Estado, Democracia e Nação Na Teoria Do Subdesenvolvimento

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  • Estado, democracia e nao na teoria do subdesenvolvimento

    Vera Alves Cepda (UFSCar)

    Resumo: A sociedade brasileira, a exemplo do percurso histrico percorrido por outras sociedades latino-americanas, teve sua trajetria de modernizao fortemente marcada e orientada pela perspectiva da racionalidade econmica. Parte desse processo consolidou-se pela identificao feita entre o projeto de Nao com o projeto de superao das seqelas do subdesenvolvimento e do atraso econmico. Distante do paradigma liberal, a perspectiva de associao entre desenvolvimento econmico e desenvolvimento das demais estruturas sociais teve influncia direta do keynesianismo, das teorias cepalinas, do entorno nacionalista e da valorizao do planejamento enquanto ferramenta de ordenamento da economia e da vida poltica dessas naes com tal fora que foi capaz de modelar e constituir-se enquanto horizonte de sentido intelectual e poltico no perodo posterior ao final da Segunda Guerra Mundial at o esgotamento do projeto desenvolvimentista no regime Militar. Com base nesse cenrio, o objetivo deste trabalho mapear, no caso especfico da histria poltica brasileira, o movimento intelectual que tratou o cruzamento entre o dilema econmico do subdesenvolvimento e sua metamorfose em projeto nacional, desde seu surgimento nos anos 30 at seu esgotamento enquanto projeto de futuro nos anos 70. Nesse contexto, sero trabalhadas as produes intelectuais de Roberto Simonsen, Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso sob dois aspectos: o primeiro, detectando balizas comuns capazes de estabelecer um percurso cronolgico e cumulativo sobre o conceito subdesenvolvimento na explicao desses autores; o segundo, observando as diferenas conceituais e polticas nas teorias analisadas. Alm disso, este artigo trabalha com a hiptese de que o caminho trilhado pelas trs teses (subcapitalismo, subdesenvolvimento e dependncia) revela uma mudana no entroncamento economia-poltica, mudando da inicial primazia do vis econmico para a perspectiva de preponderncia do argumento poltico.

    palavras-chave: subdesenvolvimento, dependncia, projeto nacional

    Abstract: The Brazilian society, as an example of the historical course traveled by other Latin-American societies, it had its modernization path strongly marked and guided by the perspective of the economical rationality. It leaves of that process consolidated for the identification done among the project of Nation with the project of overstand of the sequels of the underdevelopment and of the economical delay. Distant of the liberal paradigm, the association perspective between economical and other social structures development had direct influence of the keynesianism, of the theories cepalinas, of the nationalist influence and of the valorization of the planning while tool of ordenament of the economy and of the political life of those nations with such a force that was capable to model and to constitute while horizon of intellectual and political sense in the subsequent period at the end of Second World War to the exhaustion of the development project in the Military regim. With base in that scenery, the objective of this work is to map, in the specific case of the Brazilian political history, the intellectual movement that treated the cross between the economical dilemma of the underdevelopment and its metamorphosis in national project, from its appearance the thirties until its exhaustion while the project of future in the seventies. In that context, Roberto Simonsen's intellectual productions, Celso Furtado and Fernando Henrique Cardoso will be worked under two aspects: the first, detecting common marks capable to establish a chronological and cumulative course on the concept in underdevelopment in those authors'

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    explanation; the second, observing the conceptual and political differences in the analyzed theories. Besides, this article works with the hypothesis that the road trodden by the three theories (subcapitalism, underdevelopment and dependence) it reveals a change in the crossing point economy-politics, changing of the initial primacy of the economical inclination for the perspective of preponderance of the political argument.

    A emergncia da idia de subdesenvolvimento o encontro entre economia e poltica

    Embora a teoria do subdesenvolvimento e o projeto desenvolvimentista tenham

    marcado profundamente a histria poltica brasileira, a percepo das assimetrias entre as

    diferentes economias na arquitetura do capitalismo mundial no foi um produto exclusivo de

    nossa intelligentsia ou de nossa situao histrica. Ao contrrio, esta teoria a qual

    fundamental para a compreenso do processo de modernizao capitalista (econmica e

    social) das economias latino-americanas e terceiro-mundistas tornou-se vivel a partir de

    uma srie de transformaes que varreram o mundo desde o final do sculo XIX nas relaes

    econmicas, polticas e intelectuais. Neste sentido, a primeira metade do sculo XX

    caracterizada por grandes transformaes no horizonte intelectual marcadas pelas grandes

    mudanas nas relaes geopolticas, pelas crises econmicas reincidentes da economia

    mundial e pelo reexame do pensamento liberal, tanto na percepo econmica quanto poltica.

    No universo das sociedades mais desenvolvidas, a persistncia dos descompassos da crise de

    superproduo e subconsumo e o agravamento dos conflitos normativos e distributivos entre

    os setores ligados ao capital e ao trabalho produziram novas matrizes explicativas (em

    especial o ferramental keynesiano) que reformularam a relao entre a lgica do mercado e o

    papel do Estado1; de sorte que, a interpretao da crise acentuava os defeitos e efeitos

    deletrios do princpio da mo invisvel do mercado, o qual passou a ser entendido como

    causador de distrbios sociais e polticos ao invs de promotor de progresso. Assim, a matriz

    da lgica liberal baseada no individualismo passava a ser colocada em xeque: o interesse

    privado no coincide necessariamente com o interesse pblico, sendo ao revs, sua antpoda

    tanto na economia quanto na promoo do desenvolvimento social2. Deste raciocnio geral

    surge uma valorizao da ao do Estado enquanto coordenador e promotor de uma vontade

    representativa do corpo social, reorientando a lgica do universo do interesse privado para o

    pblico3.

    1 Bendix in Construo Nacional e cidadania, Przeworsky in Capitalismo e social-democracia e Rosanvalon in A crise do Estado-Providncia. 2 Raciocnio brilhantemente trabalhado por Keynes em O fim do laissez-faire. 3 Essa perspectiva produz diversas matrizes polticas diferentes, da alternativa totalitria ao surgimento do compromisso do Welfare State. O esforo de guerra, a valorizao do planejamento como meio de acelerao do

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    Contudo, enquanto nos pases desenvolvidos o problema de valorizao do Estado e de

    um projeto poltico de conduo econmica se fortalecia enquanto soluo do problema de

    desajustes e reajustes do capitalismo frente ao cenrio das crises cclicas e do crescente

    enfrentamento entre classes e grupos de interesses, uma outra perspectiva passava a compor a

    agenda intelectual do perodo: a emergncia do problema da pobreza nos pases em condio

    de atraso. Tal problema passou a confrontar a tese ricardiana de uma distribuio contnua do

    progresso tcnico entre as naes ordenadas na diviso do trabalho internacional.

    A promessa do liberalismo a la Smith e Ricardo pressupunha que a contnua diviso do

    trabalho seria responsvel pela elevao constante e cumulativa da riqueza das naes sob o

    primado da renovao tcnica, pelo aumento da produtividade e distribuio dos ganhos entre

    os setores articulados no sistema (salrios, diminuio progressiva de preos, aumento do

    consumo entre capitalistas e expanso em ondas da dinmica econmica). Assim, a origem do

    desenvolvimento no estaria apenas na ao promotora do capital, mas tambm num

    movimento mundial capaz de promover sua distribuio paulatina para todas as naes

    incorporadas ao sistema pelo princpio das vantagens competitivas. Entretanto, o grande boom

    provocado pelo fim do colonialismo e o surgimento das economias nacionais, coincidindo o

    processo de produo com o desenho de naes autnomas, evidenciaria que em substituio

    dependncia poltica do antigo modelo colonial outra forma de submisso ou assimetria

    surgia com a dependncia econmica. Esta descoberta possibilitou a constatao, na prtica,

    de que o ordenamento capitalista desigual, funcionando por novos meios de dominao

    baseados na dianteira tecnolgica, competitiva e no aporte de investimentos. Ao contrrio da

    crena difundida de uma distribuio em descompasso temporal, esta nova percepo

    trabalhava com a idia de que as economias mais ricas impediam o desenvolvimento das

    economias mais pobres pela prpria estrutura de organizao e dominao do circuito

    capitalista mundial4. Por conseguinte, o perodo entre as duas guerras mundiais foi o ponto de

    partida para as teorias que engendraram o tema do subdesenvolvimento e que assinalaram

    uma nova relao entre economia e poltica com a sobrevalorizao do Estado no como

    corretor de desequilbrios mas como promotor de desenvolvimento.

    desenvolvimento econmico, a necessidade utilizao de ferramentas macroeconmicas como moeda, crdito e financiamento (exigncias do modelo produtivo posterior II Revoluo industrial nas economias desenvolvidas), o crescimento da importncia da regulao jurdica do mundo do trabalho e o fortalecimento do nacionalismo enquanto locus e modus operandi desse processo podem ser tomados como elementos que valorizaram o argumento poltico em sobreposio ao argumento da liberdade de mercado. 4 A conscincia desse processo no originria deste perodo especifico, mas nesse momento que se converte numa teoria de ampla aceitao. As concepes de List (Sistema de economia nacional) e os conceitos de pr-capitalismo e imperialismo que surgem do campo marxista j enunciavam o problema.

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    Esta discusso adentrou no quadro da produo intelectual brasileira na esteira do

    movimento que desde o sculo XIX procurou determinar nosso princpio de identidade a

    partir da anlise da nossa formao nacional. Assim, nas primeiras dcadas do sculo XX

    decorreu a entronizao do problema econmico em substituio s anlises iniciais que

    anelavam a questo da nacionalidade e a perspectiva de futuro da nao as questes de ordem

    tnica, cultural ou institucional. Este processo acompanhou em termos reais a crise do modelo

    senhorial, escravista e mercantil exportador e sua substituio por uma sociedade industrial,

    urbana e baseada no trabalho assalariado. No ncleo dessa transformao o ponto de inflexo

    se manifestou na crise econmica e poltica dos anos 20/30, espelho dos limites da economia

    cafeeira e do predomnio das oligarquias regionais da Repblica Velha. Neste ponto, o debate

    poltico e a perspectiva de sustentao de uma economia nacional engendraram o tema do

    atraso econmico e suas mltiplas derivaes lgica extra-econmica de promoo do

    desenvolvimento (em sua noo artificial e como meio de superao da assimetria imposta

    pelo comrcio internacional), fortalecimento do planejamento e do papel do Estado,

    diagnstico do problema nacional originado na esfera econmica e justaposio do projeto de

    Nao enquanto interdependente da superao do problema da debilidade industrial.

    Esta forma de interpretao do Brasil na qual os dilemas do presente foram causados,

    em maior parte, pela estrutura econmica herdada do passado colonial e a proposio do

    projeto nacional pautado pela transformao das relaes econmicas (interseco entre a

    dimenso econmica e poltica) tornou-se o fio condutor do pensamento social no debate

    intelectual entre os anos 40 e 70 do sculo passado. Dividida entre vrias correntes, esta

    matriz terica delimitou os marcos em vista dos quais o problema da nao foi tratado a partir

    da esfera econmica por um lado, e pelo papel demiurgo do Estado, por outro5; abrigada sob a

    genrica rubrica de subdesenvolvimento. Em face deste cenrio possvel inserir a proposta

    deste artigo, caracterizando o tema do subdesenvolvimento e, ao mesmo tempo, estabelecendo

    a conexo entre as teses de Roberto Simonsen (atraso e subcapitalismo), Celso Furtado

    (subdesenvolvimento) e Fernando Henrique Cardoso (capitalismo associado-dependente),

    identificando um percurso terico responsvel pela explanao das mesmas em suas

    semelhanas e em suas diferenas.

    5 Com isto no se quer afirmar que o debate desenvolvimento/subdesenvolvimento fosse percebido e analisado de forma idntica por todas as correntes que tocaram o tema. O que quero afirmar que negando (como Gudin) ou afirmando parcialmente e em termos da argumentao mais especificamente econmica (como R.Campos), propondo como finalidade a superao da condio burguesa ou a modernizao sem rupturas com capitalismo (oposio entre as correntes socialistas e o posicionamento de Simonsen e Furtado, por ex.), o debate sobre a questo nacional nesse perodo no pode escapar do lxico e da gramtica imposta pela teoria do subdesenvolvimento.

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    O trajeto Simonsen, Furtado e Cardoso

    H alguns elementos que legitimam a comparao entre as teses supracitadas. Num

    primeiro momento, orquestradas num mesmo percurso terico, estas manifestam a interface

    entre a dimenso econmica e a dimenso poltica; depois, d-se a condio de elaborao de

    uma perspectiva terica que trata ao mesmo tempo do passado histrico, do diagnstico do

    presente e da transformao do futuro. Enquanto diferena fundamental, alm da dimenso

    cronolgica (com a obra de Simonsen cobrindo as dcadas de 30/40, a contribuio furtadiana

    os anos 50 e 60 e a teoria de Cardoso o final dos anos 60 e a dcada de 706), as mudanas

    encontradas variam da diversidade de diagnstico com relao interpretao da dinmica do

    capitalismo mundial, das limitaes estruturais que condicionam o atraso e do lugar atribudo

    aos condicionantes econmicos e/ou polticos e, em especial, a alterao da nfase que vai do

    vis econmico em Simonsen para a preponderncia do vis poltico em Cardoso.

    Lembrando que o objetivo deste artigo identificar os termos da unidade entre os

    autores - procurando um percurso terico comum e um dilogo estabelecido - e suas

    diferenas conceituais (constitutivos de diferentes projetos ou vias de desenvolvimento), o

    momento seguinte se preocupa com os pontos de identificao passveis de serem detectados

    no conjunto das obras recortadas para anlise. Diante disso, o primeiro deles refere-se ao

    lugar ocupado por essas produes ao longo da trajetria do pensamento social brasileiro no

    sculo XX, a qual pode ser subdividida em trs grandes fases: 1) a identificao entre

    problema nacional e questo institucional e/ou cultural que vai da segunda metade do sculo

    XIX at a crise de 1930; 2) o perodo que justaps a questo nacional ao dilema do atraso

    econmico e, por conseguinte, o projeto de construo da Nao no bojo do desafio da

    modernizao capitalista (1930/1970), sendo absorvido no complexo terico

    subdesenvolvimento e desenvolvimentismo; 3) o perodo mais recente, posterior ao processo

    6 Como este artigo trabalha com uma anlise comparativa necessrio frisar o que e que obras esto sendo comparadas, at porque os autores selecionados possuem no apenas uma diversidade de obras (espalhadas ao longo do tempo e tratando de questes variadas), como seu percurso intelectual acaba incorporando mutaes tericas capazes de caracterizar fases distintas de produo. Do conjunto da obra de Roberto Simonsen este estudo trata dos seguintes textos: As crises no Brasil (1930), As finanas e a indstria (1931), Ordem econmica e padres de vida (1934), A planificao da economia brasileira (1944) e A controvrsia do planejamento (1945) textos que configuraram a clebre diatribe entre Simonsen e Eugnio Gudin e os quatro trabalhos sobre os efeitos do Plano Marshall e da economia do ps-guerra nos paises latino-americanos; dos textos de Celso Furtado foram selecionados A pr-revoluo brasileira (1962), Dialtica do desenvolvimento (1964) e Teoria e Poltica do desenvolvimento econmico (1967); de Fernando Henrique Cardoso tratamos de Empresrio industrial (1964) e de Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina (1968 primeira edio e 1993 edio usada neste artigo), em parceria com Enzo Faletto.

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    de esgotamento do modelo desenvolvimentista nos anos 80 e que trabalha com o tema da

    excluso social. Nesta sistematizao, a primeira fase lida com o tema do ser nacional

    (mesmo em seu apelo negativo), a segunda com a questo da produo de riqueza como telos

    da construo nacional e a terceira com o problema da distribuio desigual do progresso

    alcanado na esfera scio-econmica brasileira ao longo de seu processo de industrializao7.

    Na disposio temporal, Simonsen, Furtado e Cardoso esto abrigados teoricamente no

    perodo que discute a tragdia do subdesenvolvimento, do atraso e da dependncia,

    desdobrado atravs de uma leitura do passado e do presente que contamina as possibilidades

    de futuro. Assim, o diagnstico dos trs autores passa pela re-leitura do problema do que

    somos, nosso lugar no mundo e nossa projeo de futuro, promovendo um conjunto de

    reflexes que trabalha a arquitetura econmica como elemento nodal das estruturas polticas.

    Embora possam ser abrigados sob a tutela desse amplo espectro analtico, h diferenas

    na maneira como o tema tratado para cada autor. Enquanto diagnstico a leitura proposta

    por Simonsen e Furtado carrega muito da interpretao do passado colonial na anlise do

    presente (formao histrica e entraves estruturais da ordem produtiva), enquanto o trabalho

    de Cardoso dirige sua observao muito mais para a morfologia e a fisiologia do presente

    naquele momento (atores polticos e o arranjo entre interesses internos e externos como

    elemento estruturante). No campo do prognstico as diferenas so mais marcantes. Simonsen

    e Furtado postulam um projeto ntido e bastante definido de Nao autnoma (econmica e

    politicamente) por meio de uma reverso do quadro de assimetria no concerto mundial das

    naes. Cardoso ao tratar da dependncia como algo que atravessa e encadeia os interesses

    locais aos internacionais, e percebendo essa assimetria como uma camisa de fora histrica,

    fragiliza em muito o sonho da nao soberana ao questionar o projeto de superao da

    condio perifrica.

    Um outro ponto de contato entre as teorias do subcapitalismo, do subdesenvolvimento e

    da dependncia a filiao (ampla) a um mesmo campo poltico e ideolgico. Como

    anteriormente afirmado, a temtica expressa no problema subdesenvolvimento e

    desenvolvimentismo hegemnica no perodo 30/70. Isso no suficiente, no entanto, para

    igualar todas as correntes e autores que tenham passado ou tangenciado esse tema. De uma

    maneira geral, podemos subdividir o tratamento e os objetivos propostos por aqueles que

    utilizaram o jargo e as ferramentas propostas pelo desenvolvimentismo em trs grandes

    campos: o campo conservador, o campo da esquerda e o campo intermedirio, mais prximo

    7 Fase em que diante dos nveis de industrializao e modernizao das estruturas de mercado e das instituies polticas o tema da pobreza foi substitudo da excluso social.

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    do modelo social-democrata aparecendo como grupo conservador os pensadores que

    partindo do tema do atraso (dobrados forosamente aceitao da incapacidade, ao menos

    circunstancial, das virtudes do laissez-faire) eram empurrados a aceitar algum grau de

    planejamento e interveno do Estado, sem que isso significasse um projeto civilizatrio fora

    do campo dos valores liberais ou com um vis nacionalista8. O grupo conservador pode ser

    caracterizado pelo uso instrumental do planejamento, requerendo-o como ferramenta para

    superao de entraves no setor privado da economia ou na inovao schumpeteriana (alavanca

    econmica)9. De outro modo, o grupo de esquerda congrega todas as interpretaes que

    partindo da teoria das etapas da Revoluo Burguesa aceitavam o projeto de desenvolvimento

    como via de passagem para a superao do modelo econmico capitalista.

    A partir disso, as teorias de Simonsen, Furtado e Cardoso, mutatis mutandis, operam

    com o tema do desenvolvimento nos marcos do prprio projeto de modernidade capitalista:

    Simonsen afirmando a coincidncia de interesses entre capital e trabalho (tomando o primeiro

    como expresso da superioridade e vitalidade da atividade industrial) e defendendo uma

    civilizao machnica como corolrio da expectativa de Nao forte e soberana; Furtado

    refutando a alternativa de fechamento de regime ( direita ou esquerda) e defendendo o marco

    institucional e democrtico como pilar do prprio processo de desenvolvimento econmico;

    Cardoso por colocar a questo de modernizao das estruturas de regulao do conflito entre

    os diversos setores de classe anelados no processo de desenvolvimento econmico. H de

    comum ainda, entre os trs pensadores uma forte vinculao a crtica dos limites do

    liberalismo, ao ferramental e s teses keynesianas e ao entrecorte poderoso da economia

    poltica e da sociologia econmica.

    A transformao das idias que articulam as teses de Simonsen, Furtado e Cardoso

    pode ser explicada atravs de dois argumentos: o teste histrico e o reajuste terico10. O teste

    histrico expressa o movimento de alteraes por que passa a economia brasileira no perodo,

    e que modificaria os termos do problema; por conseqncia, seria inevitvel o reajuste

    terico, que mantendo intacto os pressupostos fundamentais da anlise do capitalismo

    8 A correlao entre nacionalismo e desenvolvimentismo (tomado enquanto promoo artificial do progresso econmico) aparece inicialmente na obra do economista alemo George F. List. Este argumento afasta-se do campo do liberalismo econmico clssico tanto pela crtica da diviso do comrcio quanto pela tarefa de pensar o desenvolvimento enquanto um processo social, portanto enquanto um sistema com base nacional, cujo epicentro o Estado como agente que representa a totalidade do interesse pblico. O vnculo tambm aparece (de maneira mais fraca) nas anlises de Myrdal (Teoria Econmica e Regies Subdesenvolvidas; Estado do Futuro) e Rostow (Etapas do Desenvolvimento Econmico). 9 Tese que aparece brilhantemente analisada por Cardoso em Empresrio industrial. 10 Neste caso um dos argumentos que possibilita esta anlise da constituio de idias-chave na produo de discursos polticos, a exemplo da tese de Pocock em Linguagens do iderio poltico, ou as disputas travadas pela elaborao de ideologias orgnicas e disputa pela hegemonia, como na formulao gramsciana.

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    brasileiro (assimetria, dependncia e condies tardias) faz ajustes e a releitura que atualiza o

    problema. Ao final, as teorias aqui analisadas compem um riqussimo quadro histrico e

    terico do processo de modernizao brasileira, apresentando as alternativas polticas

    construdas por projetos ideolgicos diversos porm atrelados ao mesmo campo semntico.

    Trs teses, trs projetos de Nao

    A tese do atraso econmico foi introduzida no pensamento social pelas mos de

    Roberto Simonsen11, e cumpria a funo de cimentar a ideologia industrialista em oposio

    hegemonia econmica e poltica do setor agrrio-exportador. Este movimento, no entanto, j

    configurava uma mudana estrutural do crescimento real das atividades industriais e do

    reincidente quadro de crise que abalava a economia cafeeira. A industrializao e a folga

    histrica de introspeco do mercado interno permitida pelas desarticulaes das economias

    centrais entre 1914 e 1929, operaram uma transformao significativa tanto no arranjo

    econmico (diversificao e diferenciao dos setores do capital forando o fracionamento e o

    surgimento de antagonismos endgenos burguesia) quanto nos projetos poltico e

    ideolgicos em voga (diferenciao dos interesses tambm impunha uma nova agenda de

    disputas e consolidao de outros arranjos polticos12). A defesa da industrializao como

    meio de superao da pobreza oriunda dos limites estruturais do modelo cafeeiro fruto da

    presena de um setor real, ligado aos interesses industriais e que passa a disputar o projeto de

    futuro para o pas (processo em que foi central o pensamento e a ao de Simonsen). Assim,

    enquanto ponto de partida na construo do tema subdesenvolvimento a roupagem terica

    desse conceito, lapidado por Simonsen, enfrentava uma batalha particular e ajustada ao

    perodo: o elemento da diferenciao ideolgica e a deslegitimao da ideologia da vocao

    agrcola sob o princpio de que o alto grau de instabilidade poltica que circunda os anos

    20/40 (originariamente a questo social) fruto de uma crise sistmica de origem econmica,

    tal qual ela se encontra13. Assim, a crtica ao modelo liberal de economia corresponderia a

    uma mudana de eixo no projeto civilizatrio o futuro o futuro da nao industrial.

    11 Como pano de fundo nos textos de 1930 e 1931 e abertamente no trabalho de 1934. 12 Exemplo notrio o processo de autonomizao dos interesses corporativos ligados ao setor industrial que se afasta ao longo das trs primeiras dcadas do sculo XX da hegemonia do setor agrrio, depois do arco de aliana com o setor comercial, consolidando um projeto de representao poltica e ideolgica prpria com a criao da FIESP. 13 A anlise de Simonsen neste ponto genial principalmente pela capacidade de utilizar os argumentos forjados pelo discurso das vantagens da vocao agrcola contra ela mesma: se h crise ela s pode ser explicada pelas caractersticas intrnsecas ao prprio modelo. Pior, se a indstria no pode se converter em um projeto de futuro por ser artificial, o que dizer de um modelo para o qual a necessidade de financiamento constante do Estado

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    Pari passu construo da teoria simonseana (que abrange trs dcadas no perodo

    nodal da modernizao) as transformaes reais ocorriam com a crescente e rpida mudana

    no cinzelamento da diferenciao das classes ligadas ao capital e ao trabalho. A urbanizao,

    o aumento da importncia da indstria na composio da economia nacional, o constante

    rearranjo dos pactos polticos sob a centralizao e burocratizao do Estado getulista, a

    mudana dos paradigmas econmicos e polticos mundiais, entre outros itens, produziram

    uma tal gama de alteraes que foraram uma adaptao da teoria s novas condies

    histricas (do teste histrico ao reajuste terico). Este o percurso que articula as trs teorias

    dentro de um mesmo campo semntico e que foram ajustando a gramtica e o discurso s

    alteraes histricas e aos limites explicativos ali engendrados. A conjuntura que cerca a

    produo intelectual simonseana orienta o esforo desse intelectual para algumas tarefas

    bsicas: deslegitimar o modelo econmico mercantil exportador (cuja ferramenta central a

    teoria da pobreza ou pauperismo estrutural), legitimar o nascente projeto industrial (que exige

    o afastamento do argumento liberal e sua aproximao das concepes de List, Manoilescu,

    Ford e Keynes14) e estabelecer um projeto possvel para o desenvolvimento industrial (defesa

    da ao corretiva do Estado e do planejamento econmico).

    O momento vivido e problematizado por Furtado encontrar um Estado centralizado e

    centralizador, marcado desde o final da dcada de 40 por um projeto desenvolvimentista

    (Plano Salte em 1948 e Plano de Metas em 1956), por uma intelligentsia e uma burocracia

    afinada com a ideologia do planejamento, e um re-direcionamento para a defesa do projeto

    industrial. Enquanto etapa da batalha da modernizao via industrializao uma grande parte

    j havia sido vencida. Sendo assim, o problema passa a desdobrar-se no contedo do projeto

    de desenvolvimento: qual o projeto de futuro e quais os elementos que permitiriam uma

    escolha acertada para o salto do desenvolvimento15?

    nica condio de sobrevivncia diante das constantes crises mundiais de preos? O que haveria de virtude numa atividade econmica que precisa ser sustentada artificialmente pelos escassos recursos de uma nao pobre? A socializao forada dos dficits do caf seria prova suficiente de sua condio espria, mantendo intactos os argumentos e a lgica da prpria explicao liberal. 14 Todos estes autores aparecem citados diretamente por Simonsen: anlise fortemente centrada em Ford, List e Manoilescu (autor do O sculo do corporativismo e Teoria do protecionismo e da permuta internacional) nas obras de iniciais, e especialmente Keynes nos textos dos anos 40 (embora j citado nos trabalhos de 30 e 31). 15 Vejamos esta percepo na prpria voz de Furtado: fixou-se assim, no meu esprito a idia que o homem pode atuar racionalmente sobre a histria (...). Aqueles que alcanam este ponto, isto , que pensam que o homem pode conduzir a histria, quase sempre j esto preparados para dar o passo seguinte, ou seja, pensar que ele deve faz-lo. O problema que se coloca ento o de saber como faz-lo, ou mais adiante no mesmo texto: desta forma cheguei ao estudo da economia, por dois caminhos distintos: a histria e a organizao. Os dois enfoques levavam a uma viso globalizante, macro-econmica (...). a economia no chegaria a ser para mim mais do que um instrumental, que me permitia, com maior eficcia tratar problemas que me vinham as observaes da histria ou da vida dos homens em sociedade [grifos do autor] (Furtado em Auto-retrato intelectual in Oliveira, 1983: 35/37).

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    No , portanto, acidental que a reflexo furtadiana adentre no campo da teoria

    econmica: no sendo neutra a tese do desenvolvimento planejado, a mesma pode ser

    interpretada e dirigida para inmeros fins. Assim, se Simonsen havia sustentado o modelo de

    desenvolvimento industrial sob das balizas da assimetria das relaes do comrcio

    internacional (leitura que nos textos da dcada de 40 antecipam praticamente todos os

    argumentos do Manifesto dos Perifricos de 1949) e a correlao entre soberania nacional e

    autonomia econmica, Furtado, sem rebater estes pontos, produz um deslocamento do tema

    para a dimenso da anlise especificamente econmica sem descurar a questo poltica. Tanto

    Formao Econmica do Brasil quanto os demais textos selecionados neste artigo observam a

    questo histrica (o desenvolvimento do capitalismo e a hierarquizao da diviso do trabalho

    internacional), mas aprofunda este tema em duas direes: uma inovao na leitura do ritmo

    histrico e uma contribuio para a anlise da teoria ou da dinmica econmica.

    No primeiro caso, a inovao aparece no estatuto dado as economias mundiais em sua

    arquitetura: entre os pases ricos e os pases pobres, a gama dos pases subdesenvolvidos

    tambm aparece subdividida em hierarquias: economias subdesenvolvidas de grau superior e

    grau inferior (Furtado, 1967). A diferena, que determinada pelo nvel de isolamento entre o

    ncleo moderno e pr-capitalista dessas estruturas produtivas (enclaves e/ou diversificao no

    quadro do dual-estruturalismo), que pode permitir ou no a passagem para uma economia

    evoluda. Sem querer avanar o curto espao proposto neste artigo, esta tese furtadiana

    equivale a uma releitura formal do capitalismo, negando-lhe a premissa e a promessa de sua

    universalizao e gerao do progresso ao longo do tempo; nela a hierarquia e as assimetrias

    so aspectos funcionais do sistema. No segundo caso, por dentro dos raciocnios da dinmica

    do desenvolvimento, h um deslocamento e um amadurecimento terico com relao leitura

    simonseana: o papel do planejamento e sua funo distributivista.

    Simonsen havia previsto em sua frmula que o projeto nacional passava pela

    industrializao, pea chave para elevar a produtividade e a renda geral do sistema; no

    entanto, o promotor desse processo era o setor do capital industrial capaz de racionalizar a

    produo, entronizar o ciclo virtuoso da renovao tecnolgica, dirimir os conflitos entre

    capital e salrios (dando uma ratio e uma renda aos trabalhadores) e promover a constante

    elevao do progresso material da sociedade e o fortalecimento da nao. A valorizao do

    capital vem, em sua teoria, antes do trabalho (alis, Simonsen o pai j em seus textos da

    dcada de 10 da frmula crescer primeiro e dividir depois). Desse modo, embora haja de

    fato em sua teoria uma funo da distribuio dos frutos do progresso tcnico como resultado

    do processo produtivo, este conseqncia e no causa da dinmica econmica.

  • 11

    Furtado, ao contrrio, coloca a distribuio no centro da dinmica econmica, e o faz

    subvertendo o papel do capital e do conflito. No quadro de uma economia subdesenvolvida o

    capital acaba por agir de maneira desastrosa (o vnculo com a tese da irracionalidade do

    capital em Keynes inequvoco): investe em setores de retorno rpido do lucro (aumento o

    estrangulamento e os gargalos estruturais que impedem a economia de passar para a etapa de

    produo de bens de produo); produz efeito demonstrao que agrava distores do

    mercado consumidor; extrai lucro rpido por utilizar tcnica de extrao de maisvalia

    absoluta (que deprime o tamanho do mercado e a capacidade de reproduo ampliada do

    capital); queima poupana/investimento em consumo sunturio. O resultado desta corte de

    horrores que no projeto de desenvolvimento o capital privado suspeito, e deve ser

    fiscalizado e regulado pelo Estado (com a adoo de mecanismos indiretos de poltica macro-

    econmica e intromisso direta de alterao da estrutura dos setores produtivos). No ngulo

    oposto da anlise, ao contrrio de Simonsen que tinha pavor do conflito, Furtado coloca as

    formas vrias de antagonismo no centro do projeto nacional. A articulao e a presso dos

    trabalhadores por melhores salrios no s importante como fundamental: sua existncia

    permite tanto aumenta o tamanho do mercado consumidor (Furtado pertence ao campo da

    economia do lado da demanda) quanto obriga os capitalistas a constante renovao

    tecnolgica e a adotarem o ciclo da inovao schumpeteriana ao impedirem a frmula do

    lucro fcil pela diminuio dos salrios; a presso no campo da sociedade civil (marco

    institucional, sociedade aberta to defendidos nos textos de 1962 e 1964) tambm controla o

    capital, pois modela, orienta e fiscaliza a ao planejadora do Estado e a distribuio de

    recursos. O dilema central no campo poltico para Furtado aquele em a ferramenta

    necessria do planejamento coloca em cena um problema gravssimo: quem controla os

    controladores? A aposta furtadiana, que em sua tese central fortalece de maneira radical o

    poder e o papel do Estado (e de seus grupos funcionais internos), que este precisa ser

    controlado pela sociedade, principalmente em sua funo de promotor do desenvolvimento.

    Ou seja, h em seu raciocnio em determinao recproca entre economia e poltica em dois

    nveis: o projeto de futuro passa pela economia, mas tem um telos social ( desenvolvimento e

    no mero crescimento econmico), sendo que para realizar a economia as ferramentas

    adotadas vm do campo poltico e no estritamente econmico: conflito distributivista,

    regulao pela arena competitiva da democracia e da opinio pblica, regulao e projeto de

    estruturao econmica orquestrados e mediados pelo Estado.

  • 12

    Em resumo, toda a construo do raciocnio econmico em Furtado eqaliza a teoria

    econmica (como meio) para a definio de um projeto poltico (como fim) e no qual a figura

    chave para pensar o desenvolvimento democrtico16 a Nao.

    Atualizando a dependncia

    Diferentemente da distncia temporal entre Simonsen e Furtado (Simonsen falece em

    1948 - poca em que Furtado, em Paris, defende sua tese Lconomie coloniale brsilienne),

    Fernando Henrique Cardoso e Celso Furtado so praticamente contemporneos, esto

    fortemente ligados ao universo acadmico (Simonsen, ao contrrio, tinha uma dupla atividade

    a produo intelectual era contrabalanada pela ao empresarial e corporativa) e ao grupo

    cepalino. O dilogo entre eles tambm trabalha com elementos inditos: o re-arranjo das

    relaes capitalistas internacionais posteriores segunda guerra mundial (cenrio em que

    pesam mudanas como a ciso da Guerra Fria, a exploso mundial do american way of life e

    do boom da industrializao das economias perifricas ocidentais, o Tratado de Breton

    Woods, a criao de mecanismos financeiros mundiais e, no plano intelectual, do surgimento

    da teoria da modernizao17). No cenrio nacional o episdio de 64 e a concretizao de um

    modelo de desenvolvimento fechado politicamente e excludente economicamente colocavam

    em xeque as previses implcitas na teoria do subdesenvolvimento (relao de determinao

    direta entre desenvolvimento, democracia e distribuio de renda)18. A anlise de Cardoso e

    Faletto19, tomada como epicentro da teoria da dependncia procura ajustar a questo do atraso

    e das vias de desenvolvimento a esta nova perspectiva aberta pelo choque de realidade da

    industrializao do subdesenvolvimento sob regimes autoritrios20.

    16 A consecuo ou manuteno de um regime democrtico aberto, em que as classes assalariadas podem organizar-se para lutar por objetivos prprios, deve ser considerada como condio necessria do desenvolvimento social em um pas subdesenvolvido (Furtado, 1964: 88). 17 Teses fundamentais de Lypset (O homem poltico), S. Huntington (A Ordem Poltica nas Sociedades em Mudana) e A. Hirschman (Estratgia do Desenvolvimento Econmico) 18 No custa lembrar que Furtado rapidamente aceitou o erro de sua anlise, incorporando essa perspectiva em trabalhos posteriores. Tambm possvel aventar a questo de que o argumento formulado nos trabalhos de 1962 e 1964 orbitavam muito o cenrio de escolhas polticas e ideolgicas para o perodo. 19 Para efeito deste artigo a teoria da dependncia que aparece em Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina (DDAL) ser particularizada enquanto uma contribuio de Cardoso. No h aqui qualquer recusa sobre a paternidade de Enzo Faletto, mas apenas um ajustamento ao quadro comparativo do pensamento social brasileiro. Pode-se observar ainda que o conceito de dependncia crucial para outras anlisesposteriormente produzias por Cardoso. 20 Curiosamente, embora se costume afirmar nos bastidores da cincia social brasileira que tanto a criao do grupo do capital quanto a elaborao da teoria da dependncia fossem passos de Cardoso para se afastar da influncia formadora de Florestan Fernandes, os dois textos que melhor trabalham o cruzamento entre poltica, economia e formao histrica, capazes de explicitar a particular forma brasileira de modernizao inconclusa e autoritria so exatamente os trabalhos de Cardoso (op cit) e o de Fernandes, A Revoluo Burguesa no Brasil.

  • 13

    Tomando-se como eixo de anlise a reviso da teoria do subdesenvolvimento frente

    condio histrica de capitalismo associado-dependente, podemos avaliar os argumentos

    encontrados em DDAL em dois planos: um metodolgico e outro de alcance poltico. O

    primeiro, questiona a capacidade explicativa e as limitaes (ou incorrees) que a

    perspectiva do estruturalismo do subdesenvolvimento teriam para entender-se o quadro real,

    complexo e multideterminado que caracterizava as sociedades latino-americanas. O segundo

    aspecto, ao interpretar e diagnosticar a condio econmica e poltica de uma sociedade

    dependente diante dos movimentos mundiais das relaes capitalistas estabelecia um

    horizonte bem mais baixo para os projetos de desenvolvimento nacionalista.

    A construo da teoria da dependncia em Cardoso origina-se numa recusa da

    perspectiva esttica e simplificadora tanto das teorias da modernizao quanto da leitura do

    dual-estruturalismo furtadiano e cepalino. A idia de um mecanismo unvoco e linear de

    transformaes da economia para a poltica no funcionava pois a insero das economias

    dependentes nas relaes mundiais prejudicada pela constante mutao do patamar destas: o

    fosso uma conseqncia do tempo histrico processual, portanto sempre re-atualizada.

    Tambm interferem as condies singulares de cada sociedade e da variada articulao

    econmica, poltica e institucional vigente internamente. Percepes do quadro universal

    encontram o desafio das condies particulares de cada caso histrico (uma variante da

    sociologia histrica).

    A recusa do dual estruturalismo aponta para a complexa e articulada combinao dos

    interesses internos na expanso mundial do capitalismo enquanto crescimento desigual e

    combinado. A nica forma de entendermos o que e a possibilidade de futuro das sociedades

    perifricas passa pela compreenso das caractersticas endgenas econmicas, sociais e

    polticas em seus arranjos historicamente constitudos. Por outro lado, o mesmo peso da

    histria singular atribudo em termos internacionais a dinmica do capitalismo que dispe e

    repe em novas bases seu processo central de assimetrias funcionais.

    Em grande parte a proposta da teoria do capitalismo associado-dependente clareia uma

    possibilidade no coberta tanto por Simonsen quanto por Furtado: a do desenvolvimento

    industrial poder ocorrer mantendo intactas as condies de dependncia da economia nacional

    em relao s economias centrais e o fechamento dos regimes polticos (ou seja, a democracia

    no elemento central do processo de modernizao capitalista). A distncia entre a

    perspectiva de dependncia de Cardoso e teoria do atraso em Simonsen maior quando

    pensamos na heterogeneidade presente na composio das fraes que compem o setor

    industrial e sua correlao com os demais grupos do capital interna e externamente. O sonho

  • 14

    de uma burguesia nacional e nacionalista oriunda da ao e projeto dos setores industriais no

    possvel porque as assimetrias das relaes centro-periferia aparecem na prpria constelao

    do capitalismo nacional em sua rota de internacionalizao do mercado interno. Em oposio

    a Furtado, a dvida sobre a capacidade do salto de desenvolvimento e de controle atravs de

    estratgias polticas sobre as foras do capital aponta para o enfraquecimento do sonho

    nacionalista e do projeto de desenvolvimento democrtico e distributivista ao mesmo tempo

    em que assinala a arena do confronto poltico enquanto locus fundamental para anlise do

    problema.

    O conjunto de concepes que promovem uma nova interpretao e diagnstico da

    condio perifrica acaba, no seu desdobramento lgico, por elencar um novo grupo de

    alternativas para a construo de projetos de futuro. H na anlise de Cardoso um curioso

    paradoxo: exatamente no momento em que a teoria do atraso assume sua maior faceta

    poltica - a interpretao histrica proposta pela teoria da dependncia exige o estudo das

    condicionantes e dos arranjos poltico-institucionais entre os diferentes interesses sociais, e

    mais, coloca como questo central o espectro poltico e no a estruturao econmica que

    o tema da Nao perde peso e norte explicativo. Mesmo que se constitua uma base geogrfica,

    organizada em centro de deciso e normatizao do conjunto das relaes sociais de um povo,

    a idia de uma autonomia e um desejo de autodeterminao poltica francamente debilitada

    quando se discute o limite do possvel e deste associado ao elemento de uma interdependncia

    como substitutivo dependncia.

    Como resultado, muito embora Cardoso recuse o voluntarismo ao no incorrer na v

    pretenso de tentar delimitar teoricamente o curso provvel dos acontecimentos e com isso

    aumentar o peso das decises atravs das aes coletivas motivadas por vontades polticas,

    simultaneamente estabelece balizas reducionistas j que o futuro delimitado pelo curso do

    provvel21. Uma pergunta me leva a afirmar que ao mesmo tempo em que a teoria do

    capitalismo associado-dependente uma resposta analtica slida ao uso populista e simplista

    da tese do subdesenvolvimento, sua interpretao tambm pode ser politicamente ambgua: se

    o curso do provvel a articulao de respostas polticas locais a estruturas que se originam

    nas assimetrias econmicas mundiais h alguma possibilidade real de transpor essa limitao?

    Colocando a questo de outra forma. Ao fechar o texto de DDAL encontramos a afirmao de

    que a superao ou manuteno das barreiras estruturais ao desenvolvimento e a dependncia

    dependem mais de que condies econmicas tomadas isoladamente, do jogo de poder que

    21 Cardoso e Faletto, 1993: 143.

  • 15

    permitir a utilizao em sentido varivel dessas 22, mas se o jogo do poder em parte

    internalizao dos conflitos entre fraes de classes em suas disputas e alianas internas e

    externas, e essas brotam originariamente do movimento mundial e da dinmica capitalista,

    qual a chance de que por dentro do espectro poltico nacional surja uma fora e uma

    articulao capaz de alterar a estrutura que lhe deu origem23? Desconstruindo o discurso

    nacionalista sob a gide de ser um raciocnio falso24, a anlise da teoria da dependncia

    desarma ou impossibilita um projeto poltico nacional ao estabelecer a reduo do grau de

    liberdade com que dentro das assimetrias historicamente desenhadas possa haver espao para

    mudana nessa mesma hierarquia. Pergunta final: as naes perifricas estaro, assim,

    condenadas a serem sempre perifricas?

    Referncias Bibliogrficas

    CARDOSO, Fernando H. (1964). Empresrio Industrial em So Paulo. So Paulo: Difel. CARDOSO, Fernando H.; FALETTO, Enzo. (1993), 7a edio, Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina. Rio de Janeiro, Editora Guanabara. CEPDA, Vera Alves. (1988), Razes do pensamento poltico de Celso Furtado desenvolvimento, nacionalidade e Estado democrtico. Dissertao de Mestrado FFLCH/ USP. (datilo). ____________________. (2004), Roberto Simonsen e a formao da ideologia industrialista no Brasil. Tese de Doutorado. FFLCH/ USP. (datilo). FURTADO, Celso. (1962), Pr Revoluo Brasileira. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura. _______________. (1964), Dialtica do Desenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura. _______________.(1965), Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. 3 edio. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura. _______________.(1967), Teoria e Poltica do Desenvolvimento Econmico. So Paulo, Cia

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    22 Op. cit, pgina 142. 23 Lembrar que uma das novidades mais relevantes na tese do capitalismo associado-dependente a superao da dicotomia interno-externo, como se o capitalismo pudesse desenvolver-se no espao das economias nacionais como um organismo dotado de uma qualidade distinta daquela produzida mundialmente. 24 A capacidade dirigente e existncia de um projeto nacional construdo por uma burguesia nacional em Simonsen ou o planejamento demiurgo em Furtado.

  • 16

    SIMONSEN, Roberto C.. (1930), As crises no Brasil. So Paulo, So Paulo Editora. ____________________. (1931), As finanas e a indstria. So Paulo, So Paulo Editora. ____________________.(1932) margem da Profisso. So Paulo, So Paulo Editora. _____________________. (1934), Ordem econmica, padro de vida e algumas realidades brasileiras. So Paulo, So Paulo Editora. ___________________.(1937), A indstria em face da economia nacional. So Paulo, Revista dos Tribunais. ___________________. (1940), Nveis de vida e a economia nacional. So Paulo, s/editora. ___________________. (1943), Alguns aspectos da poltica econmica mais conveniente ao Brasil no perodo de aps-guerra geografia e poltica industrial. So Paulo, FIESP. ____________________ (1944), Planificao da economia brasileira parecer apresentado ao CNPIC. So Paulo, FIESP. ___________________. (1945), O planejamento da economia brasileira rplica ao Sr. Eugnio Gudin. So Paulo, s/editora. ___________________. (1947a), Sugestes para uma poltica econmica pan-americana: problemas do desenvolvimento econmico latino-americano. Rio de Janeiro, CNI. _________________. (1947b), O Plano Marshall e suas provveis repercusses econmicas na Amrica Latina. Rio de Janeiro, s/editora. ___________________.(1948) A situao econmica da Amrica Latina e suas possibilidades em face do Plano Marshall. So Paulo, Departamento de Economia Industrial, FIESP. _______________. (1949), O Plano Marshall e um novo critrio nas relaes internacionais. Rio de Janeiro, s/editora.