do estudante não inviabiliza um bom desempenho, pois, tal habilidade pode ser diagnosticada numa etapa de adaptação do curso, e sua carência resolvida com instrumentação básica na área. Segundo o Ibope (2010) são mais de 67,5 milhões de pessoas com 16 anos ou mais que possuem acesso à web, no último trimestre de 2009.

A expansão do acesso à internet, que influencia nos hábitos e costumes, amplia as habilidades de linguagem eletrônica pelo seu contato e uso. A educação on-line está inserida no grupo da quinta geração da educação a distância, e segundo Moore (2007), o mundo todo tem interesse em acompanhar os avanços nessa área.

Com base na internet a EaD, favorece-se do uso de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVAs), capazes de agregar, conforme a conveniência, diferentes recursos como o correio, áudio e vídeo, textos e telecomunicações. O AVA que apresenta um desenho amigável, com acesso aos diferentes recursos mencionados, facilita a mediação pedagógica de uma metodologia construtivista favorecendo a atividade colaborativa de aprendizagem via web.

No entanto, Palloff e Pratt (2004), listam como uma das características do aluno virtual de sucesso do aluno virtual o acesso à tecnologia e saber usá-la:

A tecnologia pode ser fonte de frustração para o aluno virtual, pode impedir o progresso e tornar-se um obstáculo que ele não consegue transpor. [...] Se um aluno encontrar dificuldades técnicas, é importante informar-lhe de que existem outras opções para acesso, tais como um laboratório de informática no campus”(PALLOFF , PRATT, 2004, p. 136).

Segundo Gadotti (2006) a prontidão para o uso de tecnologias, seria mais fácil para o estudante do que para o professor por não estar ele, contaminado pela cultura do papel acessando mais naturalmente as novas tecnologias com mais chance de sucesso na aprendizagem online.

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Para Pallof e Pratt (2004, p. 136):

O aluno virtual de sucesso tem a mente aberta e compartilha detalhes sobre sua vida, trabalho e outras experiências educacionais. [...] não se sente prejudicado pela ausência de sinais auditivos ou visuais no processo de comunicação. [...] deseja dedicar quantidade significativa de seu tempo semanal a seus estudos e não vê o curso como “a maneira mais leve e fácil”. O aluno virtual é ou pode passar a ser, uma pessoa que pensa criticamente. [...] tem a capacidade de refletir. [...] acredita que a aprendizagem de alta qualidade pode acontecer em qualquer lugar e a qualquer momento.

A maturidade e autonomia fazem também parte dos requisitos desejáveis para o aluno em curso via web. Para Palloff e Pratt (2004, p. 57) “Os adultos se dão bem com as atividades conduzidas por eles próprios e em conjunto, precisando menos direcionamento e estruturação para finalizá-los.”

Conforme o Censo EaD BR 2010, no curso de graduação “a conclusão ocorre em média aos 36 anos enquanto os alunos concluem aos 28 na modalidade presencial.” (ABED, 2011) O que indica um ingresso mais tardio em relação aos cursos presenciais.

Segundo Moore (1993) a tipologia das relações professor/aluno, na estrutura dos programas educacionais, envolve as variáveis relativas ao ensino- aprendizagem, isto é, ao diálogo e estrutura que são procedimentos de ensino e de aprendizagem e ao comportamento do aluno, que diz respeito ao seu grau de autonomia. Tais elementos vão determinar a distância transacional e, consequentemente o processo de ensino-aprendizagem, cuja efetividade é determinada pela qualidade dessas relações.

O grau de autonomia como variável nessa relação diz respeito ao comportamento do aluno. Supõe-se que os adultos, ou os alunos de cursos na modalidade a distância tenham um perfil mais independente ou autônomo para gerenciarem seus estudos. Otto Petters cita Pestalozzi que caracterizou o indivíduo autônomo com a expressão: “O ser humano é a obra dele mesmo”. Petters especifica uma dimensão didática em que

estudantes são autônomos quando [...] eles mesmos reconhecem suas necessidades de estudo, formulam objetivos para o estudo, selecionam conteúdos, projetam estratégias de estudo, arranjam materiais e meios didáticos, [...] organizam, dirigem, controlam e avaliam o processo de aprendizagem.” (PETTERS, 2006, p. 95)

Uma experiência positiva em curso anterior gera um gosto pelo aprendizado o que motiva o estudante a novos desafios e aumenta a probabilidade de eles levarem a bom termo um curso a distância.

Pesquisa do Conselho de Educação e Treinamento a Distância nos EUA concluem que “Os adultos que aprendem geralmente apreciam o aprendizado; os alunos que apreciam o aprendizado aprendem! Quando isto não ocorre é provável que desistam do

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA568

curso.” (MOORE, 2007, p. 176).

Suas experiências também podem agregar um autoconhecimento sobre suas próprias estratégias de aprendizagem, resultando que “quanto mais educação formal as pessoas têm, maior a probabilidade de elas concluírem um curso ou um programa a distância” (MOORE, 2007, p.183). O planejamento dos estudos é uma prática desejável, e quanto maior a sua prática pelo aluno melhor o seu desempenho.

De acordo com Moore (2007, p 187), “Os hábitos e as aptidões de estudo dos alunos determinam, em grande parte, o sucesso nas aulas on-line, e este é um fator que podem controlar.” Segundo o autor (2007, p. 175), o conceito de autonomia do aluno significa que os alunos têm capacidades diferentes para tomar decisões a respeito de seu próprio aprendizado. A autonomia do aluno determina a distância na qual se sentem seguros e demandam menos diálogo e estrutura, para tomar suas decisões. (MOORE, 2007, p. 251).

A interação de acordo com Rena Palloff (2002, p. 26) deve ser cuidada, o relacionamento distante do usuário com a máquina deve ceder lugar à interação professor-aluno, aluno-aluno, e todas as possíveis variáveis. A mudança exige uma reflexão sobre a dinâmica das relações que se transformam com a introdução de diferentes elementos interativos, cujos atores do processo, influenciam e são influenciados pela dinâmica.

Para uma prática de educação a distância, segundo Moore, “adotar a abordagem sistêmica é o segredo da prática bem sucedida.” Isso porque não se pode isolar este ou aquele elemento como gerador de um programa, mas toda contribuição das suas partes. Tem-se embutido na estrutura de um curso, sistemas que dão conta do aprendizado com subsistemas para o ensino, comunicação, criação e gerenciamento, e cada um desses subsistemas submetidos aos sistemas individuais das pessoas que por sua vez, agregam um grande número de variáveis. Então “essas estruturas, no interior das quais o sistema educacional opera, podem ser vistas como partes de um supersistema mais amplo.” (MOORE, 2007, p. 9).

4 METODOLOGIA

Foi adotada a pesquisa exploratória fazendo-se a revisão bibliográfica, com leitura, análise e transcrição de textos acerca dos temas pertinentes à educação a distância como modalidade educacional. Segundo GIL (2010, p. 29-30) a pesquisa ou revisão bibliográfica “é elaborada com o propósito de fornecer fundamentação teórica ao trabalho, bem como a identificação do estágio atual do conhecimento referente ao tema”

A pesquisa documental se realizou com a análise de dados extraídos de questionário

569Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

aplicado nos dois semestres de 2011, e no primeiro semestre de 2012 pelo Programa Especial de Dependência implantado pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus, aos alunos dos cursos a distância nas disciplinas de Administração Financeira, Algoritmos, Análise de Custos, Arquitetura e Organização de Computadores, Cálculo Básico, Direito Empresarial, Economia Brasileira, Economia Empresarial, Estudo do Homem Contemporâneo, Física Básica, Formação Econômica Brasileira, História Econômica Geral, Instituições de Direito, Introdução à Administração, Introdução à Contabilidade, Introdução à Economia I, Introdução à Economia II, Literatura e Produção de Textos, Logística de Suprimentos, Macroambiente Econômico, Matemática Financeira, Matemática I, Metodologia da Pesquisa, Planejamento Estratégico.

Utilizou-se de um questionário sugerido por Palloff e Pratt. Conforme os autores as questões foram compiladas de vários questionários na internet.

4.1 ANÁLISE DOS DADOS

Foram analisados 603 questionários, nos quais as 11 questões propostas são objetivas e cujas alternativas podem ser classificadas em relação ao estilo de vida que melhor atende às características do aluno bem sucedido em aprendizagem on-line. Segundo essa classificação a letra (a) seria a resposta que atende plenamente; (b) atende parcialmente; e (c) atende insatisfatoriamente.

De acordo com Gil,

a pesquisa documental vale-se de toda sorte de documentos, elaborados com finalidades diversas, [...] o que geralmente se recomenda é que seja considerada fonte documental quando o material consultado é interno à organização, [...] pode ser constituído por qualquer objeto capaz de comprovar algum fato ou acontecimento.” (2010, p. 31)

As 11 questões do questionário são de acordo com Palloff e Pratt ( 2004, p.183) propostas para autoavaliação do estilo de vida do estudante.

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TABELA 1- Questionário aplicado aos Ingressantes no PED - Programa Especial de Dependência - FAE - 2011-2012

QUESTÃO Alternativa A Alternativa B Alternativa C1 61,96% 35,51% 25,40%2 72,28% 23,91% 3,80%3 60,07% 28,13% 11,80%4 41,15% 35,82% 22,73%5 33,76% 38,29% 27,95%6 11,45% 56,91% 31,64%7 34,55% 58,73% 6,73%8 43,43% 41,06% 15,51%9 11,27% 52,55% 36,18%

10 37,82% 38,18% 24,00%11 72,41% 24,68% 2,90

FONTE: Elaboração própria

Questão 1

Minha necessidade de fazer este curso é:

Em relação à necessidade de fazer o curso, 61,96% dos respondentes indicaram necessitar do curso imediatamente ou para um objetivo específico (alternativa a) 35,51% têm necessidade moderada (b) e 2,54% poderiam adiá-lo (c).

Segundo Palloff e Pratt, ter uma razão forte para fazer o curso constitui motiva-ção importante.

Questão 2

Sentir que faço parte de uma turma:

A opção (a) fazer parte de uma turma “não é necessário para mim” foi escolhida por 72,28%; “ser razoavelmente importante” (b) foi a resposta de 23,91% e 3,80% optou por “muito importante” (c) fazer parte de uma turma.

O autor afirma que alguns alunos preferem a independência da aprendiza-gem on-line.

571Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Questão 3

Eu me classificaria como uma pessoa que:

A opção (a), “ser uma pessoa que frequentemente termina as tarefas antes do prazo” é a percepção de si demonstrada por 60,07% do total de respondentes, 28,13% optou por (b) “precisa ser lembrado para terminar as tarefas no prazo“; e 11,80% afirmou que “transfere as tarefas até a última hora ou não as termina” (c).

De acordo com Palloff e Pratt (2004) a educação a distância pode exigir dos alunos maior disciplina do que nos cursos presenciais.

Questão 4

O debate em sala de aula é:

Considerado: “Raramente útil” (a) para 41,15%, às vezes útil” (b) para 35,82% dos respondentes e “quase sempre útil” (c para) 22,73% dos respondentes.

A importância do debate para o aluno relaciona-se com o nível de interação proporcionado pelo curso. Conforme os autores tidos como referência nesse questionário.

Questão 5

Descobrir sozinho o que as instruções dizem:

A preferência “por descobrir sozinho” o que pedem as instruções do professor (a) é de 33,76%, 38,29% preferem “tentar seguir as instruções e depois pedir ajuda se necessário” (b), 27,95 % preferem “que alguém explique o que fazer” (c).

Palloff e Pratt (2004) justificam a questão pela necessidade de se trabalhar a partir de instruções escritas.

Questão 6

Preciso que os professores comentem meus trabalhos:

Pela preferência 11,45% querem ter o seu retorno em “poucas semanas para revisão” (a); enquanto 56,91% em “poucos dias” para não esquecer o que fez e 31,64% precisam de retorno imediato para não ficarem frustrados.

Conforme os autores do questionário, pode ser que o retorno do professor demore pouco ou duas semanas nessa modalidade.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA572

Questão 7

Considerando minha agenda profissional e pessoal, a quantidade de tempo de que eu disponho para um curso a distância é:

Segundo 34,55% é “Mais do que necessária para um curso presencial” (a) 58,73 disse que a quantidade de tempo é “A mesma que precisaria para um curso presencial” (b); e 6,73% consideram ser “Menos do que precisaria para um curso presencial” (c)

A educação a distância requer tanto ou mais tempo do que a presencial, conforme relata Pallof e Pratt (2004) sobre pesquisa realizada.

Questão 8

Considerando minha agenda profissional e pessoal, a quantidade de tempo de que eu disponho para um curso a distância é:

Para 43,43% dos alunos seria “extremamente difícil” (a) ir ao campus no horário em que o curso é oferecido; 41,06% dos respondentes consideram que é “Um pouco difícil, mas posso reorganizar minhas prioridades para ir regularmente ao campus (b) e 15,51% respondeu “não ter dificuldade para fazê-lo” (c).

“A maior parte das pessoas que são bem sucedidas na aprendizagem a distância acha difícil ir ao campus regularmente por causa de seu trabalho/família ou agenda pessoal”. (PALLOFF; PRATT, 2004, p. 185)

Questão 9

Como leitor eu me classifico como:

Em relação à proficiência em leitura, uma média entre os grupos revela que 11,27% dos respondentes se classificam como um leitor “bom”, (a); 52,55% “medianos que às vezes precisam de ajuda para compreender o texto” (b);e 36,18% se percebem “abaixo da média”.(c)

Para Palloff e Pratt (2004) o uso de textos impressos como principal fonte de informação e orientação dos estudantes torna a questão da leitura importante.

Questão 10

Quando preciso de ajuda para entender um assunto:

Dos respondentes 37,82% sentem-se a vontade “para pedir esclarecimento ao professor” (a); 38,18% pedem ajuda apesar de não se sentirem a vontade (b) e 24,00%

573Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

“nunca” (c) pedem ajuda para o professor. Para Palloff e Pratt, os alunos que obtêm bons resultados na educação a distância sentem-se a vontade para contatar o professor tão logo precisem de ajuda.

Para Palloff e Pratt (2004) os alunos que obtêm bons resultados na educação a distância sentem-se à vontade para contatar o professor tão logo precisem de ajuda.

Questão 11

Sobre minha capacidade de trabalhar com tecnologia:

72,41% responderam saber “lidar muito bem com o computador” (a); 24,68% “conheço alguma coisa de computador e internet” (b); e 2,90% não tem familiaridade com o computador e não se sente a vontade em navegar na rede(c).

Para Palloff e Pratt (2004) os alunos bem sucedidos nos cursos a distância em geral, têm familiaridade com o computador, sabem usar a internet e enviar e-mails.

GRÁFICO 1 – Pesquisa realizada com alunos dos cursos a distância no Programa Especial de Dependência – Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus – 2011/2012

FONTE: Elaboração própria

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA574

4.2 OS RESULTADOS

No espaço reservado à devolutiva no questionário, foi considerado, para um total de 22 pontos ou mais que “Os cursos online são possibilidades reais e concretas para

o aluno”.Com 21 pontos ou menos, considerou-se que “os cursos online são uma opção,

mas você pode necessitar de esforço maior para ser bem-sucedido. Busque informações sobre o

perfil de alunos online antes de iniciar o curso. Utilize-se do Guia de Ambientação em EaD disponível no ambiente.”

Considerando os critérios da análise dos resultados, o gráfico a seguir demonstra a adequação da maioria dos respondentes ao estilo de aprendizagem que satisfaz às necessidades do estudo a distância.

GRÁFICO 2

FONTE: Elaboração própria

575Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve por objetivo identificar o perfil necessário ao estudante para que ele alcance bom êxito na modalidade a distância. Para isso, foi feita uma revisão da literatura sobre a educação a distância, as teorias pedagógicas e pesquisa documental com levantamento de dados sobre o estilo de vida e aprendizagem.

A bibliografia consultada nas áreas de educação a distância e das teorias pedagógicas bem como os dados obtidos na pesquisa documental com a análise de 603 questionários apontam para uma formação em que o aprendente é ator e autor, desenvolvendo competências e habilidades além de participar da construção da cultura de que toma posse.

O aluno como centro do processo de ensino e de aprendizagem, mostra-se uma necessidade para a sociedade informacional que cria raízes por todos os setores da vida moderna. A autonomia para buscar seu desenvolvimento pessoal e profissional e a interdependência consequente da especialização tecnológica são indicadores de uma tipologia próxima do perfil do sujeito crítico e colaborativo que se mostra na análise dos questionários. O perfil indicado pelas respostas do questionário é de um graduando interativo, com domínio da linguagem eletrônica, maturidade e autonomia, responsabilidade e independência. Atitudes e habilidades que atendem aos critérios levantados na pesquisa bibliográfica como ideais para o bom desempenho em atividades educativas a distância.

Como sugestão para pesquisa futura, propõe-se submeter à comparação os resultados deste estudo com a avaliação final dos respondentes nas disciplinas para as quais se inscreveram. A continuidade da pesquisa e divulgação da qualidade educacional na modalidade a distância pode proporcionar maior consciência das suas possibilidades.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA576

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FLECHA, Ramón; TORTAJADA, Iolanda. Desafios e saídas educativas na entrada do século. In IMBERNÓN, Francisco. A educação no Século XXI: Os desafios do futuro imediato. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

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PFROMM Netto, Samuel. Telas que ensinam: mídia e aprendizagem do cinema ao computador. Campinas: Alínea, 2001.

579Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

Tem-se realizado e aprofundado, cada vez mais, a discussão sobre o relacionamento professor-aluno. A tensão existente nessa relação, bem como sua afetividade requer um estudo a fim de definir quais fatores influenciam positiva ou negativamente no processo de ensino, aprendizagem e crescimento pessoal. Frente a isso, buscou-se levantar dados sobre a prática pedagógica, na visão dos alunos, de como essa relação professor, aluno e aprendizagem está se desenvolvendo em sala de aula, e se ela pode sofrer influências relacionadas à formação do professor e a afetividade entre os envolvidos. Esta pesquisa propõe, também, comparar tais dados com os que foram levantados no PAIC 2010/2011, em que a visão era do docente. A pesquisa teve como coleta de dados um questionário entregue aos alunos dos cursos de Pedagogia e Letras da FAE Centro Universitário. A análise dos questionários mostrou que a falta de metodologia eficiente é o maior problema hoje em sala de aula. Na comparação entre as pesquisas, 2010/2011 e 2011/2012, a desmotivação dos alunos foi a questão mais apontada nas duas.

Palavras-chave: Relação professor-aluno. Educação. Aprendizagem. Formação de professor. Afetividade professor-aluno.

A ÓTICA DOS DISCENTES NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA UMA RELAÇÃO DE MAIOR RESPEITO E APRENDIZAGEM

Maria Amélia Marçal Antonio do Nascimento*Silvia Iuan Lozza**

* Aluna do 3º ano de Pedagogia da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Mestre em Engenharia de Produção (UFSC). Coordenadora do Curso de Pedagogia da FAE Centro Universitário e Coordenadora do Núcleo de Extensão Universitária. E-mail: [email protected].

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA580

INTRODUÇÃO

Os problemas relacionados à educação são complexos e numerosos, o professor está sob constante pressão, o que o leva muitas vezes a apresentar uma série de comprometimentos.

“Logo, a escola, em vez de se render ao modelo dominante, deve se esforçar em dar alternativas, e ela somente pode fazê-lo cuidando do convívio escolar tanto no plano moral quanto no plano ético” (LA TAILLE, 2009, p. 306).

Frente a isso, urge refletir sobre a prática pedagógica e a aprendizagem do discente para, assim, contribuir com uma maior compreensão dessa temática comum nas escolas, colégios e universidades.

Para isso, realizou-se uma pesquisa por meio de questionários com os alunos dos cursos de Pedagogia e Letras da FAE Centro Universitário em novembro de 2011. Essa pesquisa nos permitirá um confronto entre os resultados das pesquisas 2010/2011 e 2011/2012, bem como um diálogo entre os anseios dos docentes e dos discentes. Perante isso podem-se enumerar algumas dificuldades atuais em sala de aula.

Buscou-se levantar dados sobre a relação professor, aluno e aprendizagem, em que o foco está na ação didática do professor e no seu relacionamento com o aluno, por meio da formação docente.

Por fim, também se apresenta aos profissionais da educação um levantamento das dificuldades encontradas em sala de aula, na visão estratégica do aluno, personagem principal dessa pesquisa.

Para esse fim, as metodologias empregadas foram a descritiva-exploratória e a bibliográfica.

1 RELAÇÃO PROFESSOR, ALUNO E APRENDIZAGEM

Um estudo sobre a relação e a afetividade no processo de ensino, aprendizagem e crescimento pessoal entre professor-aluno se faz necessário. Com isso serão levantados os fatores que influenciam positiva ou negativamente a tensão existente nessa relação.

O que parece estar claro, segundo Santos (2001), é que o corpo docente das instituições de ensino precisa ter vocação para ensinar além de ter apoio e incentivo para que o faça com tranquilidade. Principalmente, porque somente com o professor tendo liberdade para trabalhar, ele pode realizar essa tarefa de forma satisfatória.

581Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

1.1 FORMAÇÃO DO PROFESSOR

Até o século XIX a docência era meramente uma transmissão de saber acadêmico, ideia obsoleta para os dias atuais em que a educação exigida passou a ser mais participativa, solidária e integradora, segundo Imbernón (2010).

Para esse autor, a educação evoluiu no decorrer do século XX, porém não conseguiu romper com as diretrizes que a acompanham desde sua origem, como: “centralista, transmissora, selecionadora, individualista [...]” (IMBERNÓN, 2010, p. 7).

Vários autores concordam com essa ideia, e que ainda é complementada por Imbernón (2010, p. 28), afirmando que “ser um profissional da educação significará participar na emancipação das pessoas. O objetivo da educação é ajudar a tornar as pessoas mais livres, menos dependentes do poder econômico, político e social”.

Além disso, o professor precisa estar sustentado por pilares e não somente pelo pilar da formação acadêmica tradicional. O avanço tecnológico e o conhecimento trazido pela internet exigem um professor diferente, que ensine o aluno para a vida e que possua conhecimento de mundo.

O conhecimento formal, apresentado pelas faculdades e universidades de Pedagogia não pode excluir os futuros professores de discussões provenientes de problemas éticos, sociais, políticos e religiosos do nosso mundo atual.

Libâneo (2010, p. 12) ressalta que os cursos de formação de professores devem formar um docente “capaz de ajustar sua didática às novas realidades da sociedade, do conhecimento, do aluno, dos universos culturais, dos meios de comunicação”. Destaca também a importância de uma cultura geral mais ampliada e o conhecimento para utilizar mídias e multimídias.

Porém, na ânsia de acertar, modismos pedagógicos são inventados ou copiados diariamente. Antes de impor mudanças sistêmicas que afetam todo o sistema educacional deve-se confiar na sensibilidade e experiência dos nossos professores e agir de forma científica e não por ensaio e erro (ZAGURY, 2009).

O processo de formação deve dotar os professores de conhecimentos, habilidades e atitudes para desenvolver profissionais reflexivos ou investigadores. Nesta linha, o eixo fundamental do currículo de formação do professor é o desenvolvimento da capacidade de refletir sobre a própria prática docente, com o objetivo de aprender a interpretar, compreender e refletir sobre a realidade social e a docência (IMBERNÓN, 2010, p. 41).

Vale mencionar a formação permanente como meio de “produzir bons professores” que vai ser fundamental para legitimar ou questionar a experiência do professor em sala de aula, confrontando teoria e prática.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA582

1.2 AFETIVIDADE

O relacionamento professor-aluno apresenta-se como fator importante para o sucesso da aprendizagem. O vínculo estabelecido entre os dois personagens principais desse processo mostra que quando o aluno se identifica com o professor ou com a matéria, o conteúdo é mais facilmente compreendido, absorvido e colocado em prática, quando possível. Ou seja, a afetividade sustenta a base de todas as reações humanas, influenciando na formação do caráter e da personalidade das pessoas.

Para Caio Feijó (2008), a construção do vínculo com os discentes é de muita valia. Uma relação de confiança, afeto e respeito entre as pessoas, construída ao longo do tempo, faz a diferença no processo ensino-aprendizagem.

Referindo-se, ainda, ao respeito mútuo entre professor e aluno, Cabral (2004, p. 328) relata:

deveria haver um equilíbrio das duas partes: o aluno respeitando o professor como autoridade em sala de aula e, o professor respeitando o aluno como ser humano em processo de aprendizagem, formação de valores e construção de novos conhecimentos.

Para Feijó (2008), a escola tem um papel interessante no desenvolvimento e manutenção do comportamento antissocial dos alunos. Discentes que são incentivados, convidados a participar das atividades de sala, têm sua autoestima reforçada e vão apresentar melhores resultados quando comparados àqueles rotulados como imaturos, perdidos, atrasados, relegados à sua própria sorte.

Feijó (2008) cita, ainda, que muitos professores desconhecem os pressupostos skinnerianos sobre reforços positivo e negativo e que elogios e recompensas podem ser mais eficazes que punições e ação coercitiva.

Vasconcelos (2005, p. 9), em seu trabalho de pesquisa, valida Feijó (2008) e complementa que a partir da década de 1960 houve estudos comprovando “que as expectativas dos professores podem, sob determinadas circunstâncias, afetar a aprendizagem, independentemente da capacidade da criança”, ou seja, que as crianças aprendem mais quando os professores esperam por isso.

Seria leviano, ingênuo e até irresponsável reduzir todo o sucesso escolar do aluno à tão, exclusivamente, relação intercomunicativa professor-aluno, porém o incentivo ao diálogo na educação facilitaria a troca de informações e de vivências, diluindo-se hierarquias e gerando uma aprendizagem realmente significativa para ambos.

583Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Como bem resume Santos (2001, p. 70)

[...] mais importante é o professor acompanhar a aprendizagem do aluno do que se concentrar demasiadamente no assunto a ser ensinado, ou mesmo nas técnicas didáticas como tais. O ensino é visto como resultado de uma relação pessoal do professor com o aluno.

Não há uma fórmula exata para firmar a autoridade em sala de aula. O uso de meios, como o diálogo e a compreensão de que os professores são mestres que orientam escolhas, são os caminhos que podem levar o educador ao nível de profissional da educação.

1.3 VALORIZAÇÃO PROFISSIONAL

O professor deve resgatar o amor à docência, mas precisa lutar por melhores condições, por uma classe mais unida. De nada adianta os professores formarem alunos críticos, se eles próprios aceitam a degradação da profissão sem uma postura mais reflexiva.

Libâneo (2010, p. 12) resume muito bem a importância da valorização profissional:

É preciso resgatar a profissionalidade do professor, reconfigurar as características de sua profissão na busca da identidade profissional. É preciso fortalecer as lutas sindicais por salários dignos e condições de trabalho. É preciso, junto com isso, ampliar o leque de ação dos sindicatos envolvendo também a luta por formação de qualidade, de modo que a profissão ganhe mais credibilidade e dignidade profissional. Faz-se necessário, também, o intercâmbio entre formação inicial e formação continuada, de maneira que a formação dos futuros professores se nutra das demandas da prática e que os professores em exercício frequentem a universidade para discussão e análise de problemas concretos da prática.

Candau, Lucinda e Nascimento (1999), citados por Feijó (2008, p. 21), apontam:

o esvaziamento e a fragmentação na formação dos professores, a diminuição drástica dos salários, o profundo mal-estar e a desvalorização de educação e do magistério acabaram por gerar uma grave crise de identidade da escola, desencadeando, assim, um enfraquecimento do papel do docente.

Não cabe mais culpar o professor pelo fracasso do aluno ou da educação, ele é vítima do sistema tanto quanto o aluno. Pedro Demo (1998, p. 8), em sua visão, resume a saga de ser professor.

Até hoje, a sociedade não fez justiça ao professor, seja porque o mantém como gente menor, seja porque lhes paga uma miséria. Pede dele um milagre, que é a construção da cidadania popular e através dela a competência de fazer história própria, mas o milagre mesmo é viver dignamente com seus salários.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA584

1.4 FEEDBACK

“Começa, então, a surgir uma crise da profissão de ensinar” (IMBERNÓN, 2010,

p. 22). Essa nova forma de ver a educação nos faz refletir sobre algumas questões: qual é

a relação dos professores com seus alunos em sala de aula? Como se pode melhorar essa

relação para que a tarefa profissional educativa seja mais eficaz?

Segundo Imbernón (2010) a maior parte dos professores recebe pouco retorno

sobre a sua atuação em sala de aula e, em alguns momentos, manifesta a necessidade de

saber como está enfrentando a prática diária para aprender sobre ela.

De acordo com Paquay et al (2008), para uma atuação satisfatória, o professor

profissional deve ser capaz de analisar situações complexas, optar por estratégias adaptadas

aos objetivos e às exigências éticas, adaptar seus projetos em função da experiência,

analisar de maneira crítica suas ações e seus resultados e, por fim, aprender com a avaliação

contínua ao longo de sua carreira.

1.5 COMPROMETIMENTO DO ALUNO

Em todos os itens escritos anteriormente, traz na figura do professor como o

responsável pela relação professor-aluno, porém não podemos desmerecer a importância

do aluno para o sucesso dessa interação.

O aluno deve estar comprometido com sua própria formação, sendo estimulado

e incentivado pelo professor. Sua formação deve ser para o mundo que enfrentará, sendo

guiado pela experiência e conhecimento do docente.

Segundo Feijó (2008, p. 52), o conceito de vínculo é “uma relação de confiança,

afeto e respeito entre duas ou mais pessoas, construída ao longo do tempo”. Quando

se tem esse vínculo, a relação fica mais pessoal, ocorrendo maior preocupação entre as

partes envolvidas e o respeito entre elas é mais facilmente observado. Quando não há,

fatalmente, observa-se a indisciplina.

A indisciplina é o resultado da falta de comprometimento do aluno associada à

falta de habilidade do professor.

Construir a autoridade cobrando obediência, impondo suas vontades e seus valores

constituir-se-á como autoridade e obterá por parte dos alunos um respeito unilateral,

baseado no medo de punições. Já o professor que mantém relações baseadas no

respeito mútuo obterá autoridade por competência (VASCONCELOS, 2005, p. 5).

585Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

2 METODOLOGIA

Conforme Gil (2009), a pesquisa utilizou o método descritivo-exploratório para conhecer melhor o problema, descrever sua ação e suas relações e poder formular hipóteses que possam ser pesquisadas por estudos posteriores.

O método de pesquisa bibliográfica também foi necessário para o levantamento da atual situação a respeito desse tema.

2.1 COLETA DE DADOS

A partir do desenvolvimento da pesquisa bibliográfica, tornou-se necessário o conhecimento da realidade enfrentada pelos discentes. Para isso, como instrumento de coleta de dados foi entregue um questionário aos alunos dos cursos de Pedagogia e Letras da FAE Centro Universitário, com questões abertas, fechadas e de múltipla escolha.

A pesquisa será comparada com os resultados do PAIC 2010/2011, no qual o foco foi um levantamento junto aos professores. Os alunos participaram de forma voluntária e tiveram suas identidades preservadas.

A todos os discentes voluntários foi explicado o objetivo da pesquisa e sua importância, bem como que os dados obtidos serão alvo de publicação posterior.

A pesquisa foi realizada entre os dias 14 e 16 de novembro de 2011, no campus Cristo Rei, com as turmas de 1º, 2º, 3º e 4º anos do curso de Pedagogia e 1º, 2º e 3º anos do curso de Letras daquele ano.

2.2 ANÁLISE DOS RESULTADOS

Dos 120 questionários entregues aos alunos, 101 foram devolvidos respondidos.

Dentre os alunos, 7% eram homens e 93%, mulheres. Quanto à idade predominante, 50% dos alunos tinham entre 17 e 24 anos.

Em relação à pergunta sobre qual a maior dificuldade do professor nos dias de hoje, na visão do discente, as alternativas mais assinaladas foram as referentes a motivar os alunos (34%), a escolha da metodologia adequada a cada aula (29%), e manter a disciplina em sala de aula (15%).

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA586

QUADRO 1 - Maior dificuldade do professor em sala de aula hoje

Sobre as causas das dificuldades encontradas em sala de aula, as respostas citadas foram:

QUADRO 2 - Causa das dificuldades

De acordo com a pergunta do que é necessário na formação docente para se consolidar o respeito e aprendizagem na relação professor-aluno as respostas mais citadas foram:

QUADRO 3 – Necessário na formação docente

Motivar os alunos. 34%

A escolha da metodologia adequada a cada unidade ou aula. 29%

Manter a disciplina em sala. 15%

Manter-se constantemente atualizado em sua disciplina. 8%

Dominar o conteúdo de sua disciplina. 6%

Fazer a avaliação dos alunos. 4%

Usar recursos audiovisuais. 3%

Outra. Qual? 0%

FONTE: Elaboração própria

Falta de metodologia adequada 39%

Falta formação continuada dos professores 20%

Falta conscientização do próprio aluno 16%

Professor está desmotivado 10%

Falta habilidade para usar recursos audiovisuais 7%

Falta contextualizar o conteúdo da matéria com a realidade do aluno 6%

Falta tempo para o professor poder estudar mais o conteúdo e preparar melhor a aula 6%

Falta estrutura familiar do aluno 5%

Falta adequar valor da prova/trabalhos 4%

Falta motivação dos alunos 2%

FONTE: Elaboração própria

Domínio do conteúdo 18%

Melhor formação do professor/didática 17%

Respeito de ambas as partes 16%

Valorização do professor 4%

Interesse do aluno 4%

Ética 3%

Presença da família do aluno 2%

FONTE: Elaboração própria

587Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Para os alunos questionados, a relação professor-aluno sofre influências das relações interpessoais entre eles, como amizade; paciência; diálogo; entendimento; companheirismo; compreensão; alegria; bom humor; boa vontade e parceria. Virtudes, essas, que devem ser praticadas sempre, e estão fazendo falta no ambiente escolar.

Para Pedro Demo (1998), parte da explicação deve-se ao fato de as faculdades e cursos de Pedagogia estarem, hoje, obsoletos e solapados. Esses cursos não estão conseguindo manejar as teorias pós-modernas de educação, ensinando práticas antiquadas que não correspondem mais às aplicadas nas escolas de hoje, nem ao que os alunos de hoje procuram nas instituições escolares. A escolha da metodologia precisa estar vinculada a cada assunto abordado e, também ao perfil da turma onde se trabalhará o tema, respeitando as especificidades de cada sala de aula.

Sobre como o professor reage frente ao ponto de vista dos alunos, a opção mais assinalada foi a que diz que o professor geralmente aceita a opinião dos alunos (40%).

Questionados se os professores utilizam de autoridade ou autoritarismo em sala de aula, 58,3% responderam que os professores usam de autoridade e conseguem disciplinar a turma. Sobre isso, Vasconcelos (2005) diz que dependendo do modo que o professor demonstra sua autoridade em sala de aula vai contribuir para sua eficiência.

Nas outras questões com ênfase na afetividade entre professor e aluno, 72% dos alunos relataram que o professor é sempre acessível, permitindo que o aluno chegue até ele e, em 41% dos questionários, os alunos responderam que o professor se interessa por problemas extraclasse de seus alunos.

Em relação à aprendizagem, 70% dos alunos informaram que o professor sempre demonstra preocupação com o aprendizado dos alunos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada contribui para somar os resultados: os dados levantados dos professores no PAIC 2010/2011 e os dados obtidos dos alunos neste PAIC 2011/2012.

O cenário educacional está em constante modificação, trazendo novos desafios e cobrando, a cada dia, mais dinamismo e capacidade de renovação por parte dos professores. Os alunos também fazem parte desse processo de renovação, pois eles são a essência da instituição educacional. Para tanto, cabe entendê-los como parte integrante dessa sociedade totalmente mutável. Sendo de fundamental importância a reflexão junto com o aluno sobre a importância e estilo de aprendizagem e se estão condizentes com suas necessidades.

Portanto, este trabalho nos leva a algumas reflexões referentes aos resultados dos dois PAICs. Como os professores apontam que o maior problema é a indisciplina; e os alunos, a metodologia, pressupõe-se que a indisciplina é decorrente da falta de metodologia adequada.

O segundo problema, a desmotivação do aluno, é comum aos dois. Essa desmotivação é decorrente da falta de metodologia, visto que muitos alunos dizem que os professores não têm didática, ou não usam de recursos diversificados para prenderem a atenção do aluno.

Um professor motivado é uma pessoa feliz, tanto no ambiente escolar como em sua própria casa, em procura de constante atualização, que busca alternativas para solucionar seus problemas sem ficar reclamando de alunos, das instituições ou dos outros professores.

E um aluno motivado não faltará às aulas, estará sempre em dia com as matérias, e será um aluno que não dará trabalho em sala de aula com indisciplina.

Alguns alunos não responderam às questões abertas nas quais deveriam expor suas sugestões para melhorar a relação professor-aluno, apontando alternativas para diminuir as dificuldades encontradas pelos professores em sala de aula e o que poderia melhorar na formação destes.

Contudo, alguns responderam a essa questão apresentando algumas virtudes que os professores deveriam praticar mais como a amizade, paciência, diálogo, entendimento, companheirismo, compreensão, alegria, bom humor, boa vontade e parceria. A prática dessas virtudes pode ser a motivação que falta para alguns alunos.

Diante disso fica mais evidente a importância de mais pesquisas na tentativa de buscar informações para melhorar o processo de aprendizagem, ressaltando as funções do professor e do aluno, como parceiros e não como opositores.

Enfim, acredita-se que um estudo com pesquisa fazendo um diálogo com os resultados dos trabalhos apresentados seja pertinente numa próxima etapa, para assim, apresentar algumas possibilidades para a formação docente, com foco no respeito e na aprendizagem.

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591Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

Considerando-se a Geração Y como objeto de estudo, tomam-se as virtudes franciscanas como paradigma a ser relacionado com o perfil do novo profissional da Geração Y. O objetivo geral é identificar o perfil do novo profissional do século 21, segundo a autopercepção dos alunos de graduação da FAE Centro Universitário, justamente por ser uma instituição de educação com foco em escola de negócios, analisando a presença das virtudes franciscanas nesses perfis. As virtudes franciscanas são seculares e orientam sentidos, conhecimentos e comportamentos a partir dos ensinamentos de São Francisco de Assis. Mas qual a atualidade desses ensinamentos? É isso que este estudo pretende analisar. A pesquisa parte da base de dados de uma série histórica iniciada no segundo semestre de 2009 e projetada até os dois semestres de 2012. A metodologia utilizada para o estudo segue o protocolo científico em três fases distintas: (1) eleição da unidade caso; (2) a caracterização dos indicadores dos perfis da Geração Y; e (3) a finalização da pesquisa com a análise e correlação dos dados sobre o perfil da Geração Y e as virtudes franciscanas. A pesquisa é exploratória e utiliza-se de formulários respondidos anteriormente a atual análise, o estudo configura-se como uma pesquisa documental. Conclui-se que os perfis pesquisados têm relação com as virtudes franciscanas, as quais são atualizadas pelo comportamento e discurso dos jovens profissionais, além de serem constatadas as aproximações entre o perfil humanístico, ético e social dessa geração com o perfil franciscano em relação ao reconhecimento do ser humano.

Palavras-chave: Geração Y. Virtudes Franciscanas. Alteridade. Profissionais humanísticos.

O PERFIL DO NOVO PROFISSIONAL DA GERAÇÃO Y E SUA RELAÇÃO COM AS VIRTUDES FRANCISCANAS

Arnaldo Cesar Rocha*Ana Maria Coelho Pereira Mendes**

* Aluno do 3°ano de Filosofia da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Doutora em Serviço Social (PUC-SP). Professora da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA592

INTRODUÇÃO

As exigências e desafios postos às Instituições de Educação Superior (IES) colocam a educação no atual contexto econômico e social como ambiente formador de matrizes fundamentais da sociedade contemporânea. Por essa razão, há a necessidade de conhecer seu público-alvo: o perfil discente. Isso quer dizer que as IES fazem parte de uma realidade concreta na qual uma geração diferente se põe a seu projeto educacional, mas com dinâmica e necessidades específicas.

A Geração Y é aquela que se atribui o surgimento a partir de 1978. Considerando-se o perfil da Geração Y como objeto de estudo, a relação entre tal perfil e as virtudes consagradas do franciscanismo, pautadas em São Francisco de Assis, compõe o tema central do estudo. Questionam-se, então, quais características da Geração Y presentes em seu discurso têm relação com a visão franciscana?

O presente estudo tem o objetivo geral de identificar o perfil do novo profissional do século 21, segundo a autopercepção dos alunos de graduação da FAE Centro Universitário, justamente por ser uma instituição de educação com foco em escola de negócios, analisando a presença das virtudes franciscanas nesses perfis.

2 O IMPACTO DA GERAÇÃO Y NA SOCIEDADE ATUAL

A partir dos estudos elaborados por Sidnei Oliveira (2010), percebe-se que os jovens da Geração Y estão ocasionando momentos oportunos de reflexão e impacto no mercado de trabalho e nas relações socais. Não há dúvidas que se vive em tempos de mudanças tanto nos contextos sociais quanto familiares e interpessoais, no qual se evidencia o avanço tecnológico e a facilidade de comunicação pela internet.

Segundo Oliveira (2010), as novas gerações estão criando uma identidade nunca vista até então, com jeito peculiar de gerar expectativas e realizar sonhos, esses jovens estão alterando completamente os conceitos de autoconhecimento, autoestima e relacionamentos humanos.

Sobre o impacto da Geração Y, Oliveira (2010, p. 17-19) descreve:

Um executivo chega a sua casa depois do trabalho e se dirige ao quarto de sua filha, que se concentrava em um trabalho escolar, e ela estava com a TV ligada no canal Discovery, com fones ouvindo música no iPod, com o computador ligado e conectado na internet, com três sites abertos (o Google, um blog colorido e o site de relacionamento Orkut) e também com o Word e o Power Point acionados, teclando com cinco amigas no MSN, além de estar com o celular na mão enviando um SMS para um colega. E isso ocorre tudo ao mesmo tempo!

593Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

O episódio descrito por Oliveira (2010), na citação acima, é excelente para descrever o impacto entre as gerações, pois se trata de modo de agir e realizar trabalhos escolares em épocas diferentes. Para o pai, é necessário se desligar de tarefas exteriores que possam prejudicar os estudos, por essa razão é importante se concentrar somente na realização de uma determinada tarefa e utilizar materiais de consulta, por exemplo, enciclopédias que auxiliem na pesquisa acadêmica.

Entretanto, a filha utiliza de recursos tecnológicos, como a internet, para acessar endereços eletrônicos de busca – Google, Yahoo, dentre outros – para realizar pesquisas. Assistir programas de televisão referentes aos conteúdos do trabalho e aproveitar o MSN1 para executar, em grupo, a tarefa escolar são outros meios utilizados pela geração interconectada.

De acordo com Oliveira (2010), a transgressão como ferramenta de inovação e a busca da satisfação imediata de seus sonhos são algumas das mais marcantes características dos jovens dos dias atuais, conhecidos como Geração Y.

Para o autor, o momento atual é oportuno para reflexões sobre as gerações, pois se está vivendo uma circunstância singular na História, principalmente, na era da comunicação e da informação. A partir disso, verifica-se que os jovens da Geração Y interferem e atualizam o contexto do mercado de trabalho, segundo as suas características profissionais e humanísticas.

Observa-se que as competências exigidas dos candidatos para o ingresso no mercado de trabalho são: a iniciativa de solucionar problemas, a autoconfiança, a flexibilidade, a facilidade de adaptar-se às diferentes situações cotidianas e o bom relacionamento interpessoal de interação e convivência, sem se esquecer do contato amigável com os colegas de trabalho e o espírito de equipe em compartilhar informações e demonstrar interesse de colaborar.

Na pesquisa realizada por Oliveira (2010) acerca dos motivos de escolha da empresa, os resultados demonstraram que os jovens as procuram por crescimento de carreira (buscam reconhecimento, melhores posições, estabilidade financeira e profissional), desenvolvimento pessoal (conhecimento, aprendizado de novas técnicas), ambiente de trabalho agradável (bem-estar, respeito e bom relacionamento com os colegas), bons

1 MSN é um recurso eletrônico da rede para troca on-line de mensagens entre participantes de grupos fechados.

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salários e benefícios (salário compatível com o cargo, reconhecimento pelo que faz), oferecimento de cursos e treinamentos (crescer junto com a empresa e aperfeiçoamento na área de trabalho).

Os dados coletados na pesquisa de Oliveira (2010) demonstraram que as expectativas em relação ao gestor são: conhecer o negócio da empresa, oferecer feedback constante, saber definir prioridades, desenvolver os profissionais da sua equipe, respeitar e estimular o talento individual, ser objetivo e claro em suas diretrizes.

Os resultados ajudam a refletir sobre a nova relação existente no mercado de trabalho: o jovem espera por empresas capazes de desenvolver seu potencial cognitivo, profissional e humano, e por um gestor que saiba organizar prioridades e respeite e estimule os talentos.

Em resumo, o profissional da Geração Y com seus comportamentos e habilidades vem transformando a realidade da sociedade atual, seja nas expectativas ou nas ações.

3 O FRANCISCANISMO – O QUE É E COMO PODE SER INTERPRETADO NA DINÂMICA DO SÉCULO 21

Sobre a identificação do franciscanismo, Merino (1999) afirma que a arqueologia viva do franciscanismo é Francisco de Assis e a experiência da primitiva fraternidade, que é como o código genético que condiciona e quase determina o conteúdo e a expressão do pensamento posteriormente elaborado.

Segundo o autor, somente a partir dessa arqueologia prévia e do código genético comunitário que se gesta na experiência compartilhada do grupo é que poderemos compreender aquilo que se chama de pensamento franciscano.

A respeito da experiência de Francisco de Assis, Merino (1999) comenta que o franciscanismo é, primordialmente, vivência, mas, por ser uma vivência compartilhada, se converte em convivência, que é onde realmente se forja o pensamento e se formula o sistema que não se caracteriza por sua elevada sublimidade, mas por sua maravilhosa simplicidade.

Para Moreira (1996), São Francisco parece um sujeito deslocado, um estranho a nos incomodar. De acordo com Harada (1982), talvez esse “tal estranhamento” nos possa acordar e nos dar um olho cordial para ver que o nosso fazer e o nosso agir é muito mais falar, narrar, dizer e aplicar o que ideamos e sentimos do que um trabalho real para ser.

595Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

De acordo com Moreira (1996, p. 340), é necessário entender que Francisco não é útil em padrões, mas ressalta que:

Não adianta: São Francisco não serve para ajudar a tocar uma empresa, não serve para dirigir um negócio rentável, para fazer uma revolução política ou uma experiência científica. Talvez aceite uma canção. Ele é sem valor de troca, sem valor de uso, sem catecismo a nos indoutrinar, sem projetos pastorais, sem receitas para o sucesso do tipo Lair Ribeiro, sem planos de metas que nós tenhamos de cumprir.

Para Boff (1991), São Francisco é muito mais que um santo da Igreja Católica e o pai da família franciscana, ele é, antes de tudo, um arquétipo, uma referência, pois seus valores lhe conferem um sentido na existência. Francisco constitui a figuração mais cristalina do ocidente, daqueles sonhos, daquelas utopias e daquele modo de relacionar-se fraternalmente que hoje se busca.

Agostini (1996) aponta que a crise ecológica é reveladora da crise civilizatória do ocidente. Conforme alerta o filósofo Max Scheler, “o homem contemporâneo tem sido um desertor da vida, pela facilidade com que tem aceitado e assumido “substitutos do viver.” (MORAIS, 1992, p. 5 apud AGOSTINI, 1996, p. 231)

Segundo Boff (1999), é necessário uma nova experiência fundacional, trata-se de uma nova espiritualidade que permite religar as dimensões humanas com as mais diversas instâncias da realidade planetária, cósmica, histórica, psíquica e transcendental. Somente dessa forma será possível o desenho de um novo sentido de viver junto com toda a comunidade global. Conforme esse autor, é justamente nesse contexto de crise e de busca de alternativas que refulge a figura de São Francisco de Assis como altamente significativa e evocadora.

Moreira (1996, p. 339) descreve que:

Que há em São Francisco que seja realmente interessante do ponto de vista da modernidade? À Primeira vista a resposta é breve e incisiva: absolutamente nada. Ele não parece ter nada em comum conosco, não é nenhum dos mitos do nosso consumo. Não que ele esteja ausente do nosso noticiário; pelo contrário. São Francisco surge no nosso horizonte através da mediação das centenas de livros, peças e filme que se produziram sobre sua vida, das estruturas e hierarquias que se criam à sua volta, enclausurado nas representações românticas, representado pela arte, louvado na música e no imaginário popular. Na verdade São Francisco parece ser tão conhecido e doméstico, que acabamos nos desobrigando da tarefa de meditar sua vida, de ir buscá-lo nas Fontes e no estudo do seu tempo, contentando-nos com uma imagem mais ou menos preconcebida de quem ele seja. Talvez esse tipo de aproximação seja até ponto inevitável, mas ele encerra um grande risco.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA596

A partir dessas abordagens sobre a atualização e o resgate do franciscanismo, evidencia-se que para a dinâmica do século 21 Francisco é muito mais do que um herói medieval envolto em brumas de fantasias.

Harada (1982, p. 448) destaca que:

Nós hodiernos, narramos os feitos desses heróis. Ou melhor, nem sequer narramos os seus feitos, pois tudo o que fizeram nos é conhecido, conhecido a partir do nosso fazer e da nossa prática, a tal ponto de não mais estranharmos que nem sequer tenhamos a dificuldade de compreender o que eles entendiam por fazer, lutar, agir.

3.1 O FRANCISCANISMO – ALGUMAS VIRTUDES

Abaixo são destacadas algumas virtudes franciscanas que, durante a pesquisa, foram observadas como presença na atualidade dos jovens da Geração Y. Criou-se, então, unidades de análise a partir da vida e dos ensinamentos de São Francisco de Assis, considerando que tais dimensões incidem na trajetória da humanidade nos dias de hoje.

QUADRO 1 – Elaboração das unidades de análise a partir das virtudes franciscanas – 2012

VIRTUDE FRANCISCANA INTERPRETAÇÃO LIVRE PARA A SOCIEDADE ATUAL

Acolhimento

Acolhimento do irmão que quer dizer daquele que é menor igual a si mesmo, ou seja, é a capacidade de servir aos outros, se fazer presente, responsável para partilhar a vida com o outro.

Compaixão

A palavra no significado literal quer dizer. Esse sentimento não se relaciona com ter pena ou sentir dor, pelo contrário, é alegrar-se junto, chorar junto, isto é, a capacidade de ser solidário.

Cortesia

Cortesia é fundamental na virtude franciscana, significa a gentileza e fineza no tratamento com as pessoas. Como todos são irmãos, a cortesia constrói a verdadeira fraternidade, fechando o círculo fundamental da amorosidade das relações sociais.

Desenvolvimento sustentável

No Cântico das Criaturas, Francisco relaciona sistemicamente todo o Cosmos, unindo diferentes dimensões de sua constituição e manutenção. Ou seja, a cadeia de manutenção da vida é interligada com tudo e todos: com o Irmão Sol, com a Irmã Lua, o Irmão Fogo, e assim por diante.

continua

597Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Diálogo

O diálogo é a capacidade de ouvir o que o outro tem a dizer, reconhecendo no outro sua importância e responsabilidade de se fazer igual e não superior. Isto é, em um diálogo, ninguém ganha, pois não se trata de disputa, mas demonstra a oportunidade de conhecer o outro. Daí que o diálogo leva ao momento do encontro com o outro.

EncontroA vida é um encontro. Essa palavra é essencial na virtude franciscana, pois é a disposição de promover o amor, a caridade e, sobretudo, a fraternidade.

FraternidadeA fraternidade é o reconhecimento da pessoa do outro, isto é, valorizar a dignidade de todos serem irmãos.

Lealdade

A Lealdade pode ser relacionada à franqueza, ou seja, diz respeito à sinceridade, honestidade. Essa virtude é essencial, pois é à base das relações interpessoais, pois ser sincero, franco e honesto conduz a um comprometimento com o outro e possibilita o diálogo.

Respeito

O respeito supõe reconhecer o outro em sua alteridade e perceber o seu valor intrínseco. Entretanto, o respeito significa a capacidade de reconhecer o outro como outro, ou seja, possibilitar a convivência e a valorização do ser humano.

Sabedoria

No texto Elogio das Virtudes, Francisco exprime o verdadeiro significado das virtudes em cada contexto da vida humana, isto é, aprender a praticá-las. São Francisco, ao se referir à sabedoria, afirma: “Salve rainha sabedoria, o Senhor te guarde por tua santa irmã, a pura simplicidade.” Enfim, a sabedoria é a virtude de saber agir na hora certa e do jeito certo, ou seja, é a capacidade de aprender a bem viver.

Solidariedade

Diz da capacidade de solidarizar-se com as outras pessoas, ou seja, permite o contato com a vida do outro não somente nas dificuldades, mas, sobretudo, na vivência de fraternidade e vínculos recíprocos de unidade entre os homens.

Tolerância

A tolerância consiste na atitude de saber conviver bem com os outros, independentemente das diferenças existentes. Conviver com o outro exige respeito e aceitação da realidade multifacetada, isto é, o convívio é necessário mesmo entre as diferenças, pois é nesse contexto que se dá a vivência fraterna.

FONTE: Os autores, 2012

conclusão

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3.2 AS VIRTUDES FRANCISCANAS E A RELAÇÃO COM ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO PERFIL DA GERAÇÃO Y

Para identificar certas virtudes que possam ter relação com o perfil da Geração Y, é necessário, sobretudo, apontar de forma breve e clara algumas características típicas desse perfil. Não se trata de definições acerca do perfil dessa Geração, entretanto, busca-se demonstrar aptidões observadas na pesquisa acerca da realidade desses protagonistas.

Segundo Oliveira (2010), alguns comportamentos caracterizam essa geração com mais propriedade, como a necessidade de constante reconhecimento, a opção por padrões informais e flexíveis, a individualidade como forma de expressão e a busca intensa por ampliação da rede de relacionamentos.

Nesta pesquisa foram verificadas algumas virtudes que são características do perfil da Geração Y. Dentre elas, destacam-se: a realização pessoal e profissional dessa geração não descarta o envolvimento com as questões sociais e, principalmente, o compromisso com o desenvolvimento sustentável. Além de não se preocupar somente com os seus interesses, a atividade profissional é baseada no diálogo, no respeito e no reconhecimento do outro. Tais virtudes franciscanas são perceptíveis no perfil da Geração Y.

4 SÍNTESE DA METODOLOGIA

O percurso metodológico para a investigação tem três fases consecutivas, tomando como procedimento de pesquisa o estudo de caso (GIL, 1991). A unidade caso FAE Centro Universitário foi eleita como amostra intencional (APPOLINÁRIO, 2004), justamente pelo seu serviço educacional com tratamento humanístico, apresentado na sua missão e visão organizacionais. A segunda fase caracteriza os indicadores dos perfis da Geração Y, segundo os estudiosos do tema, por análises dos formulários já respondidos; e a terceira fase correlaciona e analisa os dados que caracterizam o perfil da Geração Y com as virtudes franciscanas.

A pesquisa direciona-se para outro estudo de caso, a partir de uma das turmas fonte de dados, para correlação entre os dados. A criação de um roteiro de análise de conteúdo a respeito da visão franciscana sobre virtudes e a Geração Y serve de parâmetro para o estudo.

Para tal trabalho, foi utilizado o formulário elaborado pela professora orientadora, sendo que o questionário possui um roteiro preestabelecido para o estudo em questão. Na primeira fase do projeto, o questionário foi direcionado aos alunos de Administração e Ciências Contábeis, sendo que a primeira coleta de dados foi realizada entre 10 a 16 de dezembro de 2009, nas turmas de terceiro ano do curso de Administração.

599Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

O formulário possui 11 questões, algumas com subdivisões ou desdobramentos, sendo que a última é aberta para que o respondente possa relatar a sua projeção na vida profissional. A ênfase das correlações do estudo de caso de uma unidade caso do curso de Administração está na questão 11, justamente por ser subjetiva.

O instrumento de análise é um dos formulários de pesquisa entregue aos alunos, comparado com o referencial sobre as virtudes franciscanas e Geração Y. A eleição dessa amostra é intencional pelo fato de decompor uma das primeiras turmas que foram fontes para a coleta de dados.

A unidade de análise eleita como amostra do curso de Administração converge para as características iniciais da série histórica pretendida, para, daí, identificar e projetar tendências desse público-alvo.

4.1 A PESQUISA: TABULAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

A FAE Centro Universitário é reconhecida, nacional e internacionalmente, como uma instituição de excelência em ensino, com ênfase na escola de negócios, que se diferencia pela formação humanista dada aos seus alunos. Tem por missão produzir e difundir o conhecimento, libertar o ser humano pelo diálogo entre a ciência e a fé, bem como promover fraternidade e solidariedade, mediante a prática do bem e consequente construção da paz.

A FAE Centro Universitário, fundamentada em uma visão cristã do homem e do mundo, tem como finalidade proporcionar condições para que os alunos se habilitem ao exercício profissional pleno e contínuo nas atividades de negócios, educação e áreas afins. Os seus cursos contemplam tanto o desenvolvimento acadêmico-profissional quanto o da pesquisa científica, respeitando a legislação vigente e executando exemplarmente o papel metodológico e pedagógico.

4.2 INDICADORES DO PERFIL DA GERAÇÃO Y COM AS VIRTUDES FRANCISCANAS A PARTIR DO QUESTIONÁRIO APLICADO

A seguir, apresenta-se análise e interpretação do formulário, já aplicado e respondido, com as questões que foram consideradas haver relação com as virtudes franciscanas em geral:

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QUADRO 2 – Análise e interpretação do formulário de pesquisa com as virtudes franciscanas

QUESTÕES DO FORMULÁRIO

IDENTIFICAÇÃO E JUSTIFICATIVA REFERENTE AO PERFIL DA GERAÇÃO Y

RELAÇÃO EXISTENTE COM AS VIRTUDES

FRANCISCANAS

1. Pensa em constituir família:

( ) logo após a formatura; ( ) depois da estabilidade profissional;( ) não.

Perceber no perfil da Geração Y as tendências pessoais e profissionais em relação à família. (prioridades de estabilidade e realização pessoal compõem o perfil profissional em relação à família).

Virtudes franciscanas: Encontro (pessoal e comunitário com os outros, principalmente no contexto familiar), tendo em vista que o outro é requisito básico para o convívio profissional e pessoal.

2. Assinale as opções que você concorda como presentes no seu perfil profissional:As normas profissionais do passado não valem mais:

No perfil da Geração Y, pretende-se verificar qual a relação de tal profissional com as normas profissionais do passado. É evidente destacar que a Geração Y não se opõe a métodos profissionais antigos, entretanto, busca realizar ideais e desenvolver características próprias.

Deseja-se avaliar no perfil da Geração Y possíveis aproximações com as virtudes franciscanas: Diálogo e Tolerância (capacidade de interagir com outras pessoas, convivência sadia e harmoniosa com gerações anteriores). Respeito (as opiniões alheias e atitudes).

3. Vale tudo pelo sucesso: Os fins justificam os meios?

( ) Sim

( ) Não

Perceber no perfil da Geração Y se o sucesso vale a pena em quaisquer circunstâncias, somente para alcançar o mérito profissional, a promoção desejada ou a aceitação dos demais colegas de trabalho.

Deseja-se identificar se o sucesso profissional deve ser conquistado a qualquer preço, mesmo se isso custasse o desrespeito e o não reconhecimento dos outros, isto é, passaria por cima dos outros para conseguir a promoção desejada.

4. Todo chefe deve ser um parceiro:

Identificar no perfil da Geração Y(percepções na vida cotidiana de trabalho) quais seriam as expectativas em relação ao líder e se tais relacionamentos com os chefes, superiores, contribuem ou não para a sua realização pessoal e profissional.

Perceber se há a presença das seguintes virtudes: diálogo, respeito e solidariedade no convívio profissional.

5. Mudaria hábitos para preservar o meio ambiente:

Pretende-se analisar, a partir do perfil da Geração Y, o comprometimento social e ético com a preservação do Planeta, considerando a possibilidade de alterar hábitos na luta por projetos sociais que contribuam para o desenvolvimento sustentável do meio ambiente.

Identificar tendências no perfil da Geração Y que evidenciem as seguintes virtudes: o cuidado com a natureza (a percepção, não somente de si mesmo, mas também de respeito e comprometimento com a natureza). O compromisso ético de desenvolvimento sustentável com o Planeta (responsabilidade social e sustentável).

continua

601Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

6. Não ligo se pessoas de minha relação agridem o meio ambiente:

Identificar no perfil da Geração Y se, possivelmente, a responsabilidade ética e social na preservação do Planeta é cobrança geral para as outras pessoas (e se tal ato pode ser verificado como uma tendência fortemente observada na Geração Y).

Pretende-se identificar nesse perfil a relação verificada, ou não; no perfil virtuoso: o desenvolvimento sustentável aparece como o cuidado, respeito à natureza, e o significado da relação e importância do meio ambiente.

7. Só atuo em busca de meus próprios interesses de realização:

Analisar no perfil da Geração Y se tais interesses de realização pessoal também podem ter relação com a prática de atividades sociais, isto é, se é possível nesses interesses pessoais destacar o perfil humanístico social dessa geração.

A partir de interesses de realização pessoal da Geração Y, verificar as seguintes virtudes: Diálogo como base fundamental para o encontro e comprometimento com a pessoa do outro.

8. Clareza e honestidade nas relações são essenciais para as pessoas:

Identificar no perfil da Geração Y se tais atitudes de relacionamento, a clareza e a honestidade, formam a base das relações interpessoais.

Pretende-se identificar, a partir do perfil da Geração Y, se as virtudes franciscanas estão presentes nas relações interpessoais: Lealdade e Respeito na aproximação com o outro, reconhecimento da dignidade que há em cada ser humano.

9. Nas redes interpessoais, todos têm a mesma importância:

Considerar no perfil da Geração Y o reconhecimento e a valorização da pessoa humana em analisar que não existe o mais importante, mas é necessário se relacionar com todos.

Identificar no perfil da Geração Y tendências que evidenciem a relação com as virtudes franciscanas: a fraternidade (sem méritos a alguns, mas realmente reconhecer o outro como irmão).

10. Chefes e professores devem ser respeitados e obedecidos:

Identificar no perfil da Geração Y a sensibilidade desse profissional em reconhecer que, também, outros profissionais merecem respeito e consideração, e, possivelmente, verificar a relação com o perfil humanístico dessa geração.

Compreender no perfil da Geração Y, justamente com a presença de virtudes franciscanas, o encontro como reconhecimento e a possibilidade de diálogo e respeito pela pessoa do outro.

FONTE: Os autores, 2012

conclusão

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA602

4.3 TABULAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS: ALGUMAS QUESTÕES DA RELAÇÃO DA GERAÇÃO Y COM AS VIRTUDES FRANCISCANAS

O estudo de caso da unidade de análise do curso de Administração é apresentado com dados que caracterizam tal unidade. Nas tabelas em que se identifica o perfil dos respondentes com respostas associadas aos conceitos das virtudes franciscanas, faz-se o destaque com a respectiva correlação.

Preferiu-se a apresentação da tabulação com dados agrupados para melhor análise dos resultados.

Sobre o projeto de constituir família, 84,8% dos respondentes desejam constituir família após a estabilidade profissional. Para o perfil profissional da Geração Y, a família é um projeto que faz parte das prioridades da vida pessoal.

De acordo com os dados coletados, observa-se que, para o estudo das virtudes franciscanas, a variável família é primordial, porque é justamente nesse contexto que se realiza o encontro pessoal e comunitário entre as pessoas, há um destaque maior na convivência e as inter-relações com os outros.

Na tabela 2, referente ao perfil profissional, observa-se que 93,9% dos respondentes não concordam com o argumento de que as normas do passado já estão ultrapassadas.

A partir desses resultados, verifica-se que o profissional da Geração Y não se opõe aos métodos profissionais antigos, o que atualiza o próprio potencial no desenvolvimento profissional.

TABELA 1 – Projetos para constituir família - FAE dez. 2009

OPÇÃO n %

Logo após a formatura 2 6,06

Depois da estabilidade profissional 28 84,8

Não 3 9,09

Já tem 0 0

TOTAL 33 99,95

FONTE: Alunos da FAE Centro Universitário

TABELA 2 – Perfil profissional: as normas profissionais do passado não valem mais - FAE dez. 2009

OPÇÃO n %

Concorda 2 6,06

Não concorda 31 93,9

TOTAL 33 99,96

FONTE: Alunos da FAE Centro Universitário

603Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

De acordo com os dados da pesquisa, observa-se que há interação do perfil da Geração Y com as virtudes franciscanas. Para 93,9% dos respondentes, evidencia-se a aproximação de gerações pelo diálogo, respeito e tolerância às opiniões divergentes de pessoas que não falam a mesma língua da Geração Y.

De acordo com a área profissional e se é válido tudo pelo sucesso profissional e pessoal, os resultados observados apontam que 51,5% dos alunos pesquisados não concordam com a premissa de que vale tudo pelo sucesso. O jovem profissional da Geração Y demonstra que para alcançar o sucesso profissional não é necessário conquistá-lo a qualquer custo. Na análise das virtudes franciscanas, tal resultado demonstra que vale muito mais a integridade do que o sucesso temporário.

O jovem da Geração Y demonstra uma expectativa em relação ao gestor da empresa, de forma geral, o chefe também é responsável direto pelo desenvolvimento e desempenho desse profissional.

De acordo com a pesquisa, 66,6% dos alunos demonstram que é necessário estabelecer relações de confiança e parcerias entre os chefes e os funcionários. Para a análise das virtudes franciscanas, tais resultados confirmam que é possível um relacionamento saudável e que o diálogo e a tolerância são ferramentas fundamentais na convivência pessoal e profissional no ambiente de trabalho.

TABELA 3 – Vale tudo pelo sucesso - FAE dez. 2009

OPÇÃO n %

Sim 16 48,4

Não 17 51,5

TOTAL 33 99,9

FONTE: Alunos da FAE Centro Universitário

TABELA 4 – Perfil profissional: todo chefe deve ser um parceiro - FAE dez. 2009

OPÇÃO n %

Concorda 22 66,6

Não concorda 11 33,4

TOTAL 33 100

FONTE: Alunos da FAE Centro universitário (2009)

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA604

Na tabela 5, referente ao contexto sustentável do Planeta, 69,6% dos respondentes mudariam de hábitos para preservar o meio ambiente. O resultado é idêntico ao que já foi verificado em outros estudos do perfil da Geração Y, em que o comprometimento ético e social na preservação do Planeta e, inclusive, a mudança de hábitos que ajudariam na solução dos problemas ecológicos no século 21 é pauta de compromisso.

Esses resultados mostram a aproximação das virtudes franciscanas e o perfil da Geração Y no que se refere às ações de enfrentamento aos problemas do meio ambiente. Foi verificado no perfil desses jovens pesquisados o compromisso com o desenvolvimento sustentável, pois esse profissional não se preocupa apenas com as questões pessoais do trabalho, mas demonstra a expectativa e o desejo de mudar a realidade presente no contexto ambiental.

Pelo resultado da tabela 6, observa-se que a maioria dos respondentes (96,9%) não concorda com a afirmação que não se importa com a atitude de pessoas que agridem o meio ambiente.

A proposta franciscana dessa pesquisa corrobora com a apresentada no resultado, pois a atitude franciscana se resume no cuidado e o respeito com a natureza. Tal atitude propõe o compromisso ético-social com a sustentabilidade e a defesa da vida em quaisquer situações, pois Francisco de Assis compreendia que todos os seres são irmãos, revelando uma mística comunhão e amor entre os homens e a natureza. Sua atitude, ainda hoje, é inovadora e misteriosa, desse modo, Francisco se faz presente no cotidiano da vida humana.

TABELA 5 – Perfil profissional: mudaria hábitos para preservar o meio ambiente - FAE, dez. 2009

OPÇÃO n %

Concorda 23 69,6

Não concorda 10 30,4

TOTAL 33 100

FONTE: Alunos da FAE Centro Universitário

TABELA 6 – Perfil profissional: não ligo se pessoas de minha relação agridem o meio ambiente - FAE dez. 2009

OPÇÃO n %

Concorda 1 3,03

Não concorda 32 96,9

TOTAL 33 99,93

FONTE: Alunos da FAE Centro Universitário

605Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Os resultados acima demonstram que 87,8% dos respondentes não consideram sua atuação profissional somente na busca de realização própria. A partir disso, evidencia-se o retrato do perfil humanístico dessa geração, isto é, os jovens da Geração Y são preocupados com os outros.

Na pesquisa, verificou-se uma abertura para os outros, e a atenção a outras pessoas que não fazem parte da relação de trabalho. Para as virtudes franciscanas, os dados coletados caracterizam a presença do diálogo, do encontro, da fraternidade, e o compromisso com a vida do ser humano.

De acordo com os dados da tabela 8, 69,6% não concordam que nas relações interpessoais todos têm a mesma importância. Entretanto, a proposta franciscana é a de cultivar e promover a fraternidade, isto é, reconhecer o outro como irmão, não se trata de eleger os melhores para se conviver.

Os dados apresentados permitem compreender a relação entre o perfil do profissional da Geração Y e as virtudes franciscanas, fornecendo elementos para correlacionar os dados existentes na pesquisa e o perfil humanístico dessa geração com a proposta franciscana das virtudes, permitindo a aproximação com a realidade dos alunos pesquisados.

TABELA 7 – Perfil profissional: só atuo em busca de meus próprios interesses de realização - FAE dez. 2009

OPÇÃO n %

Concorda 4 12,1

Não concorda 29 87,8

TOTAL 33 99,9

FONTE: Alunos da FAE Centro Universitário

TABELA 8 – Perfil profissional: nas relações interpessoais todos tem a mesma importância - FAE dez. 2009

OPÇÃO n %

Concorda 10 30,3

Não concorda 23 69,6

TOTAL 33 99,9

FONTE: Alunos da FAE Centro Universitário

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA606

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do objetivo geral, pôde-se identificar o perfil do novo profissional do século 21, a partir da análise das características da Geração Y, plasmado na presença e atualização das virtudes franciscanas.

Por se tratar de uma instituição confessional com base nos ensinamentos de São Francisco de Assis, a FAE Centro Universitário pode ter possibilitado a ambiência para a aproximação de seu público alvo com a formação humanística. A própria escolha pela instituição pode indicar tendências para a incidência desse perfil pessoal, que se reflete no perfil profissional.

Os resultados dos formulários respondidos pelos alunos de Administração contribuíram na análise e no estudo das características da Geração Y, e, dessa forma, colaborou também na identificação do perfil profissional juntamente com a aderência conceitual das virtudes franciscanas.

Os dados coletados mostraram a aproximação do perfil da Geração Y com as virtudes franciscanas. Os resultados apontam que as virtudes franciscanas são atualizadas no comportamento pessoal e profissional, bem como no perfil humanístico social dessa geração. Percebe-se a consciência de preservação à natureza, além de se notar a preocupação por questões ambientais que são relevantes no contexto social e o engajamento na construção do desenvolvimento sustentável.

Os respondentes não se preocupam apenas com os seus interesses de realização profissional, é evidente que tal perfil caracteriza essa geração como jovens que reconhecem os outros, isto é, se empenham no compromisso ético-social e na valorização do ser humano.

Verificou-se, também, que na maioria dos respondentes o sucesso profissional não deve estar acima do senso de honestidade e justiça. Tal questão evidencia o perfil humanístico dessa geração em procurar a felicidade profissional, porém não se; utilizar de meios que desrespeitem os outros. Percebe-se, também, a atualização das virtudes franciscanas no comportamento ético e na presença do diálogo, respeito e, principalmente, o reconhecimento do homem.

Enfim, as características do perfil da Geração Y são verificadas no comportamento dos jovens profissionais e são perceptíveis às virtudes franciscanas, diálogo, respeito, tolerância, fraternidade, lealdade e o acolhimento. Essas virtudes compõem o perfil humanístico e social do novo profissional do século 21.

607Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

No princípio do estudo projetou-se a tabulação e análise dos dados, considerando-se uma amostra por semestre da série histórica já coletada. Contudo, devido à dificuldade de criar o modelo de análise correlacionando-se perfil e virtudes, esse objetivo ficou focado na amostra do primeiro ano da série histórica. Acredita-se que com esse procedimento as tendências, ora identificadas, possam ser melhores analisadas nos anos subsequentes do estudo efetivado.

Como recomendação, sugere-se a continuidade do estudo considerando-se a necessidade de clarificação das respostas. Existe a possibilidade de pesquisa de levantamento com alunos para caracterizar essa relação entre o perfil da geração com as virtudes franciscanas (algumas tendências de algumas virtudes ou do franciscanismo em geral), que pode ficar evidenciada em outras abordagens metodológicas.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA608

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609Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

A responsabilidade e sustentabilidade fazem parte do contexto empresarial do novo modelo de gestão do terceiro milênio. A preocupação com os princípios éticos, morais e ambientais tornaram-se necessários para que se estabeleçam critérios e parâmetros adequados para as atividades empresariais socialmente responsáveis. Cria-se um dilema não apenas conceitual a respeito do tema, mas também pragmático. Dessa forma, este artigo pretende analisar como o modelo de economia, os níveis de consumo, escassez de recursos e crescimento demográfico são fatores capazes de reavaliar e questionar o comportamento das organizações perante seus stakeholders exigindo uma nova ecofilosofia empresarial.

Palavras-chave: Sustentabilidade. Responsabilidade Social. Organizações. Ecofilosofia empresarial. Economia.

ECOFILOSOFIA EMPRESARIAL: FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DA SUSTENTABILIDADE E DA RESPONSABILIDADE SOCIAL

Marcelo Bazzei Trevisol*Léo Peruzzo Júnior**

* Aluno do 4º ano de Administração da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário E-mail: [email protected].

** Doutorando em Ética e Filosofia Política (UFSC). Professor da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

Uma das principais dificuldades do ser humano, durante séculos, é a de compreender situações climáticas que pareciam acontecer por causalidade ou misticismo. A interferência humana na ordem natural do universo é um problema que surge na modernidade, especialmente devido ao progresso da ciência e da revolução astronômica.

Dessa forma, o ser humano passou a tomar consciência da complexidade do meio em que está envolvido e das consequências que suas ações podem causar ao capital natural. As significativas transformações percebidas, especialmente no final do século XX, são o principal meio que podem ajudar o ser humano a repensar sua visão de mundo e sua forma de produção econômica. Diante do desequilíbrio dos ecossistemas, percebe-se que o comportamento econômico está afetando negativamente o meio ambiente e, consequentemente, o desenvolvimento da ordem social.

Com o início dos avanços tecnológicos, principalmente após a Revolução Industrial do século XIX, e com o significativo crescimento populacional, as atividades produtivas passaram a causar maiores impactos ao meio ambiente. Essas situações herdadas do modelo capitalista, por si só, já são um problema de difícil compreensão e assimilação.

A partir desse contexto, é possível pensar a nova compreensão dos institutos, fundações, associações empresariais que vêm buscando assumir uma gestão socialmente responsável nos negócios. A responsabilidade social empresarial e a sustentabilidade são uma forma de conduzir as ações organizacionais pautadas em valores éticos que visem integrar todos os protagonistas de suas relações: clientes, fornecedores, consumidores, comunidade local, governo (público externo) e direção, gerência e funcionários (público interno). Ou seja, todos aqueles que são diretamente, ou não, afetados por suas atividades, contribuindo para a construção de uma sociedade que promova a igualdade de oportunidades e a inclusão social no País.

Segundo Elisabeth Rico (2004, p. 72),

as empresas, adotando um comportamento socialmente responsável, são poderosos agentes de mudança ao assumirem parcerias com o Estado e a sociedade civil, na construção de um mundo economicamente mais próspero e socialmente mais justo.

O modelo de economia capitalista vivido atualmente possui como premissa maximizar os lucros das corporações e aumentar seus processos produtivos. Para executar esse processo, extrai-se do meio ambiente matéria-prima, e, após a execução da escala produtiva e de comércio, devolve-se ao meio ambiente resíduo sólido, gases e efluentes líquidos.

611Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Em 2000, no Brasil, eram produzidas, diariamente, 125 mil toneladas de lixo. Em 2010, são produzidas 53 milhões de toneladas de resíduos urbanos por ano (IBGE, 2012).

A falta de cooperação entre políticas públicas e empresariais ocasionaram um enfrentamento entre o crescimento econômico e o desenvolvimento ambiental. A partir de tal enfoque, esta pesquisa demonstra que as ações governamentais e as iniciativas empresariais são fundamentais para a consolidação do crescimento econômico. A não realização dessa aproximação põe fim tanto ao processo capitalista quanto à esperada qualidade de vida das pessoas.

Segundo Rico (2004, p. 74),

A responsabilidade social das organizações surgiu num contexto no qual há uma crise mundial de confiança nas empresas. Para tanto, as organizações empresariais começaram a promover um discurso politicamente correto, pautado na ética, implementando ações sociais que podem significar ganhos em condições de qualidade de vida e trabalho para a classe trabalhadora ou, simplesmente, podem se tornar um mero discurso de marketing empresarial desvinculado de uma prática socialmente responsável.

Consciente dos riscos que uma economia sem planejamento pode criar, a sociedade civil passa a exigir do mercado e do governo um conceito de desenvolvimento que incorpore a sustentabilidade nos negócios. Nesse panorama, as empresas começam a rever seus processos, tendo como meta adequar-se a essa nova característica do mundo contemporâneo.

De acordo com Kreitlon (2012), como consequência das profundas transformações políticas, econômicas e sociais ocorridas no Brasil e no mundo a partir dos anos 1980, e intensificadas durante a década de 1990, “os papéis que competem às esferas pública e privada e às organizações da sociedade civil têm sido alvo de numerosos questionamentos e redefinições, tanto no cenário local como internacional” (KREITLON, 2012, p. 273).

Entre os principais fatores responsáveis por essas transformações, segundo Kreitlon (2012), destacam-se a globalização econômica e financeira, de caráter neoliberal; a reorientação do papel do Estado; o agravamento das desigualdades na distribuição de renda e de poder; a urgência assumida pelos problemas relativos ao meio ambiente; a maior democratização no acesso à educação e à informação; e a crescente importância atribuída às descobertas científicas e inovações tecnológicas. Essas características obrigam ao desenvolvimento de uma ecofilosofia empresarial que passe a elaborar uma economia baseada na sustentabilidade e na responsabilidade social.

FAE - Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA612

As pressões dos consumidores, a formação de políticas governamentais adequadas e a conscientização dos modelos empresariais são ferramentas importantes para alterar o modelo de desenvolvimento econômico no cenário internacional.1

Ao abordarmos o conceito de sustentabilidade e responsabilidade social, pretende-se propor esses termos como requisitos indispensáveis para o crescimento econômico das organizações e para o desenvolvimento da melhoria das condições sociais. A burocratização do trabalho e das atividades empresariais não podem ser obstáculos para a visão de negócios iniciadas no terceiro milênio.

O presente artigo busca rever os conceitos de sustentabilidade e responsabilidade social, uma vez que ambos estão interligados e tomam proporções diferentes, pois não são conceitos acabados, precisam se reinventar conforme a necessidade que as organizações têm de apresentar resultados que justifiquem suas ações e minimizem danos à sociedade e ao meio ambiente. Para isso, serão revisitados momentos e eventos em que os temas foram discutidos, a fim de perceber como esse conceito pode ser reconstruído. Pretende-se mostrar, com isso, comportamentos socialmente responsáveis que as empresas podem adotar para se tornar não somente uma organização competitiva, mas também sustentável.

Por se tratar de uma pesquisa de fundamentação teórica, a metodologia utilizada apoiou-se na leitura da bibliografia indicada e no levantamento empírico das cadeias produtivas no setor econômico nacional e internacional.

Os dados e conceitos obtidos pelos referidos estudos foram confrontados com a necessidade de elaboração de uma ecofilosofia empresarial. Foram feitos levantamentos das bibliografias existentes sobre o tema, revisados conceitos e propostas já apresentadas por pesquisas das últimas décadas.

Este artigo visa demonstrar como as organizações podem implantar sistemas eficientes para incorporar em suas atividades uma nova perspectiva de gestão focada nas práticas corporativas de um ambiente sustentável e responsável.

1 Segundo Barbieri e Cajazeira (2009), a empresa responsável é um caminho sem volta, não apenas um modismo ou estratégia de marketing.

613Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

2 DESENVOLVIMENTO

Os conceitos de ética, responsabilidade social e sustentabilidade vêm amadurecendo de acordo com a capacidade de implementá-los nas organizações. Discutido por várias vertentes de conhecimento, esses conceitos começaram a ganhar fundamentação e pauta, principalmente a partir da década de 1970. (Cf. MILLER; SPOOLMAN, 2012). Nesse período, começou-se a perceber a necessidade de construir ferramentas que pudessem ser aplicadas no meio empresarial. Começaram a aparecer as questões sobre como e em que medida as corporações poderiam responder às suas obrigações sociais e minimizar os riscos sociais e ambientais.

O crescimento global parece ser um dos grandes desafios na construção de um desenvolvimento sustentável que seja capaz de valorizar, ao mesmo tempo, os recursos humanos e os naturais. Nos conceitos de sustentabilidade e desenvolvimento sustentável parecem caber vários significados, devido à similaridade com que são tratados e, principalmente, em virtude dos vários meios em que esses conceitos são incluídos.

O crescimento, bem sabemos, é inevitável2. No entanto, está no alcance de as organizações fazer com que suas atividades respeitem os limites ambientais, prevendo riscos e impactos sociais. Nesse cenário de prosperidade e equilíbrio é que surge o conceito de desenvolvimento sustentável.

Segundo Romeiro (1999, p. 2-3),

O conceito de desenvolvimento sustentável surgiu pela primeira vez, com o nome de eco-desenvolvimento, no início da década de 70. Foi uma resposta à polarização exacerbada pela publicação do relatório do Clube de Roma, que opunha partidário de duas visões sobre as relações entre crescimento econômico e meio ambiente: de um lado, aqueles, genericamente classificados de possibilistas culturais (ou ‘tecno-cêntricos’ radicais), para os quais os limites ambientais ao crescimento econômico são mais que relativos diante da capacidade inventiva da humanidade, considerando o processo de crescimento econômico como uma força positiva capaz de eliminar por si só as disparidades sociais, com um custo ecológico tão inevitável quão irrelevante diante dos benefícios obtidos; de outro lado, aqueles outros, deterministas geográficos ( ou ‘eco-cêntrico’ radicais), para os quais o meio ambiente apresenta limites absolutos ao crescimento econômico, sendo que a humanidade estaria próxima da catástrofe. Mantidas as taxas observadas de expansão de recursos naturais (esgotamento) e de utilização da capacidade de assimilação do meio (poluição).

2 Cf. CENSO IBGE 2010. Disponível em www.ibge.gov.br.

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A partir desses conceitos e do relatório citado, começaram a surgir uma série de previsões de como nosso planeta estaria comprometido caso o crescimento e os modelos de produção continuassem se desenvolvendo descomprometidos com qualquer política de segurança.

Em 1987, com a Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, surge o conceito de Desenvolvimento Sustentável, exposto no relatório Nosso Futuro Comum, também conhecido como Relatório de Brundtland. Nesse relatório, é possível visualizar quais são as propostas e os problemas que novas políticas de desenvolvimento sustentável devem fazer para melhorar os efeitos do desenvolvimento econômico.

[...] propor estratégias ambientais de longo prazo para obter um desenvolvimento sustentável por volta do ano 2000 e daí em diante. Recomendar maneiras para que a preocupação com o meio ambiente se traduza em maior cooperação entre os países em desenvolvimento e entre países em estágios diferentes de desenvolvimento econômico e social e leve à consecução de objetivos comuns e interligados que considerem as inter-relações de pessoas, recursos, meio ambiente e desenvolvimento; considerar meios e maneiras pelos quais a comunidade internacional possa lidar mais eficientemente com as preocupações de cunho ambiental; ajudar a definir noções comuns relativas a questões ambientais de longo prazo e os esforços necessários para tratar com êxito os problemas da proteção e da melhorias do meio ambiente, uma agenda de longo prazo para ser posta em prática nos próximos decênios, e os objetivos a que aspira a comunidade mundial (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. xi).

Os temas discutidos na Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento tinham como objetivo colocar em discussão os desafios e esforços em comum que precisavam ser desenvolvidos, os quais nada mais eram do que propostas de mudanças institucionais nas áreas de desenvolvimento e meio ambiente.

Conforme se pode observar no referido documento, o desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades presentes sem comprometer a capacidade de as gerações futuras atenderem também suas necessidades. Essa proposta suscita a responsabilidade gerencial das empresas e de suas atividades por meio de políticas eficientes de controle e qualidade de sua produção. No entanto, apesar de o documento ser um indicativo internacional, seu principal desafio é tornar-se parte das legislações internacionais e das certificações para o desenvolvimento de quaisquer áreas do setor produtivo (Cf. GRAYSON; HODGES, 2002).

No ano de 1992, foi realizada, no Rio de Janeiro, a Conferência Mundial sobre Gestão Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, mais conhecida como Rio92. Esse evento foi realizado 20 anos após a Conferência de Estocolmo, a qual tratou de diferenciar ecodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável.

615Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

A Conferência do Rio consagrou o conceito de desenvolvimento sustentável, contribuindo, assim, para a ampla conscientização de que os danos ao meio ambiente eram majoritariamente de responsabilidade dos países desenvolvidos. Nessa ocasião, também se reconheceu a necessidade de que os países em desenvolvimento deveriam receber apoio financeiro e tecnológico para avançarem na direção do desenvolvimento sustentável. Esse fenômeno seria responsável pelas políticas de melhoria na infraestrutura e nas técnicas de produção usadas por tais países.

A Rio92 contou com a presença de representantes governamentais de vários países e teve como resultados dois importantes documentos: a Carta da Terra e a Agenda 21. De acordo com Oliveira Filho (2004, p. 6),

A agenda 21 dedica-se aos problemas da atualidade e almeja preparar o mundo para os desafios do século XXI. Ela reflete o consenso global e compromisso político em seu mais alto nível, objetivando o desenvolvimento e o compromisso ambiental. A declaração do Rio visa estabelecer acordos internacionais que respeitem os interesses do todos e proteja a integridade do sistema global de ecologia e desenvolvimento. A partir desse momento, começa a existir de maneira globalizada uma preocupação no que diz respeito à gestão ambiental e o desenvolvimento sustentável tanto por parte das entidades governamentais das organizações públicas e privada como dos consumidores deste mercado global.

A agenda 21 foi acordada pelos 170 países participantes e tinha como principal objetivo fazer com que os países que assumiram os desafios incorporassem em suas políticas públicas princípios de desenvolvimento sustentável. Esses princípios tornam-se uma condição essencial para a implementação de ações que visem à redução da sobrecarga de resíduos ao meio ambiente, além de tratar de questões internas que poderiam ser assumidas pelas organizações, sobretudo aquelas de países desenvolvidos onde o sistema produtivo está mais bem consolidado.

Uma década após a Rio92, na África do Sul, ocorreu a maior conferência mundial sobre o tema Gestão Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, denominada como RIO+10. Nessa conferência foram tratados de assuntos referentes ao chamado Protocolo de Kyoto, no qual os países firmaram um compromisso em que países com maior nível de industrialização deveriam ser tributados e responsabilizados de maneira maior no que diz respeito às responsabilidades da não preservação do Planeta para gerações futuras. Isso deveria acontecer porque os países com maior nível de industrialização são os maiores utilizadores de recursos naturais geradores de resíduos e poluentes (Cf. ASHELEY et col., 2005).

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Procurando sintetizar os resultados das discussões a respeito do tema sustentabilidade, a Cúpula Mundial do Desenvolvimento Sustentável, a RIO+10, baseou seus conceitos em três pilares: econômico, social e ambiental. Esse conceito tornou-se conhecido entre as empresas e os pesquisadores, especialmente para ilustrar uma visão mais ampla da sustentabilidade. A partir desse conceito, fica claro que não podemos separar as questões sociais das ambientais, ou seja, quando falamos que uma empresa é sustentável ela deve ser ecológica e socialmente responsável, procurando sempre atender aos interesses dos stakeholders que afetam ou são afetados por suas atividades.

Um estudo realizado por Conceição et al. (2011), caracterizado como uma pesquisa qualitativa e quantitativa, com amostra formada por 123 empresas listadas na Bovespa (Bolsa de Valores do Estado de São Paulo – Brasil), procurou identificar a ideia de disclosure relativo à responsabilidade social corporativa3. Os resultados apontaram que apenas 52 empresas apresentaram algum tipo de comunicação acerca de seu desempenho em responsabilidade social corporativa, demonstrando, assim, um pequeno percentual ou política de gestão.

Após 20 anos da ECO 92, ocorreu a RIO+20, organizada pela Conferência das Nações Unidas tratando sobre Desenvolvimento Sustentável. Pressionados, principalmente pela população que se sente ameaçada com os riscos que pode sofrer em decorrência do desequilíbrio do ecossistema, as organizações representadas pelos chefes de Estado se comprometeram em orientar políticas públicas de desenvolvimento sustentável. O objetivo da conferência foi assegurar um comprometimento político renovado para o desenvolvimento sustentável, avaliar o progresso feito até o momento e as lacunas que ainda existem na implementação de resultados dos principais encontros sobre desenvolvimento sustentável, além de abordar os novos desafios emergentes.

3 As empresas disponibilizaram seus relatórios (DFP – Demonstrações Financeiras Padronizadas) por sua ferramenta institucional denominada Divulgação Externa (DivExt) relativos ao exercício de 2008.

617Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

3 SUSTENTABILIDADE E RESPONSABILIDADE SOCIAL NAS ORGANIZAÇÕES

As discussões a respeito da responsabilidade social das organizações têm ocupado um espaço cada vez maior na mídia, no meio corporativo, e também no espaço acadêmico. Enquanto as universidades preocupam-se em formar gestores preocupados com o desenvolvimento sustentável, a sociedade e a mídia cobram atitudes mais responsáveis das organizações.

Não existe ainda um consenso sobre qual deveria ser o posicionamento social das empresas. De um lado, defende-se a ideia clássica de que organização responsável é aquela que cumpre sua função de gerar empregos, arcar com suas obrigações fiscais e proporcionar lucros aos seus acionistas. De outro, defende-se a ideia de que as empresas devem assumir um papel mais relevante na sociedade. As empresas deveriam ir muito além da ideia clássica, deveriam também assumir uma postura de desenvolvimento sustentável atendendo às legislações ambientais e as demais aspirações da sociedade.

Mas o que as empresas ganham com isso? Clientes. Pois os consumidores estão começando a dar preferência a empresas socialmente responsáveis no momento da compra. Além disso, as empresas ganham maior valor positivo na exposição da sua marca, maior demanda e valorização por suas ações e preferência dos investidores. Consequentemente, ações convenientemente dirigidas à preservação ambiental, dentro dessa visão contributiva de marketing social e ambiental, certamente serão recompensadas com salutares retornos de imagem diferenciada com vantagem competitiva (LEITE, 2003).

Nesse sentido, um dos grandes desafios que as organizações modernas estão enfrentando na área de responsabilidade social é a de estabelecer políticas de responsabilidade e sustentabilidade. Essas políticas devem resgatar a identidade da organização de acordo com a sua missão e valores. É importante, como em todo projeto, envolver todos os colaboradores da empresa, e definir com clareza todos os objetivos que se pretende alcançar. Além disso, existe a necessidade de acompanhamento, avaliação e divulgação de resultados.

A partir dos resultados obtidos neste trabalho, desenvolveu-se um conjunto de variáveis e indicadores que permitem analisar o modelo de gestão da organização.

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QUADRO 1 – Variáveis e indicadores da gestão sustentável

Variáveis Indicadores

1 Governança corporativaA missão da empresa e a cultura organizacional devem ter como pilares a responsabilidade social e a sustentabilidade.

2 Colaboradores internos

A organização deve ter estratégias para avaliar seus colaboradores com padrões trabalhistas internacionais. Além disso, possuir uma área de Recursos Humanos focada no aproveitamento do capital humano.

3 Políticas ambientaisAs organizações devem gerenciar seus produtos e serviços, e devem aplicar algum tipo de logística reversa.

4 Fornecedores

As organizações devem avaliar externamente o produto e o serviço consumido. Os produtos ou serviços recebidos devem possuir em suas cadeias produtivas uma gestão sustentável.

5 Público consumidorA política comercial da organização deve avaliar a excelência do produto e do atendimento fornecido ao cliente.

6 Sociedade

A organização deve possuir um planejamento de riscos e benefícios de suas atividades para a comunidade em geral, mesmo que essa comunidade não seja consumidora do produto ou serviço.

7 GovernoA organização deve contar com um plano fiscal e seguir a legislação ambiental e comercial vigente.

FONTE: Elaboração própria

Dessa forma, o desenvolvimento de uma ecofilosofia empresarial que tenha como pilares a sustentabilidade e a responsabilidade social é essencial a qualquer área do desenvolvimento econômico. Ignorar tais questões é permitir que as organizações avancem num caminho sem volta frente à escassez, poluição e má distribuição dos recursos naturais, além de ignorar vantagens competitivas, fortalecimento da marca e relacionamento com seus investidores.

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CONCLUSÃO

O pensamento dominante no ambiente corporativo, em suas estratégias de marketing e gestão, aborda fundamentalmente a questão social e os desafios impostos pelas questões ambientais como oportunidades de negócios. Essa perspectiva é vista, especialmente, como uma forma de reduzir custos ou como uma forma de diferenciação perante seus concorrentes (Cf. CARRIERI; SILVA; PIMENTAL, 2009, p. 1-4).

Grande parte das empresas trata essa questão como uma resposta à cobrança da sociedade e à necessidade de manter uma imagem e uma reputação de organização socialmente responsável e, principalmente, como uma resposta às exigências de licenças para que possam operar. Isso nos mostra que em grande parte das empresas a responsabilidade social ainda é uma prática reativa.

Dessa forma, a responsabilidade social e a sustentabilidade podem se tornar responsáveis pela manutenção do bem-estar, da natureza e da população por possuir dimensões ambientais, econômicas e sociais. Em virtude disso, as empresas devem ter uma postura ativa, visualizando a sustentabilidade como novo critério básico e integrador, com capacidade de fortalecer valores coletivos, com capacidade de reflexão e ação em torno da problemática ambiental4.

Práticas corporativas ambientalmente saudáveis apontam para propostas centradas na criticidade dos sujeitos, com vistas à mudança de comportamento e atitudes, ao desenvolvimento da organização social e da participação coletiva. Essa mudança paradigmática implica também uma mudança de percepção e de valores, gerando um pensamento complexo, aberto às mudanças, à diversidade, à possibilidade de construir e reconstruir, configurando novas possibilidades de ação.

Senge (2008) define as “organizações que aprendem” como aquelas que aprendem a desenvolver novas habilidades e capacidades, que levam a novas percepções e sensibilidades, que, por sua vez, revolucionam crenças e opiniões. Nesse sentido, o compromisso social empresarial não pode ser algum tipo de filantropia5.

4 Cf. Pesquisa de Ação Social IPEA, 2001 apud REIS, 2007.5 Cf. REIS, 2007, p.299.

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A premissa que norteia o conceito de ecofilosofia empresarial é o diálogo de saberes que permite o encontro de diferentes percepções e a formação de um pensamento crítico, criativo e sintonizado com a necessidade de propor respostas para o futuro empresarial. Esse pensamento crítico deve ser capaz, ainda, de analisar as complexas relações entre os processos naturais e sociais e de atuar no ambiente em uma perspectiva global, respeitando as diversidades socioculturais.

Para tanto, as empresas devem abordar cinco aptidões essenciais para avançar na direção de um futuro mais sustentável: uma visão de futuro sustentável e responsável; desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo sobre os mecanismos produtivos; um pensamento sistêmico que insere complexidades e busca relações e sinergias em busca de soluções para problemas ambientais e mundiais; construção de parcerias, promovendo diálogo e negociação entre o setor empresarial e governamental; e fortalecimento de processos decisórios participativos entre colaboradores e sociedade.

Procurou-se ressaltar, ao longo deste trabalho, alguns aspectos ideológicos, econômicos e sociais que fornecem enquadramento para os atuais discursos de responsabilidade social das empresas. No entanto, embora essa questão tenha ocupado a pauta das organizações, muitas vezes a função, a atividade e a responsabilidade das organizações na sociedade são questionadas. Mesmo que os termos responsabilidade social e sustentabilidade frequentemente tenham aparecido na mídia e encontros internacionais, eles possuem um dinamismo incomparável pela natureza de suas causas, bem como pelos seus múltiplos desdobramentos, constituindo um ponto de tensão para o modelo de gestão empresarial e de suas relações com a sociedade.

Portanto, um conceito é, na maioria dos casos, fruto da experiência, da verificação empírica de um determinado fato e, no final, da tentativa de expressar um novo paradigma no ambiente empresarial. Embora o termo esteja em voga no novo vocabulário das empresas, não está plenamente definido e não encontrou ainda um grau de estabilidade semântica, por isso a necessidade de revisão e criação de novos conceitos.

Cabe afirmar, portanto, que uma nova ecofilosofia empresarial necessita de revisões constantes na forma como se estruturam suas atividades e sua relação com os stakeholders.

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623Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

A partir da Teoria do Reconhecimento, proposta por Axel Honneth, o objetivo deste artigo é analisar as possíveis contribuições dessa teoria para os Estudos Organizacionais na área de Gestão de Pessoas, visto que os Estudos Organizacionais ainda encontrar-se num processo de construção e elaboração teórica, fato que possibilita uma abordagem crítica-reflexiva. Para tanto, é necessário um esclarecimento acerca da Teoria Crítica da Sociedade, ou seja, da Escola de Frankfurt, juntamente com as Teorias Organizacionais. Desse diálogo podem surgir inovações? É isso que este artigo pretende investigar, a saber: as aproximações e contribuições da Teoria do Reconhecimento frente à Teoria das Organizações. A metodologia utilizada foi o estudo de caso; a unidade caso é uma Instituição Privada de Ensino Superior da Região Metropolitana de Curitiba. Utilizou-se também um questionário e entrevista semiestruturada, contemplando o assunto em questão (Teoria do Reconhecimento). O estudo de campo evidenciou-se como técnica adotada para coletar os dados. No início da fase exploratória do estudo, os dados obtidos a partir da pesquisa bibliográfica foram aqueles que permitiram identificar, a partir da literatura, os elementos que fundamentam o referencial teórico sobre as principais dimensões da Teoria do Reconhecimento (amor, direito e solidariedade). A leitura dos dados, o registro e a sua ordenação sucedeu-se por meio de um conjunto referencial de categorias visando detectar, a partir do questionário realizado com 58 professores, a intensidade dos padrões de reconhecimento, e a falta deles, ou seja, o desrespeito dentro das relações de trabalho. Conclui-se que a proposta deste artigo mostra-se de extrema importância para o enriquecimento da Teoria das Organizações na área de Gestão de Pessoas.

Palavras-chave: Teoria do Reconhecimento. Gestão de Pessoas. Conflitos Sociais. Desrespeito. Autorrealização.

CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DO RECONHECIMENTO PARA OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS NA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS

Augusto Luis Pinheiro Martins*Osmar Ponchirolli**

* Aluno do 3°ano de Filosofia da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail:[email protected].

** Doutor em Engenharia de Produção (UFSC). Professor do Programa de Mestrado em Organizações e Desenvolvimento da FAE Centro Universitário. Filósofo. Teólogo. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

Com o advento dos Estudos Organizacionais, a análise do fenômeno organizacional ganhou destaque, possibilitando a reflexão teórica acerca das organizações.

Este artigo pretende discutir a Teoria do Reconhecimento como possibilidade de concretização da Teoria Crítica na Teoria das Organizações. É uma tentativa de reconhecer a influência da visão funcionalista e o predomínio da racionalidade instrumental no desenvolvimento do pensamento organizacional como limitação para o entendimento do seu objeto. Encontrar um objeto de estudo próprio faz parte do esforço de caracterizar a Teoria das Organizações enquanto campo do conhecimento, ou seja, dar à disciplina o status científico.

Para tanto, procurar-se-á não apenas identificar epistemologias e conceitos, mas propor uma contribuição crítica-reflexiva a partir da Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth.

O problema da busca de unidade pela ciência é instigante para a Teoria Organizacional, capaz de levá-la a um verdadeiro salto qualitativo, principalmente por que o estudo sobre a Teoria Organizacional ainda não foi totalmente desenvolvido. A Teoria do Reconhecimento se apresenta, a partir da Filosofia, como uma luz para novas investigações no universo da Teoria das Organizações.

As dimensões do reconhecimento jurídico, expressas nos direitos fundamentais, e do reconhecimento social, na estima social das realizações individuais decorrente do desenvolvimento da divisão do trabalho e da economia capitalista, tornam-se as categorias centrais pelas quais se podem desvelar os processos de aprendizagem moral que marcam a passagem das teorias tradicionais das organizações, baseadas na honra e no status adscritivos, para as concepções atuais. A partir dessas concepções a liberdade e a igualdade são pensadas em toda a sua extensão apontando os fenômenos de reificação que impedem a evolução da Teoria das Organizações para novos patamares de reconhecimento recíproco entre pessoas livres e iguais.

O presente estudo científico tem como objetivo geral, analisar as possíveis contribuições da Teoria do Reconhecimento na área de Gestão de Pessoas em uma Organização de Ensino Superior na Região Metropolitana de Curitiba.

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1 ESCOLA DE FRANKFURT

No presente capítulo, serão apresentados a origem e o desenvolvimento da Escola de Frankfurt, seus principais pensadores e a importância da Teoria Crítica da sociedade.

No estudo acerca da Escola de Frankfurt, é necessário certo esclarecimento para investigar de maneira filosófica o fundamento dessa linha de pensamento. Pois,

Parece-nos que o erro consiste em se ter interrogado muito de imediato a Escola através das categorias em uso: “filosofia”, “sociologia”, “política”, sob pena de pressentir que a Escola de Frankfurt não é nem uma escola filosófica nem um discurso sociológico, nem um movimento político no sentido estrito destes termos. Mas nem por isso saberíamos liquidar o problema desta identidade referindo-a a tal categoria nominal (qualquer coisa como a famosa “pluridisciplinariedade”) que absorve a questão. Pelo contrário, convém deixá-la deliberadamente aberta, praticando uma espécie de epoche fenomenológica, suspendendo a atribuição da Escola a um gênero determinado (ASSOUN, 1991, p. 6).

O termo Escola de Frankfurt somente surgiu no ano de 1950, pois sua sede, inicialmente na Universidade de Frankfurt (Alemanha), foi deslocada para Genebra, Paris e Nova York devido à perseguição nazista.

A Escola de Frankfurt foi tomando forma a partir de um decreto do Ministério da Educação, datado de 3 de fevereiro de 1923. O Instituto de Pesquisas Sociais, como a Escola era chamada, foi iniciativa de Félix J. Weil, doutor em Ciências Políticas – responsável por organizar a Primeira Semana de Trabalho Marxista em 1922 -, e contou com a participação de Lukács, Korsch, Pollack e Wittfogel. A partir de uma parceria do Ministério da Educação e a Sociedade para Investigação Social, inaugura-se as instalações oficiais em 22 de junho de 1924 (ASSOUN, 1991).

O primeiro diretor do Instituto foi o economista austríaco, Carl Grünberg, ficando no posto de 1923 a 1930. Posteriormente o mesmo cargo foi exercido por Max Horkheimer (1885-1973), Theodor Adorno (1903-1969), Jürgen Habermas (1929) e, atualmente, por Axel Honneth (1949).

1.1 A TEORIA CRÍTICA NA HISTÓRIA

Teoria Crítica é o nome de batismo, o arcabouço teórico, ou seja, a base desse novo modo de pensar e agir que se instaura na Escola de Frankfurt. Sendo, pois, uma teoria cujo nome é Crítica tem o dever de mover-se sempre num constante analisar e reanalisar a sociedade e a si mesma. Tendo como ponto de referência os filósofos: Kant – limites do conhecimento ou razão; Hegel – dialética, crítica do princípio de identidade;

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e Marx – homo economicus, relação de homens produzindo seus meios de existência (MATOS, 1993).

Max Horkheimer em seu artigo Teoria Tradicional e Teoria Crítica inaugura esse modo de reflexão crítica, ou seja, a filosofia social. Visto que essa teoria propriamente

[...] não se resume ou se dissolve em investigações especializadas e setoriais, mas tende em examinar as relações que ligam reciprocamente os âmbitos econômicos com os históricos, bem como os psicológicos e culturais, a partir de uma visão global e crítica da sociedade contemporânea (REALE; ANTISERI, 2006, p.470).

1.2 PRINCIPAIS PENSADORES

Os principais pensadores da Escola de Frankfurt foram, em sua maioria, de origem judaica, fato que influenciou muito nas perseguições provocadas por Hitler no período da Segunda Guerra Mundial, forçando-os ao exílio em outros países, como França, Inglaterra e Estados Unidos.

Podem-se dividir esses pensadores, mesmo que de modo impreciso, em três gerações, sendo que em todas elas a investigação principal, o motor dos frankfurtianos, é: “se perguntar por que as promessas Iluministas não foram cumpridas, por que o mundo da boa vontade e da paz perpétua não se concretizou” (MATOS, 1993, p. 32).

1.2.1 Primeira Geração

A primeira geração é constituída pelos idealizadores da Escola de Frankfurt e da Teoria Crítica, estando eles na raiz dos debates sociais, buscando uma possível resposta aos problemas apresentados à sociedade vigente, e atentos às diversas hipóteses elaboradas em sua época. Esses pensadores deram um salto qualitativo na maneira de se fazer Filosofia e pensar outras possibilidades de organização social.

Em 1931, Max Horkheimer assume o cargo de diretor, dando início à publicação da Revista para a Pesquisa Social (ZeitschriftfürSozialforschung). Foi muito influente na defesa e divulgação da Filosofia Social, da Teoria Crítica e um forte crítico da razão instrumental. Sobre Horkneimer, Matos (1993) destaca que cabe à Filosofia denunciar a razão instrumental e o totalitarismo, junto com todo e qualquer abuso da dignidade humana, pois é partindo da finitude, do sofrimento e da morte que o ser humano se reconhece solidário com o próximo.

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Outro pensador influente da primeira geração foi Theodor W. Adorno, filósofo, musicólogo, psicólogo e sociólogo. Em 1922 conheceu Max Horkheimer, em um seminário sobre o pensamento de Husserl. Vinculou-se à Escola de Frankfurt somente em 1938, posteriormente esteve exilado nos Estados Unidos fato que o fez aproximar-se de Horkheimer e juntos escreveram Dialética do Esclarecimento (1947). Persistente e crítico da cultura contemporânea, Adorno estabelece o conceito de: indústria cultural.

A indústria cultural consiste em uma produção em massa de cultura, contudo, essa produção leva a tendência muito forte da alienação e manipulação da sociedade. Com isso, os meios de comunicação podem moldar valores e comportamentos, criando necessidades desnecessárias e anulando os indivíduos de agirem conscientemente e livremente (REALE; ANTISERE, 2006).

Em 1958, Adorno assume o cargo deixado por Horkheimer, e alguns anos depois, escreve seu testamento filosófico, intitulado: Dialética Negativa. Desaparece em 1969, no mesmo ano em que estavam sendo publicadas suas obras completas (ASSOUN, 1991).

1.2.2 Segunda Geração

A segunda geração caracteriza-se pelos herdeiros do pensamento frankfurtiano, como o caso de Jürgen Habermas. Habermas foi assistente de Adorno em Frankfurt desde 1956, fato que garantiu a continuidade da Escola de Frankfurt - Teoria Crítica.

Segundo Reese-Shäfer (2008), Habermas baseou-se primeiramente no pensamento de Karl Otto Apel, ética comunicativa, e no conceito de razão objetiva herdado de Adorno, podendo-se encontrar esse mesmo conceito no Idealismo alemão, principalmente em Hegel, quando escreve sobre o reconhecimento intersubjetivo.

Reese-Schäfer (2008) ainda ressalta que Habermas foi responsável pela guinada linguística da Filosofia, mudando radicalmente o fundamento da Teoria Crítica.

A crítica feita por Habermas em relação às propostas da primeira geração consiste em denunciar e se afastar de uma construção teórica que traz em seu interior uma impossibilidade de ação, ou seja, de transformação. Pois “o processo de esclarecimento que é inseparável do projeto moderno de uma forma de vida emancipada, converteu-se na sua própria autodestruição” (NOBRE, 2003, p.12).

Habermas ainda é mais insistente, segundo Nobre (2003, p.12), dizendo que:

[...] se a razão instrumental é a forma única de racionalidade do capitalismo administrado, bloqueando qualquer possibilidade real de emancipação, em nome do quê é possível

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criticar a racionalidade instrumental? Horkheimer e Adorno assumem conscientemente essa aporia dizendo que ela é, no capitalismo administrado, a condição de uma crítica cuja possibilidade se tornou extremamente precária.

Habermas propõe, portanto, ao invés de uma razão instrumental, a teoria da racionalidade comunicativa, em outras palavras, teoria do agir comunicativo.

No entanto, as soluções propostas por Habermas não passaram de uma construção de novos problemas. Pois, segundo Marcos Nobre (2003, p.10), ele “enxergou apenas uma parte daquelas dificuldades presentes nos trabalhos de Horkheimer e Adorno”. É justamente nesse campo de discussão que entra Axel Honneth, propondo novas reformulações para a Teoria Crítica da sociedade.

2 AXEL HONNETH E A TEORIA DO RECONHECIMENTO

Neste segundo capítulo serão apresentados os pontos centrais para a elaboração da teoria do reconhecimento intersubjetivo, proposta por Axel Honneth, suas influências e inovações na Teoria Crítica da sociedade e, por fim, as três formas de reconhecimento (amor, direito e solidariedade).

Axel Honneth nasceu em 1949, na cidade de Essen, Alemanha. Estudou Sociologia e Filosofia em Bonn e Bochum, prosseguindo sua carreira acadêmica na Universidade Livre de Berlim e no Instituto Max Planck de Munique. Apresentou sua tese de doutorado em 1983, sob a orientação de Jurgüen Habermas, a qual resultou em seu livro intitulado Crítica do poder. Entre 1984 e 1990, Honneth torna-se assistente de “Habermas no Instituto de Filosofia da Universidade de Frankfurt, onde apresentou sua tese de livre-docência, cuja versão em livro é exatamente este” (NOBRE, 2003, p.10) que é base para o artigo: Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, publicado em 1992.

Honneth lecionou no campo de Filosofia prática e social nas Universidades de Berlim e de Nova York antes de transferir-se para Frankfurt. Sucedeu Jürgen Habermas em 1996 na Universidade de Frankfurt, e alguns anos depois, em 2001, assumiu também o Instituto de Pesquisa Social (NOBRE, 2003).

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2.1 UMA NOVA FORMULAÇÃO DA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE

Ao longo de toda problemática levantada, desde os primeiros filósofos precursores da Teoria Crítica até Axel Honneth houve sempre uma tarefa de:

[...] mediar teoria e práxis com base em um arcabouço teórico renovado e uma nova linguagem crítico-normativa para compreender um conjunto de problemas práticos em uma constelação histórico-social específica (WERLE e MELO, 2011, p. 183).

A partir das problemáticas encontradas na filosofia de Adorno e Horkheimer e consequentemente em Habermas, Axel Honneth elabora uma teoria que busca “desenvolver os fundamentos de uma teoria social de teor normativo partindo do modelo conceitual hegeliano de uma ‘luta por reconhecimento’ (HONNETH, 2003, p.23).

Para Honneth (2003, p.9):

“a Teoria Crítica não se limita a descrever o funcionamento da sociedade, mas pretende compreendê-la à luz de uma emancipação ao mesmo tempo possível e bloqueada pela lógica própria da organização social vigente”.

Enquadrar os filósofos, Jürgen Habermas e Axel Honneth como membros integrantes da Escola de Frankfurt seria, até certo ponto, um equívoco, “ainda que o problema esteja, de fato, em que esse rótulo simplesmente carece tanto de um sentido preciso como de conseqüências teóricas produtivas” (NOBRE, 2003, p.10).

Marcos Nobre (NOBRE, 2003, p.10) adverte que:

Se não faz sentido contar Honneth entre os integrantes da “Escola de Frankfurt”, parece-me correto, entretanto, incluí-lo na tradição da Teoria Crítica. Pois, tal como Habermas, também Honneth apresentou primeiro sua própria posição teórica em contraste e confronto com seus antecessores. Assim como Habermas apresentou sua teoria como solução pra impasses que detectou em Horkheimer e Adorno, Honneth tentou mostrar que a solução de Habermas para essas aporias se faz ao preço de novos problemas. E isso porque Habermas enxergou apenas uma parte daquelas dificuldades presentes nos trabalhos de Horkheimer e de Adorno.

Sendo, desse modo, herdeiro da Teoria Crítica, Honneth carrega consigo um amplo e ousado desafio que é dialogar a Teoria Crítica, que muitas vezes, foi reduzida à Escola de Frankfurt (NOBRE, 2011), com os avanços das ciências psicológicas de sua época, ou seja, a psicanálise.

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2.2 A TEORIA DO RECONHECIMENTO INTERSUBJETIVO DE AXEL HONNETH

2.2.1 Hegel e Mead

Segundo Honneth (2003) verificou-se, no pensamento de Hobbes, que a possibilidade do conflito é inerente à situação de interação. Tal possibilidade também se encontra no pensamento de Maquiavel, porém posicionado em sentido à manutenção de estruturas de autoconservação (NOBRE, 2003). Nessa perspectiva acerca da inegável existência do conflito no processo de interação entre os agentes humanos, Honneth (2003) recorre a Hegel, que formulara uma corrente da Filosofia na qual confere à intersubjetividade da vida pública um fator essencial pra vida humana. Pois,

[...] o que importa a Hegel em sua filosofia política é a possibilidade de desenvolver na teoria um semelhante estado de totalidade ética; em seu pensamento, a idéia segundo a qual uma sociedade reconciliada só pode ser entendida de forma adequada como uma comunidade eticamente integrada de cidadãos livres [...] (HONNETH, 2003, p. 40).

Assim como Habermas fez em recorrer ao jovem Hegel no período de Jena para resgatar o valor dos processos comunicativos, Honneth (2003) também o faz, para resgatar não apenas o valor dos processos comunicativos, mas também o resgate da análise acerca do conflito ignorado por Habermas, e do reconhecimento social.

Para Mattos (2006), a intuição original acerca do papel central do reconhecimento social para a sociabilidade humana deve-se a Hegel.

Honneth (2003) tem a tarefa de oferecer à ideia hegeliana da Luta por Reconhecimento, uma inflexão materialista-empírica a partir da psicologia social de George Hebert Mead. Para Honneth (2003), as teorias propostas por Mead expõem um dos meios mais apropriados para reconstruir certas intuições da teoria da intersubjetividade de Hegel numa esfera pós-metafísica.

Para tal contribuição, Honneth se aproxima de Mead devido ao conflito existente entre “Me” e “Eu”, visto que:

[...] o me refere-se ao self social: representa, portanto, o controle social. Trata-se do self cuja ação é convencional, conformista e habitual. O eu refere-se à ação crítica e criativa do self. Trata-se da ação que analisa e modifica o me. Representa, portanto, uma resistência ao controle social ou à ação convencional, conformista e habitual do self. As ações do eu são visíveis, em algum grau, nas ações cotidianas das pessoas, e são particularmente notáveis nas ações dos gênios, líderes, artistas, cientistas, estadistas, religiosos e filósofos (ABIB, 2005, p. 101).

631Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Portanto, Honneth conclui esse primeiro embasamento teórico (Hegel e Mead) para a elaboração de sua teoria do reconhecimento intersubjetivo, afirmando:

[...] com a inclusão da psicologia social de Mead, a ideia que o jovem Hegel traçou em seus escritos de Jena com rudimentos geniais pode se tornar o fio condutor de uma teoria social de teor normativo; seu propósito é esclarecer os processos de mudança social reportando-se às pretensões normativas estruturalmente inscritas na relação de reconhecimento recíproco (HONNETH, 2003, p.155).

2.3.2 Donald Winnicott e Jessica Benjamim

Apresentadas as influências fundamentais para uma luta por reconhecimento, Hegel e Mead, que outrora já tinham sidos utilizados por Habermas, porém não aprofundadas, Honneth (2003) aproxima-se da psicologia infantil de Donald Winnicott (1896 -1971) e Jessica Benjamin.

Werle e Melo (2011, p.189) ressaltam que:

Ambos fornecem a possibilidade de uma reconstrução “naturalista” e “materialista” da luta por reconhecimento, apoiada e, estudos empíricos. Por meio deles, Honneth procura mostrar que o indivíduo desenvolve, em cada forma de reconhecimento, um tipo de relação prática positiva consigo mesmo [...]

Honneth (2003) busca na psicanálise uma comprovação empírica para uma análise do reconhecimento intersubjetivo. Para isso, Winnicott “serve de base para a concepção intersubjetiva do reconhecimento, na qual a experiência que envolve a separação afetiva conduz a uma luta contra a dependência” (MARIN, 2011, p.242).

Em sua teoria das relações de objeto, Winnicott se preocupa com as condições necessárias para o processo de socialização de crianças pequenas. Visto que efetuou um ardoroso trabalho com “crianças separadas de suas famílias em consequência da Segunda Guerra Mundial, tomando como base as etapas fundamentais para o desenvolvimento da pessoa” (FERRARI, 2011). Segundo Marin (2011), Winnicott pretende investigar que somente se pode entender o processo de independência, ou socialização do bebê, se analisado pela pessoa de referência (mãe) e não separadamente.

A aproximação com a filósofa feminista e psicanalista americana, Jessica Benjamin, confirma ainda mais o argumento sustentado por Honneth, pois ela “descreve o processo de separação da criança como uma “luta pelo reconhecimento [...]” (MARIN, 2011, p.244).

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Por fim, Marin afirma que a trajetória feita por Axel Honneth revela que:

[...] a concepção de Hegel de reconhecimento é muito idealista e, como tal, não se presta para fundar uma concepção normativa com base material para a teoria do reconhecimento. É então que ele faz intervir a psicanálise, que tem também a função de radicalizar a perspectiva de Habermas, que não levou até o fim sua concepção intersubjetiva, cabendo a Honneth essa tarefa, ao aplicar a intersubjetividade à forma de relação mais básica, a relação mãe-bebê, e ao apresentá-la como uma relação de mutualidade intersubjetiva (MARIN, 2011, p.244).

2.4 PADRÕES DE RECONHECIMENTO INTERSUBJETIVO

Para a elaboração das dimensões do reconhecimento intersubjetivo, Honneth (2003) retoma sua base teórica enriquecendo-a com a contribuição da psicologia social e psicanálise, como demonstra o quadro abaixo.

QUADRO 1 _ Etapas do reconhecimento intersubjetivo

FONTE: Honneth (2003)

2.4.1 Amor

No que se refere ao amor, Honneth (2003, p.160) considera-o:

[...] a primeira etapa de reconhecimento recíproco, porque em sua efetivação os sujeitos se confirmam mutuamente na natureza concreta de suas carências, reconhecendo-se assim como seres carentes: na experiência recíproca da dedicação amorosa, dois sujeitos se sabem unidos no fato de serem dependentes, em seu estado carencial, do respectivo outro

633Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

Para Honneth (2003), o amor pode assumir três possíveis formas: interação sexual, amizade e relação afetiva entre pais e filhos. O amor pode estar presente além da etapa da família, na etapa da sociedade civil na forma de amizade, mas é na primeira etapa que o amor assume função determinante para as outras etapas de reconhecimento. Na dimensão do amor, os indivíduos se reconhecem e ao mesmo tempo reconhecem os parceiros, como sujeitos carentes. Assim, tomam ciência do estado natural de dependência emotiva em que se encontram.

Essa dinâmica do reconhecimento mútuo na esfera afetiva ocorre primeiramente na relação familiar, mais precisamente na relação entre mãe e filho. O equilíbrio entre simbiose e autoafirmação foi investigado pelo psicanalista Donald Woods Winnicott; principalmente a parte da pesquisa desse psicanalista referente à relação interativa da criança nos primeiros meses de vida com a mãe. É nessa relação, de dependência e autonomia, que a priori consta o equilíbrio, do qual depende a possibilidade do amor assumir uma forma de reconhecimento.

O equilíbrio entre a ligação afetiva e a autonomia, resulta na autoconfiança do sujeito que é o elemento central do amor enquanto dimensão do reconhecimento intersubjetivo.Na amizade existe a noção de ser dependente afetivamente do outro, mantendo a autonomia em um equilíbrio que reforça a autoconfiança do sujeito para atuar na sociedade civil (HONNETH, 2003).

2.4.2 Direito

Se o indivíduo foi reconhecido enquanto sujeito autônomo, ele passa a estar na etapa do reconhecimento dimensionada pelo direito. A partir da leitura de Hegel e Mead, Honneth (2003) configura que o ser humano apenas pode chegar à conclusão de si como portador de direito quando possuir um saber sobre quais obrigações têm que observar em face de outro indivíduo.

Para Honneth (2003), é via reconhecimento do próximo, como portador de direito, que o indivíduo passa a ser ele, uma pessoa de direito, conforme diz Hegel:

No Estado, [...] o homem é reconhecido e tratado como ser racional, como livre, como pessoa; e o singular, por sua parte, se torna digno desse reconhecimento porque ele, com a superação da naturalidade de sua autoconsciência, a obedece a um universal, à vontade sendo em si e para si, à lei, ou seja, se porta em relação aos outros de uma maneira universalmente válida, reconhece-os como o que ele próprio quer valer – como livre, como pessoa (HEGEL, 1970, p.221 apud HONNETH, 2003, p. 179).

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Se o direito-autorrespeito enquanto dimensão do reconhecimento intersubjetivo faz referência às propriedades universais dos sujeitos, faltava a Honneth (2003) fazer referência ao processo de reconhecimento às propriedades particulares dos sujeitos, que é justamente a próxima dimensão do reconhecimento.

2.4.3 Solidariedade

As propriedades particulares estariam sempre receptivas a valores éticos da etapa jurídica. Assim, na etapa da solidariedade, de acordo com Honneth (2003), tratar-se-ia de reconhecer as propriedades individuais imbricadas às escolhas de vida como valiosas para a reprodução da sociedade.

Sobre isso, Mattos (2006) ressalta que os pilares do conceito de solidariedade desenvolvido por Honneth (2003), são as relações simétricas existentes entre os membros da sociedade. Essas relações simétricas consistem “na possibilidade de qualquer sujeito ter chances de ter suas qualidades e especificidades reconhecidas como necessárias e valiosas para a reprodução da sociedade” (MATTOS, 2006, p. 93). Ou seja, as relações simétricas garantidas na etapa jurídica são as relações que dariam chances iguais para todos obter sua autorrealização.

Pode-se visualizar que assim como autoconfiança e autorrespeito estão respectivamente para as dimensões do reconhecimento amor e direito, a autorrealização está para a solidariedade ou estima mútua. Por fim, o grau de autorrealização depende do autorrespeito e da autoconfiança.

3 A TEORIA DO RECONHECIMENTO COMO REFLEXÃO PARA A TEORIA DAS ORGANIZAÇÕES NA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS

Neste capítulo será apresentada uma reflexão entorno daquilo que já foi tematizado nos capítulos anteriores, em vista de uma possível contribuição da teoria do reconhecimento para a teoria das organizações na área de gestão de pessoas. Serão apresentadas também as violações dos padrões de reconhecimento recíproco frente às relações de trabalho.

635Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

3.1 GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO

Em tese, pode-se dizer que Gestão de Pessoas é o “conjunto das forças humanas voltadas para as atividades produtivas, gerenciais e estratégicas dentro de um ambiente organizacional” (FRANÇA, 2012, figura 1.2, p. 5).

Por isso, a Gestão de Pessoas terá dois enfoques: o comportamental e o administrativo e somente deverá ocorrer, segundo França (2012, p. 4):

[...] a partir de visão integrada das pessoas e das questões fundamentais como: as expectativas sobre as relações de trabalho, o contraste psicológico entre o que a pessoa quer da empresa e o que esta quer de seu pessoal, perfis e tipos de personalidade, grupos, equipes, lideranças, processos de cooperação, competição, apatia, cultura organizacional, valores, questões éticas e outros aspectos ligados à vida social

Dentro do âmbito organizacional na área de Gestão de Pessoas (GP) surgem diversas questões, podendo ainda se perguntar: a GP está realmente a serviço de quem? Pois vista de uma perspectiva funcionalista, ela existirá apenas para “aumentar a produtividade e favorecer a busca pela vantagem competitiva da empresa” (DAVEL; VERGARA, 2001, p.34 apud FERRAZ, OLTRAMIRI; PONCHIROLLI, 2011, p. 228).

As críticas feitas aos modelos de GP e Recursos Humanos (RH) são advindas da preocupação com o resgate do fator humano dentro das organizações. Como destaca Mendes e Fontoura (2011, p. 10):

Se realmente esse é o papel da GP, ou seja, uma preocupação com o fator humano, então instituir lógicas críticas e questionamentos sobre essas teorias até então criadas tem a contribuição de impulsionar reflexões sobre o que até então vem sendo praticado

Portanto, esse resgate não está baseado apenas no lucro da empresa, mas se encontra enraizado numa luta por reconhecimento que tem como foco a liberdade e a dignidade humana, ou seja, autorrealização.

3.2 PRIVAÇÕES DE RECONHECIMENTO RECÍPROCO E RELAÇÕES DE TRABALHO

A partir dos padrões de reconhecimento recíproco proposto por Honneth, a saber: amor, direito e solidariedade, torna-se possível a análise do sentido inverso da pesquisa, ou seja, estudar as situações de privação de reconhecimento.

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Segundo Axel Honneth (2003, p. 214):

Se a experiência de desrespeito sinaliza a denegação ou privação de reconhecimento, então, no domínio dos fenômenos negativos, devem poder ser reencontradas as mesmas distinções que já foram descobertas no domínio dos fenômenos positivos

O desrespeito é colocado como ponto-chave para a leitura da luta por reconhecimento em busca de uma gramática moral dos conflitos sociais. Com essa proposta, Honneth (2003) procura investigar outros modos de desrespeito, os diferentes graus que se apresentam e como eles “podem abalar a autorrelação prática de uma pessoa, privando-a do reconhecimento de determinadas pretensões de identidade” (HONNTEH, 2003, p. 214).

Com essa abordagem, Honneth pretende dar algumas possíveis respostas aos problemas elaborados por Hegel e Mead que deixaram suspensa a questão dos conflitos sociais, e, mais precisamente, de como a experiência de desrespeito se encontra nas vivências afetivas dos seres humanos.

Pode-se encontrar nas relações de trabalho fatos que se assemelham com a teoria descrita por Honneth, visto que, segundo Faria (2011, prefácio xiv):

[...] não há mais qualquer dúvida de que as corporações modernas desenvolveram um eficiente processo de sedução de seus trabalhadores, que culmina na invasão de sua vida privada. Tal invasão da vida privada pelas corporações se deve à sua onipresença e ao seu incontrolável desejo de onisciência e onipotência. A corporação moderna aspira ao papel da divindade, da instância simbólica e imaginária na vida de seus “colaboradores”

As relações de trabalho sob o olhar da Teoria Crítica, ou melhor, da Teoria do Reconhecimento, são postas em questão de validade. As tendências funcionalistas caem em descrédito, pois muitas vezes deixavam de lado o fator humano que é o essencial de uma Gestão que se diz de Pessoas.

Faria (2011, prefácio xvi) ainda completa:

No interior do processo de alienação desenvolve-se a reprodução da desumanidade social, desenvolve-se o estranhamento que não apenas marca historicamente a apropriação, pelo sujeito do capital, do resultado do trabalho realizado pelo sujeito trabalhador, como designa a formação própria da subjetividade deste, impedindo que o mesmo exerça sua potencialidade, que desenvolva sua criatividade e que organize coletivamente seu próprio trabalho. A produção se torna distinta do produtor

Portanto, feitas essas explanações, torna-se compreensível, e até necessário, que a teoria do reconhecimento de Honneth dialogue com a teoria das organizações.

637Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

[...] a Teoria Crítica nos estudos organizacionais indica que para estudar as organizações é necessário um esquema teórico-metodológico dialético que possa responder às questões que afetam a vida dos sujeitos e que focam mais no sujeito coletivo que as próprias organizações (FARIA, 2007. apud MENDES e FONTOURA, 2011, p.20).

Portanto, é de extrema importância refletir acerca da prática organizacional a partir das relações de trabalho, sem perder de vista o teor crítico que norteia o seguinte projeto.

Visto que:

[...] a Teoria Organizacional é importante não somente porque reflete a prática organizacional, mas porque também ajuda a construir essa prática. Relacionar a TO com a GP é uma forma de produzir ou mesmo gerar novas formulações teóricas, que reflitam e ajudem a construir a tais práticas nas organizações (MENDES; FONTOURA, 2011, p.10).

Por se tratar de pessoas, ser humano, é preciso ter um cuidado todo especial e próprio, e essa é a contribuição feita da Teoria do Reconhecimento à Teoria Organizacional na área de Gestão de Pessoas.

De acordo com Mendes e Fontoura (2011, p.32):

Esse percurso mostra que tais concepções teóricas, que há muito têm sido utilizadas por pesquisadores e estudiosos da área de estudos organizacionais, possuem implicações importantes para os modelos e teorias em Gestão de Pessoas, produzindo uma série de questionamentos sobre a validade que tais modelos costumam assumir na Gestão de Pessoas, assim como sobre mudanças necessárias nesses modelos para uma melhor adequação ao fator humano. Se isso é utópico ou mesmo impossível, dados os pressupostos teóricos e também o contexto em que os modelos e teorias em GP estão envolvidos, não importa. O que realmente importa é a possibilidade de gerar questionamentos capazes de sacudir, tirar do lugar comum, impulsionar novas formas de pensar nos modelos e teorias difundidas na área de GP

Por fim, pode-se concluir que ao longo deste estudo não se pretendeu esgotar o tema proposto, ou tornar absoluta uma determinada teoria. Mas expandir a reflexão e o estudo crítico da Teoria das Organizações na área de Gestão de Pessoas a partir de um modo todo próprio, a Teoria Crítica e a Teoria do Reconhecimento, que se apresentam na atualidade, como uma possível contribuição para o que se pode chamar de: Resignificação do ser humano e de suas relações de reconhecimento recíproco (amor, direito e solidariedade).

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4 SÍNTESE METODOLÓGICA

A metodologia utilizada foi estudo de caso, a unidade caso é uma Instituição Privada de Ensino Superior da Região Metropolitana de Curitiba. Foram realizadas coleta, análise, descrição e interpretação de dados obtidos a partir de pesquisa bibliográfica de expoentes nas linhas do tema abordado.

Utilizou-se também um questionário e entrevista semiestruturada com 58 professores. A pesquisa foi realizada de agosto de 2011 até julho de 2012. É uma pesquisa qualitativa e as entrevistas foram analisadas tanto individualmente como em conjunto.

5 ANÁLISE DOS DADOS

O questionário visou buscar dados no sentido de percebermos a atuação da área dos Recursos Humanos no desenvolvimento do Reconhecimento dentro da conjuntura dessa organização. Cada uma das questões tem relações diretas com alguns dos padrões de reconhecimento. O objetivo dessa entrevista foi o de identificar como a teoria descrita por Honneth, dos três padrões do reconhecimento intersubjetivo, interage na realidade.

A estrutura de cada questão é uma tentativa de determinar se as relações dos entrevistados com seus colegas de trabalho têm base na amizade ou apenas profissional, sem vínculo afetivo. Também é uma tentativa de verificar possíveis violações causadas por assédio sexual ou moral e demonstrar se, no âmbito do direito, há uma participação – mesmo se parcial – dos entrevistados na criação e manutenção das políticas educacionais da instituição, e se o clima organizacional permite o bem-estar dos professores entrevistados. No âmbito da solidariedade, as perguntas visam verificar se os valores, capacidades e propriedades individuais dos entrevistados são reconhecidos ou apenas tolerados.

Este estudo dará prioridade para uma empresa do setor educacional na qual o foco principal será a área de recursos humanos e suas interfaces com os professores da instituição.

639Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

5.1 TEORIA DO RECONHECIMENTO: ANÁLISE DOS DADOS

a) pergunta 1: Você considera possível que haja, dentro do seu meio de trabalho, um relacionamento de ligações afetivas, ou seja, de amizade?

TABELA 1 _ AMOR: UNIVERSIDADE XL – 2012

FONTE: C3 - dados primários – questionário

Analisando-se a tabela 1, observa-se uma grande incidência de respostas (96,6%). Apenas 3,4% dos colaboradores não responderam à pergunta.

O gráfico 1 demonstra o levantamento dos dados obtidos da pergunta 1 dos questionários respondidos.

GRÁFICO 1 – Dimensão do amor – UNIVERSIDADE X – 2012

FONTE: C3 – questionários respondidos

De acordo com o gráfico 1, observa-se que a maioria dos colaboradores respondeu os níveis de intensidade 4 e 5, o que significa que 86,2% considera possível que haja, dentro do seu meio de trabalho, um relacionamento de ligações afetivas, ou seja, de amizade.

Observa-se também que ninguém respondeu o nível de intensidade 1, e apenas 6,9% responderam ao nível 2, o que significa que poucos colaboradores não acreditam na possibilidade de ligações afetivas no local de trabalho.

b) pergunta 5: A partir do que diz as relações jurídicas modernas que colocam as pessoas como seres livres e iguais, isto é, pessoas de direito, você percebe que em suas relações de trabalho existe uma distribuição legítima de direitos e deveres?

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TABELA 2 – Dimensão do direito: UNIVERSIDADE X - 2012

FONTE: C3 - dados primários – questionário

Analisando-se a tabela 2, observa-se uma grande incidência de respostas (96,6%). Apenas 3,4% do total da amostragem não responderam à pergunta.

O gráfico 2 demonstra o levantamento dos dados obtidos da pergunta 5 dos questionários respondidos.

GRÁFICO 2 – Dimensão do direito: UNIVERSIDADE X – 2012

FONTE: C3 – questionários respondidos

De acordo com o gráfico 2, observa-se que a maioria dos colaboradores respondeu aos níveis de intensidade 4 e 5, o que significa que 88% dos colaboradores percebem que em suas relações de trabalho existe uma distribuição legítima de direitos e deveres. Observa-se, também, que 8,8% dos colaboradores responderam aos níveis de intensidade 2 e 3.

c) pergunta 9: As relações sociais, ou solidariedade, podem ser o ponto central para se entender a estima social e, consequentemente, evitar a dor causada por experiências de desrespeito?

641Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

TABELA 3 – Reuniões: Dimensão solidariedade – 2012

FONTE: C3 - dados primários – questionário

Analisando-se a tabela 3, observa-se uma grande incidência de respostas (96,6%). Apenas 3,4% do total da amostragem não responderam à pergunta.

O gráfico 9 demonstra o levantamento dos dados obtidos da pergunta 9 dos questionários respondidos.

GRÁFICO 9 – Dimensão solidariedade – UNIVERSIDADE X – 2012

FONTE: C3 - questionáriosrespondidos

De acordo com o gráfico 9, observa-se que a maioria dos colaboradores respondeu os níveis de intensidade 4 e 5, o que significa que 77,6% dos colaboradores acreditam que as relações sociais, ou solidariedade, podem ser o ponto central para se entender a estima social e consequentemente evitar a dor, isto é causada por experiências de desrespeito.

Observa-se também que 15,5% responderam ao nível de intensidade 3 e 3,4% responderam ao nível 2.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de tudo o que já se foi apresentado ao longo deste artigo, tendo como ponto de partida o objetivo geral, que era propriamente analisar as possíveis contribuições da Teoria do Reconhecimento na área de Gestão de Pessoas em Organizações de Ensino Superior verificou-se que com a fundamentação teórica embasada na Teoria Crítica, mais especificamente na Teoria do Reconhecimento proposta por Axel Honneth, juntamente com o estudo de caso, elaboração de formulários e conversas pessoais com os respondentes, a aproximação das duas teorias, com a proposta, pelo projeto pode ser considerada de extrema importância.

As limitações encontradas concentram-se na não possibilidade de aplicar o questionário, a todos os professores da instituição; dificuldades em agendar a aplicação do questionário devido a outras atividades profissionais por parte dos professores da Universidade.

No início da pesquisa, tinha-se por proposta aplicar o questionário em duas instituições privadas de Ensino Superior da Região Metropolitana de Curitiba, porém, devido a imprevistos surgidos ao longo do percurso, os pesquisadores tiveram de direcionar a pesquisa somente para uma unidade de caso. Fato que não limitou a pesquisa, mas ficou ainda suspenso, deixando em aberto outras possíveis investigações correlacionando respostas de diferentes Instituições.

Para a surpresa dos pesquisadores, as respostas mostraram um alto índice de Reconhecimento Recíproco dentro da Instituição analisada. No que diz respeito aos padrões de reconhecimento (amor, direito e solidariedade), esses se mostraram numa regularidade de resultados, fato que evidencia certa identificação de serem sujeitos autônomos, que se reconhecem na autoconfiança, autorrespeito em vista de uma autorrealização.

Esta pesquisa não tem por objetivo a construção teórica de argumentos fechados que limitam futuras pesquisas, mas visa uma contribuição para possíveis aprofundamentos que podem enriquecer ainda mais o tema proposto. Recomenda-se que ao dar continuidade ao projeto o pesquisador esclareça ainda mais as respostas, visto que há a possibilidade de se investigar o nível de desrespeito encontrado nas análises dos respondentes. Existe também a possibilidade de direcionar a pesquisa a outras áreas do conhecimento, juntamente com outras abordagens metodológicas que evidenciariam a Teoria do Reconhecimento em contribuição com a sociedade atual.

643Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

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645Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi o de analisar as implicações das apropriações de tecnologias de gestão para o desenvolvimento dos empreendimentos populares. Para o desenvolvimento de nosso estudo, propomos a utilização de metodologia do tipo quali-quantitativa; destarte, foram aplicados 121 questionários semiestruturados com participantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), membros do Movimento da Lapa, Região Metropolitana de Curitiba, e três entrevistas não estruturadas com membros do Assentamento Contestado. Pôde-se perceber que aos membros dos empreendimentos pesquisados, falta, ainda, um substancial processo de reflexão com vistas à internalização e apropriação do caráter subjetivo e ideológico das tecnologias de gestão.

Palavras-chave: Tecnologias de gestão. Trabalho. Planejamento. Empreendimentos populares.

AS IMPLICAÇÕES SOCIAIS DAS TECNOLOGIAS DE GESTÃO EM EMPREENDIMENTOS POPULARES

Marx Rodrigues dos Reis*Rafael Rodrigo Mueller**

* Aluno do 2º ano de Filosofia da FAE Centro Universitário. Bolsista do programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário E-mail: [email protected].

** Doutor em Educação (UFSC). Professor do Programa de Pós-Graduação em Organizações e Desenvolvimento da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

Desde as primeiras reflexões feitas acerca do conceito de tecnologia, suas diversas interpretações divergem radicalmente em muitos aspectos se considerarmos a materialidade histórica acumulada em seus diversos intérpretes.

Contudo, partiremos da divergência que consideramos crucial, qual seja o entendimento da utilização da tecnologia pelo homem, para suprir suas mais diversas finalidades, compreendendo-as como diretamente relacionadas à sua constituição enquanto ser social. Isso nem sempre é elencado (dentre os mais diversos estudiosos do tema) como ponto de partida analítico, mais precisamente quando não se analisa a tecnologia pela perspectiva histórica e pela sua inextricável relação ao modo de produção vigente, mas quando se impinge à tecnologia uma essência metafísica, um determinante teleológico da história, retirando, consequentemente, a sua base social fundante.

A tecnologia, ou o conjunto de técnicas historicamente acumuladas, relacionada diretamente ao trabalho humano, é categoria fundamental para a constituição e desenvolvimento do homem em ser social. É a capacidade de projetar – ou a ‘prévia ideação’ conforme Lukács (s/d; 1979; 1989) – que é, ao se realizar na materialidade posta, a verdadeira essência da tecnologia.

Projetar é, pois, a capacidade que é exclusiva ao homem de relacionar fins e meios voltados para as suas necessidades. O homem idealiza uma ação que é decorrente de uma necessidade surgida na materialidade objetiva, promovendo, dessa forma, o conhecimento da realidade que vai se complexificando a partir da obtenção dos fins historicamente estabelecidos.

Podemos traduzir para o cotidiano das organizações, sejam elas privadas, públicas ou de cunho social, que o ato de projetar se manifesta objetivamente como sendo o planejamento necessário para o desenvolvimento de todo e qualquer empreendimento. Destarte, o planejamento ou o conjunto de métodos e técnicas desenvolvidos para a organização e controle sobre o trabalho pode ser considerado enquanto uma tecnologia de gestão.

Porém, a apropriação que se estabelece a partir dessa manifestação de tecnologia, em grande parte, tem sido realizada com base nas organizações privadas, desprezando ou minimizando-se essa mesma discussão a partir de empreendimentos populares. Nesse sentido, esta pesquisa pretende analisar as implicações das apropriações de tecnologias de gestão para o desenvolvimento dos empreendimentos populares.

Considerando o contexto apresentado anteriormente, o problema de nossa pesquisa é: de que maneira os empreendimentos populares, sejam associações, cooperativas ou informais, se apropriam do planejamento enquanto uma tecnologia de gestão?

647Programa de Apoio à Iniciação Científica - PAIC 2011-2012

1 AS TECNOLOGIAS DE GESTÃO: APROPRIAÇÕES E DELIMITAÇÕES

Pretende-se, inicialmente a partir de nossa pesquisa, ampliar o debate acerca das tecnologias de gestão, estabelecendo, com maior clareza, seus conceitos, objetivos, limites e possibilidades frente ao processo de valorização do valor, e como, efetivamente, essa manifestação da aplicação tecnológica da ciência colabora, direta e indiretamente, para o incremento da produtividade.

A delimitação de sua abrangência dentro e fora da esfera da produção se tornou fundamental para que conseguíssemos compreendê-la como uma tecnologia não física, mas com uma efetividade concreta naquilo que, por meio dela, se propõe a atingir: a redução do tempo do ciclo de produção de mercadorias no intuito de potencializar a valorização do valor.

No que se refere à sua conceituação e definições, torna-se de fundamental importância expor que não há consenso e, principalmente, muitos são os autores que se utilizam do termo ‘tecnologias gerenciais’ (ARAÚJO, 2001; GURGEL, 2003; JUNQUILHO et al., 2007; FRANCO, RODRIGUES, CAZELA, 2009), mas poucos são os que o definem efetivamente (FARIA, 1997; GURGEL, 2003; FRANCO, RODRIGUES, CAZELA, 2009). Em alguns casos mais extremos ainda, a própria definição não se remete ao termo (VALLADARES, 2003). Percebe-se, em outros casos, que apesar de a expressão utilizada ser variada, a definição está muito próxima daquela na qual se enquadram as tecnologias gerenciais: ‘tecnologias de organização social da produção’ (TAUILE, 2001), ‘tecnologias de gestão’ (FARIA, 1997), ‘tecnologias organizacionais’ (LEITE, 1995), ‘inovações sócio-organizacionais’ (KOVÁCS, 1998), etc.

Segundo o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)1 (2008), consideram-se tecnologias de gestão “um conjunto de metodologias e técnicas organizadas na forma de um sistema de gerenciamento que busquem o alcance de objetivos estratégicos e operacionais de uma organização ou do ambiente onde se está atuando”.

Ainda conforme o MCTI, a discussão acerca das tecnologias de gestão teve início no Brasil na década de 1980, e o enfoque dado ao referido conceito sempre girou, principalmente, em torno de sua efetividade a partir da melhoria do processo de Gestão da Qualidade Total (GQT). Podemos considerar, segundo o MCTI, que as tecnologias de gestão seriam um conjunto de técnicas e metodologias que visam à ampliação do controle sobre os processos produtivos, tendo em vista a implementação e efetivação da Gestão da Qualidade Total.

1 Disponível em: http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/7880.html. Acesso em: 18 de janeiro de 2008.

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De acordo com Lombardi2 (2006, online) as tecnologias de gestão

Incluem todo e qualquer processo estruturado e aplicado de forma continuada para a melhor administração do negócio de uma organização. São processos que lidam com a modernização gerencial, melhoria da qualidade, aumento da competitividade e busca pela auto-sustentação das organizações. (grifos nossos)

Podemos considerar, a partir da conceituação proposta, que as tecnologias de gestão envolvem os processos relacionados ao melhoramento contínuo da produção, e, consequentemente, da produtividade a partir de seu gerenciamento. Ambas as definições tratam de aproximar o conceito de tecnologias de gestão ao controle da qualidade por conta de que, nos últimos 40 anos, as empresas têm conseguido aumentar sua eficiência produtiva, principalmente pela ampliação do conceito de gestão da qualidade e da aplicação de ferramentas relacionadas (Ciclo PDCA, Método 5W2H, Diagrama de Causa e Efeito, Programa 5S’s, etc.) concebidas para auxiliar no processo de controle da qualidade total.

Mesmo que tais ferramentas tenham sua eficiência concreta nas organizações, assegurada por intermédio dos altos índices de intensificação do trabalho que elas proporcionam, não se pode limitar a definição de tecnologias gerenciais somente a partir de sua relação estreita com as ferramentas de gestão da qualidade desenvolvidas no decorrer de meio século. Na utilização do termo ‘ferramentas’ (para definir algumas tecnologias gerenciais), não estamos, necessariamente, aproximando o termo de uso comum relacionado às tecnologias físicas (máquinas), mas ampliando tal conceito para ferramentas subjetivas que se efetivam na materialidade por intermédio de métodos e técnicas de organização do trabalho e da produção.

Conforme Franco, Rodrigues e Cazela (2009, p. 16), tecnologias de gestão

[...] são propostas de meios de gestão que procuram auxiliar os gestores na busca pela melhoria do desempenho organizacional, de forma que sugerem a utilização sistemática de métodos e ferramentas que podem contribuir com a maximização daquilo que as empresas são capazes de fazer.

Araújo (2001, p. 17) destaca que as tecnologias gerenciais têm por objetivo central “aperfeiçoar o desempenho empresarial, de sorte a permitir a sobrevivência de organizações competitivas de tantas turbulências e quebra constante de paradigmas”. Torna-se evidente, a partir das definições citadas, que os autores, ao afirmarem que as tecnologias gerenciais auxiliam os gestores na ‘maximização daquilo que as empresas são capazes de fazer’ e ‘aperfeiçoam o desempenho empresarial’, estão se referindo, necessariamente, ao processo

2 Disponível em: http://www.egd.abipti.org.br/palestras/aplicacaotgmelhoriacompetitividade.pdf. Acesso em: 03 de julho de 2007.

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de valorização do valor, vital à perpetuação do capital. A definição em questão amplia as possibilidades de utilização e efetivação das tecnologias gerenciais no âmbito organizacional a partir da criação e aplicação de métodos gerenciais em toda extensão das empresas, desde que contribuam para o fim último destas.

Faria (1997, p. 30) compreende as tecnologias de gestão como

técnicas-estratégias de racionalização do trabalho; estudos de tempo e movimento, disposição racional de máquinas e equipamentos na unidade produtiva, sequência de etapas de produção (layout físico e de processo); organização, sistemas e métodos, entre outros. Estas podem ser chamadas, em seu conjunto, de técnicas de ordem instrumental.

A tecnologia de gestão compreende, igualmente e ao mesmo tempo, as técnicas de ordem comportamental e ideológica, tais como: seminários de criatividade; mecanismos de motivação e integração; planos de treinamento e desenvolvimento de pessoal; trabalhos em grupos participativos; entre outros.

Esse conceito de tecnologias de gestão aprofunda, a partir de uma perspectiva crítica, as possibilidades de sua verificação empírica, principalmente no âmbito da organização produtiva. A distinção em termos de duas categorias criadas por Faria (1997) – tecnologias de gestão de ordem instrumental e de ordem comportamental – auxiliam na compreensão do termo a partir da força de trabalho envolvida em seu processo de concretização, quais sejam, trabalhadores e gerentes.

Podemos analisar o conceito do autor em questão tendo por base essas duas categorias relacionadas às tecnologias de gestão enquanto estágios de desenvolvimento na produção, de maneira que a categoria ‘tecnologias de gestão de ordem instrumental’ faz menção aos elementos constituintes dos primórdios da organização científica do trabalho proposta por Frederik Taylor e implementadas com maior propriedade por Henry Ford, concebidas e instituídas no início do século XX, tais como: disposição racional de máquinas e equipamentos na unidade produtiva; sequência de etapas de produção (layout físico e de processo); e organização, sistemas e métodos.

A categoria ‘tecnologias de gestão de ordem comportamental e ideológica’3 alinha-se em sua proposição aos elementos constituintes da organização do trabalho e da produção a partir do advento da reestruturação produtiva capitalista, em que são cristalizados no e pelo Sistema Toyota de Produção, quais sejam: seminários de criatividade; mecanismos de

3 Torna-se importante reforçar que o controle sobre o comportamento humano no ambiente produtivo não é originário do Sistema Toyota de Produção, pois nas teorias e abordagens da administração anteriores, tais como a abordagem das Relações Humanas e seus principais pesquisadores (Elton Mayo, Chester Barnard, Douglas McGregor e Abraham Maslow), bem como o enfoque behaviorista das organizações (Herbert Simon, Rensis Likert e Chris Argyris), já possuíam tais preocupações em seus estudos, considerando-se um controle ‘não direto’, despótico, do tipo taylorista/fordista.

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motivação e integração; planos de treinamento e desenvolvimento de pessoal; trabalhos em grupos participativos; entre outros.

Na categoria ‘tecnologias de gestão de ordem instrumental’, tendo em vista a sua utilização e aplicação no âmbito produtivo, verifica-se, ainda, uma relação de dependência das tecnologias físicas (maquinaria). Nesse caso, o processo de valorização do valor é proveniente do intercâmbio material entre a força de trabalho (trabalho vivo) e a maquinaria (trabalho morto), matriz característica e preponderante da acumulação capitalista a partir da organização científica do trabalho de Taylor e Ford e que tem na Revolução Industrial o seu demiurgo. Destarte, a aplicação tecnológica das ciências é verificada empiricamente no quantum de trabalho morto que é incorporado na produção capitalista proporcionado, principalmente, pelas ciências exatas e naturais.

Podemos afirmar que as tecnologias gerenciais de ordem instrumental apenas podem ser compreendidas a partir de sua relação direta com a maquinaria. Mais precisamente, a intensificação do trabalho cooperado no seio da produção capitalista somente pode ser efetivada considerando a sua conjugação com as tecnologias físicas (maquinaria) em uma relação de dependência da primeira para com a segunda, na qual os limites da utilização de tais tecnologias gerenciais se encontram relacionados aos limites de intensificação do trabalho no ambiente produtivo regido pelo sistema de produção taylorista/fordista.

Por sua vez, a categoria ‘tecnologias de gestão de ordem comportamental e ideológica’, realçando novamente a análise a partir de sua utilização, caracteriza-se como um conjunto de métodos e técnicas de organização do trabalho cooperado para além do âmbito da produção, em virtude de sua condição de não dependência às tecnologias físicas, diferentemente da categoria analisada anteriormente, e tendo como base epistêmica as ciências humanas e sociais.

O centro da verificação empírica da intensificação do trabalho, propiciada pelas tecnologias de gestão de ordem comportamental e ideológica, é a organização do trabalho nas empresas a partir de um estágio de cooperação qualitativamente superior ao verificado no paradigma taylorista/fordista regido pelo modo de produção capitalista. Nesse caso, podemos afirmar que os métodos e as técnicas como: seminários de criatividade, mecanismos de motivação e integração, planos de treinamento e desenvolvimento de pessoal, e o trabalho em equipes, constituintes da categoria ‘tecnologias de gestão de ordem comportamental e ideológica’, estão mais alinhadas (considerando o desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista) às ferramentas componentes do Sistema Toyota de Produção, em que a possibilidade de incremento de sobre-valor não depende diretamente da subsunção do trabalho vivo ao trabalho morto.

Conforme a distinção categorial proposta por Faria (1997) em relação ao conceito de tecnologias de gestão, observa-se que essa distinção não impede a utilização simultânea de ambas nas organizações; porém, tal distinção evidencia um nível de intensificação do

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trabalho proporcionado pelas tecnologias de gestão de ordem comportamental e ideológica não verificado na categoria anterior em virtude da relação histórica que as tecnologias de gestão de ordem instrumental têm com o sistema de produção taylorista/fordista. Nesse caso, as ferramentas constituintes das tecnologias gerenciais de ordem comportamental se enquadram na objetividade prevista no estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista característico dos últimos 30 anos, no qual o Sistema Toyota de Produção tornou-se o modelo hegemônico de organização do trabalho.

Gurgel (2003), ao tratar da questão do controle subjetivo possibilitado pelas diversas ferramentas constituintes e provenientes da área da Administração, equivale o termo ‘tecnologias de gestão’ a ‘tecnologias gerenciais contemporâneas’ adotando como fundamento a mesma lógica que Faria (1997) imprime ao seu conceito.

Em tais mecanismos de controle da subjetividade é que se encontram as bases das tecnologias de gestão contemporâneas às quais Gurgel (2003) e Faria (2004) se referem em suas apropriações conceituais do termo em questão, ou seja, a necessidade que se conjetura na produção capitalista atual de romper com a dicotomia produzida no e pelo paradigma taylorista-fordista (que embasava as relações sociais de produção de mercadorias pela divisão objetiva entre trabalho manual e trabalho intelectual a qual limitava as possibilidades de intensificação do trabalho) – barreira transposta pelas tecnologias gerenciais alicerçadas nos avanços científicos produzidos com maior ênfase na área das ciências humanas e sociais.

Essa é a condição objetiva que faz Gurgel (2003) verificar empiricamente as possibilidades de resposta ao problema que se coloca à gestão capitalista: qual é a dimensão ideológica das tecnologias de gestão na formação da consciência social? Para Gurgel (2003), essa dimensão ideológica encontra seu habitat natural nas teorias organizacionais propagadas desde o século XX até os dias atuais, e com maior ênfase nos cursos da área das Ciências Sociais Aplicadas, com destaque para a Administração.

Assim sendo:

Mais que condicionar o ambiente do trabalho às necessidades da reprodução econômica do sistema, as teorias organizacionais ultrapassam os fins produtivos, materiais, e se convertem em formas concretas de propagação de valores ideológicos. Não se limitam a gerenciar e reorganizar a produção e seus agentes, mas também a gerenciar o pensamento desses agentes na perspectiva do projeto político em curso. (GURGEL, 2003, p.84).

O objetivo primordial das tecnologias gerenciais contemporâneas, conforme a análise do autor, é a introjeção de métodos e técnicas que atuam no âmbito subjetivo da força de trabalho envolvida direta e indiretamente na produção de mercadorias com o intuito de intensificar a valorização do valor, minimizando, ao máximo, qualquer forma

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de questionamento ou crítica as condições de exploração imposta pelo atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista.

De acordo com Faria (2004, p. 180),

os grupos semi-autônomos e sua concepção ‘participativa’ e as chamadas técnicas japonesas de gestão ou toyotismo, constituem o suporte ideológico sobre o qual se assenta a reorganização do trabalho ou a reestruturação produtiva no âmbito da fábrica, sendo que as empresas procuram, com o emprego destas novas tecnologias, intensificar o trabalho e não [...] apenas desenvolver programas de relações humanas e de qualidade (FARIA, p.189. inserção nossa).

Conforme os autores que nos subsidiam e suas diversas interpretações e apropriações acerca do conceito de tecnologias gerenciais (ou de gestão), compreendemos como tecnologias de gestão um conjunto de métodos e técnicas de organização e controle do trabalho, que atua, em nível objetivo (comportamental) e subjetivo (ideológico) da força de trabalho, no intuito de intensificar e reduzir o tempo de trabalho necessário para a produção de mercadorias.

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para o desenvolvimento da pesquisa em questão, propomos a utilização do método materialista-histórico para a apreensão e compreensão da realidade posta; destarte, tornou-se necessária a utilização de técnicas de pesquisa que viabilizem a consecução dos objetivos previstos.

O grupo pesquisado tem caráter campesino, participante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mais especificamente os representantes do Movimento da Lapa, Região Metropolitana de Curitiba, somando 700 representantes, distribuídos em 108 famílias.

Os questionários foram aplicados às famílias, totalizando 121, considerando que em algumas famílias aplicou-se mais de um questionário. Não obstante, optou-se, para efeitos de análise, fazer o tratamento somente dos dados referentes ao respondente do questionário (fosse homem ou mulher, responsável ou não pela família ou pela renda familiar).

Os questionários eram semiestruturados, com diferenciação de gênero. Para maior compreensão dos participantes do movimento, fizeram-se necessárias duas visitas ao Assentamento Contestado, onde se pôde ver o trabalho dos indivíduos envolvidos, e, posteriormente, realizada entrevista com três representantes do movimento. Essa entrevista, não estruturada, buscou entender as nuances das respostas já encontradas nos referidos questionários.

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3 AS TECNOLOGIAS DE GESTÃO E SUA MANIFESTAÇÃO NOS EMPREENDIMENTOS POPULARES

Sabendo-se que as tecnologias de gestão atuam em um caráter comportamental e ideológico, conforme salienta Faria (1997), com relação ao conceito de tecnologias de gestão, observa-se que a utilização delas corresponde diretamente ao nível de intensificação do trabalho proporcionado pelas tecnologias de gestão de ordem comportamental e ideológica, e, ao mesmo tempo, a valorização do valor, uma vez que os indivíduos se compreendem inseridos nesse contexto do trabalho.

Buscou-se, assim, compreender o grau de adesão dos representantes do movimento, levando a cabo uma leitura sobre o grau de participação dos sujeitos entrevistados. Para tanto, analisou-se o entendimento por parte dos participantes dos empreendimentos pesquisados em relação ao movimento, devendo cada membro se declarar atuante, ou não, no movimento. Da amostragem, 75,2% declararam-se atuante no movimento, e 24,8%, como não atuante no movimento.

O alto nível de rejeição em declarar-se atuante no movimento levou à formulação da seguinte pergunta: o que os membros do Movimento Lapa compreendem como participantes ou atuantes, uma vez que praticamente todos os entrevistados são responsáveis por tarefas dentro do movimento e a ele respeitantes?

Para subsidiar essa pergunta, interrogou-se sobre a participação dos entrevistados em trabalhos cooperados do movimento – que corresponde à sua forma de sustento e, consequentemente, ao caráter de atuação no movimento. A questão, de forma objetiva, apresenta sete frentes de trabalho do movimento e uma opção livre, ao qual o entrevistado poderia informar outra forma de trabalho que não a do movimento.

Dos 121 entrevistados, 98,35% declaram participar de trabalhos cooperados, de atuação do movimento, e apenas 1,65% declarou não participar de trabalhos cooperados do movimento (apenas dois respondentes).

Quando perguntados sobre melhorias\benefícios que a entrada no movimento lhes proporcionou, pôde-se obter, segundo as tipologias abaixo, os resultados apresentados.

De forma geral, a maior parte dos que avaliam positivamente sua entrada no movimento compreendem que o maior ganho foi em termos político-ideológicos (o que vem marcado por termos como “companheiro\companheirismo”, “guerreiro”, “conquista de direito\liberdade”, “conhecimento”, etc.). Entretanto, a discrepância verificada anteriormente (cerca de 25% dos entrevistados declaram não serem atuantes no movimento) força a questionar o quanto tal percentual (74% declaram ganhos político-ideológicos) vem, de fato, corresponder à internalização do discurso, ou seja, até que ponto o discurso do ganho político-ideológico reverte-se no ‘sentir-se pertencente’ (atuante) ao movimento.

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Dois outros dados que podem auxiliar na avaliação dessa compreensão/apropriação é o nível de escolaridade e a continuidade dos estudos. Do total dos entrevistados, 69,1% frequentaram a escola até a 8ª série do Ensino Fundamental – desses, 6,6% não têm qualquer instrução formal, ou somente um ano ou menos.

Além disso, a continuação da educação formal no Assentamento também pode ser reveladora. Somados, os entrevistados que estão fora do processo formal de educação (escola) são 80%. Ainda, os mesmos 25% que se declaram não atuantes no movimento também estão fora desse processo.

Para Gurgel (2003, p. 70), parece existir grande relação entre a educação e a formação da consciência, o que equivale dizer que a escola e, consequentemente, a educação, têm certo “poder formador de consciência”. Dessa forma, pode-se entrever alguma relação entre os dados apresentados acima.

Pode-se pensar, assim, que não obstante a maioria declare que o maior benefício, depois de sua entrada no movimento, seja o ganho de consciência política, o cruzamento com outros dados e a respectiva análise mostra que tal ganho não fora revertido em “ganho real”, ou seja, internalizado como consciência de pertença ao movimento, ao menos no plano ideológico. Isso pelo seguinte: embora 25% declarassem não atuar no movimento, na prática, constatou-se o contrário, notando-se que 98,35% dos entrevistados trabalhavam em ocupações cooperadas, dentro do assentamento.

Deve-se, aqui, retomar a reflexão de Faria (1997) e sua distinção fundamental entre tecnologias de ordem instrumental e tecnologias de ordem comportamental e ideológica, como já descrito acima. A partir dessa perspectiva, é possível deduzir que a aplicação, por parte dos membros do assentamento, de tecnologias de gestão de ordem comportamental e ideológica não acompanham necessariamente as tecnologias de ordem instrumental.

De outro modo, é possível implementar tecnologias de gestão no sentido de racionalização do trabalho e da produção, sem que implique o caráter ideológico da tomada de consciência e reconhecimento do declarante como “atuante” do processo.

Para compreender-se a intensificação do caráter ideológico em tais mecanismos, deve-se perceber a relação estreita entre subjetividade do trabalhador e seu processo de trabalho, que, no caso contemporâneo, se dá pelo controle da subjetividade, como propõem Gurgel (2003) e Faria (2004). Ambos compreendem que as apropriações de subjetividade se referem às suas apropriações conceituais, uma vez que as necessidades do processo de trabalho são descobertas, como ocorre com a produção capitalista atual.

O mesmo deveria acontecer com o processo de produção do MST-Lapa, sendo que, uma vez relacionado a um movimento que atua de modo contrário ao processo capitalista, o caráter subjetivo toma um enfoque revolucionário. Essa é a condição objetiva

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que faz Gurgel (2003) verificar empiricamente as possibilidades de resposta ao problema que se coloca à gestão capitalista: qual é a dimensão ideológica das tecnologias de gestão na formação da consciência social?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sob a perspectiva das tecnologias de gestão de ordem instrumental, percebe-se que o assentamento responde relativamente à aplicação de estratégias de racionalização e operacionalização do trabalho e da produção. Entretanto, pelo auferido dos dados obtidos, pôde-se perceber que, aos membros do movimento da Lapa, falta ainda um substancial processo de reflexão com vistas à internalização\apropriação do caráter subjetivo e ideológico das tecnologias de gestão.

Assim, o investimento na qualificação, não somente profissional, mas principalmente humana-intelectual do membro do assentamento, mostra-se uma possibilidade bastante promissora para o aprofundamento da reflexão, da tomada de consciência e, por fim, adesão ao processo.

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REFERÊNCIAS

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RESUMO

A escola é vista hoje como uma importante instituição socializadora. É por meio dela que as crianças irão aprender sobre sua cultura, sobre valores morais e sobre a convivência social. Assim, o indivíduo que ingressa em uma instituição de ensino sairá dela mais humanizado, socializado e educado. O papel do professor será o de estimular a busca de conhecimentos; mas para que essa troca ocorra, é necessário que haja confiança. A teoria da relação objetal mostra que essa confiança será construída na forma como a criança for acalentada. A partir da análise de entrevistas realizada em uma escola de Educação Infantil, este artigo apresenta os resultados sobre como é estabelecida e desenvolvida a confiança e suas principais dificuldades.

Palavras-chave: Confiança. Relação professor-aluno. Pais.

RELAÇÃO DE CONFIANÇA ALUNO-PROFESSOR NA APRENDIZAGEM

Ana Paula Freiberger Caron*José Henrique de Faria**

Antoninho Caron***

* Aluna do 3º ano de Psicologia da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica da Fundação Araucária. E-mail: [email protected].

** Doutor em Administração (USP). Professor da FAE Centro Universitário e da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected].

*** Doutor em Engenharia de Produção (UFSC). Professor do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Organizações e Desenvolvimento e coordenador do curso de Administração da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

É na escola que a criança irá deixar de imitar o comportamento de seus pais e de outros adultos e começará a apropriar-se de outros modos de comportamento, tornando-a mais autônoma (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008). Há de se considerar, entretanto, a existência de diversas formas de conceber o fenômeno educativo, pois se trata de algo humano, histórico e multidimensional.

De acordo com determinada proposta ou abordagem pedagógica, foca-se em um ou outro aspecto educacional. Aspecto aqui se entende como abordagens tradicionais, comportamentalistas, humanistas, cognitivistas e socioculturais (MIZUKAMI, 1986).

É por meio da escola que se sociabiliza o sujeito, porém esse processo já começa muito antes com os pais. Para que a criança se torne apta a viver em sociedade, é necessário que haja uma boa vinculação com os pais na primeira infância. A partir dessa vinculação, a criança aprenderá a confiar ou não nos outros (PULASKI, 1986; RAPPAPORT; FIORI; DAVIS, 1981; SCHULTZ; SCHULTZ, 2006).

O professor será a figura que, segundo Furlani (1991), desempenhará quatro papéis: transmitir conhecimento, disciplinar, avaliar e vivenciar modelos no relacionamento com os alunos. Mas até para que a criança enxergue o professor nesse papel, ela precisará ter passado por tudo isso, primeiramente, com seus pais (MILLER, 1997). Se a criança obtiver apoio emocional e físico nessa fase, ela estará apta também a confiar em seus professores nas séries iniciais e por toda sua vida (RAPPAPORT, FIORI, HERZBERG, 1981).

O objetivo do presente trabalho é identificar como é construída, desenvolvida e estimulada a confiança na relação professor-aluno e como o professor poderá auxiliar o indivíduo nessa tarefa.

1 METODOLOGIA DA PESQUISA

A partir de uma revisão bibliográfica do ponto de vista psicológico, busca-se compreender as raízes da confiança, como ela começa e o que é determinante para seu estabelecimento. Procurou-se também investigar como essa confiança primária influenciaria a relação professor-aluno nas séries inicias, isto é, na Educação Infantil.

Para tanto, buscou-se desenvolver um estudo de caso em uma escola de Curitiba visando responder o problema da pesquisa proposto nesse trabalho, a saber: como se estabelece a confiança professor-aluno na Educação Infantil?

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Os entrevistados constituíram de professores e/ou estudantes de Pedagogia que trabalhassem naquela instituição na época da coleta de dados.

2 AS PRIMEIRAS RELAÇÕES

Para entendermos como ocorre a confiança na relação professor-aluno, é necessário retomar os conceitos iniciais sobre como construímos uma relação em que há vínculo, afeto e confiança.

Relação objetal é uma teoria originada da psicanálise que se concentra fundamentalmente nas relações com os objetos amados, como a mãe ou o cuidador principal, que satisfazem as necessidades instintivas da criança, ao invés de se concentrar nas necessidades em si (SCHULTZ; SCHULTZ, 2006).

Para Fiori (apud Rappaport, 1981), a organização afetiva ocorre com a amamentação, denominada por Freud como fase oral. Essa fase é definida como uma etapa do desenvolvimento humano em que a libido está organizada na zona oral, sendo que a organização afetiva ocorre por formas introjetivas ou de incorporação (RAPPAPORT; FIORI; DAVIS, 1981). Libido é uma forma de energia psíquica que leva a pessoa a ter pensamentos e comportamentos prazerosos (SCHULTZ; SCHULTZ, 2006).

Erik Ericson acrescentou a teoria de Freud ao dizer que nessa etapa é formulada a confiança e a desconfiança básica. O bebê precisará aprender a confiar nos outros para sanar suas necessidades básicas, obtendo segurança e afeto (SHAFFER, 2005; SCHULTZ; SCHULTZ, 2006). A sucção que o bebê faz ao mamar é inato ao ser humano, sendo que o impulso para obter alimento é considerado um fator central da organização na infância inicial. Assim, correlaciona-se a busca por alimentos com o prazer, uma vez que a obtenção do primeiro gera o segundo.

É em cima do prazer inicial, da satisfação tida com a amamentação, que se aprenderá a amar e que se aprenderá a desenvolver os vínculos de amor em seguida dissociados da exigência biológica básica da alimentação. (RAPPAPORT, 1981, p.31)

A criança encontra-se nessa etapa em estado de dependência da mãe ou da pessoa que a cuida, tornando essa pessoa objeto principal da libido da criança. A maneira como a mãe responde aos pedidos do bebê formará a percepção dele acerca do mundo, vendo-o como bom ou mal, satisfatório ou frustrador, seguro ou perigoso (SCHULTZ; SCHULTZ, 2006; WINNICOTT,1975).

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O ato de cuidar de um bebê é fundamental para que ele se sinta adequado enquanto ser humano, sendo que o vínculo básico dessa fase é estabelecido pela amamentação (RAPPAPORT; FIORI; DAVIS, 1981). “A criança que conheceu a segurança nesse estágio inicial começa a alimentar a expectativa de que nunca lhe faltarão e nem a abandonarão” (WINNICOTT, 1993, p.104).

Inicialmente, todo o afeto da criança será direcionado para o seio, objeto que é visto por ela como bom ou mal. Após esse período, a criança será capaz de dirigir seu afeto ao pai, mãe, outras pessoas e objetos do mundo. Portanto, o processo de criação de ligações emocionais é chamado de desenvolvimento das relações objetais (PULASKI, 1986; RAPPAPORT, 1981; SCHULTZ; SCHULTZ, 2006,).

Conforme citado anteriormente, a criança estabelecerá a confiança de acordo com a maneira que ela foi tratada pelo seu cuidador. Para Alice Miller (1997), é fundamental que a criança seja levada a sério desde o nascimento, sendo respeitada na manifestação de seus sentimentos e suas sensações. É a partir desse clima de respeito que a criança poderá romper com a simbiose que possui com a mãe e caminhar rumo à autonomia. Com autonomia alcançada, a criança será capaz de tornar-se independente não somente fisicamente, como também emocionalmente.

Entretanto, Miller (1997) defende que os pais apenas poderão proporcionar essa experiência para seus filhos, se eles mesmos a tiverem vivenciado com seus pais. Quando essa situação não ocorre, o indivíduo torna-se carente, passando a buscar inconscientemente por alguém dedicado, que o entenda e o leve a sério. Contudo, não obterá sucesso nessa procura uma vez que se remete a algo passado, que deveria ter sido trabalhada na primeira infância. Enquanto essa falta não for elaborada, seja por terapia ou por outro processo de autoconhecimento, esse indivíduo tentará suprir essa necessidade durante toda sua vida, sendo que o mais disponível para suprir essa carência são os próprios filhos (MILLER, 1997).

3 FIGURA MATERNA E FIGURA PATERNA

Tanto a figura materna quanto a paterna pode ser desempenhado por um homem e uma mulher, respectivamente, não havendo uma diferenciação de gênero e nem de parentesco para que se possa educar um indivíduo. Porém, existem diferenças entre figura materna e mãe, bem como figura paterna e pai.

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A função paterna se ocupa com a formação da consciência dos filhos, processo que já foi iniciado pela figura materna. Essa consciência será formada através da interdição da relação criança/mãe, separando-as em alguns momentos, bem como será seu papel falar de princípios, regras, leis e conceitos (LIMA, 1997). Portanto, é função da figura materna atender às necessidades de uma criança para que ela tenha um equilíbrio orgânico, isto é, sanar a necessidade de alimento, afeto e higiene. Também é essa figura que auxiliará o indivíduo a construir seu esquema corporal, notando a fronteira do eu e do outro, assim como a construção da autoestima (LIMA, 1997).

4 CONFIANÇA: PONTOS DE VISTA

Zanini (2007) propõe uma divisão no ato de confiar, um emocional e outro cognitivo, sendo que ora prevalecerá uma forma, ora outra. Complementando essa fala, Piaget (1962, apud PULASKI, 1986, p.140) diz que “assim como não existe estado puramente cognitivo, não existe estado puramente afetivo”.

A parte cognitiva possibilita o cálculo do risco que o indivíduo corre em determinada situação, chamada também, pelo autor, de confiança cognitiva ou confiança calculada. Já a parte emocional diz respeito aos aspectos afetivos e emocionais que não podem ser removidos, uma vez que diz respeito a um conceito central na confiança: a crença (ZANINI, 2007). Entretanto, na criança pequena essa diferenciação não ocorre, pois o ato de confiar está intimamente ligado ao emocional – sistema límbico.

Segundo Rogers e Stevens (1902), a qualidade da relação interpessoal que se estabelece é o aspecto mais importante para haver confiança. Ou seja, é mais importante a relação que se forma com outro indivíduo do que saber todos os testes e teóricos daquele assunto. Segundo o autor, existem algumas atitudes que criam um clima favorável para o crescimento. Primeiramente, é necessário haver congruência/coerência, existindo a necessidade de que a relação seja sem máscaras. Assim, o facilitador da aprendizagem poderia aceitar seus sentimentos de forma consciente, podendo comunicá-los, promovendo um encontro de pessoa para pessoa. Com a sinceridade iniciando nos sentimentos, o autor propõe que é mais fácil para outro ser humano confiar em alguém que se sabe não estar encobrindo nenhum aspecto de sua personalidade, uma pessoa que está em determinada situação de forma real (ROGERS; STEVENS, 1902).

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Outra característica necessária é a empatia entre os indivíduos, em que o professor possa compreender a forma de aprendizagem do aluno sendo capaz de comunicar essa compreensão. Segundo Gambini (1999), é necessário reconhecer que a transmissão de conhecimento é condicionada pela psicologia do professor, sendo que ele precisa notar-se como um ser ensinante e aprendente junto com a criança. Dessa forma, reconhece-se que a criança também é capaz de produzir conhecimento e de ensiná-la. É necessário perceber a confusão, a timidez ou a raiva da criança como se isso ocorresse também com o educador, porém tendo consciência de que a sua confusão, timidez ou raiva não entrem na relação. É a partir dessa empatia que o outro consegue perceber-se enquanto pessoa e pode aprender, mudar e se desenvolver (ROGERS; SETEVENS, 1902). Dessa forma, como relata Gambini (1999), está sendo introduzida uma prática de autoconhecimento para que o professor descubra também como foi o seu processo de aprendizagem.

5 O PROFESSOR

Para Furlani (1991), existem alguns papéis que são da competência do professor, entre eles está a transmissão de conhecimento e vivência de modelos no relacionamento com os alunos.

A transmissão do conhecimento poderá ocorrer de duas formas: o professor como informador e o professor como didata. No primeiro, o docente surgirá como mero transmissor de conhecimento, sendo que esse conhecimento será rígido sem a possibilidade de acrescentar algo novo, e o professor não considerará o contexto em que esse estudo é transmitido. Já o professor como didata visa à integração do aluno ao conhecimento, em que nada é dado pronto aos alunos, e eles são estimulados a questionar e criar. O professor didata utilizará as maneiras formais de transmissão de conhecimento, mas não se aterá apenas a elas, uma vez que entende que os conteúdos dados também são incompletos. Nesse tipo de ensino, entende-se que o professor é um organizador das atividades e que o aluno também poderá ensinar (FURLANI, 1991).

Rossini (2003) também afirma que é importante que o professor demonstre consideração sobre seus alunos, pois é a partir desse aspecto que se construirá a autoestima da criança. Os indivíduos têm necessidade de tentar, e é papel do professor estimular essas tentativas sem, entretanto, cobrar pela perfeição.

Furlani (1991) ainda define o papel do professor na vivência de modelos no relacionamento com os alunos. Para ela, não é somente o conhecimento e a experiência que contam para os alunos, mas também características afetivas, de personalidade, sendo que existem três modelos para que o professor se situe perante o aluno: o modelo autoritário, o permissivo e o democrático.

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O modelo autoritário caracteriza-se por não ocorrer diálogo, em que o conhecimento é imposto ao aluno, não sendo permitido que este dê sua contribuição. A grande perda desse modelo é no sentido de tolher a criatividade, iniciativa e autonomia das crianças. Enquanto o modelo permissivo é aquele em que ocorre total liberdade de expressão, tudo é deixado acontecer e não há limites. No modelo democrático, o conhecimento é desenvolvido, elaborado e reelaborado pela parceria entre o professor e o aluno, na qual cada um dá sua contribuição. Com essa democracia ocorrendo em sala de aula, o professor consegue também acolher o aluno que ele tem, entendendo seus sentimentos, medos e aflições, mas é necessário que o professor tenha confiança e segurança em si mesmo, para que só então ele aceite a criança como ela é (FURLANI, 1991).

6 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

As análises apresentadas a seguir tomam como base as respostas fornecidas no questionário.

Foi questionado perante os professores sobre como eles entendiam que se desenvolvia a confiança do aluno. Entre as diversas verbalizações, a maioria diz ser a afetividade o ponto central da confiança:

“Por meio da afetividade. Aprendizagem é emoção, é paixão e exige confiança de ambas as partes. Na relação professor X aluno X aprendizagem o resultado de 2+2 quase nunca é 4. São relações intrincadas, repletas de contradições e esta é a beleza da nossa profissão.” “Com carinho, cumplicidade, limite e amor.”

Furlani (1991), Rogers e Stevens (1902) já defendiam essa ideia ao afirmarem que não é apenas o conhecimento teórico que conta para o aluno, mas a maneira que esse professor o enxerga e interage com ele. Também, segundo Gambini (1999), é necessário que ocorra empatia nessa relação, pois se o docente não se colocar no lugar do aluno, sem julgamentos, a relação ficaria deficitária. É necessário que se note como esse indivíduo aprende, pois nem sempre as formas tradicionais obterão resultados.

“Acredito que a confiança entre aluno e professor se desenvolva com uma postura aberta do professor. Abertura para ouvir a criança, para receber suas manifestações de carinho e entender quando ela não se sente tão bem. O professor deve ser carinhoso nas palavras gestos e ser exemplo de justiça e compreensão.”

“É papel do professor acolher seu aluno de forma que ele sinta-se seguro em permanecer na escola. A escuta e o respeito para com o aluno é o que gera a confiança. Potencializar suas qualidades e ajudá-lo em suas dificuldades são também aspectos importantes.”

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Rogers e Stevens (1902) definem um item chamado de consideração positiva e consideração incondicional como fundamentais para o crescimento. A consideração positiva ocorre quando existe a mudança e o desenvolvimento no aluno devido ao professor apresentar uma atitude afetuosa, positiva e de aceitação do que está nesse aprendiz. Isso significaria que a forma como esse indivíduo é, sua maneira de ser é aceito pelo professor, sendo que este consegue respeitar o aluno em sua diferença, sem querer modificá-lo.

A consideração incondicional é o professor conseguir olhar para o aluno de forma total, e não condicional. Isto é, um professor que sente uma consideração positiva muito grande por esse sujeito, sendo um sentimento aberto, e sem avaliações e julgamentos (ROGERS; STEVENS, 1902).

A pesquisa indicou também quais seriam os problemas encontrados pelos professores na questão da confiança das crianças, podendo-se destacar a falta de confiança dos pais no docente: “Uma família que não confia no professor e que tem dúvidas sobre a escola também pode passar para a criança esse sentimento.”

“Quando o pai é inseguro com a escola/professor, acaba transferindo esse sentimento para a criança.”

A forma como a figura materna lidará com a criança irá definir se ela irá incorporar à sua personalidade uma postura de confiança ou desconfiança no relacionamento futuro com o meio em que ela vive. Essa maneira de lidar diz respeito à forma como ela é amamentada, acalentada, entre outros. Se a criança for tratada com afeto, amor e segurança, ela desenvolverá o senso de confiança que caracterizará uma visão de si mesma e do outro. Porém, se seu cuidador rejeitá-lo ou atendê-lo de forma inconstante, a criança poderá ver o mundo de forma ameaçadora, onde existem apenas pessoas não confiáveis. Assim, a criança poderá tornar-se temerosa, desconfiada e ansiosa perante os outros e para consigo (SHAFFER, 2005; SCHULTZ; SCHULTZ, 2006).

“É o meio circundante que possibilita a cada criança crescer, e sem adequada confiabilidade ambiental o crescimento pessoal de uma criança não pode acontecer, ou será um crescimento distorcido” (WINNICOTT, 1993 p.103). Entretanto, segundo Schultz e Schultz (2006, p. 208) “A desconfiança na infância pode ser alterada posteriormente na vida por meio do companheirismo de um professor ou um amigo carinhoso e paciente.” Ambos os autores entendem que a confiança poderá ser construída mais tarde; porém, o primeiro acredita que essa segurança será abalada, enquanto o segundo crê que ainda poderá ocorrer sem maiores danos.

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A escolha da escola deverá ser feita pelos pais da criança, porém é fundamental que ela seja levada ao local para conhecer tanto o ambiente como, se possível, as professoras. A instituição deve ser escolhida de acordo com os valores da família, para que não haja discrepância no que é ensinado em casa e na escola. Também é necessário considerar a personalidade da criança, uma criança criativa poderá ter melhor desempenho em uma escola que busque estimular a criação, do que em uma escola que busque moldes fechados de ensino (ZAGURY, 2004).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo dessa pesquisa foi investigar como iniciava o processo de confiança de um indivíduo e, posteriormente, como isso iria influenciar no desenvolvimento da confiança com seu professor. Descobriu-se que sem uma adequada interação entre cuidador e bebê no início da vida, esse processo de confiança se torna mais dificultoso. É pela maneira como a criança será cuidada em seus primeiros anos de vida que ela desenvolverá sua própria forma de acreditar e confiar nos outros.

Nas entrevistas, descobriu-se que a principal dificuldade no desenvolvimento da relação professor-aluno é a dificuldade que os pais têm em transmitir segurança quanto à escola e ao professor para seus filhos. O presente trabalho mostra que, quando os próprios pais não experimentaram uma relação de confiança com seus progenitores, é mais difícil passar esse sentimento para seus filhos. Assim, sem ter confiança em si mesmo, os pais não poderiam passar uma imagem adequada da instituição e nem da professora (SAFFER, 2005; SCHULTZ; SCHULTZ, 2006).

Identificou-se, também, que a postura do professor frente ao aprendizado e aos medos da criança influenciaria a relação de ambos, tornando-a mais ou menos conflituosa. É de acordo como esse professor lida com seus próprios medos e angústias que ele lidará com os medos e as angústias dos seus alunos (GAMBINI, 1999).

Entretanto, deve se obter mais estudos sobre como uma falha de confiança nos primeiros anos de vida da criança pode influenciar no processo de aprendizagem. A presente pesquisa identifica que um professor poderá auxiliar a criança ou adulto nessa empreitada, porém não identifica quais seriam os indicadores para que esse fenômeno ocorra.

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RESUMO

O assédio moral é um tema de suma importância dentro da atualidade, principalmente devido às grandes mudanças que surgiram no ambiente de trabalho com a globalização, a qual gerou aumento de desemprego e concorrência. Tal cenário submeteu os trabalhadores a passar por situações vexatórias diante das dificuldades em se posicionar no mercado de trabalho cada vez mais exigente. Estudos realizados revelam que o equilíbrio psíquico e a saúde mental do indivíduo são afetados pelas pressões originadas pela organização do trabalho, podendo causar danos irreparáveis à saúde da vítima, pois quando a pessoa é submetida a humilhações, pode manifestar doenças originadas do estresse causado pelo sentimento de extremo sofrimento, impotência e incapacidade que a vítima de assédio é submetida. Demilitou-se o tema à Geração Y, por ser um tema atual e existir pouco material a respeito do assunto, o que nos permitirá relacionar características intrínsecas ao grupo. A questão analisada neste artigo é a identificação da causa da ausência de denúncia do Assédio Moral na Geração Y e sua correlação com características do grupo. O método utilizado deu-se por meio de análises documentais e pesquisa de campo, e pôde revelar aspectos interessantes dessa relação.

Palavras-chave: Assédio moral. Mobbing. Gerações. Geração Y. Ausência de denúncia.

ASSÉDIO MORAL E GERAÇÃO Y: ASPECTOS RELACIONADOS À AUSÊNCIA DE DENÚNCIA DE TRABALHADORES ASSEDIADOS

Luana Cristina Ribeiro Duvaresch*Dori Luiz Tibre Santos**

* Aluna do 2º ano de Psicologia da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Mestre em Educação (UFPR). Psicólogo. Professor da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

O assédio moral, enquanto fenômeno que incide sobre as variantes psicológicas do ser humano, pode ser caracterizado em razão de múltiplas relações (familiares, amorosas, sociais, laborais). No entanto, o enfoque que desponta com maior veemência é aquele direcionado às relações que envolvem o ambiente de trabalho por suas particularidades sociais. Nesse enfoque, estão envolvidas questões relacionadas ao poder nas relações hierárquicas, ao sistema capitalista e a determinantes sociais, como o crescente desemprego e necessidade de sobrevivência.

Tal fenômeno existe desde que surgiram as primeiras relações de trabalho, mas apenas nos últimos anos vem sendo amplamente discutido, principalmente devido à realidade formada no ambiente de trabalho advinda da globalização, a qual levou os trabalhadores a passar por situações humilhantes diante de um mercado exigente, competitivo, com menos oportunidades de emprego e mais ofertas de profissionais. Segundo Fernandes (2005), a cultura da empresa moderna leva à dificuldade de relacionamento entre as pessoas e falta de solidariedade e cooperação entre elas.

Estudos realizados por Dejours (1992) em psicopatologia do trabalho revelam que o a pressão oriunda da organização do trabalho afeta o equilíbrio psíquico e a saúde mental do indivíduo, podendo causar danos irreparáveis à saúde de quem a sofre. A submissão às situações humilhantes constantes ocasiona o estresse, oriundo do sentimento extremo de sofrimento, impotência e incapacidade que a vítima de assédio é submetida.

O estresse pode levar o ser humano a um estado depressivo, de desequilíbrio emocional, transtornos ansiosos, que podem originar ou desencadear muitas doenças. (GUIMARÃES; RIMOLI, 2006). A saúde física e mental de uma pessoa pode ser afetada em conjunto com o abatimento moral, o constrangimento que leva a pessoa vítima do assédio moral a degradar sua condição de trabalho e sua qualidade de vida. Tais sintomas podem acometer diferentes sistemas orgânicos e o trabalhador pode apresentar distúrbios psicossomáticos, cardíacos, digestivos, respiratórios, endocrinológicos, etc.

O que se vê acontecer nas organizações em relação ao assédio moral é a condescendência a essa prática, as organizações acabam por fazer vistas grossas, já que os gerentes assediadores geralmente são os que mais produzem. Está formada, assim, uma teia de relações que envolvem poder, pressão, necessidade de sobrevivência (já que estamos falando dentro de um contexto de amplo desemprego), e exigências das condições de trabalho que levam ao assédio.

Logo, se vê que não existe um mecanismo de denúncia estruturado que apoie os assediados moralmente ou os incentivem a sair de tal situação. O assediado, não tendo

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direcionamento após a ocorrência do fato, acaba por não denunciar o ato por medo das consequências ou outros motivos, os quais serão explorados nesta pesquisa. Não obstante, existem aqueles que passam por situações de assédio moral e não a reconhecem como tal. Independente do conhecimento do conceito de assédio moral, a ausência de denúncia pode acarretar consequências psicológicas ao assediado.

Delimitamos também o tema de nossa pesquisa à Geração Y, por se tratar de um assunto atual e existir pouco material a respeito. Aspectos vivenciados por esse grupo durante o seu crescimento e desenvolvimento, bem como o contexto sócio-cultural-político em que viveram em determinada época, têm influência direta em suas características, seus valores e expectativas tanto em aspectos pessoais como profissionais. Exploraremos aspectos relacionados à hierarquia e a possível ação de denúncia.

Diante do amplo acesso a informações na atualidade, bem como o perfil característico da Geração Y de ser mais decidida, inclusiva, segura e estar constantemente em busca de conhecimento (GARCIA; STEIN; RAMÓN, 2005), além de ser conhecida como uma geração que se posiciona e ter uma relação diferenciada com a hierarquia, chegamos a seguinte pergunta: Por qual motivo o trabalhador da Geração Y assediado moralmente não denuncia o assédio sofrido? E, ainda, os trabalhadores da Geração Y sabem o que é assédio moral?

1 ASSÉDIO MORAL NO CENÁRIO ORGANIZACIONAL

Há a banalização do assédio moral no ambiente organizacional devido às grandes e constantes mudanças na vida dos trabalhadores. Nos dias atuais, identificamos uma busca incessante em manter ordem perante o caos em que se encontram as organizações, as quais buscam, cada vez mais, atingir resultados e alcançar lucros por meio das pessoas. Tal cenário caracteriza a percepção de que não há mais espaço para uma mentalidade tradicional e que novas formas de relacionamento e comunicação devem ser construídas. Contudo, muitas empresas ainda mantêm os tradicionais métodos de administração de pessoas.

Com o desenvolvimento tecnológico houve a alteração das exigências dos trabalhadores, as quais passaram de físicas a intelectuais e psicológicas, criando, assim, um ambiente contrário à solidariedade e propício a competitividade. É de suma importância refletir a respeito dos valores e princípios éticos organizacionais e como eles são sustentados em suas ações e relacionamentos.

Os trabalhadores estão cada dia mais vulneráveis e ameaçados, tornando-se perdidos e vazios, sem saber a quem recorrer e confiar. Se a violência moral existe, é

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obrigação da empresa criar condições mais harmônicas que resguardem a saúde do trabalhador (OLIVEIRA, 2004).

A organização, de forma geral, muitas vezes faz vista grossa ou apresenta-se perplexa diante de uma situação de assédio moral aos seus colaboradores, porém muitas não sabem – ou não estão preparadas para gerir tais dificuldades com seus trabalhadores. Legalmente, a empresa é considerada culpada pela violência à moral e pela conivência com a situação, pois todas as empresas têm o dever de fiscalizar a atuação de seus funcionários, zelar pela qualidade no ambiente de trabalho e pelo respeito à dignidade de seus funcionários. Contudo, algumas organizações ainda mantêm a cultura de relações desumanas e aéticas, em que predominam condutas negativas, chegando até mesmo a negligenciar o abuso, pois prioriza sua lucratividade para gerar mais cidadãos doentes.

De acordo com Heloani (2004), o assédio moral caracteriza-se pela intencionalidade, a qual incide na constante e deliberada desqualificação da vítima, seguida de sua consequente fragilização com o intuito de neutralizá-la em termos de poder. Esse enfraquecimento psíquico pode levar o indivíduo vitimizado gradualmente a uma despersonalização. Sem dúvida, trata-se de um processo disciplinador no qual se procura anular a vontade daquele que, para o agressor, se apresenta como ameaça. Essa dose de perversão moral – algumas pessoas sentem-se mais poderosas, seguras e, até mesmo, mais autoconfiantes à medida que menosprezam e dominam outras – pode levar com facilidade ao assédio moral quando aliada à questão da hipercompetitividade.

1.1 CARACTERIZAÇÃO DE ASSÉDIO MORAL

A caracterização do assédio moral é de suma importância para a compreensão da violência no ambiente de trabalho. A partir dela, é possível identificar atitudes que sejam abusivas e também desconsiderar situações que não caracterizam o assédio moral. Contudo, há diversos conceitos a respeito do assédio moral, o que dificulta sua caracterização e, consequentemente, o combate a esse comportamento hostil.

Segundo Soboll (2008), o tema é estudado há, aproximadamente, 25 anos no mundo, desenvolvendo-se no Brasil a partir do ano 2000 como objeto de estudo e de intervenção profissional, sendo ainda envolto de imprecisões conceituais e metodológicas. Para a autora, essa imprecisão está relacionada à diferente formação e época em que diferentes teóricos viveram. O médico Heinemann utilizou o termo mobbing da etiologia de Konrad Lorenz para descrever uma conduta de um grupo de crianças contra um menino. Leymann também se utilizou desse termo, mas aplicando ao ambiente de trabalho para um grupo que ataca psicologicamente de maneira contínua um trabalhador, a fim de destruí-lo. Outro termo

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pouco utilizado seria Bullying, sendo mais comum no ambiente escolar e que considera, muitas vezes, o envolvimento de agressões físicas além da psicológica.

Tendo em vista o contexto brasileiro de assédio moral, buscou-se nesta pesquisa identificar o termo mais adequado para descrever a violência psicológica no trabalho. Para isso, foram analisadas obras, como a de Marie France Hirigoyen (2002), Margarida Barreto (2005), Lis Andrea Pereira Soboll (2008) e Anastácio Ovejero Bernal (2010), entre artigos e dissertações sobre o tema.

Segundo pesquisas de Soboll (2008), o termo assédio moral tem sido mais utilizado e aceito: “No Brasil, o termo utilizado na área acadêmica e entre os atores sociais, difundido por Margarida Barreto (2005), é assédio moral, seguindo o modelo francês de Marie-France Hirigoyen (2001)”. Dessa forma, consideraremos o conceito de Hirigoyen a respeito de assédio moral norteador em nossa pesquisa:

[...] toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade, ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho (HIRIGOYEN, 2002).

Ainda a respeito do conceito de assédio moral, segundo Ovejero Bernal:

[...] a definição mais aceita hoje em dia é a utilizada pela legislação Sueca, que foi elaborada pela AFS (Agência Sueca para a melhoria do ambiente laboral), em 1993, em que descreve o fenômeno como uma série de ações recorrentes, censuráveis ou claramente negativas, que são dirigidas contra empregados específicos, de maneira ofensiva, e que podem ter como consequências a marginalização desses empregados da comunidade de trabalho. (BERNAL, 2009, p. 28).

No conceito apresentado acima, são mencionados características específicas do assédio moral. Para facilitar essa tarefa, Leonardo de Oliveira Rezende (2008), advogado trabalhista, mestre em Direito do trabalho, estabelece algumas especificidades ou critérios que são necessários para essa definição. Tais critérios apresentados surgiram da dificuldade do jurídico em estabelecer o que pode ser considerado assédio moral, definindo-os em quatro pontos, os quais serão adotados neste estudo.

O primeiro ponto é a habitualidade, apesar de não haver um consenso entre os estudiosos sobre a periodicidade, a maioria deles estabelece que o assédio moral deve ser frequente e apresentar um tempo mínimo de ataques. Segundo Rezende (2006), alguns autores estabelecem uma periodicidade mínima de 12 meses, e outros de até três anos e quatro meses. Enfatiza-se ainda a importância da repetição do fenômeno, reforçando, assim, a etimologia da própria palavra assédio, que designa insistência.

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Ainda a respeito da habitualidade, Barreto (apud FERNANDES 2002, p. 02) considera assediar moralmente um indivíduo a “exposição prolongada e repetitiva a condições de trabalho que, deliberadamente, vão sendo degradas”.

Tomaremos como referência de periodicidade a conceitualização de assédio moral em pesquisa realizada por Leymann:

[...] fenômeno no qual uma pessoa ou grupo de pessoas exerce violência psicológica extrema, de forma sistemática e recorrente e durante um tempo prolongado – por mais de seis meses e que os ataques se repitam numa frequência média de duas vezes na semana – sobre outra pessoa no local de trabalho, com a finalidade de destruir as redes de comunicação da vítima ou vítimas, destruir sua reputação, perturbar a execução de seu trabalho e conseguir finalmente que essa pessoa ou pessoas acabe abandonando o local de trabalho (LEYMANN apud GUIMARÃES; RIMOLI, 2006, p. 03).

Diante da divergência e amplitude de periodicidades citadas por diversos autores, tomaremos como referência o período apontado por Leymann de ocorrência mínima de seis meses.

O segundo ponto de Rezende (2006) é o local em que ocorre o assédio. Embora pareça óbvio, dado o contexto em que se trata o tema, o autor destaca que os indivíduos devem pertencer ao mesmo organismo empresarial e que sejam dependentes da empresa. Mesmo que de forma indireta, ou seja, incluem-se temporários, terceirizados e prestadores de serviços sem vinculação direta com o organismo.

O penúltimo ponto se refere à violência psicológica. O assediador tem de apresentar um comportamento que ataque o psicológico de seu alvo – condutas, como gritos, insultos, repreensões, humilhações em público, entre outros. O autor enfatiza que qualquer conduta que produza desconforto psicológico também pode ser incluída, desde que seja de grave destaque daquilo que é suportável dentro de um padrão objetivo, ou seja, caso não ultrapasse o limite normal, não será considerado como violência psicológica. Portanto, esse critério não deve ser considerado isoladamente dos outros para a caracterização do assédio moral, devido à dificuldade em mensurar a violência psicológica.

No quarto e último critério, o autor propõe a intenção do assediador em causar prejuízo psicológico e moral ao assediado. Nesse ponto, as opiniões sobre o tema são comuns. Precisam ser consideradas omissões e a criação de condições que propiciem a humilhação e sua submissão a uma série de disposições abusivas.

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2 GERAÇÃO Y

Segundo Garcia, Stein e Ramón (2008), a Geração Y é formada por pessoas nascidas entre 1984 e 1990. Existe uma divergência entre autores no que se refere ao período de nascimento dessa geração, FOJA (2009), por exemplo, considera o início da geração os nascidos em 1978, e ainda limita o fim dessa geração aos nascidos até 2000 (POCKET LEARNING, 2010). Após a data limite dessa geração, surgem novas gerações, as quais ainda não estão no mercado e trabalho, portanto, considerados irrelevantes nesta pesquisa.

O contexto em que a Geração Y cresceu se remete à globalização e ao desenvolvimento da tecnologia, que possibilitaram o acesso rápido a um grande fluxo de informações, velocidade e constante aperfeiçoamento de produtos, resultando, assim, em inovação e consumismo, bem como estímulo pela mídia e tecnologia. Tais características refletiram em imediatismo, impaciência e apreço por curto prazo em todos os âmbitos da vida.

[...] A geração Y só conhece a democracia, e as histórias sobre a transição, na Espanha, da ditadura para o estado atual [o que se aplica perfeitamente ao Brasil] começam a lhe soar como batalhas de seus pais. Não deixam de se surpreender com o fato de que a geração anterior tenha sobrevivido sob a tirania de poucas redes de televisão, sob controle governamental estrito, e com telefones pregados na parede. [...] ao lado de importantes transformações sofridas por seus pais [...] Na geração Y não ocorreu uma ruptura social evidente; não houve Woodstock nem maio de 1968. (GARCIA; STEIN; RAMÓN, 2008, p. 03).

No período de crescimento, as pessoas dessa geração não vivenciaram situações drásticas de economia como as gerações anteriores. Tal fator reforça seu aspecto consumista e também certo otimismo em relação ao mercado de trabalho, possibilitando às pessoas dessa geração a se arriscar mais e a inovar.

Apesar de essa geração conhecer a democracia e as histórias de transição política pelas quais seus pais passaram, ela nasceu em uma sociedade preocupada com segurança, num contexto social sem grandes transformações ou rupturas sociais evidentes, bem como possui características diferentes das outras gerações e mais expressivas. Essas pessoas foram mais protegidas pelos seus pais, cresceram sentindo-se especiais e valorizados. Essa geração observou a dedicação e a prioridade de seus pais à carreira profissional, deixando de lado a família, bem como o resultado dessa dedicação após uma reestruturação da empresa ou nova demanda no mercado, e não querem cometer o mesmo, se importam mais com o bem-estar e o familiar do que efetivamente com uma carreira profissional, não prezam especificamente pela hierarquia e ascensão profissional, mas pelo reconhecimento de seu trabalho e autonomia em suas decisões.

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A Geração Y também é conhecida como a geração do milênio, da internet e do videogame. Qual a relevância de um equipamento eletrônico, como o videogame, para essa geração, que cresceu jogando jogos com fases cada vez mais difíceis e desafiadores, e no final sempre mostraram o resultado de acordo com o desempenho da pessoa? Tal resultado reflete na vida adulta dessas pessoas, que desenvolveram um perfil competitivo e focado em resultados, apreciando sempre receber feedbacks em relação ao seu desempenho.

[...] eles sabem, por experiência, que as coisas, as informações, as novidades morrem em pouco tempo – até mesmo a ordem mundial, que parecia tão imutável. [...] fica claro que a geração Y responde a estímulos e motivações diferentes dos que moviam seus antecessores. Por exemplo, para eles, o futuro já não é uma ameaça insondável em mãos de megacorporações; ele simplesmente não existe. Essa visão apocalíptica se incorporou aos videogames e os jovens Y se sentem à vontade com ela. (GARCIA; STEIN; RAMÓN, 2008).

Essas pessoas, em geral, são questionadoras, repensam constantemente suas carreiras profissionais e buscam organizações condizentes com seus valores. Receberam muito mais atenção, carinho e dedicação de seus pais do que outras gerações; seus pais se dedicam a auxiliar seu desenvolvimento pessoal e profissional desde pequenos, o que desenvolveu um perfil autoconfiante, seguro e decidido. Sabem onde querem chegar e o que devem fazer para alcançar seus objetivos.

2.1 VALORES E EXPECTATIVAS DA GERAÇÃO Y

A geração Y considera o trabalho como fonte de satisfação e desenvolvimento pessoal, atua por objetivos, é focada em resultados e não em processos, considera sua remuneração somente como resultado de seu desempenho, e deseja conciliar sua vida pessoal com a profissional.

A perspectiva desse grupo é mais esperançosa referente ao futuro, é mais decidido, possui uma postura de cortesia frente às autoridades, preza pelo coletivismo e pela inclusão social. Também preza por uma empresa com responsabilidades em relação aos seus colaboradores, comunidade e meio ambiente. O trabalho é simplesmente um meio para viver a vida com qualidade, e não um fim.

Outra característica [...] é a confiança que os membros da geração Y possuem em si mesmos. Desde cedo esta geração tem sido guiada pelos seus pais tanto no âmbito pessoal como profissional. Os pais destes jovens têm atuado como direcionadores, criadores e até mesmo como coaches. (MACIEL, 2010)

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Essa criação propiciou a esses jovens autoconfiança, com isso, apreciam desafios, prezam pelo reconhecimento, liberdade e autonomia para agir em seu cotidiano na empresa. São abertos a novas correntes ideológicas, e são sensíveis à injustiça. O que retém esses profissionais em uma empresa não é necessariamente a oportunidade de crescimento hierárquico, mas o desenvolvimento e reconhecimento profissional. Prezam por atingir um alto grau de liberdade e tomada de decisões do que uma nomenclatura de cargo elevado. Possuem interesse em ascensão rápida, mudam de direção quando percebem que isso não acontecerá em um curto espaço de tempo, o que os torna instáveis.

São fatores de autodesenvolvimento buscados pela Geração Y, segundo Tulgan (2009 apud MACIEL, 2010): performance baseada na compensação financeira; agenda flexível; local flexível; habilidades vendáveis; acesso aos tomadores de decisão; crédito pessoal pelos resultados alcançados; área clara de responsabilidade; chance para expressão criativa.

2.2 GERAÇÃO Y E SUA RELAÇÃO COM A HIERARQUIA

Segundo pesquisas do The Generational Divide (POCKET LEARNING, 2010), a relação da Geração Y com autoridade é de respeito desde que esta demonstre competência. Por dominar o uso de tecnologia, há, predominantemente, uma inversão de papéis ao ensinar o superior a lidar com a habilidade.

As pessoas da geração Y não reconhecem muito hierarquia, nem têm o mesmo tipo de respeito pela autoridade [...] elas têm mais facilidade para se expressar e acham que podem dizer o que pensam, mesmo quando estão em posições mais baixas na empresa. Elas querem ter responsabilidade rapidamente e querem ter voz [...] dão sua opinião sem esperar ou obedecer a hierarquia. (COHEN apud POCKET LEARNING, 2010).

A postura dessa geração diante da autoridade é de cortesia, há uma troca de informações e conhecimentos, relação bem diferente de outras gerações que lidam com uma situação de respeito e lealdade, ou até mesmo de amor e ódio. Busca crédito ao seu gestor por resultados alcançados, e busca acesso e relacionamento com as pessoas responsáveis por tomar decisões, para que possa ter alguma participação.

3 METODOLOGIA DE PESQUISA

A metodologia proposta é de caráter exploratório e qualitativo, considerando-se que a base de conhecimento da relação entre assédio moral e os efeitos psicológicos em quem sofre esse assédio não permite, ainda, estabelecer relações de cunho mais específico. Essa investigação é de natureza qualitativa, exploratória e descritiva.

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O grupo é caracterizado independente de gênero e classe socioeconômica, componentes da Geração Y (nascidos entre 1984 e 1990, segundo GARCIA; STEIN; RAMÓN, 2008), estudantes de graduação e pós-graduação em Instituição de Ensino Superior em Curitiba, atuantes no mercado de trabalho no mínimo há seis meses (LEYMANN apud ELGENNENI, VERCESI 2009, p. 06), e assediados moralmente, segundo contextualização do tema. A pesquisa foi realizada fora do ambiente de trabalho, obtendo um caráter mais informal, sem a pressão exercida do ambiente de trabalho.

Os métodos e procedimentos utilizados se deram por meio de análises documentais e demais registros sobre o assunto, bem como por pesquisa de campo e coleta de dados. Foi aplicado o modelo conceitual de análise de dados por exploração e descrição do conceito de assédio moral e Geração Y, proporcionando maior entendimento, e construindo hipóteses que expliquem o comportamento dos apontamentos feitos nesta pesquisa.

O instrumento de pesquisa utilizado foi um questionário (Apêndice 1), o qual aborda tanto aspectos característicos do grupo quanto questões relacionadas ao tema:

a. Características do grupo: sexo, faixa etária, tempo no mercado de trabalho, tempo na empresa atual.

b. Questões relacionadas ao tema: entendimento do conceito de assédio moral, vivência do assédio moral, existência de denúncia, justificativa de ausência de denúncia, e sentimento após ser assediado.

O instrumento de pesquisa foi elaborado a partir de referenciais teóricos e aplicação de questionário piloto, o qual possibilitou direcionamento em relação aos conceitos de assédio moral de senso comum e características apresentadas pelo grupo inicial. Os resultados do pré-piloto não foram considerados na análise final, servindo somente para redirecionamento e aperfeiçoamento do questionário durante o projeto de pesquisa.

A pesquisa foi realizada em um grupo de 139 pessoas, sendo que dessas, 90 foram consideradas integrantes da Geração Y, e as 49 restantes foram desconsideradas da pesquisa devido à idade e pertencimento a outras gerações, as quais não são o foco desta pesquisa.

Foram analisados dados quantitativos referentes às pessoas que se consideram assediadas, ou não, permitindo, assim, uma análise crítica do conhecimento a respeito do tema.

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4 RESULTADOS DA PESQUISA

Em relação aos resultados apurados na pesquisa, pôde-se observar que 34% dos entrevistados relataram terem sido assediados moralmente no ambiente de trabalho, sendo 79% mulheres e 6% homens (Gráfico 1). Dos que se consideram assediados moralmente, somente 7% dos pesquisados efetivamente passou por uma situação de assédio moral, considerando a periodicidade do fenômeno.

GRÁFICO 1 – Assediados moralmente no ambiente de trabalho – 2012

FONTE: Elaboração própria

O conceito de assédio moral é conhecido por 86% dos pesquisados, que consideram ter passado pela situação, porém não há relação do conceito do tema com o período de ocorrência pelos entrevistados. Sendo considerado por apenas 16% a periodicidade de seis meses (gráfico 2). Tais dados apontam, primeiramente, que a maioria dos pesquisados da Geração Y possui conhecimento adequado a respeito do conceito de assédio moral. Contudo, há a banalização do tema em relação à periodicidade que caracteriza o assédio moral, considerando que 49% dos entrevistados consideram ter vivenciado situações de assédio moral, porém essas situações ocorreram somente uma ou algumas vezes em período inferior a três meses.

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GRÁFICO 2: Tempo de ocorrência nas situações de Assédio Moral - 2012

FONTE: Elaboração própria

Ainda, daqueles que se consideram assediados moralmente (31%), aproximadamente 48% não tomaram nenhuma atitude diante do acontecimento. Em relação àqueles que realmente passaram por situações de assédio moral, 60% também não o fizeram.

De forma geral, as atitudes diante do assédio podem ser observadas no gráfico 3, abaixo.

GRÁFICO 3 – Atitudes diante do assédio moral – 2012

FONTE: Elaborado pelos autores

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Tais dados refletem a ineficácia das organizações em ter uma estrutura que apoie ou incentive a denúncia dos assediados, e que deveria ser prioridade em um momento em que as empresas se preocupam tanto com a gestão de pessoas e desenvolvimento humano. Ao mesmo tempo em que criam o clima de competitividade, e diante do cenário que o mercado de trabalho se encontra, as empresas acabam propiciando de forma indireta esse tipo de abuso.

No gráfico 4, podemos observar os motivos apontados em relação à ausência de denúncia entre os que se consideram assediados, sendo o maior item assinalado o medo de comprometer a carreira profissional, seguido da exposição frente ao colega de trabalho.

GRÁFICO 4 – Justificativa da ausência de denúncia dos considerados assediados – 2012

FONTE: Elaborado pelos autores

Em relação às características da Geração Y relacionadas à hierarquia, considerando a postura diante da autoridade, a característica maior, teoricamente, seria a de cortesia. Contudo, essa foi a que teve um índice de 0% na pesquisa, enquanto a preferência por uma relação de respeito foi apontada por 89,5% dos pesquisados, sendo uma característica de outra geração (Gráfico 5).

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GRÁFICO 5 – Postura dos entrevistados em relação à autoridade

FONTE: Elaboração própria

Outra característica explorada foi em relação ao estilo de liderança almejado, o qual, teoricamente, haveria uma preferência pelo coletivismo. Contudo, o coletivismo e a competência tiveram o mesmo índice, 9% (Gráfico 6).

GRÁFICO 6 – Estilo de liderança considerada ideal

FONTE: Elaboração própria

Em relação às características as quais os pesquisados mais se identificam, apenas 25% relataram ser esperançosos e decididos, características consideradas na teoria, enquanto 50% assinalaram ser práticos e dedicados, características de outra geração (Gráfico 7).

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GRÁFICO 7 – Característica qual mais se identifica - 2012

FONTE: Elaboração própria

As justificativas de ausência de denúncia apresentadas na pesquisa – em que a maioria significativa dos pesquisados se consideram assediados e não denunciaram por medo de comprometer a carreira profissional e, ainda, o fato de não querer se expor em frente aos colegas de trabalho – contradizem ao perfil característico dessa geração, encontrados em pesquisa, de ser autoconfiantes, seguros e expor suas ideias de forma direta.

Ainda em relação às características dessa geração, pode-se constatar que há divergência na aderência ao perfil pesquisado na amostra aplicada, em relação à postura diante da autoridade, estilo de liderança apreciado e características de identificação.

A partir desses dados, questiona-se o motivo da discrepância entre as atitudes e características que compreendem a Geração Y, o que nos leva a refletir se dentro da complexidade humana podemos realmente determinar características de um grupo devido ao seu contexto sociocultural, e de que forma essas características podem realmente condizer à realidade.

Em relação ao principal fator nesta pesquisa – justificativa da ausência de denúncia –, podemos observar uma característica relacionada à insegurança no grupo, o que poderia ser aprofundado em outra pesquisa, podendo verificar, por exemplo, se há relação em serem mais novos no mercado de trabalho ou possuírem alta cobrança e expectativas diante de seu perfil tendencioso ao sucesso e conquistas. Afinal, já que possui tanta informação, conhecimento e apoio dos pais, por que motivo a Geração Y se sente insegura em relação à sua carreira, suas decisões e à exposição? E, ainda, até que ponto o estudo de gerações se torna fidedigno na sociedade atual?

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APÊNDICE 1

Atenção! As informações aqui cedidas são de caráter sigiloso e para fins de pesquisas científicas, portanto não há necessidade de se identificar.

VOCÊ DEVERÁ MARCAR SOMENTE UMA OPÇÃO POR QUESTÃO, EXCETO NAS QUESTÕES “3” e “7”.

Sexo: ( ) F ( ) M || Faixa etária: ( ) 21 a 27 anos;

( ) 28 a 32 anos; ( ) Acima de 33 anos.

Tempo de atuação no mercado de trabalho:

( ) Menor que um ano

( ) Entre um e três anos

( ) Entre três e cinco anos

( ) Acima de cinco anos

Tempo na empresa atual:

( ) Menor que seis meses

( ) Entre seis meses e dois anos

( ) Entre dois anos e cinco anos

( ) Acima de cinco anos

1. O que você entende por assédio moral no ambiente de trabalho?

( ) É quando um trabalhador é coagido com piadas constrangedoras e fofocas

( ) É quando o chefe se aproveita do poder de sua função para exigir muito do trabalho de um empregado

( ) Quando um superior é assertivo com seu subordinado publicamente

( ) É qualquer conduta abusiva, que aconteça repetidamente contra a dignidade ou a integridade de um trabalhador

( ) É quando há insinuações sexuais vindos de um superior para um trabalhador

2. Você já foi assediado moralmente no ambiente de trabalho?

( ) Sim ( ) Não

3. Assinale as situações abaixo pelas quais você já tenha passado no ambiente de trabalho: (Nesta, poderá marcar mais de uma opção)

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( ) Recebeu críticas em público

( ) Recebeu propositalmente instruções confusas e imprecisas

( ) Teve sua presença ignorada frente a outros colegas

( ) Circularam boatos maldosos e calúnias a seu respeito

( ) Foram solicitados trabalhos urgentes sem real necessidade

4. Em relação à questão “3”, caso tenha passado por algumas das situações, durante quanto tempo ocorreu?

( ) Somente uma vez

( ) Algumas vezes em período inferior a três meses

( ) Diversas vezes em período superior a três meses, e inferior a seis meses

( ) Frequentemente em período igual ou superior a seis meses

5. De acordo com sua resposta na questão “3”, qual sua atitude diante de tal fato?

( ) Não passei por nenhuma das situações

( ) Nenhuma, não fiz nada

( ) Contatei o gestor da empresa

( ) Contatei o RH da empresa

( ) Solicitei desligamento da empresa

( ) Outro:

6. Caso não tenha denunciado o ocorrido, por qual motivo não o fez?

( ) Necessidade financeira de manter o emprego

( ) Medo de comprometer a minha carreira profissional

( ) Não quis me expor frente aos colegas de trabalho

( ) Medo de represália

( ) Outro:

7. Liste abaixo quais os sintomas você percebeu sentir após passar pelas situações citadas na questão “3”: (Nesta, poderá marcar mais de uma opção).

( ) Nenhum sintoma

( ) Dores de cabeça

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( ) Impotência (apatia)

( ) Depressão

( ) Estresse

( ) Atitudes agressivas

( ) Culpa

( ) Humilhação

( ) Ansiedade

( ) Raiva

( ) Medo

( ) Vergonha

8. Como você considera sua postura diante da autoridade?

( ) Respeito

( ) Amor/ódio

( ) Desinteresse

( ) Cortesia

9. Que estilo de liderança você considera o ideal em um ambiente organizacional?

( ) Hierarquia

( ) Consenso

( ) Competência

( ) Coletivismo

10. Assinale a opção com as características quais você mais se identifica:

( ) Prático e dedicado

( ) Otimista e focado

( ) Cético e equilibrado

( ) Esperançoso e decidido

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RESUMO

Este artigo visa apresentar os resultados de uma pesquisa realizada com 139 trabalhadores da Geração Y, abordando o tema assédio moral no ambiente profissional e seus efeitos psicológicos. Apesar de o assédio moral não ser uma prática recente, o seu estudo teve grande ascensão nestes últimos anos, porém mesmo assim, poucos trabalhos sobre o assédio moral na Geração Y são encontrados. Para obtenção dos dados, adotou-se a aplicação de questionários com questões fechadas, possibilitando um espaço em cada questão para que o entrevistado pudesse falar livremente caso sua resposta não se encaixasse nas alternativas apresentadas. Para delimitar a amostra, dois principais critérios foram estabelecidos: ter idade mínima de 18 anos e estar atuante no mercado de trabalho. Os entrevistados são trabalhadores, com vínculo empregatício formal (carteira assinada) e informal (sem carteira assinada), porém a pesquisa foi realizada fora do ambiente de trabalho, obtendo um caráter mais informal e, sem a pressão exercida do local.

Palavras-chave: Assédio moral. Geração Y. Efeitos psicológicos.

EFEITOS PSICOLÓGICOS DO ASSÉDIO MORAL NA GERAÇÃO Y

Allan Lazaro Santos Quintiliano*Dori Luiz Tibre Santos**

* Aluno do 3° ano de Psicologia da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Mestre em Educação (UFPR). Psicólogo. Professor da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

O assédio moral é um assunto pesquisado há, aproximadamente, 25 anos (SOBOLL, 2008), e nos últimos tempos vem sendo amplamente divulgado e discutido a partir de alguns estudos já realizados, palestras e movimentos sindicais. Com isso, é possível verificar o quanto esse tema vem ganhando espaço no cenário organizacional.

O uso do termo assédio moral é bastante comum, remetendo ao sujeito pensar em comportamentos abusivos praticados por chefes contra seus subordinados. Essa ideia não está totalmente errada, mas o assédio moral não é apenas isso, é muito mais amplo, ocorrendo em diversos ambientes. Entretanto, pretende-se, neste artigo, observar apenas o assédio moral no ambiente organizacional, pois esse fenômeno tem sido bastante frequente no meio profissional. As suas razões são as mais variadas, porém destacam-se, aqui, aquelas que ocorrerem devido às pressões do mercado de trabalho.

Muitos trabalhadores podem estar sofrendo esse tipo de abuso em sua jornada laboral e não se dão conta disso. A violência moral, segundo Hirigoyen (2011), é silenciosa e acontece com bastante frequência nas relações interpessoais. Percebe-se no aspecto profissional que muitas empresas possuem código de ética, mas estimulam a violência dentro de suas próprias estruturas (HELOANI, 2004).

Essas relações perversas (HIRIGOYEN, 2011) que se estabelecem no ambiente organizacional atingem diversas faixas etárias, inclusive a Geração Y. Esse grupo citado foi o escolhido para ser pesquisado. Dele, observaram-se quais são os efeitos psicológicos do assédio moral, pois segundo Dejours (1995), as pesquisas realizadas pela psicopatologia do trabalho revelam que o equilíbrio psíquico e a saúde mental do indivíduo são afetados pelas pressões originadas pela organização do trabalho.

1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Sobre o tema apresentado é possível encontrar autores consagrados como Marie France Hirigoyen, que ajudaram a difundir o estudo do assédio moral no mundo. As obras de Hirigoyen abriram caminhos para pesquisas sobre a violência no ambiente de trabalho, para a criação de leis e, principalmente, para este projeto, o olhar psicopatológico dessa prática.

A escolha de Marie France Hirigoyen como norteadora proporciona apoiar os objetivos estabelecidos. É importante relatar que em nenhum momento houve pretensão em desabonar outras teorias sobre o fenômeno do assédio moral, mas houve concordância dos idealizadores deste artigo sobre o olhar que essa teórica estabelece a respeito da violência moral.

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Nos tópicos seguintes se fará a exposição da teoria sobre o assédio moral como uma violência perversa do cotidiano e seus efeitos psicológicos, de acordo com Hirigoyen (2011). Mas antes desse aprofundamento, será apresentado o conceito de assédio moral, suas variações de nomenclatura e suas características. Logo após, será apresentado um tópico sobre o conceito de Geração Y e suas relações com o assédio moral.

2 CARACTERIZAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL

Como um dos objetivos desta pesquisa com a Geração Y, a caracterização do assédio moral é de suma importância para a compreensão da violência no ambiente de trabalho. Tendo compreensão da violência, é possível identificar atitudes que sejam abusivas e também desconsiderar situações que não caracterizam o assédio moral. As existências de várias definições sobre o tema dificultam ainda mais a sua caracterização e, consequentemente, o combate a esse comportamento hostil.

Segundo Soboll (2008), ainda que pesquisado há mais de 25 anos no mundo, aqui no Brasil o assédio moral desenvolveu-se a partir do ano 2000 como objeto de estudo e de intervenção profissional, sendo ainda envolto de imprecisões conceituais e metodológicas. Para a autora, essa imprecisão está relacionada à diferente formação e época em que cada autor vive. Termos como mobbing, dado pelo médico Heinemann a partir da etimologia de Konrad Lorenz, é usado para descrever uma conduta de um grupo de crianças contra um menino. Leymann também se utilizou desse termo, mas aplicando ao ambiente de trabalho para um grupo que ataca psicologicamente de maneira contínua um trabalhador, a fim de destruí-lo. Como também o termo bullying, pouco utilizado sendo mais comum no ambiente escolar, e muitas vezes envolvendo agressões físicas, além da psicológica.

Tendo em vista o assédio moral no contexto brasileiro, buscou-se neste artigo identificar o termo mais adequado para descrever a violência psicológica no trabalho. Para isso, foram analisadas obras como a de Marie France Hirigoyen (2011), Margarida Barreto (2006) Lis Andrea Pereira Soboll (2008) e Anastácio Ovejero Bernal (2010), além de muitos artigos e dissertações sobre o tema.

Será utilizado, então, o termo assédio moral (além de representar todos os outros termos, pois sua diferença é apenas teórica, a palavra assédio moral também indica insistência, o que caracteriza o assédio moral segundo a opinião neste estudo). Considerando essa nomenclatura, podemos dizer que segundo Hirigoyen (2011, 67.) assédio moral é:

Toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo por comportamentos,

palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade, ou

à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar

o ambiente de trabalho.

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Ovejero Bernal (2006, p.174.) defende que:

A definição mais aceita hoje em dia é a utilizada pela legislação Sueca, que foi elaborada pela AFS (Agência Sueca para a melhoria do ambiente laboral), em 1993, em que descreve o fenômeno como uma série de ações recorrentes, censuráveis ou claramente negativas, que são dirigidas contra empregados específicos, de maneira ofensiva, e que podem ter como consequências à marginalização desses empregados da comunidade de trabalho.

No conceito apresentado acima, são mencionados características específicas do assédio moral. Para facilitar essa tarefa, Rezende (2008), advogado trabalhista, mestre em Direito do trabalho, estabelece algumas especificidades ou critérios que são necessários para essa definição. Esses critérios apresentados pelo autor auxiliam na dificuldade que o jurídico tem em estabelecer o que é assédio moral. Ao todo, são quatro critérios apresentados, que serão adotados como parâmetros neste artigo.

O primeiro é a habitualidade. Apesar de não haver um consenso entre os estudiosos sobre a periodicidade, a maioria deles estabelece que o assédio moral deva ser frequente e também apresentar um tempo mínimo de ataques. Como relata Rezende (2008), alguns estabelecem um tempo de 12 meses, e outros de até 3 anos e 4 meses, mas o importante é que haja um repetição do fenômeno, como a própria palavra assédio em sua língua pátria designa: insistência.

Para a pesquisa deste artigo, foi estabelecido o critério de periodicidade de Leymann (1996):

[...] fenômeno no qual uma pessoa ou grupo de pessoas exerce violência psicológica extrema, de forma sistemática e recorrente e durante um tempo prolongado – por mais de seis meses e que os ataques se repitam numa frequência média de duas vezes na semana – sobre outra pessoa no local de trabalho, com a finalidade de destruir as redes de comunicação da vítima ou vítimas, destruir sua reputação, perturbar a execução de seu trabalho e conseguir finalmente que essa pessoa ou pessoas acabe abandonando o local de trabalho (LEYMANN apud GUIMARÃES; RIMOLI, 2006, p.3).

O segundo ponto é o local em que ocorre o assédio. Embora pareça óbvio, dado o contexto em que está se tratando o tema, Rezende (2008) destaca que os indivíduos devem pertencer ao mesmo organismo empresarial e que sejam dependentes da empresa, mesmo que de forma indireta, incluindo temporários, terceirizados e prestadores de serviços sem vinculação direta com o organismo.

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O penúltimo ponto indica a violência psicológica. O assediador tem de apresentar um comportamento que ataque o psicológico de seu alvo, ou seja, condutas como gritos, insultos, repreensões, humilhações em público, entre outros. Rezende (2008) enfatiza que qualquer conduta que produza desconforto psicológico também pode ser incluída, desde que seja grave de um padrão objetivo, ou seja, caso não ultrapasse o limite normal não será considerado como violência psicológica. Contando com isso, esse critério não deve ser considerado isoladamente dos outros para caracterização, pois existem situações em que não será possível verificar a violência psicológica.

No quarto e último critério, o autor propõe a intenção do assediador em causar prejuízo psicológico e moral ao assediado. Nesse ponto, as opiniões sobre o tema são uníssonas. Segundo Rezende (2008), as omissões, a criação de condições que propiciem a humilhação e sua submissão a uma série de disposições abusivas também precisam ser consideradas.

Foram definidos até agora os critérios do assédio moral, mas também se faz necessário uma definição clara do público que foi pesquisado: a Geração Y.

3 A GERAÇÃO Y

Recentemente estudada, a Geração Y cresceu em um momento de grande avanço tecnológico e econômico, sendo formada pelos jovens nascidos de 1984 a 1990. Existem outras variações referentes ao período de nascimento determinante para classificação das gerações por diversos autores. Mas, para esta pesquisa, foram adotados como datas de referência os períodos citado por Garcia-Lombardia, Stein, Ramón (2008), do artigo Quem é a geração Y, no qual trazem informações sobre todas as gerações, porém, trata especificamente da Geração Y.

Segundo esses autores, as gerações que convivem nos tempos atuais são: Tradicionais, Baby Boomers, X e Y. Sabendo disso, destacam-se, a seguir, alguns aspectos que podem indicar situações que caracterizam o assédio moral sofrido ou partido desta geração.

3.1 O ASSÉDIO MORAL NA GERAÇÃO Y

Conforme citado anteriormente, Garcia-Lombardia, Stein, Ramón (2008) apresentam em sua pesquisa que, devido à escassez de profissionais no continente europeu, a extensão de idade dentro do mercado de trabalho está sofrendo e sofrerá ainda mais modificações. Isso corresponde tanto à entrada antecipada no mercado de trabalho como o tempo de aposentadoria.

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No Brasil, a tendência parece seguir da mesma forma, segundo dados do IBGE do último Censo realizado. A população até os 25 anos, em 2010, teve a menor representatividade no total da população, enquanto a idosa em 1991 a população idosa representava 4,8%, passando para 5,9%, no de 2000, chegando a 7,4%, em 2010. De acordo com o IBGE, esse crescimento nos últimos dez anos é decorrente do crescimento da população adulta. Com essa população adulta em crescimento, talvez se possa atribuir um menor espaço no mercado de trabalho e mais competitivo para um indivíduo pertencente à Geração Y.

Segundo Sidnei Oliveira (2012), o contexto vivido pela Geração Y favoreceu uma relação com o poder hierárquico diferente das outras gerações. Essa geração não viveu, por exemplo, os tempos de regime militar. Muitas vezes, o reconhecimento por parte do superior hierárquico que um Y deseja receber, pode torná-lo vulnerável a sofrer assédio moral (HIRIGOYEN, 2011).

Para Hirigoyen (2011), isso acontece ainda na primeira fase do assédio. Segundo a autora, o assédio moral pode ser compreendido em duas fases: a primeira de sedução do assediado; e a outra, da violência manifestada contra o mesmo. Na primeira fase o agressor percebendo que seu alvo o admira, ou tenta agradá-lo, ou tenta atraí-lo, corrompendo-o e subornando-o de forma indireta e em segredo. Porém, pode-se pensar também na situação inversa, um Y sendo o assediador. Isso pode ocorrer de várias formas, como por brincadeiras ofensivas e a exclusão de projetos Basílio (2011).

De acordo com a matéria publicada por Basílio (2011), a chegada da Geração Y nas empresas e a competitividade entre as organizações também tornam os jovens mais intolerantes em relação aos problemas no trabalho, e cada vez mais exigentes e exigidos por resultados. Muitos deles são gestores. E um dos fatores que colaboram para o assédio dentro das organizações é a impaciência desses chefes em esperar pelos resultados. A matéria ainda aponta que a relação da Geração Y com autoridade é de respeito, desde que esta demonstre competência. Por dominar o uso da tecnologia, há uma predominante inversão de papéis ao ensinar seu superior a lidar com a ferramenta. Sua postura diante da autoridade é de cortesia, havendo uma troca de informações e conhecimentos, relação bem diferente de outras gerações que lidam com uma situação de respeito e lealdade, ou até mesmo de amor e ódio. Há busca por crédito do gestor por resultados alcançados, como também busca acesso e relacionamento com as pessoas responsáveis por tomar decisões para que possa ter alguma participação (BASÍLIO, 2011).

De acordo com Hirigoyen (2011), alguns sintomas podem surgir decorrentes do assédio moral, sendo: dores de cabeça, impotência, depressão, estresse, atitudes agressivas, culpa, humilhação, ansiedade, raiva, medo e vergonha. Itens os quais serão discutidos mais adiante nos resultados.

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4 METODOLOGIA

A metodologia proposta é de caráter exploratório e qualitativo, considerando-se que a base de conhecimento da relação entre o assédio moral e os efeitos psicológicos em quem sofre esse assédio não permite, ainda, estabelecer relações de cunho mais específico. Essa investigação é de natureza qualitativa, exploratória e descritiva.

A pesquisa qualitativa, segundo Minayo (1996), trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores, atitudes, aprofundando-se no mundo dos significados das ações e relações humanas.

A investigação exploratória, para Gil (1995), permite ao investigador aumentar sua experiência em torno de determinado problema, podendo ser descritiva quando observa, registra, analisa e correlaciona fatos com os fenômenos sem manipulá-los. Como afirma Triviños (1994), os estudos descritivos pretendem descrever com exatidão os fatos e fenômenos de determinada realidade.

Para pesquisar os efeitos psicológicos do assédio moral na Geração Y, buscaram-se os métodos mais adequados.

Como afirmam Maciel e Gonçalves (2008), as pesquisas sobre assédio moral apresentam desafios metodológicos que requerem a determinação de vários parâmetros, cada um necessitando de clara definição para o aprofundamento no estudo do fenômeno. De acordo com pesquisa bibliográfica realizada pelos autores, os métodos subjetivos e objetivos apresentam vantagens e desvantagens à pesquisa sobre assédio moral. O método subjetivo valoriza o relato da vitima, avalia respostas e comportamentos específicos, possibilita saber se, de fato, a vítima foi ou não assediada e, por fim, permite explorar diferentes percepções da violência moral. Suas desvantagens são: excesso de subjetividade, dificuldade para tabulação de dados e muito tempo para coleta de dados.

Como afirmam Maciel e Gonçalves (2008), as pesquisas sobre assédio moral apresentam desafios metodológicos que requerem a determinação de vários parâmetros, cada um necessitando de clara definição para o aprofundamento no estudo do fenômeno. De acordo com pesquisa bibliográfica realizada pelos autores, os métodos subjetivos e objetivos apresentam vantagens e desvantagens à pesquisa sobre assédio moral. O método subjetivo valoriza o relato da vitima, avalia respostas e comportamentos específicos, possibilita saber se, de fato, a vítima foi ou não assediada e, por fim, permite explorar diferentes percepções da violência moral. Suas desvantagens são: excesso de subjetividade, dificuldade para tabulação de dados e muito tempo para coleta de dados.

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O método objetivo apresentado por Maciel e Gonçalves (2008) focaliza a incidência e as variáveis determinantes do assédio moral nos diversos cenários do local de trabalho, permitindo comparações entre regiões, rapidez de correções em amostras grandes. Porém, as desvantagens são: não conseguir diferenciar se os comportamentos são ou não são suportáveis pelo sujeito, e também nem todas as formas de assédio são descritas nesses instrumentos objetivos (questionário), a diferença nas taxas de prevalência pode variar de acordo com o critério de assédio adotado. Como os métodos apresentam suas limitações, os autores propõem a combinação dos métodos.

Considerando esse ultimo aspecto, adotou-se a aplicação de questionários com questões fechadas (método objetivo), possibilitando um espaço (método subjetivo) em cada questão para que o entrevistado pudesse falar livremente, caso sua resposta não se encaixasse em nenhuma alternativa apresentada.

Como dito no início desse tópico, buscou-se o método que fosse mais adequado, além disto, análises documentais e demais registros disponíveis sobre o assunto também foram consultados.

O público alvo desta pesquisa foi 139 (cento e trinta e nove) jovens da faixa etária compreendida entre 22 e 28 anos, independente de gênero e classe socioeconômica, atuantes no mercado de trabalho. Sendo considerados trabalhadores aqueles com vínculo empregatício formal (carteira assinada) e também informal (em carteira assinada); porém, a pesquisa foi realizada fora do ambiente de trabalho, obtendo um caráter mais informal e sem a pressão exercida do local.

5 RESULTADOS DOS EFEITOS PSICOLÓGICOS OBTIDOS EM PESQUISA

De acordo com o gráfico abaixo, pode-se verificar que o sintoma estresse aparece com maior referência, seguido do sintoma vergonha.

GRÁFICO 1

FONTE: Elaboração própria

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Segundo Hirigoyen (2011), o estresse que a vítima sente é consequente da tensão interior em se esforçar para não reagir diante do agressor. Dessa forma, o assediado busca acalmar o assediador, evitando aquilo que teme – a violência moral.

Conforme o gráfico abaixo, pode-se analisar quantos dos trabalhadores se consideram assediados.

GRÁFICO 2

FONTE: Elaboração própria

Apenas 7% dos entrevistados vivenciaram uma situação de assédio moral. O gráfico também nos mostra que 34% dos entrevistados se consideram assediados, mas nem todos configuram uma circunstância de assédio moral. Segundo Hirigoyen (2011), isso acontece por haver uma banalização do assédio moral, causada por uma sociedade laxista, ou seja, permissiva e de valores morais demasiadamente relaxados.

O próximo gráfico, trata da frequência com que o assédio ocorre. Como um dos principais critérios que caracterizam o assédio moral, a frequência é fator determinante a ser analisada para diferenciar fatos isolados de assédio moral. Apenas 17% dos entrevistados apresentaram violência frequente em período igual ou superior a seis meses.

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GRÁFICO 3

FONTE: Elaboração própria

Apesar de 34% dos entrevistados admitirem ser assediados por diversas vezes em período superior a três meses, conforme critérios aqui apresentados, esse grupo não contempla o critério de seis meses de frequência exigida para ser considerado assediado. Por outro lado, não se sabe se esse grupo pode vir a se tornar um grupo de futuros assediados.

Conforme exposto em tópicos anteriores, há muita contradição quanto a esse critério, ainda são necessários estudos que possam determinar com maior precisão quando uma pessoa foi realmente assediada.

Abaixo temos o gráfico que apresenta o gênero sexual dos assediados pesquisados.

GRÁFICO 4

FONTE: Elaboração própria

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Pode-se observar que 79% dos entrevistados são do gênero feminino, apresentando um número muito superior ao gênero masculino. Para essa discrepância, pode-se atribuir a alguns fatores que influenciam negativamente nos resultados obtidos. Um deles se refere ao número superior de entrevistados ser do gênero feminino. Outra influência pode ser relacionada ao fato de que os assediados do gênero masculino não se enquadraram na idade da Geração Y, público-alvo.

Podem-se fazer alguns apontamentos quanto ao grupo que não se considera de assediados. Falta de conhecimento sobre o fenômeno, e os sintomas apresentados por esse grupo não são percebidos como sinais de assédio moral.

Parte dos resultados apresentados comprova os estudos e conclusões sobre o tema. E, de acordo com os estudos apresentados de metodologia para assedio moral, não são satisfatórios para apurar os assediados moralmente. Há necessidade de pesquisas que auxiliem na construção desses critérios.

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RESUMO

Este artigo apresenta uma sistematização da produção acadêmica de Design sobre a temática ambiental e da área de Ciências Ambientais, tendo por objetivo a contextualização do Design com a Sustentabilidade. Para tanto, foi enquadrada uma amostra de artigos científicos das áreas estudadas nas categorias gestão, tecnologia e educação, posteriormente cruzadas com os 12 princípios da engenharia verde de Anastas e Zimmermann (2003). Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo e quantitativo do tipo exploratória descritiva. A análise dos dados coletados permitiu concluir que a principal área de pesquisa no âmbito acadêmico de design é a de Gestão, seguida de Educação e Tecnologia. Também se conclui que nem todas as temáticas suscitadas pelos 12 princípios da engenharia verde são abordadas e trabalhadas, demostrando que as questões ambientais são incorporadas no design de forma parcial.

Palavras-chave: Design. Sustentabilidade. Ciências Ambientais. Institucionalização.

INSTITUCIONALIZAÇÃO DA QUESTÃO AMBIENTAL NO BRASIL NO CONTEXTO DO DESIGN

Adriano Oliveira*Valdir Fernandes**

* Aluno do 4º ano de Desenho Industrial da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica da Fundação Araucária. E-mail: [email protected].

** Pós-Doutor em Saúde Ambiental (USP). Professor do Mestrado Interdisciplinar em Organizações e Desenvolvimento da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

Este artigo insere-se no projeto Análise e caracterização exploratória das Ciências Ambientais no Brasil, do grupo interdisciplinar de pesquisa sobre a Institucionalidade Socioambiental no Brasil. O objetivo deste estudo é o de sistematizar e destacar o papel do Design na problemática ambiental e nas discussões sobre sustentabilidade e desenvolvimento.

Delimitam-se como universo da pesquisa as produções bibliográficas e periódicos nacionais encontrados no portal de periódicos da Capes e Scielo, além de artigos publicados em periódicos disponíveis online, localizados a partir do Google acadêmico. A delimitação da amostra de análise foi definida conforme o número de trabalhos encontrados e relevância para os fins desta pesquisa.

Este estudo justifica-se na necessidade de um olhar crítico sobre a introdução da temática Sustentabilidade na produção científica de Design e no enquadramento das questões suscitadas pelos acadêmicos de Design na área de Ciências Ambientais.

1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO DESIGN COM A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA QUESTÃO AMBIENTAL NO BRASIL

A institucionalidade da questão ambiental no Brasil se dá em diferentes esferas, tais como: política, econômica, social, educacional etc., cujos estudos teóricos com enfoque em sustentabilidade são objeto de estudo das Ciências Ambientais. Essa área do conhecimento, acreditada pela Capes, difere da Ecologia e Engenharia Ambiental, sendo uma ciência naturalmente interdisciplinar.

No contexto do Design, essa institucionalização pode ser encarada como um desdobramento das questões econômicas, sociais e culturais, visto que o Design é tido como uma área do conhecimento que dialoga com diferentes saberes, como Psicologia, Semiótica, Estética, Ergonomia, Engenharia etc.

A introdução no ensino do Design no Brasil se deu com o surgimento de um curso no Instituto de Arte Contemporânea no Masp (Museu de Arte de São Paulo), em 1951 (DENIS,2000 apud LUCCA,2006). Como ainda não havia especialistas em Design nessa época, o curso foi fortemente influenciado pela Arte e Arquitetura. Somente em 1963 seria fundada a primeira escola de Design no Brasil, a ESDI (Escola de Superior de Desenho Industrial), no Rio de Janeiro.

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O Design é uma disciplina recente se comparada às profissões que a cercam em seus limites de atuação, como a Arquitetura, a Engenharia e as Artes. Mesmo a Publicidade e Propaganda, que efetua importante interface com o Design Gráfico, apresenta uma história mais sólida em termos de fixação profissional, organização de classe e reconhecimento público. (LUCCA, 2006 p. 94)

Vale lembrar que a profissão do designer ainda não é reconhecida e nem regulamentada no Brasil. Conforme lembra Lucca (2006), em decorrência disso, constata-se que o Design, a nível nacional, ainda não possui bases teóricas muito consolidadas e que a própria identidade da atividade não é significativa.

Quando o Design começa a se desenvolver no Brasil, a maioria dos problemas ambientais já estavam esboçados. Em 1968 é publicado um relatório pelo Clube de Roma intitulado Limites do Crescimento, no qual foram apontados que os recursos naturais se esgotariam no caso da continuidade do ritmo de crescimento verificado naquela época. Nos dias de hoje, o relatório é considerado controverso, uma vez que o futuro apresentado no relatório era demasiado catastrófico, e não se realizou. A principal repercussão do relatório se deu na tomada de consciência da emergência de se pensar as questões ambientais e se repensar o modelo de crescimento econômico e de consumo.

Em 1972 é realizada a Conferência de Estocolmo, onde, conforme ressalta Régis (2004), as medidas sugeridas para os problemas ambientais foram mais sensatas do que as sugeridas pelo Clube de Roma. Dentre os conceitos desenvolvidos, temos o de produção limpa, isto é, tomada de decisões de produção que não agridam o meio ambiente com a geração de resíduos.

Na mesma época, em 1971, é publicado o livro Design for the Real World, por Victor Papaneck, tido como um marco para o campo do Design. Papaneck ressalta a importância e o papel do designer no processo de preservação do meio ambiente.

A partir da segunda metade de 1980, surge uma nova corrente relacionando o design com sustentabilidade. Trata-se do Ecodesign:

é a abordagem conceitual e processual da produção que requer que todas as fases do ciclo de vida de um produto ou de um processo devem ser orientados para o objetivo de prevenção ou minimização de riscos, de curto ou longo prazo, à saúde humana e ao meio ambiente (OLIVEIRA apud RÉGIS, 2004, p.10)

Tanto o termo como os princípios tratados por essa abordagem são definidos com algumas variações pelos diversos autores que tratam do assunto, ora aparece com Design for Environment (DfE), ora como Análise do Ciclo de Vida (ACV), mas, em linhas gerais, trata-se do mesmo princípio, conforme esclarece Chaves (2009). A aplicação de tal conceito por empresas nacionais parece ser insipiente, conforme sugere a análise da pesquisa de Alperestedt, Quintella e Souza (2010).

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Em uma pesquisa referente às estratégias de gestão ambiental adotadas por 88 empresas de médio e grande porte, constatou-se que a prática de gestão ambiental mais adotada é a reciclagem, e que o emprego do Ecodesign figura entre as últimas opções, ficando à frente somente do uso da logística reversa e do mercado de créditos de carbono (MCC).

1.1 O SURGIMENTO DA PROBLEMÁTICA AMBIENTAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO DESIGN

Os danos para o meio ambiente, consequência da produção industrial, foram sentidos logo nos primórdios da Revolução Industrial. Mas de início não houve nenhuma iniciativa por parte dos designers de criar projetos para produtos que reduzissem os impactos ambientais.

A primeira manifestação contra o modelo de produção vigente se deu na segunda metade do século XIX, com movimento utópico de William Morris (1834-1896) chamado Arts & Crafts. Esse movimento pretendia resgatar o valor do ofício dos artesãos, buscando eliminar a distinção entre arte e artesanato. Com uma produção artesanal de alta qualidade, norteada por princípios de design, pretendia-se superar a produção mecanizada e de massa.

Na atualidade, uma das principais questões de preocupação do design está no ciclo de vida do produto (CVP). “O ciclo de vida de um produto é um conceito (ou modelo) que descreve a evolução de um produto ou serviço no mercado” (KAZAZIAN, 2005, p.188). Se no surgimento da área o designer apenas se preocupava com a produção e lançamento do produto no mercado, com a introdução do conceito de CVP, é tarefa do designer se preocupar com o produto desde a extração da matéria-prima que o compõe até o descarte do mesmo feito pelo usuário.

Nesse sentido, uma mudança na visão do CVP foi possível conforme uma visão de mundo sistêmica. Conforme critica Capra (1982), essa visão se opõe a um paradigma mecanicista e reducionista sintetizado no cartesianismo. A visão do CVP é linear, racional e previsível. Na nova visão de mundo apontada por Capra, o sistema é apresentado de forma sistêmica, complexa e interdependente.

Mesmo sendo utilizado de forma mercadológica, o ciclo de vida do produto utilizado de forma sistêmica leva muito mais variáveis em consideração, tornando-se uma importante ferramenta de gestão para analisar a utilização de matéria-prima e energia que entram e saem do sistema. Essas medidas se mostram fundamentais, uma vez que tanto energia como matéria-prima estão se tornando escassas e caracterizam alguns dos principais problemas a ser enfrentados pelos designers e pela sociedade.

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Além dessas questões, esse tipo de pensamento tende a levar em consideração as necessidades reais dos consumidores, diferindo de quando se leva em consideração unicamente as necessidades do mercado e da economia, que são de crescimento ilimitado.

No modelo linear, atitudes como a obsolescência programada, a obsolescência percebida pela moda e o incentivo contínuo ao consumismo desenfreado tornam-se compatíveis e até aceitáveis; mas quando se analisa o problema de um ponto de vista sistêmico, pode-se chegar a conclusão de que o mal gerado pelo sistema não compensa seus benefícios. Uma crítica a esse modelo pode ser estabelecido no seguinte enunciado: há privatização dos lucros e socialização dos prejuízos.

Outro aspecto que passa a ser considerado a partir dessa perspectiva é a de que existe outro ciclo de vida do produto, o ciclo de vida natural. Cada produto é feito a partir de uma matéria-prima extraída da natureza e que muitas vezes não é renovável. Sem levar esse fator em consideração, corre-se o risco de cair em uma atitude predatória do meio ambiente, a partir da qual não se respeita a resiliência da natureza, levando ao esgotamento dos recursos naturais.

Algumas das respostas dadas pelos designers à problemática ambiental podem ser ilustradas pela produção do designer Chistian Ullmann e dos irmãos Campana. A produção desses designers se destaca pela escolha de materiais alternativos para compor seus projetos, exemplificadas nas famosas Cadeira Favela e Poltrona Homeless (Figuras 3 e 4).

FIGURA 3: Cadeira Favela FIGURA 4 – Poltrona Homeless de Christian Ulman

FONTE: Flor de Casa (online) FONTE: Delas Casa (online)

Tais produtos nasceram do conceito dos 3R’s: reduzir, reutilizar e reciclar. Posteriormente, o conceito evoluiu para 5R’s: repensar, reduzir, reutilizar, reaproveitar e reciclar. Essas medidas nasceram da preocupação com a escassez de matérias-primas, reciclagem e reaproveitamentos das sobras de produção que se tornariam lixo.

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2 METODOLOGIA

Esta pesquisa tem característica exploratória descritiva do tipo qualitativa. Como primeira etapa da coleta de dados, fez-se uma leitura de reconhecimento das obras relacionadas ao tema em estudo com posterior análise crítica desses dados.

A coleta de dados foi realizada via internet, a amostra foi extraída do portal de periódicos Scielo e do portal Scholar Google, por meio de palavras-chave. Após a coleta de dados, foi efetuado o cruzamento das temáticas dos periódicos de design com os periódicos de Ciências Ambientais, disponíveis no Qualis vinculado à Capes na área de Engenharias I.

Como modelo de análise, utilizam-se os 12 princípios da Engenharia Verde de Paul T. Anastas e Julie B. Zimmermann, a saber:

1) Inerente ao invés de circunstancial: garantir que todo material que entra ou sai do processo produtivo seja inerentemente não perigoso.

2) Prevenção ao invés de tratamento: é melhor prevenir o desperdício de materiais e a geração de resíduos do que buscar alternativas para limpar o lixo depois de formado.

3) Design para a separação: considerando-se as propriedades físico-químicas intrínsecas dos materiais, facilita-se e se barateia a separação e purificação deles.

4) Maximizar a eficiência de massa, energia, espaço e tempo: eliminação do desperdício não somente de materiais, mas de espaço, tempo e energia em todo o ciclo de vida de produtos e projetos.

5) “Puxar as saídas” contra “empurrar as entradas”: minimizar a quantidade de recursos, materiais e energéticos, para transformar entradas em saídas desejadas.

6) Conservar a complexidade: seria contraprodutivo reciclar substâncias altamente complexas, enquanto substâncias de complexidade mínima favorecem a reciclagem.

7) Durabilidade ao invés de imortalidade: produtos não devem ter duração além de sua vida útil comercial. O tempo de vida de um produto deve ser projetado de tal forma que evite a imortalidade de materiais indesejados no meio ambiente.

8) Realizar o necessário, minimizar excessos: o design com capacidade desnecessária deve ser considerado como falha de projeto, uma vez que os custos de material e energia de sobredesign e capacidade não usável podem ser altos.

9) Minimizar diversidade de material: reduzir a diversidade de materiais determina a facilidade de desmontagem para reuso e reciclagem.

10) Integrar matéria local e fluxo de energia: ao se aproveitar energia e fluxo de materiais existentes, a necessidade de gerar e/ou adquirir e processar matéria-prima é minimizada. (ANASTAS; ZIMMERMANN, 2003, p. 17).

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11) Design para um fim comercial “após a vida útil”: reduzir o desperdício de componentes que permanecem funcionais a partir de seu reuso.

12) Renovar ao invés de esgotar: entradas de materiais e energia devem ser renováveis ao invés de depredatórios (ANASTAS; ZIMMERMANN, 2003, p. 4).

Os artigos de design foram analisados com base nos princípios listados acima. Buscou-se classificá-los por meio da leitura dos resumos e das palavras-chave nos diferentes princípios propostos pelos autores. Os dados coletados também foram classificados nas categorias Gestão, Tecnologia e Educação e, posteriormente, cruzados para verificação da incidência dos 12 princípios por categoria.

3 RESULTADOS DA PESQUISA

Da pesquisa preliminar foram consideradas na busca 21 palavras-chave listadas a seguir: Água; Ambiental; Ambiente; Avaliação; Conservação; Consulta; Desenvolvimento Sustentável; Ecodesenvolvimento; Educação; Gestão; Manejo; Meio Ambiente; Natural; Natureza; Poluição; Recursos Naturais; Saneamento Ambiental; Sócio Ambiental; Sustentabilidade.

A partir da análise dos artigos listados na área de Engenharias I do catálogo Qualis da Capes foram encontrados dez periódicos de Ciências Ambientais com as seguintes palavras-chave: Água; Ambiental; Ambiente; Conservação; Desenvolvimento Sustentável; Educação; Gestão; Meio Ambiente; Natureza e Saneamento Ambiental.

Os artigos foram analisados e classificados em três grupos, a saber: Gestão, Tecnologia e Educação, conforme a leitura e análise de palavras-chave e resumos.

Do total de artigos analisados, 95 pertencem à área de Gestão; 26 de Educação; 76 de Tecnologia; e 4 foram classificados como Gestão/Tecnologia. Portanto, houve equilíbrio entre artigos de gestão e tecnologia.

Em relação aos artigos de design pesquisados, do total de 201 artigos foram encontrados 60 relacionados ao design; 35 pertencentes à área de Gestão; 15 de Educação; 9 de Tecnologia; e 1 classificado como Gestão/Educação.

Comparando com o modelo de análise baseado nos 12 princípios do design, que são: 1 – Inerente ao invés de circunstancial; 2 – Prevenção ao invés de tratamento; 3 – Design para a separação; 4 – Maximizar a eficiência de massa, energia, espaço e tempo; 5 – “Puxar as saídas” contra “empurrar as entradas”; 6 – Conservar a complexidade; 7 – Durabilidade ao invés de imortalidade; 8 – Realizar o necessário, minimizar excessos; 9 – Minimizar diversidade de material; 10 – Interar matéria local e fluxo de energia; 11 – Design para um fim comercial “após a vida útil”; 12 – Renovar ao invés de esgotar, infere-

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se que a questão permeia, ainda que de forma tímida, aspectos do design, tais como o reaproveitamento de materiais, a utilização de materiais alternativos, redução do número de componentes e matérias-primas nos produtos, otimização do processo de produção, reinserção de produtos no mercado, inclusão social, e exploração de novas tecnologias.

TABELA 1 – Cruzamento dos 12 princípios por categoriasCategoria P P P P P P P P P P P P

Princípio 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

GESTÃO X X X X X X X X X

TECNOLOGIA X X X

EDUCAÇÃO X X X X

FONTE: Elaboração própria

CONCLUSÃO

Com o surgimento da revolução e do design de produtos, surgiram inúmeros problemas causadores de danos ao meio ambiente, como escassez de matérias-primas e de recursos energéticos. A preocupação com o futuro da humanidade e do Planeta nos leva a inúmeras abordagens. Pode-se constatar que no âmbito acadêmico destacam-se os artigos científicos voltados à área de Gestão.

A disciplina de design é relativamente nova no Brasil, não possuindo um arcabouço teórico tão profundo quanto às disciplinas mais tradicionais, como as Engenharias. É possível que esse fator influa diretamente na diversificação das temáticas estudadas e na profundidade com que os assuntos são tratados.

Conforme esclarecem os autores Paul Anastas e Julie Zimmermann (2003), inúmeros artigos e conferências vêm sendo realizadas acerca da temática ambiental com vistas a reduzir os impactos ambientais causados pela ação do homem no meio ambiente. Mesmo com a emergência de uma mudança de mentalidade, tanto de produção quanto de consumo, muitas das medidas estudadas, adotadas por empresas e discutidas no meio acadêmico parecem não dar conta da complexidade da questão. Conclui-se que isso acontece pela falta de integração e consideração da interdependência entre as temáticas abordadas.

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RESUMO

Este trabalho objetiva analisar a relação primária do homem em deixar uma marca em seu espaço vivido e a sua relação com esse espaço dentro de um ambiente virtual, potencializando o uso de canais de comunicação, como o Foursquare, que pode ser utilizado via dispositivo móvel convergente com acesso à internet, para observar a expressão dos sujeitos sobre a capital paranaense, Curitiba, por meio do ciberespaço. Entre alguns objetivos específicos, buscou-se explorar o celular, o smartphone e o tablet como canais de comunicação públicos; privilegiar o local de Curitiba como foco do estudo; analisar a rede social Foursquare em um estudo de caso; produzir pesquisa bibliográfica sobre convergência midiática, tecnologia móvel, entre outros. Percebe-se que os sujeitos fazem uso de redes sociais para expressar suas impressões sobre o espaço vivido, deixando suas marcas para a posteridade.

Palavras-chave: Foursquare. Espaço urbano. Ciberespaço. Curitiba. Convergência midiática. Cotidiano. Dispositivos móveis convergentes. Mobilidade.

O ESPAÇO É UM LUGAR PRATICADO: O FOURSQUARE E OS OLHARES DOS SUJEITOS SOBRE A CIDADE DE CURITIBA

Henrique Hegenberg*

Annelore Spieker de Oliveira Finger**

* Aluno do 3º ano de Publicidade e Propaganda da FAE Centro Universitário. Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2011-2012) da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

** Mestre em Cominucação e Informação (UFRGS). Professor da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

Uma cidade também é vivida por meio de tecnologias informacionais digitais. Essa característica modifica a forma que os sujeitos vivem e habitam o espaço urbano. Conforme Lemos (2003b, p. 2): “a cidadania, o exercício social na urbis, passa hoje por esse sentimento de conexão generalizada. Esta é que caracteriza as cidades contemporâneas pela nova dinâmica instaurada pelas redes telemáticas”. Os sujeitos podem manifestar suas opiniões por novas redes de comunicação, que, até então, não existiam, exercendo mais o seu papel como cidadão e cidadã.

Para este trabalho, pretendeu-se resgatar o estabelecimento das relações humanas por meio de novas tecnologias de comunicação móveis, como um possível facilitador para os sujeitos se comunicarem em qualquer lugar e momento, pois – além da mobilidade – esses dispositivos incorporam elementos de outros aparatos tecnológicos: internet, chats, mensagens de texto e de voz, câmera digital (fotográfica e de vídeo), rádio, televisão, além da comunicação via telefonia.

Tão paradoxal quanto a nova era da informação, via tecnologias de transmissão de dados por meio de dispositivos móveis, é o presente em que vivemos. E, talvez, mais controverso ainda seja o futuro que nos aguarda ao pensarmos sobre o cenário social e cultural que as novas tecnologias de comunicação, juntamente com a ação do homem, poderão moldar. Trazer à luz um momento tão distinto e contraditório como o presente implica refletir sobre quão complexa é a relação homem/máquina e quais mudanças a partir desta se configuram.

Com este trabalho, tem-se a intenção de analisar, dentro de um ambiente virtual, o uso de canais de comunicação como o Foursquare, que pode ser utilizado via dispositivo móvel convergente com acesso à internet, para observar a expressão dos sujeitos sobre a capital paranaense, Curitiba, por meio do ciberespaço.

Para atingir esse objetivo, foram perseguidos os seguintes passos específicos: implementar o projeto no empírico; explorar o celular, o smartphone e o tablet como canais de comunicação públicos; privilegiar o local de Curitiba como foco do estudo; estudar a rede social Foursquare; produzir pesquisa bibliográfica sobre convergência midiática, tecnologia móvel, entre outros; analisar o material coletado para, finalmente, tecer considerações sobre a pesquisa.

Partindo da premissa de que pensar sobre tecnologia é também considerar os impactos na vida humana que dela provêm, pretendeu-se discorrer sobre as mudanças na sociabilidade e na cultura que as novas tecnologias móveis podem causar. A autora deste trabalho tem como formação superior o curso de Publicidade e Propaganda. Acredita que

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sua formação auxiliou a busca por perceber transformações socioculturais que poderão acarretar modificações nos hábitos de vida e, por consequência, no consumo. Inclusive, crê-se na possibilidade de mudanças nos padrões socioculturais que resultam em produtos comerciais, assim como do uso de produtos que transformam hábitos, valores e rotinas de vida na sociedade. Ainda, acredita-se que o consumo pode auxiliar, tanto para quem consome quanto para quem analisa o consumo, a refletir sobre a contemporaneidade.

Para a coleta de dados, utilizaram-se os métodos fenomenológico, pesquisa qualitativa, exploratória, bibliográfica e estudo de caso, buscando-se, assim, o estudo da produção e do consumo de informações geradas por ferramentas de georeferenciação na cidade de Curitiba. O objeto de estudo escolhido para esta pesquisa é a rede social georeferenciada Foursquare.

1 CONVERGÊNCIA DAS MÍDIAS: DO TELÉGRAFO AOS DISPOSITIVOS MÓVEIS

Para dar início ao estudo desta pesquisa, inicia-se a discussão resgatando-se historicamente a evolução da comunicação a distância. Para isso, faz-se uma retrospectiva dos media a partir do advento do telégrafo1. Da mesma forma, recupera-se o desenvolvimento do telefone para, então, discutir aparelhos móveis convergentes, como os smartphones e tablets. Pretende-se, com essas argumentações, refletir sobre as modificações culturais que essas transformações tecnológicas incidiram nos grupos sociais. Assim, dá-se a partida na investigação sobre a relação entre o uso cotidiano de dispositivos móveis convergentes e as rotinas de vida dos sujeitos na contemporaneidade.

O termo “convergência” pode ser entendido por diversos escopos, tais como introdução de novos sistemas de comunicação, união de duas ou mais ferramentas em um novo aparelho ou em adaptação a algum já existente. Para este trabalho, tomou-se a convergência dos meios de comunicação no seu sentido social e cultural, em decorrência de transformações políticas e econômicas dos sistemas culturais nos quais ocorreram.

Dispositivos como os smartphones e os tablets podem agregar web, computador pessoal, MP3 player, câmeras digitais, televisão e, pelo fato de utilizarem linguagem

1 O telégrafo permitia a transmissão de dados por meio de ondas eletromagnéticas. Há diversos cientistas associados ao desenvolvimento e à pesquisa nessa área, mas se deve a um pesquisador a invenção de um dos códigos mais usado e famoso do mundo, o Morse. Criado em 1838 por Samuel Finley Breese Morse, esse sistema foi largamente utilizado pelas forças armadas, principalmente, pelo exército e pela marinha para a transmissão de informações a longas distâncias.

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numérica (digital), com o uso da rede, acessam e-mails, sites, rádios, vídeos, games, softwares, jornais, revistas e MSN. Percebe-se, por meio do uso desses aparelhos, que os sujeitos carregam consigo informações e documentos antes estanques a lugares fixos, como o desktop. Com esses dispositivos móveis convergentes, une-se à web uma espécie de minicomputador. É possível não somente carregar informações a qualquer lugar, mas acessar, executar, editar, enviar, receber e falar.

Para refletir sobre algumas mudanças culturais no processo de evolução dos meios de comunicação, serão abordadas aqui algumas ideias dos autores Santaella (2003) e Matuck (1995). Até o século XIX, a cultura ocidental era polarizada em duas categorias: cultura de elite e cultura popular. A cultura de elite, representada pela literatura, por concertos, óperas e festas da alta sociedade, era contraposta à criação popular de artesanatos, cantigas, danças folclóricas, vestes e rituais específicos daquela cultura. Porém, segundo Matuck (1995, p. 20), “o sistema de teledifusão de massa determinava uma homogeneização do pensamento e da ação, produzindo um público consumidor adaptado às exigências de uma sociedade industrializada em crescente expansão”. Essa observação do autor se refere ao período pós Segunda Guerra Mundial, ou seja, na metade do século XX.

Para o autor, os conhecimentos adquiridos durante esse período bélico – e inclui aqui aprimoramento dos sistemas de propaganda (o nazismo constituiu uma base sólida nesse quesito), assim como as pesquisas sobre comportamento do consumidor e explicações científicas sobre a mente humana – começavam a ser utilizados, nos EUA, para fins eleitorais (pesquisas de opinião) e publicidade.

A partir do período pós-guerra (anos 1950 e 1960), o campo da comunicação vai se consolidar como uma área de investigação reconhecida. Disciplinas como o jornalismo, as relações públicas e a educação buscam nesses estudos apropriação de saberes sobre o homem e seus comportamentos.

Com o desenvolvimento das culturas de massas, por meios de comunicação como o jornal, a revista, o rádio, o cinema e a fotografia, e, posteriormente, a televisão, gerou-se uma impactante mudança no cenário, antes bipolarizado, entre as culturas de elite e as populares. A cultura de massas tendeu a dissolver as fronteiras que separavam a erudição do ordinário. “Disso resultam cruzamentos culturais em que o tradicional e o moderno, o artesanal e o industrial mesclam-se em tecidos híbridos e voláteis próprios das culturas urbanas” (SANTAELLA, 2003, p. 52), o que levou a uma indistinção, já no século XX, entre essas culturas, tendo os anos 1980 como o seu auge. Essa foi uma década em que a tecnologia para o consumo popular se desenvolveu rapidamente, lançando no mercado videocassetes, videoclipes, controles remotos, videogames, televisão com sistemas de transmissão por cabo e satélite, “[...] ou seja, tecnologias para demandas simbólicas heterogêneas, fugazes e mais personalizadas” (SANTAELLA, 2003, p. 52).

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Com a segmentação midiática, a opção pelo que se deseja consumir se tornou possível. Um dos conceitos de convergência que Santaella (2003) argumenta se refere ao fluxo de comunicação que os produtos midiáticos percorrem pelos meios de comunicação. Para a autora, se um sujeito assiste a um show na televisão, pode comprar o CD ou o DVD, à venda nas lojas. Ocorre de forma similar com filmes baseados em livros que viram sucesso de bilheteria e, logo depois, despontam as suas vendas nas livrarias. “Nesse ponto, a hegemonia da cultura de massas, até então inquestionável, foi posta em crise junto com a invasão, que já se anunciava, da informatização, penetrando em todas as esferas da vida social, econômica e da vida privada” (SANTAELLA, 2003, p. 53).

Acredita-se que novas linguagens surgirão com o desenvolvimento dos smartphones e dos tablets, o que não significa anular ou aniquilar a existência das mídias que lhes antecederam2. “A tendência que se pode prever é das novas alianças, como aquela que se anuncia da TV digital, interativa com o computador e as redes telemáticas” (SANTAELLA, 2003, p. 57).

É interessante observar que as tecnologias digitais adaptam-se ao uso que os sujeitos fazem desses dispositivos. Novas linguagens surgem do hibridismo midiático entre os meios de comunicação. Misturam-se gêneros e formas de produtos culturais que, antes, somente era possível aplicar em lugares estanques e bem definidos. E não apenas os sujeitos auxiliam a moldar as novas formas tecnológicas, o desenvolvimento de dispositivos digitais permitiu que o mercado também se expandisse, criando novas formas de consumir a cultura que circula na mídia. “No cerne dessa revolução está a possibilidade aberta pelo computador de converter toda informação – texto, imagem, vídeo – em uma mesma linguagem universal” (SANTAELLA, 2003, p. 59). A web e os smartphones (assim como os tablets) facilitam a convergência das mídias porque a linguagem digital padroniza os dados que são transmitidos e produzidos no mundo. Assim, qualquer mídia pode ser editada, organizada, arquivada, enviada, recebida e distribuída com a digitalização das mídias, levando à sua concentração em um único suporte: o numérico, do código binário digital.

Para Castells (2005, p. 67), “[...] no final do século XX vivemos um desses raros intervalos na história. Um intervalo cuja característica é a transformação de nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação”. O autor argumenta que o desenvolvimento tecnológico, além de ser caracterizado pela convergência e, assim, estar capacitado à reprodução digital, também se distingue pela interação em distintos campos, como a biologia, a eletrônica e a informática.

2 Aqui se ressalta o uso desses equipamentos porque o objeto de estudo desta pesquisa, o Foursquare, é uma rede social georeferenciada que só pode ser acionada por meio desses dispositivos móveis.

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Escreve que os avanços tecnológicos dessas áreas permitiram uma maior troca e acesso a informações que anteriormente apenas circulavam dentro do seu campo de atuação. O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimento e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso (CASTELLS, 2005).

Um exemplo dado pelo autor é a nanotecnologia, cujo principal objetivo é encontrar um controle preciso e individual dos átomos. O desenvolvimento da nanotecnologia necessitou agrupar conhecimentos da medicina, da eletrônica, da ciência da computação, da física, da química, da biologia e da engenharia dos materiais. A nanotecnologia pesquisa e desenvolve a criação de novos materiais a partir do estudo dos átomos. Graças a ela, hoje, existem os chips, circuitos integrados, semicondutores, entre outros.

O desenvolvimento de tecnologia de informação permite adaptar os produtos existentes ao uso que se faz dos dispositivos digitais. Os produtos são pesquisados, testados e desenvolvidos para serem postos no mercado. Ao mesmo tempo em que os sujeitos consomem esses produtos, novas formas de uso e de significados são conferidas a eles. “Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo” (CASTELLS, 2005, p. 69). O uso da web ilustra bem esse momento a que chamam Santaella (2003) e Castells (2005) de “revolução”.

Desenvolvida nas últimas três décadas do século XX, a internet (web) surgiu como estratégia militar. Inicialmente batizada de ARPANET16 (rede projetada pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada – ARPA), seu objetivo era manter a comunicação entre as bases militares, de modo que a transmissão de informações não fosse cortada, caso uma guerra nuclear fosse desencadeada pela Guerra Fria, em 1969. “Com base na tecnologia de comunicação por comutação de pacotes, o sistema tornou a rede independente de centros de comandos e controle, de modo que as unidades de mensagens encontrassem suas rotas, sendo remontadas com sentido coerente em qualquer ponto do sistema” (SÁ, 2005, p. 15). Como metáfora, seria o mesmo que se um bolo fosse fatiado em dez pedaços. Cada pedaço seria levado por um caminhão diferente. Os ocupantes dos caminhões desconhecem suas cargas e os caminhões com o restante do carregamento. Todos os caminhões seguem por rotas distintas com um único objetivo em comum: chegar ao mesmo ponto. Quando atingem o destino final é que se descobrem todas as fatias que montam o bolo novamente.

Posteriormente, em 1992, a tecnologia digital atingiu um patamar de desenvolvimento superior, permitindo que informações de imagens e sons também fossem transmitidas desse

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jeito. Estudantes da Universidade de Illinois desenvolveram um software que permitiu criar a internet da forma como é conhecida hoje: a world wide web. Esse software possibilita a navegação entre redes.

O desenvolvimento da computação permitiu a criação de computadores pessoais portáteis, os laptops. O nome desse aparelho foi dado inclusive para distingui-lo do termo desktop (em cima da mesa), laptop quer dizer “em cima do colo”. Foram desenvolvidos para permitir maior liberdade de locomoção para o usuário. Esse dispositivo funciona com os mesmos aparatos, ferramentas e aplicativos que o computador pessoal. E conta, ainda, com adaptadores de redes wireless.

2 O URBANO, O COTIDIANO E AS TECNOLOGIAS DE COMUNICAÇÃO

A criatividade das pessoas se mostra de uma forma não objetiva, mas velada, sutil, silenciosa, sem, em nenhum momento, deixar de ser eficaz. As pessoas inventam seu fazer, exprimem uma maneira própria de conviver com a imposição cultural e social dos meios de comunicação de massa e com a imposição econômica dos produtos e serviços eleitos pela sociedade do espetáculo e consumo. Vivemos hoje numa sociedade mundial em que a comunicação de massa tem alcance quase totalizado no globo terrestre.

O tempo e o espaço como dimensões materializadas e tangíveis praticamente desapareceram. Vivemos a compressão do tempo-espaço, a aceleração no giro do capital, em que bens de consumo duráveis são substituídos por bens de serviços, mais adaptáveis à demanda pelo instantâneo, pelo descartável. Tempos de manipulação de desejos e gostos mediante imagens inventadas. Tempos de inversão de valores, no qual a imagem produzida se instaura como o valor máximo da sociedade pós-moderna, em que a realidade convive com o simulacro, a ponto de não serem mais diferenciados ou separados. Valores são adquiridos de forma instantânea e imagens são construídas e também destruídas da noite para o dia.

Para Certeau (1994), as pessoas inventam seu fazer, exprimem uma maneira própria de conviver com a imposição cultural e social dos meios de comunicação de massa e com a imposição econômica dos produtos e serviços eleitos pela sociedade do espetáculo e consumo. Utilizam qualquer coisa que possam encontrar no contexto em que agem para dar vida a um incessante trabalho de “fabricação” de significados pessoais. O resultado desse trabalho não são objetos concretamente visíveis nem produtos que possam ter uma colocação no mercado.

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Trata-se de reelaborações que permanecem escondidas e silenciosas, até porque são geralmente cobertas pela grande quantidade de mensagens criadas paralelamente pelo sistema da produção. Considera-se a atividade de recepção não como um processo passivo, mas como um processo ativo ao longo do qual o destinatário de toda mensagem (de consumo, midiática, urbanística), astutamente e usando tudo o que está disponível segundo a sua vontade, emancipa-se daquele papel subordinado ao qual o impelem aqueles que detêm o poder no sistema econômico. O destinatário pode, portanto, ser considerado uma espécie de viajante em movimento dentro de um espaço que é definido por outros, os quais são seus legítimos proprietários. O ato de leitura é exemplar.

Em vez da suposta passividade dos consumidores da cultura de massa, existe uma significativa criatividade que pode manifestar-se de maneira sutil, mas eficaz. Essa manifestação é potencializada com as tecnologias atuais, pelas quais os consumidores se manifestam de forma instantânea. Porém, a manifestação é resultado de toda uma bagagem de informações já recebidas e assimiladas.

Para Bauman (2003, p. 78-79), as novas tecnologias, como o celular, permitem que as pessoas circulem comunicando-se, porém, tornam as relações humanas mais superficiais. Para este projeto o que importa é a mudança no panorama social: estar em bando, individualmente, a distância.

De acordo com Thompson (1998, p. 77), com a introdução social de novos meios de comunicação, criam-se “[...] novas formas de ação e interação e novos tipos de relacionamentos sociais - formas que são bastante diferentes das que tinham prevalecido durante a maior parte da história humana”. É o que se percebe com o estabelecimento do consumo dessas novas tecnologias de comunicação digital wireless. É mais complicado distinguirmos o aqui e o lá, o agora e o daqui a pouco, o público e o privado, o real e o virtual, os papéis sociais, os lugares e os momentos de desempenhar o trabalho e o lazer.

3 CIBERCIDADES E MOBILIDADE

Para refletir sobre modificações tecnológicas e possíveis impactos socioculturais em decorrência da tecnologia, iniciaremos com o conceito sobre cibercidades. Para Lemos (2003b), a cibercidade não está apenas representada no ciberespaço por meio da internet como ferramenta de comunicação. A cibercidade é, para o autor, toda a cidade em qualquer parte do mundo que tenha infraestrutura de telecomunicações e possua à disposição de seus cidadãos tecnologias digitais. É o conjunto composto pela cidade física e pela possibilidade de usufruir de serviços por novas tecnologias, como o voto eletrônico, o banco on-line, compras por sites, educação a distância, aparelhos móveis com conexão

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wi-fi, celular, telecentros, declaração de imposto de renda on-line, páginas do governo na internet para os cidadãos entrarem em contato, entre outros.

Cibercidade é uma cidade que também é vivida por meio de tecnologias informacionais digitais. Essa característica modifica a forma que os sujeitos vivem e habitam o espaço urbano. Conforme Lemos (2003b, p.2), “a cidadania, o exercício social na urbis, passa hoje por esse sentimento de conexão generalizada. Esta é que caracteriza as cidades contemporâneas pela nova dinâmica instaurada pelas redes telemáticas”. A cibercidade é uma nova configuração do espaço urbano, redefinindo os espaços público e privado. A possibilidade, por exemplo, de acessar a conta bancária de casa ou do trabalho, após o horário bancário, ou tornar a ideia de trabalhar à beira da praia exequível, ou em locais como parques, shoppings e nas ruas, onde seja permitido conectar-se com tecnologias wireless, são características de uma cibercidade.

Pensar sobre cibercidade não significa anular a importância da cidade real e dos espaços urbanos físicos. Entretanto, refletir sobre a cibercidade implica discutir novas formas de comunicação entre os cidadãos que, somadas às tradicionais, auxiliam no fortalecimento da democracia por meio da criação de fluxos comunicacionais pelas novas tecnologias digitais aliadas às ações locais.

Posto isso, pode-se associar a evolução cronológica do próprio computador. Segundo Lemos (2005b), o PC passa, com a expansão da internet, de um artefato tecnológico individual para um “computador coletivo” e, agora, com as redes telemáticas, a “computadores coletivos móveis” (ou, como o autor denomina, “CCM”), com o desenvolvimento das tecnologias móveis como laptops, celulares, palms e smartphones. Essas transformações vêm ocorrendo de forma gradual e invisível, semelhante ao uso de óculos escuros ou de um relógio de pulso pelos sujeitos, como Pellanda (2004) argumenta. Hoje em dia, pode-se conectar um computador a um celular pela tecnologia bluetooth, por exemplo, carregando-o para qualquer lugar, modificando o cenário anterior que conectar-se apenas era possível estando em frente ao computador.

Com a introdução de tecnologias de conexão móveis, os sujeitos estão em movimento e on-line, “desta maneira junta-se através da técnica três anseios do homem da contemporaneidade: a rapidez, a eficiência de locomoção e o permanente contato com os demais membros da comunidade” (PELLANDA, 2004, p. 5). Assim, na cibercidade, os espaços urbanos e os ambientes virtuais conjugam-se num “ambiente generalizado de conexão” (LEMOS, 2005b) pelas redes de transmissão de dados para tecnologias móveis. Dessa forma, o espaço é uma dimensão que se modifica tanto quanto o tempo na pós-modernidade e na cibercultura. A mobilidade permite que os indivíduos estejam conectados a distância, criando-se redes relacionais antes limitadas. O celular, para ilustrar,

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possibilita que o sujeito esteja no trem e ao mesmo tempo falando com outras pessoas que não tenham relação direta com aquele lugar. Ou seja, a comunicação não se limita mais ao comprimento dos cabos e dos fios de telefone, pois hoje se tem transmissão de dados pelo ar, tornando possíveis pontos móveis de comunicação. Lemos (2005b, p. 3) define mobilidade “como o movimento do corpo entre espaços, entre localidades, entre espaços privados e públicos”, sendo um conjunto de novas práticas sociais que permitem a interface entre mobilidade, espaço físico e o ciberespaço.

Trata-se de uma mudança na experiência do uso e do habitar dos espaços, que cada vez mais serão configurados por tecnologias invisíveis, pervasivas e ubíquas. Além da possibilidade de conectar-se em lugares públicos e por meio de dispositivos móveis, as tecnologias digitais estão incorporando mídias que até pouco tempo atrás eram usufruídas em lugares bem definidos: rádio, televisão, internet, máquina fotográfica, entre outros, que existiam, de certa forma, em separado. Somando-se a reunião dessas mídias em um único dispositivo, tem-se na palma da mão acesso a músicas, canais de TV, banco, e-mails, software, câmeras, páginas da internet, redes sociais, podendo carregá-los para qualquer lugar.

Não somente as informações são acessadas a qualquer momento, de qualquer lugar, as pessoas podem se comunicar enquanto se deslocam estando em espaços públicos ou em espaços privados. Pessoas circulam com seus dispositivos portáteis, trabalhando no almoço, no ônibus, nas viagens, nos aeroportos, ou, o movimento contrário, indivíduos conectados com seus amigos, esposas, familiares em reuniões, almoço, em serões ou durante a rotina normal de produção.

O termo utilizado por Joshua Meyrowitz (2003) para denominar esse perfil de sujeitos em meados do século XXI é “global nomads”, ou nômades globais. Meyrowitz disserta sobre a proximidade do estilo de vida cotidiano do ocidente contemporâneo com os hábitos e modelos de comportamentos socioculturais da época ancestral dos nômades pré-históricos. Em tempos de nomadismo, os seres humanos faziam tudo em conjunto, deslocando-se em bandos para sobreviver. Pelo fato de não haver paredes ou muros que delimitassem o espaço físico de cada um, o papel que cada indivíduo exercia na sociedade também era, de certa forma, homogêneo, semelhante aos demais. Isso se refletia no modo como as crianças eram tratadas pelos adultos (elas não eram vistas como diferentes), assim como entre os gêneros: homens e mulheres caçavam e cuidavam da prole e do grupo, em conjunto.

Até mesmo em regiões nas quais não havia acesso a tecnologia de comunicação alguma, hoje, com o desenvolvimento do wireless (comunicação sem fio), principalmente por celulares digitais, as fronteiras estão ficando mais estreitas, as distâncias, mais curtas.

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Meyrowitz chama a atenção para que pensemos sobre as modificações e os impactos que esse novo tipo de comunicação está causando nos indivíduos e no ambiente. “Como as fronteiras se tornaram mais porosas, mais permeáveis, mais transparentes, não estamos sofrendo simplesmente uma homogeneização. Estamos experimentando ambas novas formas de fusão e novas formas de desintegração” (MEYROWITZ, 2003, p. 98). É muito tênue a linha entre união e separação dos sujeitos. Num nível macro, o mundo está mais homogêneo, as fronteiras se perdem nos meios de comunicação digital. Em contrapartida, os sujeitos vêm desempenhando papéis mais complexos e diversos daqueles tempos de categorias fechadas que a modernidade poderia imaginar.

Para este projeto, pretende-se aproveitar todas essas potencialidades de dispositivos móveis convergentes com acesso à internet para formar um canal de comunicação entre os sujeitos, por meio de expressões, depoimentos, fotografias, debates e discussões sobre Curitiba.

4 METODOLOGIA DE PESQUISA

Estudo da produção e do consumo de informações geradas por ferramentas de georeferenciação na cidade de Curitiba. Para análise do processo comunicacional, optou-se pelos métodos fenomenológico, pesquisa qualitativa, exploratória, bibliográfica e estudo de caso.

Segundo Gil (1999), o método fenomenológico tenta explicar a realidade pela interpretação do pesquisador. Esse método permite ao sujeito autor da pesquisa uma maior autonomia interpretativa, pois reconhece que a análise e a produção do conhecimento científico são inerentes à subjetividade humana, o que consequentemente imprime uma liberdade de assumir que o pesquisador consiga buscar nas suas referências e na sua história de vida uma visão da realidade. Para Gil (1999), não há uma única realidade. Esse autor considera que o termo realidade é um processo de construção de diversos saberes e que dentro de cada ser humano essa mesma realidade pode ser (re)construída. Ou seja, há sim tantas realidades provenientes das possíveis explicações e interpretações dos sujeitos atores do processo científico.

Além disso, o autor afirma que o mundo é criado pela consciência e, por esse fato, presume-se que ela pode ser alterada de acordo com as inúmeras visões e impressões que se podem dar ao objeto estudado.

Uma pesquisa qualitativa, segundo Malhortra (2001, p. 155), é “não-estruturada, exploratória, baseada em pequenas amostras, que proporciona insights e compreensão do contexto do problema”. Ela permite ao pesquisador dissertar sobre o assunto pesquisado

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de um modo mais completo. Além disso, aprofunda-se o tema, entrando em detalhes de forma mais dissertativa, permitindo que haja maior poder de reflexão e de inferências por parte do pesquisador.

Observa-se que a pesquisa qualitativa abrange cinco características principais (LIMA, 2004, p. 30). A primeira é a importância do indivíduo na investigação dos fenômenos sociais, valorizando o aprofundamento da pesquisa em torno do sujeito. Como segunda característica dessa investigação está a qualidade, e não a quantidade, do objeto (ou sujeito) de estudo. A terceira característica é a credibilidade das conclusões atingidas “[...] reflexo das multiperspectivas resultantes das diferentes fontes de consulta exploradas pelo método qualitativo. Isto pressupõe um olhar profundo e prolongado da realidade” (LIMA, 2004, p. 30). Dessa forma, a quarta está relacionada com o tempo de investigação somado à intensidade dos contatos estabelecidos entre pesquisador e pesquisado, reduzindo, com isso, o risco de comportamentos falsos e convenientes. A quinta e última característica é a soma do tempo de investigação à multiplicidade de fontes de evidência, dificultando, assim, pré-concepções da realidade cultural investigada pelo pesquisador.

A pesquisa exploratória tem como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias. Formulam-se problemas de pesquisa mais específicos ou hipóteses pesquisáveis. É um tipo de pesquisa para o pesquisador ter um primeiro contato com o tema a ser trabalhado, geralmente, utilizando uma amostra pequena.

A partir dos resultados da pesquisa, o investigador pode redefinir seu problema de pesquisa e sua hipótese, para partir a uma investigação mais aprofundada do tema. Geralmente, trabalha-se com levantamento bibliográfico; documental; entrevistas não padronizadas; estudos de caso. Ainda, costuma ser uma pesquisa de natureza qualitativa. É importante destacar que o uso de métodos de coleta de dados quantitativos não são usuais nesse tipo de pesquisa.

O tipo de pesquisa bibliográfico é utilizado para embasar a análise, a qual Lima (2004, p. 115) salienta que “[...] só ganha credibilidade quando o pesquisador dispõe de repertório teórico consistente para poder imprimir sentido aos conteúdos dos documentos analisados”. Esse tipo de pesquisa também é chamado de revisão bibliográfica ou revisão da literatura e serve para embasar o desenvolvimento do tema da pesquisa. Este trabalho contou com tal método para embasar o material de análise, já citado acima.

E, para finalizar, tem-se o estudo de caso, que é um método qualitativo. É um dos métodos preferidos pelos pesquisadores quando se pergunta algo do tipo: “Como...?” ou “Por que...” (YIN, 2005). O uso desse método dependerá do tipo de problema de pesquisa, se ele tem como questões uma ideia de forma sobre o conteúdo da problemática (“como?” e “por quê?”); do controle que o pesquisador possui sobre eventos comportamentais

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efetivos; do foco em fenômenos históricos, em oposição a fenômenos contemporâneos. O pesquisador tem pouco controle sobre os eventos; e o foco se encontra em fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da vida real. Pode-se ainda utilizar um caso único ou casos múltiplos.

5 OBJETO DE ESTUDO: O FOURSQUARE3

O Foursquare é uma rede social que foca na localização física de seus usuários, disponível para todos os sistemas operacionais mobile, funciona por meio de um aplicativo no celular ou computador que detecta via GPS a localização do usuário e mostra os locais nas proximidades onde o usuário pode realizar um check-in, fazer comentários sobre o local e compartilhar com amigos na própria rede ou também em outras redes, como o Twitter e o Facebook. A informação geolocalizada é a tendência na internet, e o Foursquare quer saber onde os usuários estão, em tempo real, diferente do Twitter e Facebook, que querem saber o que os usuários estão fazendo.

O Foursquare possibilita ao usuário deixar comentários e dicas sobre os lugares visitados. Ao fazer check-in, por exemplo, em um restaurante, pode escrever que o atendimento é ruim e que em algum determinado dia a casa fica lotada. É uma espécie de marca virtual, como se os comentários escritos ficassem nas paredes do estabelecimento para os próximos frequentadores visualizarem. É recomendado o uso do Foursquare para explorar partes que o usuário não conhece da sua cidade, como parques, bares, restaurantes, entre outras opções.

Outro recurso do aplicativo é a visualização dos amigos que estão no mesmo local, ou perto do local, onde está o usuário, focando no deslocamento dos usuários do ambiente virtual para o contato com o mundo real. Diferente de outras mídias sociais como Orkut, Twitter e Facebook, o Foursquare promove uma interação mais direta do mundo on-line com o off-line.

O Foursquare também funciona como uma espécie de jogo, com pontuação e cargos. Há o cargo de prefeito, por exemplo, que é concedido ao usuário que fizer o maior número de check-ins de algum determinado lugar. Além disso, quando faz check-in, o usuário ganha pontos e pode destrancar badges, prêmios que se referem aos lugares visitados. Por exemplo: “Pizzaiolo” é a badge para quem passar por 20 pizzarias diferentes, ou “I’m on a boat”, para quem fizer check-in dentro de um barco. O Foursquare criou até

3 Os dados aqui citados estão disponíveis em https://pt.foursquare.com/ (acesso em: 08 jun. 2012).

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uma badge para o Polo Norte: “a Last Degree” (Último Grau, em português). O texto do prêmio diz: “Parabéns por fazer isso no Polo Norte! Respire fundo, coloque sua bandeira e tenha certeza de voltar para casa em segurança!”.

Apesar de ter um sistema de classificação como um jogo, aos poucos, os usuários usam o Foursquare como um guia cultural e gastronômico de cidades. Em entrevista ao Wall Street Journal, David Crowley, cofundador e CEO da empresa, declarou que o app conta com milhares de usuários que o acessam com a intenção de consumir informações oferecidas por ele.

5.1 HISTÓRIA

O Foursquare foi lançado em março de 2009, por Dennis Crowley e Naveen Selvadurai no festival South by Southwest Interactive em Austin, Texas. Dennis Crowley criou o Foursquare a partir de outro projeto, o Dodgeball. Criado em 2000, o Dodgeball foi o primeiro serviço social móvel dos EUA, uma pré-história do Foursquare. Funcionava por meio de SMS (o Foursquare também funciona, para quem não tem iPhones, Blackberries e celulares com Android, mas só no território americano) e era bem mais simples. O Dodgeball foi comprado pelo Google em 2005, fechado em 2009 e substituído depois pelo Google Latitude.

5.2 ESTATÍSTICA

Em janeiro de 2009, eram 100 mil usuários cadastrados no site. Em julho/agosto de 2010, o site atingiu a marca de três milhões de usuários e 3.850.000 estabelecimentos cadastrados. Já no final de 2010, a rede comemorou um milhão de check-ins na cidade de São Paulo. No Brasil, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre são as que mais utilizam o serviço.

Atualmente o Foursquare conta com uma comunidade com mais de 20 milhões de pessoas em todo o mundo, já ultrapassou a marca dos dois bilhões de check-ins e possui mais de 750.000 empresas cadastradas.

A base de dados do Foursquare é alimentada pelos próprios usuários no momento do cadastro e nas ações diárias na rede. O serviço conta ainda com usuários que moderam os lugares, editando as informações de forma a seguir um padrão de visualização. Na divisão territorial, o Foursquare tem seu grande público nos EUA com 50% dos seus usuários, enquanto a outra metade de usuários está distribuída no mercado internacional.

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5.3 VERSÃO 5.0

Lançada no dia 06 de junho de 2012, a nova versão do aplicativo do Foursquare permite ver atualizações no feed que vão além dos check-ins mais recentes dos amigos, assim como dicas e locais. As principais alterações se deram nos ambientes de recomendações, perfil e na página de local. Essa nova versão tem bastante foco nas recomendações. O aspecto do jogo continua presente, mas não é central, refletindo a evolução dos próprios usuários, que vêm usando o serviço mais pelas recomendações do que propriamente pelos check-ins próprios e de seus amigos.

5.4 SISTEMÁTICA

O usuário deve se cadastrar no site do Foursquare (https://pt.foursquare.com) e criar um nome de usuário e uma senha. Após o cadastro, basta fazer o download do aplicativo para smartphone ou tablet. O aplicativo é compatível com os sistemas operacionais iOS, Android e BlackBerry. A interface principal tem quatro opções: amigos, lugares, dicas e perfil. Para fazer um check-in, o usuário deve ir à aba Lugares, visualizar a lista dos lugares próximos à sua localização e escolher o estabelecimento onde está localizado. Após fazer o check-in, o usuário é redirecionado para uma nova página, na qual será possível escrever um comentário sobre o local, adicionar uma foto e também compartilhar essa informação pelo Facebook e/ou Twitter. Ao finalizar esse processo de check-in e comentários, o aplicativo concede pontos e insígnias, de acordo com o tipo de lugar onde que o usuário fez check-in. A cada novo check-in, o usuário ganha mais pontos, e a pontuação é diferenciada para cada situação, tendo relação direta com o local e a frequência com que o check-in foi feito. Alguns valem mais e outros menos, e a pontuação é comparada com os amigos do usuário.

Na aba Amigos, é possível procurar e adicionar contatos conhecidos e que também estão cadastrados na rede. Quanto mais amigos o usuário possuir, maior será sua “concorrência” no jogo criado pelo Foursquare. O site permite importar automaticamente os contatos do Facebook, Twitter e Gmail.

Em Dicas, é possível ler informações que outros usuários deixaram nos locais visitados. É importante ao usuário ter a consciência de que o Foursquare pode ser um serviço bem útil para mostrar onde as pessoas estão e o que estão falando sobre diversos lugares, procurar detalhes de localização e saber o que tem perto, por exemplo.

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5.5 PROMOCIONAL

Junto com o entretenimento, está um modelo de negócios, para aproveitar a sincronia tempo/espaço proporcionada pelo site. Diversas empresas estão usando o Foursquare para fazer anúncios em seus pontos de venda. Para quem é dono de um estabelecimento, as promoções vêm naturalmente: dar brindes para os prefeitos. Com o Foursquare, o dono de um bar pode saber quem é o frequentador mais assíduo do seu balcão e dar bebidas de graça para ele. Um programa de fidelidade que visa a cativar o cliente no momento em que ele está mais propenso a consumir.

Outra prática comum entre algumas marcas é a utilização de badges próprias. A Starbucks possuiu a badge “Starbucks Barista”, a prefeitura de Chicago também usa o Foursquare com dicas sobre turismo e badges exclusivas relacionadas com a história da cidade: como a “On Location”, para quem visitar cinco lugares de Chicago em que foram filmadas cenas clássicas do cinema. O Foursquare já fez parcerias de badges com HBO, History Channel, Universidade Harvard, jornal Metro, New York Times, Warner Bros, entre tantas outras empresas e instituições.

Parte das marcas que estão hoje nesse site pertence a empresas que possuem sedes físicas, de segmentos e tamanhos diferenciados, indo de pequenas cafeterias de bairro a multinacionais famosas. A Starbucks foi uma das primeiras empresas de grande porte a utilizar o Foursquare para aquecer os negócios nos pontos de venda. No início de 2010, a empresa criou uma badge customizada para usuários que realizavam check-ins com frequência em seus estabelecimentos. Inicialmente, a ação “Barista Badge” não oferecia nenhuma recompensa direta para os usuários, mas esse foi o primeiro passo da Starbucks para conquistar a fidelidade de seus clientes por meio do reconhecimento. Meses depois, a partir de maio de 2010, a empresa passou a oferecer recompensas diretas para usuários que possuíam o status “prefeito” em alguma de suas lojas. A estratégia consiste em estimular a participação dos clientes, não apenas com a premiação de uma badge própria, mas também oferecendo descontos para aqueles que visitam a loja com frequência. Por exemplo, o abatimento de US$ 1 em um frappuccino de qualquer tamanho e sabor caso o usuário fosse o prefeito de uma das lojas Starbucks.

Já a marca de calçados Jimmy Choo foi mais criativa na hora de usar os recursos que o Foursquare fornece na promoção da sua marca. Para divulgação da sua nova coleção de tênis, a empresa lançou uma caça ao tesouro com a ajuda do aplicativo. Um par de tênis da nova coleção realizava o check-in em diversos pontos da cidade de Londres, permanecendo por alguns minutos no local e depois partindo para outro ponto da cidade, realizando um novo check-in. Quem conseguisse chegar ao local do check-in a tempo ganhava um par de tênis.

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Já no Brasil, podemos destacar a ação que a rede de restaurantes Spoleto realizou em maio de 2010. Com o auxílio do Foursquare, a empresa promoveu a seguinte ação: toda sexta-feira, em uma das sete lojas selecionadas (três em São Paulo e quatro no Rio de Janeiro), o prefeito da loja deveria se dirigir ao caixa, realizar um check-in e mostrar que ainda é o prefeito do local, para receber um prato gratuito. O prêmio só era válido para o primeiro prefeito que aparecesse na loja na sexta-feira. Desenvolvida pela agência It’s Digital, a ação trouxe resultados positivos para a empresa.

O Foursquare apresenta um grande potencial para o monitoramento e a mensuração do desempenho das marcas na internet e do feedback do seu público-alvo. É possível obter dados precisos na rede, tais como: número de check-ins, número de visitantes únicos, número de comentários, tudo isso segmentado pelo local analisado. Esses dados podem ser obtidos no próprio site ou por ferramentas paralelas de análise. Também é possível acessar todos os comentários realizados pelos usuários, dando um status para cada (positivo, neutro ou negativo), além de mensurar quais assuntos foram mais abordados, quando ocorre a maior parte das atualizações, ou mesmo, quem são os usuários que defendem ou atacam a marca/empresa na rede.

6 ANÁLISE

Para essa pesquisa, foram selecionados três espaços urbanos de Curitiba para coleta de dados e análise nas interações dos usuários nesses espaços, observando as ações no mundo virtual e sua efetiva relação com o espaço no mundo real, vivido pelo o usuário. Para isso, foi utilizada somente a ferramenta Foursquare, já mencionada acima.

6.1 AEROPORTO INTERNACIONAL AFONSO PENA

O Aeroporto Internacional Afonso Pena está situado a 18 quilômetros de Curitiba e conta com uma área de 45.000m². Considerado um dos 20 aeroportos mais modernos do mundo, é o oitavo maior aeroporto brasileiro, com capacidade para atender 3.500.000 passageiros por ano.

No Foursquare, o aeroporto possui o total de 90.971 check-ins (até 25/06/2012, às 9h). Com 44 check-ins nos últimos 60 dias, o prefeito do aeroporto é o usuário “Dan M.”. Abaixo temos a relação das dez mais populares dicas/comentários sobre o local.

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Tessalia S. Abril 6, 2011: “Dentro da sala de embarque, opte pela famosa casa do pão de queijo, próximo ao portão 1. Na parte de fora, no piso superior, há restaurantes de gosto duvidoso”, 203 pessoas curtiram.

Cristian P. Maio 25, 2010: “Utilize o ônibus executivo que faz a linha Aeroporto-Centro de Curitiba. Você vai economizar um bom dinheiro se comparar com uma corrida de táxi a partir do aeroporto”, 150 pessoas curtiram.

Tessalia S. Abril 6, 2011: “Você sabia? No piso superior do aeroporto há uma enooorme janela onde você pode ver a pista de pouso. Ótima pedida para distrair crianças enquanto aguardam um voo ;)”, 171 pessoas curtiram.

Tessalia S. Agosto 29, 2011: “NÁO VÁ DE TAXI! Por 9 reais um ônibus executivo te leva até a rodoviária, principais hotéis e rua 24 horas num trajeto semi-direto! Se optar por taxi pagarás mais caro que um GRU-CGH! Raios! Fuja!”, 47 pessoas curtiram.

Pedro M. Julho 1, 2011: “Procure as pessoas que também deram chekin no aeroporto! Pode ser que você faça um novo amigo. Além disso, sempre tem gatas perdidas pela área de embarque! Pode ser a sua chance”, 46 pessoas curtiram.

Carlos F. Setembro 19, 2011: “Para seu próprio bem, compre uma passagem só de ida para qualquer lugar do planeta. Abs”, 26 pessoas curtiram.

Rodrigo S. Novembro 2, 2010: “Estacione fora do estacionamento. Ninguém mais multa os carros, e é mais fácil e rápido para pegar seus amigos”, 26 pessoas curtiram.

Luis A. Agosto 27, 2010: “Se puder, evite os táxis para o centro de Curitiba, pois chegam a custar R$ 60,00. Prefira o ônibus executivo”, 22 pessoas curtiram.

Alexandre G. Abril 9, 2012: “Vem gente que aqui tem neblina e aeroporto fechado”, 21 pessoas curtiram.

Daniel M. Dezembro 7, 2010: “Curitiba merecia um aeroporto melhor”, 20 pessoas curtiram.

6.2 PARK SHOPPING BARIGUI

Segundo a própria descrição no Foursquare: “O ParkShoppingBarigüi é o melhor e mais completo shopping de Curitiba, e reúne o que há de melhor em moda, diversão, gastronomia e serviços”. Com o total de 42.922 check-ins, o Park Shopping Barigüi ocupa a oitava posição no ranking nacional de check-ins feitos pelo Foursquare. É o primeiro colocado na categoria “shopping”.

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Com 45 check-ins no período coletado, o prefeito do shopping é o usuário “Fábio O.”. Abaixo temos a relação das dez mais populares dicas/comentários sobre o shopping:

Tatiane W. Outubro 28, 2010: “A expansäo ficou demais, com lojas como North Face, Hugo Boss e Oakley, esse shopping ficou imbatível!”, 46 pessoas curtiram.

Marcelo R. Novembro 15, 2010: “Fujam do Rest. Red Rock. Pior atendimento da cidade”, 36 pessoas curtiram.

Alessandro M. Outubro 30, 2010: “Esqueça a praça de alimentação. Vá direto ao Espaço Gourmet onde é tranquilo e servem as pessoas com talheres de gente grande”, 32 pessoas curtiram.

Quadros R. Novembro 1, 2010: “O melhor com ctza”, 24 pessoas curtiram.

Juliana Natalia M. Abril 20, 2010: “melhor shopping, e do lado de casa”, 24 pessoas curtiram.

Bia K. Dezembro 5, 2010: “Mesmo depois da ampliação, o estacionamento continua uma lástima nos fins de semana”, 20 pessoas curtiram.

Mohamad H. Junho 1, 2010: “Melhor shopping de Curitiba”, 19 pessoas curtiram.

Maria Vitrine Agosto 31, 2011: “O shopping possui diversas lojas âncoras: FNAC, PB Kids, Livrarias Curitiba, Ponto Frio, Centauro, C&A, Renner, Zara entre outras. Acompanhe as últimas novidades do ParkShoppingBarigui”, 18 pessoas curtiram.

Cristian P. Abril 2, 2011: “Um dos melhores de Curitiba”, 16 pessoas curtiram.

Luis Henrique M. Fevereiro 14, 2011: “Estacionamento péssimo, nunca se acha lugar de primeira [...]”, 15 pessoas curtiram.

Pela data das postagens, fica claro que o perfil do shopping teve um período bem aquecido nas interações no segundo semestre de 2010, tendo em vista que, das 10 dicas mais curtidas, mais de 50% ocorreram nesse período.

Podemos destacar a ação promocional realizada pela CIA Athletica Curitiba no Foursquare. A ação foi simples e visava a mostrar sintonia na relação da academia com seus diversos públicos frequentadores e aproveitou para diminuir o uso de copos plásticos por meio da doação de squeezes. A promoção tinha a seguinte sistemática: o aluno que chegava à CIA, localizada no piso G6 do Shopping Barigüi, dando um check-in e apresentando-o na recepção, no seu aplicativo mobile, ganhava um squeeze exclusivo da academia.

Outra empresa a desenvolver uma ação promocional no shopping é a marca de restaurante italiano Spoleto. Toda sexta-feira o prefeito ganha uma massa tradicional: basta ir até o caixa, fazer o check-in, comprovar que é o prefeito do restaurante, e ganha o prato. Essa ação tem abrangência nacional.

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Das marcas presentes no shopping com perfil no Foursquare podemos destacar a Companhia Athletica, com 4.007 check-ins, Spoleto Culinária Italiana, com 1.081 check-ins, Pizza Hut, com 1.780 check-ins, e Au-Au, com 270 check-ins.

6.3 MUSEU OSCAR NIEMEYER

Instalado em uma área de 35 mil metros, é considerado um dos maiores complexos de exposição do Brasil, possui mais de 17 mil metros quadrados de área expositiva potencial. Conta com diversos ambientes, incluindo um auditório para aproximadamente 400 lugares, café e espaços de lazer.

O Museu Oscar Niemeyer (MON) é um dos principais cartões-postais de Curitiba, tendo como principal chamariz o espaço conhecido como “Olho”. No Foursquare, o museu possui o total de 6.361 check-ins (até 25/06/2012, às 11h). Com 35 check-ins nos últimos 60 dias, o prefeito atual do aeroporto é o usuário “Lorraine V.”. Abaixo temos a relação das dez mais populares dicas/comentários sobre o museu:

Raul A. Fevereiro 28, 2010: “There are some good and charming restaurants at Manoel Eufrásio street, just in front of the museum. Aproveite para conhecer e se deliciar com alguns restaurantes do outro lado da Rua Manoel Eufrásio”, 21 pessoas curtiram.

Marcus Y. Setembro 27, 2011: “Precisa de uma reforma, mas é um ótimo museu. Ah! Também precisa de uma melhor gestão”, 14 pessoas curtiram.

Fábio M. Junho 4, 2010: “Mais uma maravilha do Oscar”, 12 pessoas curtiram.

Julia G. Maio 27, 2011: “Ótimo para sentar, beber e fumar narguile com os amigos”, 9 pessoas curtiram.

Phellipe W. Abril 10, 2011: “Tinha um povo estranho, fazendo umas danças estranhas. Otakus. Não chegue perto deles”, 7 pessoas curtiram.

Pedro S. Março 27, 2010: “É o lugar ideal pra ficar sentado fazendo nada ou ver exposições”, 7 pessoas curtiram.

Maíra O. Julho 3, 2011: “Todo primeiro domingo do mês o ingresso é grátis!!”, 6 pessoas curtiram.

Roger M. Agosto 24, 2011: “Pôr do sol fantástico!”, 05 pessoas curtiram.

Raquelnews. Junho 4, 2010: “Ótimo para dias de chuva”, 4 pessoas curtiram.

Também podemos destacar a presença do MON Café no Foursquare, com 937 check-ins. Abaixo temos a relação das cinco mais populares dicas/comentários sobre o café:

Rodrigo A. Setembro 15, 2011: “Vale a pena a visita ao Museu e parar para tomar um café no Mon. Ambiente agradável e quitutes gostosos fazem parte deste bonito lugar que ainda conta com free wireless”, 9 pessoas curtiram.

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Bruno B. Outubro 15, 2010: “Tem que ter um pouco de paciência com o tempo de atendimento, mas o ambiente é bem legal”, 9 pessoas curtiram.

Leonardo S. Fevereiro 6, 2011: “Haja paciência! Atendimento ruim e demorado, isso quando não esquecem de trazer o seu pedido”, 3 pessoas curtiram.

Fernando F. Abril 16, 2011: “Senha da wi-fi: vickmuseu”, 2 pessoas curtiram.

Roberto M. Março 20, 2012: “A tortinha 4 queijos compensa o péssimo atendimento! Infelizmente funciona apenas até as 18 horas”, 1 pessoa curtiu.

Nas dicas acima listadas, pode-se perceber uma relação direta entre a publicação no ambiente da rede social (Foursquare) e o espaço vivido urbano (aeroporto, shopping e museu). As “marcas”, de profunda necessidade humana (CERTEAU, 1994), são percebidas como “pinturas nas cavernas” ou novas formas de “pichações” da contemporaneidade. Recados, desde uma maior utilidade pública (tais como o uso do ônibus executivo ou poder deixar o carro fora do estacionamento, entre outros) até alguns mais superficiais (como “compre uma passagem só de ida a qualquer lugar do planeta” ou encontre as pessoas que fizeram check-in para conhecer algumas “gatas”), corroboram as ideias do autor sobre a experiência de vida estar de acordo com a experiência vivida no espaço. Além disso, também reiteram o discurso de Certeau (1994) sobre a relação do “contar histórias” e registrar o olhar, a ideia, a observação, a visão da realidade.

Meyrowitz (2003) e Bauman (2003) notam, pelas falas acima expressadas (pelos usuários do Foursquare), a concepção de estarmos juntos a distância em bandos virtuais, característica contemporânea, fortemente marcada pelo uso da tecnologia e de dispositivos móveis convergentes, como o smartphone e o tablet, os quais os usuários precisam utilizar para postar seus comentários. A ideia dos autores é mostrar que os sujeitos contemporâneos são distintos de sujeitos de outras épocas, tendo como característica principal o isolamento decorrente de uma série de mudanças em processos socioculturais, entre elas, do uso da tecnologia. Porém, ao mesmo tempo em que a tecnologia isola o indivíduo do convívio público, quando utilizada para dar voz à sua opinião, seu ponto de vista, sua experiência vivida, traz à tona um poder até então não permitido de ser feito da mesma forma em função desse desenvolvimento tecnológico. Agora, mesmo isolados, podemos compartilhar pensamentos e expressá-los na web aos demais participantes do “bando”.

Isso também faz recordar o que autores como Lemos (2003b) chama de cibercidade, em que a prática e o exercício da cidadania vão além do voto ou da escolha de um candidato para representação na vida política. Viver a cibercidade é exercer um maior poder como cidadãos, hoje, graças às tecnologias móveis convergentes e à possibilidade de publicar conteúdo na internet. Como citado anteriormente, “a cidadania, o exercício social na urbis, passa hoje por esse sentimento de conexão generalizada. Esta é que caracteriza as cidades contemporâneas pela nova dinâmica instaurada pelas redes telemáticas” (LEMOS, 2003 b, p. 2). A ideia é justamente incorporar ao cotidiano do cidadão e da cidadã uma

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prática para reclamar, sugerir, denunciar etc., trazendo essas situações do seu dia a dia para um hemisfério maior, como a propagação na web. Como o espaço do aeroporto é um espaço público, envolvendo pessoas que estão ali por motivos profissionais e pessoais, a necessidade de colocar luz sobre questões emergenciais é fundamental sob o ponto de vista do direito cívico.

Para Certeau (1994), as pessoas podem inventar seu fazer, exprimindo uma maneira própria de conviver com a imposição cultural e social dos meios de comunicação de massa tradicionais e com a imposição econômica dos produtos e serviços eleitos pela sociedade do espetáculo e consumo. Entre as diversas características que marcam o período contemporâneo, a possibilidade de fazer uso de qualquer coisa ou artefato (como um dispositivo móvel convergente) que possam encontrar no contexto em que agem para dar vida a um incessante trabalho de “fabricação” de significados pessoais torna-se válida. A ideia (e a possibilidade) de criar e fazer uso desses aparatos para deixar marcas no espaço vivido corrobora a premissa de que o espaço é um lugar praticado. Ou seja, vivenciado, experienciado, usado, percebido e, consequentemente, marcado (por “pichações”, virtuais ou não).

Os avanços tecnológicos das áreas da comunicação, com o passar dos séculos e das décadas, permitiram uma maior troca e acesso a informações que anteriormente apenas circulavam dentro de determinado campo de atuação (somente na política, somente na medicina, somente na biologia etc.). O que caracteriza a atual revolução tecnológica (SANTAELLA, 2003; CASTELLS, 2005) não é a centralidade de conhecimento e informação, mas a aplicação destes para a geração de novos conhecimentos e de aparatos de processamento da informação e de comunicação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso, o que até pouco tempo atrás não era permitido pelos meios de comunicação de massa, pois a produção do receptor não existia no modelo comunicacional vigente. Agora, com a web e dispositivos móveis convergentes, tais como o smartphone e o tablet, os sujeitos têm a possibilidade de ser receptores e emissores, em um processo de coprodução constante e alimentado por outros indivíduos que se conectem e acessem essas redes.

Percebe-se, então, que a hegemonia da cultura de massas (SANTAELLA, 2003), até então inquestionável, está sendo dissolvida pouco a pouco por meio do acesso à tecnologia e, principalmente, pelo uso de tecnologias convergentes e de redes sociais que permitem inserir a informação em todas as esferas da vida social, econômica e da vida privada. O espaço público, além de ser um espaço vivido e experienciado, é também um espaço de manifestação, de produção e circulação de conteúdo gerado pelo sujeito comum, e não apenas pelos detentores de poder dos meios de comunicação de massa.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo uso de tecnologias de conexão móveis, ou dispositivos móveis convergentes, os sujeitos agora estão conectados e em processo de mobilidade, não se restringindo mais apenas ao uso dos meios de comunicação tradicionais ou a um espaço físico determinado e estanque. Aqui, podem-se unir a essas questões três anseios do homem da contemporaneidade: a rapidez, a eficiência de locomoção e o permanente contato com os demais membros da comunidade. Somente por meio da mobilidade, da convergência midiática e do uso de dispositivos móveis convergentes, como o smartphone e o tablet, por exemplo, essas questões são possíveis de serem colocadas em prática.

Vivendo-se, então, em um período que remete ao nomadismo, pode-se chamar de nomadismo global, percebe-se que o ser humano ainda pratica diversas ações do cotidiano de forma coletiva, entre elas a produção de conteúdo e informação compartilhada. Mesmo esta pesquisa não tendo sido palco para iluminar características mais subjetivas e de ordens pessoais dos sujeitos produtores de conteúdo, é possível refletir sobre a mudança de alguns papéis sociais que se atenuam, em função desse novo nomadismo. No período do nomadismo antigo, os seres humanos faziam tudo em conjunto, deslocando-se em bandos para sobreviver. Como esses bandos (atuais ou antigos) circulam em conjunto, é difícil estabelecer um limite para o papel de cada indivíduo na sociedade. Ou seja, os papéis sociais são menos evidentes e fáceis de serem classificados e, talvez, estabelecidos.

Essas fronteiras se tornaram mais permeáveis e finas, consequentemente, mais complexas e translúcidas, o que não significa que há uma homogeneização nesse processo de desenvolvimento de papéis sociais. Não é um retorno à massa homogênea e sem distinção e classificação que poderíamos refletir na teoria hipodérmica, por exemplo, mas se vive em um período de possibilidade de criar novas formas de fusão e novas formas de desintegração, quando se é produtor e receptor ao mesmo tempo. Somente com a convergência midiática essas novas formas de definições sociais são possíveis.

Pode-se confirmar a premissa, pois com a introdução social de novos meios de comunicação, são criadas novas formas de ação e interação e novos tipos de relacionamentos sociais. Essa introdução, por meio do uso de dispositivos móveis convergentes e da experiência da web, cria novas formas bem diferentes das que prevaleceram durante a maior parte da história da humanidade. Perceber uma alteração na inquestionável hegemonia dos meios de comunicação de massa torna-se palco para a evolução da expressão humana pelo acesso à informação e à sua disseminação pessoal. A troca de eixo no poder da cultura de massas permite que o espaço urbano seja um espaço vivido, experienciado e, principalmente, compartilhado entre os sujeitos que ali habitam ou que apenas estiveram de passagem como nômades virtuais, reais e globais. Sem a possibilidade de unir tecnologia, comunicação, ciberespaço e mobilidade, acredita-se que é impossível estabelecer um novo processo de comunicação e de expressão da vida privada e da vida pública.

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