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18/09/2015 CENTRO DE ESTUDOS CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR 1 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA OS 25 ANOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR DES. NEY WIEDEMANN NETO – Bom-dia a todos! Vamos dar início a mais um encontro do Projeto Horizontes do Conhecimento do Centro de Estudos. Estamos sendo prestigiados com a presença do nosso 3° Vice-Presidente, Des. Francisco José Moesch, que vai conduzir os trabalhos e apresentar os palestrantes, Dr. Bruno Miragem e Dra. Cláudia Lima Marques, a quem, desde já, agradeço pelo comparecimento e pela aceitação do convite para falarem sobre um tema que é muito caro a todos nós, o Código de Defesa do Consumidor, ferramenta de trabalho de todos os que atuam na jurisdição do Direito Privado. O Código do Consumidor, que foi revolucionário e mudou muito os paradigmas da própria relação na sociedade, está completando este mês 25 anos. Para festejarmos esse aniversário convidamos pessoas que têm se destacado como protagonistas na reflexão, na pesquisa, no estudo e na doutrina do Código de Defesa do Consumidor. Agradecendo aos senhores por estarem aqui conosco, passo a palavra ao Des. Francisco José Moesch, que conduzirá os trabalhos desta manhã. DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH – Gostaria de dizer que é uma alegria muito grande participar, juntamente com o Des. Ney Wiedemann Neto, do Projeto Horizontes do Conhecimento. Hoje estamos comemorando os 25 anos de uma lei realmente revolucionária. Posso dizer aos senhores que eu fui uma espécie de testemunha ocular dessa lei nos últimos 30 anos, desde o seu anteprojeto. O

ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO … · Miragem, que é Doutor e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade ... Brasileiro, sem dúvida nenhuma, é um

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OS 25 ANOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

DES. NEY WIEDEMANN NETO – Bom-dia a todos! Vamos

dar início a mais um encontro do Projeto Horizontes do Conhecimento do

Centro de Estudos.

Estamos sendo prestigiados com a presença do nosso 3°

Vice-Presidente, Des. Francisco José Moesch, que vai conduzir os trabalhos e

apresentar os palestrantes, Dr. Bruno Miragem e Dra. Cláudia Lima Marques,

a quem, desde já, agradeço pelo comparecimento e pela aceitação do convite

para falarem sobre um tema que é muito caro a todos nós, o Código de

Defesa do Consumidor, ferramenta de trabalho de todos os que atuam na

jurisdição do Direito Privado.

O Código do Consumidor, que foi revolucionário e mudou

muito os paradigmas da própria relação na sociedade, está completando este

mês 25 anos. Para festejarmos esse aniversário convidamos pessoas que têm

se destacado como protagonistas na reflexão, na pesquisa, no estudo e na

doutrina do Código de Defesa do Consumidor.

Agradecendo aos senhores por estarem aqui conosco, passo

a palavra ao Des. Francisco José Moesch, que conduzirá os trabalhos desta

manhã.

DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH – Gostaria de dizer que é

uma alegria muito grande participar, juntamente com o Des. Ney Wiedemann

Neto, do Projeto Horizontes do Conhecimento.

Hoje estamos comemorando os 25 anos de uma lei realmente

revolucionária. Posso dizer aos senhores que eu fui uma espécie de

testemunha ocular dessa lei nos últimos 30 anos, desde o seu anteprojeto. O

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trabalho passou por importantes valores que foram escolhidos, primeiro, por

uma comissão de juristas internacionais, depois por uma comissão do

Ministério de Justiça, para depois, o que é muito importante, ter a recepção do

nosso sistema de administração da Justiça.

Quero saudar de forma muito especial o Des. Ney Wiedemann

Neto, Coordenador do nosso Centro de Estudos. Há pouco eu dizia à

Professora Cláudia e ao Professor Bruno que o Des. Ney Wiedemann Neto

me lembra um músico da minha cidade chamado Henrique Uebel, que tocava

sete instrumentos ao mesmo tempo. O Des. Ney está fazendo isso hoje na

Administração do Tribunal, e faço esse reconhecimento público pelo seu

trabalho e pela sua disponibilidade, em nome do Presidente Aquino e em

nome da Administração. O nosso reconhecimento também à sua equipe junto

ao Centro de Estudos.

O Código de Defesa do Consumidor foi revolucionário porque

trouxe direitos básicos dos consumidores, não só por estarem na lei, mas

também por esses direitos básicos serem uma recomendação da ONU a todos

os países filiados. O Código modificou questões ligadas à saúde, ao serviço

público, à oferta, à qualidade de produtos, à responsabilidade objetiva, à

questão da publicidade, à questão da responsabilidade civil por danos morais,

patrimoniais, individuais, coletivos e difusos, assim como o acesso à Justiça.

No nosso entender, todo esse trabalho de 25 anos com o

Código de Defesa do Consumidor, que precisa sempre de uma vigilância no

todo e no detalhe, tem dois grandes destaques: o Professor Bruno Miragem e

a Professora Cláudia Lima Marques.

Apresento um resumido currículo do Professor Bruno

Miragem, que é Doutor e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É graduado em Ciências

Jurídicas e Sociais pela mesma Instituição, onde obteve os títulos de

Especialista em Direito Internacional e Especialista em Direito Civil. É

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Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul no curso de Graduação e no programa de Pós-Graduação em

Direito. É Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do

Consumidor. Tem experiência na área de Direito, com atuação acadêmica e

exercício da advocacia nas áreas de Direito Civil, Direito do Consumidor,

Direito Econômico, Direito Empresarial e Direito Administrativo. E acrescento o

Direito Constitucional.

Posso dizer aos senhores que o Professor Bruno é um dos

autores mais consultados, principalmente nas atividades do nosso Órgão

Especial, especialmente em sua obra Comentários à Constituição do Rio

Grande do Sul.

Gostaria de registrar que considero uma homenagem o que a

Professora Cláudia, o Professor Bruno e o Ministro Benjamin fazem à

Magistratura Nacional e à Magistratura do Rio Grande do Sul, assim como é

uma homenagem aos senhores que integram este auditório, na condição de

servidores do Tribunal, de convidados – e aqui estão a Professora Tereza

Cristina, o Professor Marcos, o Des. Miguel Ângelo, o Des. Jorge do Canto, a

Desa. Ana Paula e tantos outros.

Saliento que, de nada adiantaria a lei tratar de direitos

básicos, de princípios gerais, de responsabilidade civil, de práticas comerciais

abusivas, de sanções administrativas, de infrações penais, se não houvesse

receptividade de interpretação nos Tribunais.

Queremos homenagear o Professor Bruno Miragem e a

Professora Cláudia Lima Marques e dizer que a presença dos senhores nesta

comemoração dos 25 anos do Código de Defesa do Consumidor é uma honra

para todos nós.

É com muito orgulho para o nosso Tribunal que passamos a

palavra ao Professor Bruno Miragem.

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DR. BRUNO MIRAGEM – Bom-dia a todos! É com muita

satisfação que temos a oportunidade de estar neste Tribunal.

Cumprimento o nosso estimado Professor-Desembargador

Francisco Moesch, o estimado Professor-Desembargador Ney Wiedemann, os

Senhores Desembargadores que nos prestigiam, colegas servidores,

convidados, professores, estudantes, advogados. É um grande orgulho

pessoal estar aqui com os senhores festejando os 25 anos do Código de

Defesa do Consumidor.

Entrando neste espaço onde ocorrem as sessões do Pleno,

que eu tanto assisti, acabei me dando conta de que eu comecei a estudar

Direito do Consumidor nos livros da Professora Cláudia e nas decisões do

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Nas primeiras pesquisas, na época

da Graduação ainda, eu optei por fazer pesquisas de jurisprudência. Não sei

se hoje eu teria fôlego para aquelas pesquisas volumosas, para fazer um

panorama dos 10 anos de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul em temas relacionados ao Direito do Consumidor.

Como foi dito pelo Des. Francisco Moesch, a história do

Direito do Consumidor no Brasil é uma história pré-legislativa, com os

movimentos de consumidores, com a articulação de professores, ativistas,

consumeristas. Torna-se uma história legislativa com o advento do Código de

Defesa do Consumidor, realizando um mandamento constitucional de

proteção do consumidor, inscrito pelo constituinte no art. 5°, inc. XXXII, no art.

170, inc. V e no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,

que determinou a realização de um Código.

Eu tenho absoluta tranquilidade de dizer, e tenho certeza que

muitos convergirão com o meu pensamento, que nós não teríamos uma lei

com esse vigor e não teríamos uma disciplina jurídica como é o Direito do

Consumidor hoje, com a sua autonomia, com a sua riqueza do ponto de vista

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conceitual, do ponto de vista das eficácias que ele construiu nos vários temas

em que se envolve, se não fosse o papel da jurisprudência.

No Brasil é lugar comum falar-se de leis que pegam ou de leis

que não pegam. Falar-se da pouca eficácia, da pouca efetividade de

legislações, muitas vezes muito bem intencionadas, mas que, por razões

próprias da nossa cultura, mais sociais que jurídicas, acabam não produzindo

os resultados esperados por quem as editou ou por quem delas pretendia

obter um resultado positivo aos seus interesses. O Código de Defesa do

Consumidor, felizmente, não foi uma dessas leis.

O Código de Defesa do Consumidor foi uma lei inovadora,

pode-se dizer com muita tranquilidade que foi uma lei revolucionária.

Revolucionária de conceitos, revolucionária na forma de se pensar uma série

de institutos no Direito Brasileiro, dentre eles institutos fundamentais do Direito

Privado.

Quem já me ouviu em outras oportunidades vai dizer que eu

repito a mesma coisa, mas eu aprendi que a gente às vezes tem que repetir

para não ser esquecido e para continuar valorizando e avançando. O contrato

é um antes e é um depois do Direito do Consumidor, a visão que nós temos

sobre o contrato no Direito Privado; a responsabilidade civil é uma antes e é

uma depois do Código de Defesa do Consumidor. A noção que nós temos de

responsabilidade, as hipóteses de responsabilização, a visão que nós temos e

elementos técnicos da responsabilidade civil, seja dos pressupostos de

responsabilidade, conduta, atividade, nexo de causalidade, nexo de

imputação, a noção de dano. O art. 6º do Código de Defesa do Consumidor

diz: “São direitos básicos do consumidor: inc. VI - a efetiva prevenção e

reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”.

Isso em 1990. Todo o trabalho dessa lei, todos esses conceitos do contrato,

da responsabilidade civil, matéria que não tínhamos até então uma visão, mas

de toda a construção que se estabeleceu em relação à noção de abuso, abuso

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do direito, abuso do exercício de prerrogativas jurídicas, cláusulas abusivas,

práticas abusivas.

No plano do Processo Civil, também é um Código que foi

muito cheio de si, invadindo transversalmente distintas áreas. O Processo Civil

Brasileiro, sem dúvida nenhuma, é um antes e é um depois do Código de

Defesa do Consumidor, e sabemos todos, não só em matéria de tutela coletiva

de direitos - pois de fato o Código instaurou, junto com a Lei da Ação Civil

Pública, um sistema de tutela coletiva -, mas também na tutela individual. O

Des. Ney tem trabalhado no âmbito do Tribunal de Justiça com o novo Código

de Processo Civil, e até hoje, volta e meia, apresenta-se com ideia de

novidade temas que foram inaugurados com o Código do Consumidor: tutela

específica da obrigação de fazer, não fazer e dar. A própria questão do ônus

da prova e a distribuição do ônus da prova. Claro que hoje se fala, dentro da

ideia de proteção ao consumidor, na inversão em favor do consumidor, mas

naquele tempo os processualistas diziam que subvertia a lógica do processo.

Agora, com o Novo Código de Processo Civil, estamos a discutir exatamente

uma noção de ônus da prova distribuído, de acordo com as possibilidades de

demonstração dos fatos no processo e de acordo com as condições das

partes. Ou seja, são temas que o Código de Defesa do Consumidor trouxe em

1990.

No âmbito administrativo, quanto ao Sistema Nacional de

Defesa do Consumidor, não há paralelo no mundo, mesmo com as suas

deficiências, com as suas dificuldades, dificuldades que são inerentes ao

Estado Brasileiro. Os PROCONs, que cumprem um papel fundamental, não

têm paralelo no mundo, com todos os problemas que temos. Só que esse

Código, com essas inovações todas, não seria nada mais que uma reflexão do

legislador, uma reflexão acadêmica até, não fosse o papel absolutamente

decisivo de todos os agentes que se envolvem na prática do Direito, muito

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especialmente a Magistratura, o Ministério Público, a advocacia, que tomaram

para si o Código e desenvolveram firmemente os seus conceitos.

O Código de Defesa do Consumidor deu a oportunidade ao

Direito Brasileiro de fazer aquilo que lemos nos livros e que foi feito em Direito

comparado em várias áreas. Hoje falamos com muita razão, com muita

felicidade e com muita alegria no princípio da boa-fé objetiva. Quando vamos

visitar os textos antigos para ver onde surgiu a ideia da boa-fé objetiva nos

deparamos com o § 242 do Código Civil Alemão, uma frase muito singela: “Os

contratantes devem se comportar de acordo com a boa-fé e os usos do

tráfego”. Uma frase que seria só uma frase, se não fosse o trabalho da

jurisprudência, se não fosse o trabalho da doutrina, se não fosse o trabalho de

quem constrói o sentido e o significado das regras do Direito, o Direito em

ação, o Direito que vem vivo dentro dos Tribunais.

Quando fazemos um balanço histórico e necessário desses 25

anos do Código de Defesa do Consumidor, percebemos que a expressão boa-

fé no Código de Defesa do Consumidor é singela no art. 4º; também na

cláusula abusiva, no art. 51, inc. IV. Naturalmente que a boa-fé no Direito do

Consumidor foi estrutural, de alguma maneira foi perpassando uma série de

institutos. Foi o Código do Consumidor que deu um sentido à noção de boa-fé

no Direito Brasileiro – e sobre isso não vou avançar, porque imagino que a

Professora Cláudia vá desenvolver a teoria que ela própria trouxe para o

Direito Brasileiro, a teoria do Diálogo das Fontes. O Direito Civil, em campo

importante e fundamental da aplicação do princípio, também se apropriou

desses. Mas foi a jurisprudência - com a doutrina, com a advocacia, com o

Ministério Público, e agora com a Defensoria Pública - que construiu no Direito

em ação, nas sessões deste Tribunal e de tantos Tribunais do Brasil, o

significado da regra de Direito que se pôs no Código de Defesa do

Consumidor.

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Hoje, 25 anos depois, deparamo-nos com os êxitos e com as

frustrações. As datas inteiras, 15, 20, 25, 30 anos, sempre são épocas de

balanço, assim como na vida pessoal também, se fiz 30 anos, se fiz 40 anos,

fiz 50 anos. E agora? Só sobram mais tantos. Na legislação não é diferente. O

Código de Defesa do Consumidor está fazendo 25 anos e é uma época de

balanço. O que deu certo são as coisas que nós conquistamos, que não são

só conquistas do consumidor, são conquistas do Direito Brasileiro.

Hoje está instalado aqui no prédio do Tribunal de Justiça o

Placar da Justiça, organizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros,

mostrando que existem 105 milhões de ações no País. Esse número é

assustador, pois são 105 milhões de ações em um País de 200 milhões de

habitantes. Temos várias leituras possíveis. Uma delas é dizer que somos um

País cada vez mais litigioso, em que o litigar faz parte do hábito das pessoas.

Outra leitura possível é dizer que esse número chegou desde quando as

pessoas passaram a ser titulares de direitos, ou conscientes de que são

titulares de direitos e que têm um recurso para fazer valer os seus direitos,

que é o Poder Judiciário. No Placar da Justiça há a referência de que 42

milhões de ações não deveriam estar na Justiça, e não deveriam estar porque,

em um sistema de direito - qualquer que seja, em qualquer lugar do mundo -,

para que esse direito seja obrigatório é necessário certo grau de cumprimento

consensual e espontâneo dos destinatários da norma.

Você conhece a norma, você cumpre por determinação a

conduta que lhe é imposta pela lei. No entanto, por várias razões de natureza

cultural, algumas de natureza estrutural, em um jogo de compensações, pode

ser que também valha a pena não cumprir a norma. É certo que 42 milhões de

ações não tratam de Direito do Consumidor, mas certamente, dentro do

mercado de consumo, alguns agentes econômicos, dentro do seu raciocínio

econômico da atividade, fazem a ponderação de que suportar certo número de

ações é algo que vai bem do ponto de vista econômico. Com isso não se

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condena a lógica empresarial, mas, fazendo um balanço de futuro, temos que

pensar qual o sistema de incentivos que vamos estabelecer para que essas

ações não venham ao Judiciário, para que existam soluções extrajudiciais.

Este Tribunal tem um trabalho extraordinário em algumas

situações, e cito o superendividamento no âmbito do consumidor levado pelo

Tribunal de Justiça e pela Escola da Magistratura, um trabalho extraordinário

feito há alguns anos também com a Universidade, mas não é disso

exatamente que estamos a tratar, porque de novo é o Estado.

O que nós temos que pensar, no meu modesto entendimento,

é que o reforço da efetividade das normas e o desestímulo ao

descumprimento das normas sirvam mais do ponto de vista estrutural na

sociedade brasileira que propriamente iniciativas tópicas, que também são

importantes. O reforço do Código, o reforço das suas regras, e também

porque o êxito de uma legislação como o Código de Defesa do Consumidor,

que tem um fundamento, e é um fundamento confessado, não é um

fundamento que fica cinza na legislação, ao contrário, é um fundamento com

origem constitucional.

O Direito do Consumidor é direito do consumidor, não é direito

das relações de consumo. A determinação constitucional foi a de defesa do

estado do consumidor, do sujeito vulnerável, na forma da lei. A lei vai garantir

as condições para que essa proteção se dê pelo Estado, pela aplicação da lei,

garantindo àqueles que se contrapõem, especialmente em matéria de litígios

judiciais, tenham também as garantias que estão em lei processual, que estão

no próprio Código de Defesa do Consumidor: quem prova o quê, como prova?

Se demonstrar que agiu corretamente, que deu a informação pré-contratual,

se demonstrar que o defeito não existe na responsabilidade, se discutiu o

conteúdo da cláusula do contrato entendendo que ela tem algo a ver com a

natureza do negócio, de modo que ela não vai ser abusiva, que, embora a

cláusula possa ser uma desvantagem ao consumidor, diga respeito à natureza

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do negócio e, nesse sentido, tenha uma lógica que a suporte. O espaço do

processo vai permitir que se faça isso, mas o Direito do Consumidor é um

Direito que se funda no princípio da vulnerabilidade, o princípio da proteção do

vulnerável. O consumidor é vulnerável, e este é o termo técnico.

Quando o consumidor vem a Juízo, pensemos na nossa

experiência pessoal, quantas e quantas vezes todos nós, operadores, agentes

nos seus vários órgãos, estudiosos do Direito, dispensamos o ingresso em

Juízo das pequenas lesões do dia a dia. Às vezes eu penso: “Eu sou

Professor vinculado a entidade de Defesa ao Consumidor, defendo o Código

de Defesa do Consumidor, escrevo sobre o Código de Defesa do Consumidor,

e quando acontece comigo eu penso dez vezes antes de ingressar em Juízo”.

Geralmente não ingresso, suporto o prejuízo, faço um cálculo de duas idas ao

Tribunal no valor “x”, o tempo que eu vou gastar, o incômodo que eu vou ter, e

decido não ingressar em Juízo. Naturalmente que muitos fazem isso. Todos

nós fazemos isso, vulneráveis que somos, e sofremos múltiplas lesões todos

os dias.

As pessoas vão a Juízo quando a lesão já não é mais

suportável. E não é um problema de valor, o que é pouco para um pode não

ser pouco para outro. Nós vivemos em um País de contrastes absolutos e por

vezes nós temos que ter a visão de que trezentos reais, quinhentos reais para

alguns pode ser pouco, mas para outros pode ser uma parcela sensível da

remuneração do mês, pode ser um valor que diga respeito a um sonho, a um

objetivo. Muitas vezes também não é só dinheiro, e todo o reconhecimento

que o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu aos danos

extrapatrimoniais é a absoluta demonstração disso. Muitas vezes não é o valor

econômico envolvido, são os maus tratos que o sujeito recebe quando vai

tratar com um fornecedor, outras vezes é o aspecto envolvido do ponto de

vista emocional. Ninguém gosta de ingressar no Judiciário, tem que pagar um

advogado, a pessoa já sai perdendo.

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Quando nós paramos e visualizamos o fenômeno do Direito

do Consumidor hoje é preciso reconhecer que ele tem um fundamento: o

princípio da vulnerabilidade, da proteção do vulnerável e de que todo

consumidor é vulnerável. Outro dia tive a oportunidade de ler uma entrevista

que me deixou muito triste. Um querido amigo, uma pessoa próxima nas lides

do consumidor, falou de paternalismo judicial, que não se pode ter

paternalismo judicial no Direito do Consumidor, como se houvesse. Se

houvesse paternalismo judicial nós não estaríamos com 105 milhões de

ações, os problemas estariam resolvidos. A expressão paternalismo já é ruim,

porque ela pode indicar uma ideia de desvio técnico daquilo que a lei e a

Constituição determinaram. Não se trata de paternalismo, mas de um

fundamento, um termo técnico que erige o Direito do Consumidor, ou seja, a

vulnerabilidade.

Pelo número de ações, o que acontece muito é se pinçar um

caso, dentre centenas de milhares de casos, em que houve um desviozinho,

uma desatenção e daí adveio uma indenização, não extraordinária, mas um

pouco superior à média. Para aquele caso há uma divulgação, há um trabalho

de imprensa, um trabalho de divulgação massiva dizendo que o Judiciário

Brasileiro só protege o consumidor. Não raro nós ouvimos decisões de fora do

Brasil, de sistemas completamente diferentes dos nossos, alguém que se

queimou com café no McDonald's e ganhou bilhões nos Estados Unidos, sem

indicar distinções entre os dois sistemas, sem revelar que aqueles bilhões não

vão invariavelmente para aquela vítima. Essas coisas surgem volta e meia e

nos causam certo encabulamento.

A nossa modesta reflexão é exatamente em sentido contrário.

A proteção do consumidor não está demais, pelo contrário. Por mais que nós

trabalhemos, por mais que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

trabalhe, por mais que o Sistema Judiciário Brasileiro trabalhe, e decida,

porque essas 105 milhões ações vão ser decididas, em mais ou menos tempo

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haverá decisões, sentenças, acórdãos. Por mais que isso ocorra, tem-se a

sensação - usando uma expressão popular - de enxugar gelo, porque vamos

decidir 105 milhões, depois virão mais 105 milhões.

Nós temos que ter uma estratégia de futuro para essa lei tão

importante, que tantos benefícios trouxe ao Direito Brasileiro, à cidadania, às

relações sociais e econômicas, que elevou o padrão de qualidade, tanto de

produtos e serviços quanto das relações entre consumidores e fornecedores

no mercado de consumo.

Há um olhar para a frente - não vou tratar porque será objeto

da fala da Professora Cláudia Lima Marques - que é o campo da atualização

legislativa. Temos que mexer em algumas coisas, porque o Código de Defesa

do Consumidor é de 1990 e há fatos da vida regulados pela lei que não

existiam em 1990. Mas não é só. No Direito do Consumidor nós não podemos

cair naquela ilusão, que muitas vezes acontece, de achar que a lei resolve

tudo, o Estado teatral, o Estado espetáculo. Aconteceu um crime não sei

onde, vamos mudar a lei e vai resolver. Aqui no Rio Grande do Sul temos dois

exemplos: a Lei Bernardo e a Lei Kiss. Evidentemente que a lei não pode

tudo.

É importante atualizar a legislação, no entanto, mais que

atualizar a legislação, é importante também firmarmos, fomentarmos e

promovermos uma cultura, um pensamento, uma ideia-força, no sentido de

que o Direito do Consumidor é um Direito de proteção do vulnerável. É um

Direito que não serve só ao consumidor, ele é um Direito que serve também

ao mercado, porque eleva os padrões de eficiência, de qualidade, e nivela por

cima a concorrência dos agentes econômicos.

O Des. Moesch falava há pouco das diretrizes da ONU, da

Resolução das Nações Unidas. Nós tivemos um trabalho muito forte das

Nações Unidas este ano com a revisão dessas diretrizes. Na resolução nova,

que será editada até o final do ano, nas novas diretrizes de proteção

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internacional do consumidor, uma das grandes questões é o combate ao duplo

standard, ou seja, em uma economia global uma empresa ter um nível de

qualidade para produtos e serviços em países desenvolvidos e outro nível de

qualidade de produtos e serviços em países subdesenvolvidos. A ideia é evitar

isso.

Quando nós, brasileiros, dizemos que não queremos ter um

duplo standard, que o Brasil merece a mesma qualidade de produtos e

serviços do mercado de consumo dos países desenvolvidos, nós também não

podemos, por vezes até inconscientemente, admitir que existam consumidores

de diferentes classes entre os brasileiros. Mesmo que seja um produto mais

barato, tem um padrão, tem um standard de qualidade que tem que ser

cumprido. É mais barato para poder ser acessível por consumidores de menor

poder aquisitivo, mas tem que ter um padrão, tem que ter um standard.

Aqui no Rio Grande do Sul os Juizados Especiais funcionam

de forma extraordinária, mas não raro pode acontecer de alguém dizer que se

trata de uma demanda, usando o nome antigo, de “pequenas causas”, mas

para a pessoa pode ser “a causa”, dando tratamento diferenciado para pior,

menosprezando a demanda. O sistema de Justiça e o sistema de Direito

devem ter esse cuidado para efetivamente valorizar a grande lei que nós

temos, o grande Código que nós tivemos a felicidade de editar há 25 anos, e

que a jurisprudência, a advocacia, a Academia, todos os envolvidos deram

uma contribuição extraordinária, dentro da ideia de não retroceder no nível de

efetividade, no nível de qualidade que se obteve a partir desse primeiro

estágio, desses primeiros 25 anos.

É preciso que nós possamos avançar para corrigir aspectos

do ponto de vista processual, do ponto de vista de interpretação de algumas

disposições do Código, mas, sobretudo - e é essa a mensagem que eu

gostaria deixar aos senhores -, sem retroceder na cultura, na compreensão,

na concepção de cada um sobre o papel do Código de Defesa do Consumidor

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no Brasil contemporâneo. O Código de Defesa do Consumidor é uma lei da

cidadania brasileira, uma lei que o mais humilde dos brasileiros conhece

alguma coisa, algum direito seu. Devemos ter essa cultura, a concepção sobre

a necessidade de continuar avançando e aplicando sem destemor, sem

pruridos, sem encabulamentos, no sentido de achar que está protegendo

demais aqui ou ali, porque se está aplicando uma lei de fundamento

constitucional, com 25 anos, com testemunho unânime de sucesso.

Hoje eu não vejo ninguém capaz de ser contra o Código de

Defesa do Consumidor, como há 25 anos, mas precisamos ter esse espírito,

essa compreensão de que se avança melhorando aquilo que aí está e se

avança construindo uma sociedade de consumo mais solidária.

Eu não preciso dizer aos senhores que o papel do Poder

Judiciário é fundamental, porque 105 milhões de ações estão aqui. É

fundamental para decidir questões individuais de cada pessoa que procura e

deposita no Poder Judiciário a sua esperança, mas também para sinalizar

para a sociedade e para o mercado qual é o sentido da norma e qual é o

sentido do comportamento que se espera que seja cumprido, sem

necessidade de uma intervenção do Estado, um cumprimento espontâneo, um

cumprimento pelo desestímulo à conduta contrária, um cumprimento

sinalizando o que é o correto a fazer, porque muitas vezes é o

economicamente adequado, pois poderá lhe custar mais se eventualmente

ingressar no Poder Judiciário.

Com esta mensagem, agradeço de forma muito honrada o

convite que me foi formulado pelo Tribunal de Justiça e também agradeço pela

oportunidade de ouvir a nossa grande Mestra, a Professora Cláudia Lima

Marques.

Muito obrigado.

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DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH – Eu gostaria de dizer

aos senhores que nós precisamos aproveitar as oportunidades.

A Professora Cláudia Lima Marques soube, como poucos,

aproveitar as oportunidades. Ela recebeu um convite da Universidade para

fazer um curso na Alemanha e isso transformou a sua vida em todos os

sentidos. O Prof. Johannes Doll, seu companheiro e esposo, e os seus filhos,

Pedro e Tobias, também são fruto dessa caminhada.

Muitas vezes temos oportunidades e ficamos com elas, mas a

Professora Cláudia soube ampliar. Ela ampliou todos os vínculos com a nossa

Universidade, com o Poder Judiciário, com a Escola, e, principalmente, com a

comunidade jurídica internacional. Ela tem uma Comenda da República

Federal da Alemanha, uma das comendas mais marcantes que eu assisti. A

oportunidade bem aproveitada vai encantar a quem nos rodeia, vai encantar a

quem nós prestamos o nosso trabalho, mas, acima de tudo, vai nos trazer

felicidade.

O seu trabalho, Professora Cláudia, é um exemplo para todos

nós. Eu conheci pessoas nos eventos da Universidade que a senhora, o

Professor Sérgio José Porto e o Professor Manuel André da Rocha, entre

outros, oportunizaram. Os continentes ficaram pequenos e próximos por meio

desse trabalho, o que é um modelo para nós.

A Professora Cláudia Lima Marques tem Graduação em Ciências

Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1985);

Mestrado em Eberhard Karl Universitäts do Sul, Tübingen, pela Universitäts de

Tübingen (1987); Especialização no Institut der Universität des Saarlandes,

Alemanha; Doutorado na Universität Heidelberg (1996) e Pós-Doutorado na

mesma Universidade (2003), uma bonita homenagem ao Professor Erik

Jayme e sua teoria do Diálogo das Fontes.

Atualmente é Professora Titular da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul, Colaboradora do Ministério da Justiça; Delegada e Expert do

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PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Brasil na Cidip; Diretora da Associação Luso-Alemã de Juristas, em Berlim; da

IACL, Internacional Association Consumer Law, em Bruxelas; Diretora da

Internacional Law Association Brazil; Presidente do Comitê de Proteção

Internacional dos Consumidores e Diretora da Revista do Consumidor.

A Professora Cláudia tem experiência nas áreas de Direito Civil,

Direito do Consumidor com ênfase em Direito Internacional Privado,

MERCOSUL, Código de Defesa do Consumidor, Direito Internacional Público,

Direito Internacional Privado. Também é Coordenadora dos Cursos de

Especialização: “O Novo Direito Internacional” e “Direito do Consumidor”,

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da

UFRGS.

Para o Tribunal de Justiça, para o Centro de Estudos e para

todos nós, é uma honra muito grande receber a Professora Cláudia Lima

Marques no mês em que comemoramos os 25 anos do Código do

Consumidor.

DRA. CLÁUDIA LIMA MARQUES – Bom-dia a todos!

Inicialmente eu queria dizer da minha alegria e do meu prazer por estar aqui,

principalmente pela oportunidade de poder refletir com os senhores, grandes

pioneiros da Defesa do Consumidor que se reúnem aqui no Tribunal de

Justiça, como o Des. Francisco Moesch, que foi Presidente do Brasilcon do

Rio Grande do Sul por tantos anos, e discutir a beleza da comemoração dos

25 anos, assim como os projetos de futuro.

Eu me inspirei muito, Des. Ney Wiedemann, nesse belíssimo

nome que o Centro de Estudos dá às suas reflexões: Horizontes. Eu vivi na

Alemanha algum tempo, e lá a densidade populacional é tal que a gente não

enxerga os horizontes, sempre tem alguma coisa construída, sempre tem

algum prédio, algo que tira a vista, que a gente não consegue enxergar. Sem

nenhum bairrismo, os horizontes tocam muito aos gaúchos, pois aqui no Rio

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Grande do Sul, principalmente nos Pampas e nos Campos Altos da Serra, o

que nós temos é a possibilidade dos horizontes, enxerga-se longe. Na beleza

do Pampa Gaúcho notamos nossa pequenez, nossas dificuldades, pois ao

enxergar longe vemos quão pequenos somos.

Faço uma homenagem ao Tribunal de Justiça. Recordo-me que,

na época do Desembargador e Professor Ruy Rosado e do Des. Eládio Lecey,

a Escola Superior da Magistratura abriu as suas portas, e nós nos reuníamos

aos sábados para entender o Código de Defesa do Consumidor e colocá-lo

em prática. Essas reuniões eram semanais, e lembro que o Des. Dall’Agnol

trazia uns sanduíches. Aquilo foi magnífico. Primeiro tivemos aulas, depois a

prática começou com grandes leading cases do Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul, que foram a nossa âncora desde o volume n° 01 da Revista do

Direito do Consumidor. Acredito que não tenha nenhum volume da Revista

que não tenha uma decisão deste Tribunal de Justiça. Meus parabéns pelo

trabalho.

Muito obrigada pela honra de podermos estar aqui para este

momento de reflexão, na presença do querido Presidente do Brasilcon, Bruno

Miragem, Desembargadores, Professores, colegas, da nossa Presidente da

Comissão de Defesa do Consumidor na OAB, Tereza Moesch.

As grandes honras são grandes responsabilidades, então eu

preparei uma coisa diferente para não ficar repetitiva, mas depois do Professor

Bruno Miragem é difícil achar alguma coisa diferente para falar.

Inspirada pelos horizontes, eu gostaria de fazer um balanço

das conquistas do Código e dos horizontes que ele nos abriu, assim como dos

horizontes que a atualização do Código de Defesa do Consumidor está nos

abrindo, sempre avaliando a parte da solidão.

Às vezes, o movimento consumerista é um estado constante

de lutas. Eu imagino que na Magistratura também há uma frustração em razão

da não modificação, apesar da lei, apesar de súmulas vinculantes. Apesar de

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todo o trabalho que acontece, pessoas analfabetas continuam sofrendo

assédio de consumo. Há pouco vimos uma belíssima decisão da Desa. Ana

Paula Dal Bosco, do Des. Jorge do Canto também. Tão bonitas decisões e

nada muda, tanto na primeira parte das conquistas que o Código abriu como

as que ficaram para ser conquistadas ou para serem consolidadas no

mercado brasileiro.

A Comissão de Juristas, que eu tive a honra de participar,

presidida pelo eminente Ministro Antonio Herman Benjamin, fez três projetos

de lei com uma lógica, mas só dois deles foram aprovados, no dia 02 de

setembro, na CCJ do Senado Federal, e estão pautados para serem

aprovados no Plenário do Senado. Nesse caminhar a atualização também foi

perdendo algumas conquistas, muitas delas sugestões aqui do Tribunal, mas,

se estivermos atentos a esses horizontes perdidos, podemos tentar

reconquistar, e eu gostaria de fazer algumas sugestões para todos.

Iniciando a ideia de ir ao limite do conhecimento, o que o

balanço de 25 anos do Código de Defesa do Consumidor traz de mais

importante? Eu destacaria quatro paradigmas que o Código estabelece e

consolida no Direito Brasileiro.

O primeiro paradigma, talvez o mais importante, não é só a

visão de boa-fé, mas a ideia da totalidade da obrigação. A aproximação que

ele fez entre a responsabilidade contratual e extracontratual, e mais ainda,

mais profundo, mais sofisticado, bem Século XXI. Como diz Edgar Morin, a

gente tem que ver a complexidade e pensar a complexidade. O que os

pioneiros da Comissão, coordenada pela Professora Ada Pellegrini Grinover,

viram foi a necessidade de valorizar os fazeres, não só os dares; não só

aquela visão de compra e venda, produto, qualidade do produto, mas a

aproximação da nova economia, da nova visão de riqueza, o que é que as

pessoas querem. As pessoas querem informação, as pessoas querem

segurança, as pessoas querem seguro, as pessoas querem saúde, as

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pessoas querem educação, turismo, lazer, um consumo mais sofisticado,

crédito.

O Código já viu esse novo paradigma. Ele fez um direito dos

contratos, uma oferta, uma valorização da oferta de um momento prévio, de

um momento pós-contratual, pós-eficácia, se preocupou com a cobrança de

dívidas, banco de dados, privacidade, na medida do pensamento de 1990,

mas ele mudou esse paradigma. Muito melhor que o Código Civil, que é de

2002 pela aprovação, mas o paradigma de pensamento é de 1970, já

influenciado pela ideia de totalidade de Karl Larenz, mas ainda não tão forte.

O segundo ponto que eu gostaria de destacar é a ideia da

definição de consumidor, ter um código que proteja o sujeito de direitos nesse

papel, que é um papel líquido, como diria Bauman, na nossa sociedade. A

nossa sociedade não é estanque, mas o status é estanque: sempre idoso,

sempre criança. Nós não temos mais essas coisas perenes na sociedade

brasileira nem no mundo. Tudo muda, e essa mudança pode parecer bonita

para a publicidade, mas é dificílima para o Direito, porque o Direito chega

sempre atrasado na resposta.

Fazer um Direito para um papel da sociedade, um papel que é

instantâneo, um papel que é momentâneo, um papel que não é só individual, é

individual homogêneo, é coletivo, é difuso. O consumidor não é o destruidor

do produto ou serviço de bem consumível, tipo definição do Código Civil, mas

ele é um sujeito de direitos de um determinado momento. Naquele

determinado momento ele se inclui no grupo, e o Código de Defesa do

Consumidor traz uma definição strictu sensu, sem ser contratual. Usando a

dupla ideia de adquirir (contrato) e utilizar (não precisa contrato), pode ser a

criança, pode ser o bystander, pode ser o beneficiário do seguro, ele está

utilizando aquilo e não contratou. Pode ser até uma relação de previdência

complementar fechada que quem está pagando é o seu empregador.

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É uma visão realmente muito impressionante de uma definição

aberta, destinatário final, com a evolução fático-econômica, com a ideia do

finalismo aprofundado, com bastante sensibilidade, mas principalmente a ideia

da equiparação, que foi uma conquista enorme, porque a nossa

jurisprudência, principalmente dos Tribunais Superiores, tem dificuldade de

fazer equiparações, só vê o consumidor como um indivíduo, mas ele é um

grupo, e ele pode nem ser o destinatário final, ele pode ser o exposto a uma

prática.

Na Europa hoje se tem toda uma linha muito bonita, que está

de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, dos discriminados, daqueles

consumidores invisíveis, que não se nota: ele era idoso, ou ele era analfabeto

e surdo. O beneficiário tem que saber isso dele. Tudo isso está na definição

do parágrafo único do art. 2°, que os consumidores participam, que eles

intervêm. Que bonita essa definição total e abrangente.

O terceiro ponto que eu queria destacar, em uma homenagem

ao Dr. Antonio Herman Benjamin, é a Teoria da Qualidade. Em um Brasil que

quer entrar no Século XXI, vamos nos preocupar com a qualidade de produtos

e serviços, vamos trazer uma nova visão de vício, mais econômica, mais

prática, vamos consertar as coisas. Eu não quero rescindir, eu quero que

funcione, quero que a coisa aconteça. Aqui também foi falado da execução

específica dos serviços. Quão difícil é o regime dos serviços até hoje. Com

relação à prestação de serviços, no Código Civil só há dois artigos diferentes

do Direito Romano ou do Código de Clóvis Beviláqua.

Na teoria da qualidade, de segurança, do defeito, do acidente,

o art. 17 pegando todas as vítimas. Muito bonito esse paradigma do coletivo,

paradigma do pontual. Ele participou, ele interveio, ele foi exposto em uma

publicidade e ele não vai nem comprar. No volume 01 ou no volume 02 da

Revista do Consumidor consta um caso concreto de uma publicidade de

chocolate. A defesa da empresa suíça afirmou que aqueles chocolates eram

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vendidos apenas para crianças que podiam entender a publicidade, eram

crianças da classe A e B que tinham visto determinado filme que estava

passando. Aquilo era uma aventura, era uma coisa sem repercussão uma vez

que as outras crianças não comiam chocolates, e as que comiam chocolates

não comiam chocolates daquela marca. O consumidor é o consumidor

eventual possível e o consumidor de verdade. Eu faço uma pesquisa sobre

quem consome chocolates no Brasil, e os não consomem não são

consumidores? A visão do Código é totalmente diferente. Nesse leading case,

que é considerado o maior em matéria de publicidade, foi esclarecido que o

mercado brasileiro é uno, todos são atingidos, expostos pelas mesmas

práticas. Depois houve outras empresas internacionais que utilizaram

publicidades permitidas no mundo, não em todos os países, mas que no Brasil

foram consideradas abusivas porque ofendiam parte da população. Não tem

nada a ver se é consumidor ou não, ele está dentro do papel, ele foi protegido

pelo Código.

O quarto grande presente do Código de Defesa do

Consumidor é o art. 7º. Aqui no Brasil já é difícil conquistar uma lei, aí

conquista a lei e abre dizendo que o importante é a finalidade, a lógica,

proteger o consumidor. Os direitos do consumidor podem estar nos tratados

internacionais; podem estar no regulamento, com uma hierarquia diferente;

podem estar nos princípios gerais do Direito; podem estar até na analogia a

uma coisa que não seja consumo, mas, se assegura um direito ao

consumidor, esses direitos serão incorporados pelo art. 7°. A redação é

interessante: “Os direitos previstos neste Código não excluem outros direitos

decorrentes”, preparando a ideia do Diálogo das Fontes, que é uma teoria

européia, mas é uma visão sofisticada para responder ao pluralismo de fontes.

O pluralismo não vai parar, só tende a aumentar, e as coincidências de campo

de aplicação subjetivo e campo de aplicação material, como afirma o

Professor Erik Jayme, o criador dessa teoria, não existem. Como não há mais

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coincidência, se o sistema fosse um círculo, em um momento eu sou

consumidor, depois sou fornecedor, eu sou idoso sempre, mas eu sou idoso

Presidente da República, eu sou idoso consumidor. Não há coincidência de

campo de aplicação material e campo de aplicação subjetiva.

Então, se eu tiro uma das lógicas do sistema, ou se eu

diminuo só a da constituição dos direitos fundamentais, que vão organizar a

coerência a esse sistema para o Diálogo das Fontes, da coerência restaurada,

eu prejudico a justiça, eu prejudico os valores constitucionais que estão

orientando o falar das várias leis, sair de uma ideia que só uma lei pode falar –

a lei hierarquicamente superior, lex superior, a lei mais especial, a lex

especialis, ou a lei posterior, lex posterior. Agora eu tenho que aplicar várias

leis ao mesmo tempo, planos de saúde a idosos, Estatuto do Idoso, Código de

Defesa do Consumidor, Código Civil. Tudo ao mesmo tempo, sob o sol da

Constituição.

Eu escutei de alguns colegas que se usa demais o art. 7º do

Código de Defesa do Consumidor, mas ele é, talvez, um dos artigos mais

interessantes do Código. Quais foram os problemas das não conquistas, ou os

nossos horizontes que estão ainda não descobertos, ou cobertos por alguma

cortina de fumaça? O Dr. Bruno Miragem mencionou algumas pessoas que

dizem que não vão usar a expressão “consumidor” porque diminui a pessoa.

Eu participei de vários debates em que tínhamos que dizer que o consumidor

é o homo economicus et culturalis, é a figura de homem do Século XXI.

Zygmunt Bauman diz que os novos pobres são os excluídos do acesso à

sociedade globalizada e de informação, mas ele vai ter acesso por meio do

Direito do Consumidor. O pobre é o outro, é o que é o excluído, é o que fica

reduzido em uma ideia de cidadania. O Século XXI é individualista, é

hedonista, não é muito solidário.

Quais são as conquistas que temos que descortinar? Primeiro,

eu diria que são os serviços complexos. Evoluímos muito na visão de contrato,

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de obrigação, de boa-fé, dos dares e dos fazeres. Apesar da vitória da ADI

2591, que foi a maior vitória do Direito do Consumidor, nós não estamos

conseguindo dar solução útil ou modelar alguns serviços complexos. Temos a

Súmula nº 381, que criou um privilégio para os contratos bancários, para que

nulidade absoluta não fosse examinada pelo julgador de 1º Grau. Daí vem a

pergunta: o Tribunal poderia, ex officio, (e na minha opinião poderia) examinar

uma nulidade absoluta de origem constitucional, já que o Estado, na forma da

lei, deve proteger o consumidor? A Súmula está redigida de forma infeliz, e há

pouco o Ministro Sanseverino, que foi um grande Desembargador desta Casa,

pediu o reestudo da Súmula, para nossa alegria e orgulho.

Serviços complexos no sentido da triangulação. Há pouco

participei de uma audiência pública no STJ sobre Previdência Privada

Complementar, em que há o patrocinador, o fornecedor e a pessoa. Há uma

tendência de dizer que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica a

essa relação porque ela é triangular. Há uma decisão do Supremo Tribunal

Federal dizendo que esse tema deve ir para a Justiça Comum, que não é da

Justiça do Trabalho, indicando que não é tema de relação trabalhista. Se não

é consumo, eu não sei o que é.

Eu volto à importância da definição de consumidor. O art. 29

diz que todos que são expostos a práticas comerciais, contratos de adesão, e

o trabalhador - que daqui a pouco vai ser até funcionário público que vai se

submeter ao Regime de Previdência Privada Complementar - quando assina o

contrato de trabalho, já assina o outro, com todas as suas cláusulas e com

todas as suas promessas eventuais, que durante o passar do tempo vão

sendo reduzidas.

O segundo ponto é a responsabilidade em rede - e novamente

faço uma homenagem aos professores europeus Hans Micklitz e outros, da

chamada SECOLA – Society of European Contract Law. Eu fui aceita na

SECOLA, no seu Congresso em Oxford, e eu fui a única brasileira convidada.

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Eles estão fazendo os Códigos de Compra e Venda europeus comuns e o

código que eles chamam de Código Civil, as bases do Código Civil Europeu, e

eles estão preocupadíssimos com isso. Mais ou menos como o Dr. Bruno

Miragem falava, o problema é como incentivar que as pessoas cumpram os

seus deveres. Tem uma figura de Karl Larenz, que eu gosto muito, que diz

que os deveres são como tijolos que constroem um edifício - essa é a primeira

obrigação, o de cumprimento voluntário. Esse edifício projeta uma sombra,

que é o respondere, a segunda obrigação, a obrigação de cumprimento

coativo, imperativo, que é a responsabilidade civil, as garantias. Eles já

arrumaram o primeiro edifício deles e estão preocupados com a sombra. Os

invisíveis não são os vulneráveis, os consumidores. Os turistas, os idosos, os

analfabetos saíram das sombras e vieram para o reconhecimento do Direito

do Consumidor, e agora o problema é não saber quem está do outro lado. A

organização mundial da divisão do trabalho e a facilitação que essa

compatibilidade de mídias fez. O aplicativo que eu uso no meu celular pode

ser um contrato internacional, e eu não estou nem sabendo, eu não identifico

mais quem está do outro lado, Direito Público, se é Direito Privado, eu não

consigo enxergar esse outro. Eles estão defendendo que a sombra tem que

ser uma responsabilidade em rede. Porque se a organização é em rede, e

todo o mundo participa, não vá dizer que eu não tenho nada a ver com isso.

Na sombra tem que aparecer todo o mundo que estava no edifício.

Volto à beleza do Código de Defesa do Consumidor.

Obviamente não se pensou nisso, mas, juntando a teoria da qualidade com as

definições de consumidor, é possível pensar na responsabilidade em rede no

Código de Defesa do Consumidor.

A terceira parte é o problema da essencialidade, art. 18 do

Código de Defesa do Consumidor. Nós voltamos ao momento de valorizar os

produtos, a eficiência do Direito do Consumidor hoje tem a ver com o combate

à impunidade dos pequenos danos. O Código de Defesa do Consumidor, na

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sua teoria da qualidade, impôs coisas muito bonitas, mas a Europa está indo

por uma outra direção. Nós temos regras de prescrição, temos 30 dias para o

conserto. Na teoria tudo perfeito, mas na prática há um grande conflito na

sociedade. O que é essencial? Será que o celular é essencial em relação à

linha; o hardware em relação ao software. As coisas não estão mais

funcionando assim.

O que eles fizeram na Europa - e talvez fosse interessante a

gente também descortinar esse horizonte? Assim como na responsabilidade

em rede, que não se tem ainda uma reflexão forte, eles resolveram fazer uma

garantia geral. Se eu compro uma coisa nova, não usada, tem que funcionar,

e, se não funcionar, a troca tem que ser automática. Se o produto não vai

funcionar por dois anos tem que avisar e talvez vender um seguro a mais.

Nada contra o seguro, eu até acho muito interessante, eu mesma tenho

seguro de garantia estendida, porque acho que é útil para o consumidor.

Vamos diminuir a conflitualidade. Faço uma homenagem à Ordem dos

Advogados do Brasil, que propôs, junto com a Assembleia Legislativa, uma lei

estadual, que chamou de Lei Geral dos Consumidores, para definir como

seriam as essencialidades, pelo menos no Estado do Rio Grande do Sul.

O último e quarto desafio do nosso Código é a discriminação.

O paradigma da igualdade, a ideia da igualdade sempre foi um problema de

Direito Público, não foi um problema de Direito Privado. A liberdade, a

solidariedade e a fraternidade eram problemas de Direito Privado, a igualdade

era um problema de Direito Público. O Código de Defesa do Consumidor

incluiu os serviços públicos, como nessa ideia da proteção da criança na

publicidade, no art. 39, inc. IV, a ideia de impingir produtos às pessoas que

têm reduzido conhecimento. Claro que não vai falar em educação financeira,

não vai falar em idosos, em analfabetos - agora na atualização se fala -, mas a

ideia de não poder discriminar as pessoas já está no Código de Defesa do

Consumidor, e é impressionante.

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A Europa está fazendo isso agora. As novas decisões ou leis

europeias, diretivas e regulamentos são de combate à discriminação dos

consumidores mais vulneráveis. Existem algumas cláusulas dos créditos que

são exclusivas para os idosos. Como pode ter uma cláusula especial para os

idosos? Isso não é discriminá-los? O idoso que vai a um Juizado Especial,

sem advogado, e não consegue ler o contrato, não consegue ouvir o que o

outro diz. Nós não temos que ajudar esse idoso também nos Juizados

Especiais, talvez até via Defensoria?

Quero fazer uma homenagem a todo o esforço que a

Magistratura do Rio Grande do Sul faz, mas a verdade é que esse consumidor

em todos os seus momentos é mais vulnerável. Eles chamam de

vulnerabilidade agravada, consumidores vulneráveis que realmente estão

sendo discriminados, às vezes pelo endereço, às vezes pela origem, pela

educação. No Brasil nós não temos sequer direito a saber por que um crédito

é recusado, e esse foi um dos grandes problemas do scoring. No scoring

estão quatrocentos itens, e vão me discriminar, sem eu saber, pela raça?

Como pode? Tudo isso tem que ser transparente. O Código de Defesa do

Consumidor tem esse início, a proteção na cobrança de dívidas, não

discriminar o superendividado, mas nós não conseguimos realizar essa

conquista.

O que a atualização do CDC trouxe de novos horizontes? O

que já caiu nesse caminhar e o que poderíamos renovar? Antonio Herman

Benjamin considera que a atualização tem três pontos: primeiro é que não

deveria haver retrocesso, porque tem origem constitucional; segundo é que

deveria ser pontual, não deveria modificar os artigos que a jurisprudência tão

belamente, porque a vida sai do caso concreto. O Judiciário passou 25 anos

trabalhando o que é boa-fé, o que é contrato de adesão, o que é cláusula

abusiva, e um grupo de juristas escolhidos pelo Senado Federal muda? Tem é

que colocar mais coisas, porque já está bom; é só incluir direitos, incluir novas

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palavras, como as aqui mencionadas. Não tem menção a analfabeto, não tem

menção a idoso. A ideia é que toda norma tem que ser interpretada a favor do

consumidor, que as lacunas têm que ser preenchidas a favor do consumidor,

um diálogo das fontes mais profundo. Isso está no sistema, mas não está tão

claro. A conexidade entre o contrato de crédito e o contrato principal de

consumo está no art. 52. Mas por que não criar um artigo específico?

Por último, a atualização pontual, que é reforçar a beleza do

microssistema. Existem três reforços: primeiro o reforço da dimensão

constitucional. A vitória da ADI dos Bancos. Não pode haver privilégios no

mercado brasileiro e não se aplicar o Código de Defesa do Consumidor em

determinado setor. Todo o mundo tem que ser esse paradigma mínimo, por

isso a ideia do crédito, a ideia do comércio eletrônico - o Brasil é muito

importante em comércio eletrônico -, contratação a distância, contratação

virtual. Existe o chamado virtual divide, que é uma divisão das pessoas que

vão ser incluídas na sociedade mais informatizada e as pessoas que não vão

conseguir, geralmente os mais vulneráveis. A Europa, por exemplo, tem

decisões sobre o direito das pessoas idosas e de todos os clientes, para não

discriminar os idosos, de acessarem um caixa físico quatro vezes ao mês.

Pelos incentivos, quem usava a Internet, quem só usava os ATMs, não tinha

mais caixa na Europa, desapareceram as pessoas; tinha gerentes de contas,

de investimentos, mas não tinha mais quem atendesse a pessoa e

conversasse com ela. O direito de acessar o seu próprio dinheiro, que está no

Banco, e não pagar mais por isso, porque se fizesse por telefone, ou pelas

máquinas, era um preço, se fizessem pessoalmente, era outro. Isso não pode,

isso também é discriminação.

Dimensão constitucional do Direito do Consumidor, dimensão

ético-inclusiva e solidarista. O nome é do Ministro Antonio Herman Benjamin,

porque todo código tem uma ideia de boa-fé, de pensar no outro, de pensar

refletido, é ver o outro, então é ética. A ideia de inclusiva, o Direito do

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Consumidor é o potencial na legislação mais inclusivo que existe, e leva

consigo todos os outros hipervulneráveis. Sobre a ideia solidarista, eu discuti

com o Ministro Benjamin e perguntei: “Por que, além de ético, inclusivo, ainda

solidarista?” E ele disse: “Porque o belo do Código de Defesa do Consumidor

é isso: liberdade, igualdade, e fraternidade”. Solidarista, a terceira ideia da

modernidade. Eu não posso aplicar o Código de Defesa do Consumidor com

uma ideia simplesmente de eficiência econômica, como se ela não tivesse um

valor ali dentro, que é a justiça distributiva. Eu prefiro pagar 0,01% a mais,

desde que a vítima não fique com o prejuízo, ou que não seja ressarcida pela

metade, porque ressarcir pela metade aquela vítima significa que ela foi

culpada do acidente de consumo, e não o fornecedor.

O Direito do Consumidor é solidário em si. Economicamente

ele faz parte da divisão de riscos na sociedade, e o solidarismo contratual é

justamente isso.

Eu gosto muito da palavra fraternidade, porque fraterno é o

irmão, é aquele que tem uma origem comum. E o que se vê hoje é que esses

consumidores são vistos como inimigos, estão incomodando, estão

reclamando, estão fazendo a indústria do dano moral, ele não é meu irmão. A

ideia da fraternidade ou da solidariedade, no sentido da Revolução Francesa,

é de que todos nós somos irmãos. Ele é eu amanhã, ontem; ele é a minha

mãe, ele é o meu irmão. Ele é a minha família, ele não é um diferente, que

pode receber um dano que não tem problema.

A dimensão da confiança, efetividade e segurança jurídica.

Novamente o Ministro Antonio Herman Benjamin, três grandes ideias: O

Direito do Consumidor é fides, confiar, é um standard, não somente de bona

fides, mas a ideia de que nesse mercado eu posso confiar nas coisas. Eu

tenho que ter confiança, senão não se faz nada, eu não saio do meu ócio para

o negócio jurídico, se eu não confio.

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Efetividade, porque o Direito do Consumidor tem que ser

pragmático, tem que ser efetivo, há uma série de sanções novas, como o

follow the money. Não estou dizendo que, para saber Direito do Consumidor,

tem que ir a Harvard, mas a gente conversa com Harvard e eles aprendem

também com a gente. Não vamos nos menosprezar e dizer que para ensinar

os Juízes brasileiros a decidir tem que contratar a Harvard Law School.

Voltando à ideia da efetividade, se essas evoluções

aconteceram nos outros países, por que não utilizar aqui? Qual é o problema

do follow the money? O que ele vem fazer? No mundo virtual as empresas

também abrem e fecham muito rapidamente, mesmo as grandes telefônicas,

as grandes empresas têm vários CNPJs. Os nossos instrumentos são

localizados, aí eu vou fazer a penhora naquele negócio, daquela pessoa e já

não tem mais, já não visualizo mais. O que não muda é o dinheiro. O dinheiro

sempre estará na mão daquele que é o autor. Seguindo o dinheiro você

encontra o fornecedor. É uma sanção pragmática. Eu admiro os norte-

americanos em muitas coisas.

Segurança jurídica. Infelizmente o PLS nº 282/2012 não

avançou, e com isso eu gostaria de fazer algumas sugestões. O PLS nº

281/2012, que avançou e que se espera ser agora aprovado pelo Senado

Federal, cuida da parte geral do Código de Defesa do Consumidor,

assegurando o diálogo com o Código Civil, e do novo paradigma virtual das

relações a distância e também do turismo, da proteção internacional do

consumidor. Os brasileiros já são o terceiro grupo de turistas no mundo.

Estamos estudando isso muito na Faculdade de Direito, e o Diretor da

BRASILCON, Ardyllis Alves Soares, é um especialista em proteção ao turista.

Hoje os turistas são os chineses, os russos e os brasileiros. Nós estamos no

mundo e somos parte desse mundo, e também tem que existir a proteção

internacional dos consumidores. O PLS nº 283/2012 é sobre prevenção ao

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crédito, um crédito mais responsável, um crédito mais informado, uma oferta

mais calma, e sobre prevenção e tratamento do superendividamento.

Faço uma grande homenagem ao Tribunal de Justiça que, até

mesmo nas suas normas internas, estimula as soluções alternativas pela

conciliação global das dívidas de um consumidor com todos os seus

fornecedores. Essa é uma solução pré-processual, mas existem soluções

processuais e também dificuldades processuais. O Tribunal de Justiça do Rio

de Janeiro tem súmula sobre ação de superendividamento, eles permitem que

um consumidor acione todos os seus credores.

A ideia do modelo gaúcho, que agora está no PLS nº

283/2012, criado pelas magistradas Clarissa Costa de Lima e Karen

Bertoncello, hoje implementado no Estado do Rio Grande do Sul, realmente se

espalha pelo Brasil, está no Tribunal de Justiça do Paraná, de Pernambuco,

da Paraíba, do Distrito Federal, de São Paulo, que surgiu de uma audiência

pública neste local. O Professor Kazuo Watanabe, autor do Código, aceitou a

sugestão dos Juízes que já trabalhavam na prática há mais de 7 anos com o

tema, e esse modelo foi para lei. Qual é o segredo do sucesso desse modelo?

É o mínimo existencial. Eu posso pagar, mas eu tenho que reservar alguma

coisa para a pessoa, porque a ideia é ele pagar, fazer um plano de

pagamento, organizar, dar um tempo. Só que, se ele não reserva o mínimo, se

não tem uma parte que não é consignável, ele não tem como pagar, não vai

funcionar. No Processo Civil é dificílimo isso. Como é que eu vou aceitar todos

os devedores discutindo? Se eu fizer uma revisional com cada um, eu não

preservo o mínimo existencial, então não funciona. Por isso que o modelo

gaúcho é tão interessante e tão eficaz.

O que se perdeu? Perdeu-se a possibilidade de o julgador de

1º Grau, ex officio, demonstrar a abusividade absoluta de uma cláusula. O

contrato a distância tinha mais conexão com a proteção de dados, com a

privacidade, que hoje é um grande tema de consumo, também foi reduzido. O

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que hoje está sendo chamado de drama social na velhice, que é o crédito

consignado, tinha um tratamento mais flexível e foi reduzido na medida

provisória que aumenta, para cartões de crédito, para 35%. A margem

consignável tende a refletir também nesse drama social da velhice.

Perdemos algumas coisas no superendividamento. Havia essa

ideia do plano de pagamento judicial, a solução gaúcha, mas o artigo que ali

está afirma que a pessoa tem que pagar todo o principal, consolida as

cláusulas abusivas; ainda tem que pagar em 5 anos, começando no máximo

120 dias depois da decisão do magistrado. Engessa a forma de pagamento, a

integralidade, não permite uma revisão do contrato. A ideia francesa é a

seguinte: se conciliou com todas as cláusulas abusivas, está ótimo, porque o

consumidor aceitou e tem como pagar; mas, se não conciliou, no Judiciário

nós vamos olhar as cláusulas abusivas, não é uma nulidade absoluta, eu não

posso passar. No momento pré-contratual, tudo bem, mas, no momento

judicial, pré-judicial, extra-judicial, eu não posso não olhar isso. E o pagamento

tem que preservar o mínimo existencial.

Esses são alguns exemplos da nossa evolução, de como

estamos tentando descortinar novos horizontes. O exemplo do virtual divide é

importantíssimo, a ideia do reforço do microssistema no diálogo das fontes

também é importantíssima, que é uma ideia gaúcha, que é a ideia de prevenir

e tratar o superendividamento, porque, se queremos ser uma sociedade

desenvolvida, o crédito é importante fator. Mas o crédito e o

superendividamento são os dois lados da mesma moeda, só que essa moeda

gira e naturalmente cai em um acidente da vida. O problema é o risco

sistêmico, se todo o mundo for a superendividamento, se todo o mundo cair,

então o País todo cai. Aconteceu nos Estados Unidos, e no Código de

Falência deles há a falência da pessoa física, mas eles já estão bem, porque

eles entraram em falência e já se recobraram. Só que o Brasil não tem esse

colchão social, e sem isso é um risco sistêmico enorme nós não pensarmos

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em dar aos consumidores o direito de renegociar a dívida de boa-fé, de

conciliar, de pagar a dívida com um tempo um pouquinho maior, mas pelo

menos de não ser excluído da sociedade de consumo.

Eu queria novamente homenagear o Des. Eladio Lecey, o

Professor Ruy Rosado e todos os pioneiros, como o Professor Francisco

Moesch, o Tribunal de Justiça e todos os seus magistrados, seus servidores.

Nós temos que ter orgulho desse horizonte e não temos que ter nenhum medo

de continuar a fazer um trabalho de ponta. E muitas vezes se recrimina o

Tribunal pela sua eficiência. Eu ouvi um colega de São Paulo dizer que

sempre os leading cases são do Rio Grande do Sul. Essa eficiência, esse

humanismo que os Desembargadores têm demonstrado, que o Judiciário

gaúcho tem demonstrado, é talvez um dos maiores feitos aqui da nossa

Escola da Magistratura, dos Centros de Estudos, dessa seriedade. Nós

preparamos o Judiciário e os servidores que trabalham aqui de forma

sofisticada, e com isso nós enfrentamos problemas também sofisticados,

talvez de forma mais fluida, mais rápida.

Os desafios são imensos, mas o que o Direito do Consumidor

tem de bom é que ele mostra os desafios antes. É pequenas causas, mas o

problema é enorme e a sofisticação do problema também é enorme.

Muito obrigada pelo convite. Espero ter ajudado neste

momento de reflexão.

DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH – Alguém gostaria de

fazer alguma pergunta, alguma intervenção?

DES. JORGE LUIZ LOPES DO CANTO - Em primeiro lugar,

eu gostaria de agradecer tanto ao Des. Moesch quanto ao Des. Ney

Wiedmann por nos oportunizar ouvirmos uma vez mais dois grandes mestres,

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e os tenho como meus mestres, a Professora Cláudia Lima Marques e o

Professor Bruno Miragem.

Eu faço uma pergunta muito simples, talvez de fácil resolução

para ambos, que é exatamente a questão dos 105 milhões de ações e a ideia

que se tem no Poder Judiciário de gestão de ação de massas, de diminuição

do número de processos, de liquidação de processos, e espero que não de

direitos. Como fica a questão do Direito do Consumidor frente a uma

sociedade líquida, como diz Bauman, de relações de consumo, quem não é

consumidor não existe nessa sociedade, e dessa discriminação e afastamento

- como bem colocou a Professora Cláudia Lima Marques e que foi

preocupação também do Professor Bruno - com a realização desse direito

material? Ou seja, temos um Juiz formado no mundo concreto, de direitos

visíveis e previsíveis, que atua atualmente numa sociedade líquida e

inconstante, como se assegura que o Judiciário não acabe por defender - não

aqui no Rio Grande do Sul, nem no País - um Código de ataque ao

consumidor, ao invés de um Código de Defesa do Consumidor. O consumidor

passa a ser um incômodo, um encosto por entrar com uma ação, em vez de

ser considerado um cidadão no exercício do seu direito. E esse é o direito

mais relevante no Século XXI, como destaca Bauman, ou se é consumidor, ou

não é.

Esse é o questionamento simples e singelo que eu faço aos

dois palestrantes: como se faz esse enfrentamento do Judiciário como um

todo, que quer terminar com as ações, quer diminuir o volume? Quando eu

dava palestras para os Juízes novos, eu dizia: “O problema não é ter 200

processos todo dia na mesa, o problema é ter os mesmos 200 processos”,

porque chegaríamos a muitos processos.

Como se enfrenta esse volume de processos, sem traçar um

standard para eles e liquidar esse direito, ou diminuir esse direito do

consumidor? Eu acho que esse é o grande enfrentamento que o Direito do

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Consumidor tem, porque trouxe grandes inovações, e essas inovações agora

começam a ser contrariadas porque, na prática, importou em um volume de

ações. Por isso se pergunta qual é a utilidade do Poder Judiciário, senão

enfrentar as ações? Porque, se for apenas para exterminá-las, melhor

exterminar antes o próprio Judiciário, porque não estaria garantindo os direitos

constitucionais do seu cidadão.

Diante dessa brevíssima colocação, como os juristas veem e

analisam essa questão? Como os juristas respondem aos Juízes como

enfrentamos esse volume, sem perder a humanidade, sem perder a

consciência e a solidariedade dos direitos aqui existentes, nesse mundo

líquido, segundo Bauman?

Esse é o pequeno questionamento que eu deixo a ambos.

DRA. CLAUDIA LIMA MARQUES - Agradeço muitíssimo a

reflexão do Des. do Canto, que me permite traçar dois pontos.

Primeiro, concordando com a premissa, eu recebi da

Associação de Magistrados do Brasil, em Salvador, um material intitulado O

Uso da Justiça e o Litígio no Brasil. Consta Tribunal por Tribunal, e vi o dado

de 42 milhões de ações que não precisavam estar no Judiciário do Rio Grande

do Sul. A ideia dos litigantes, apesar de todo o esforço da jurisprudência, a

legislação por vezes, não das agências regulatórias, que muitas vezes não

ajudam, já estabeleceu qual é a conduta básica. Boa-fé é conduta, mas

também é paradigma de decisão. No momento em que eu estabeleço o que é

a conduta esperada de boa-fé, eu já decidi se fez ou não fez aquela conduta.

Insistentemente eles não cumprem a conduta e voltam, até porque têm

advogados muito bem informados e atuantes, se utilizam obviamente das

possibilidades de recursos e continuam discutindo, e numa dessas pode ser

que funcione.

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O grande número de demandas de massa que indiciam danos

em massa, que é o problema do não cumprimento voluntário das leis no

Brasil, e desse jogo que se faz com uma instituição em que se confia, mas que

no final fica assoberbada pelo número de ações. Eu acho que esse tipo de

campanha é muito boa, porque mostra outro paradigma. Porque o paradigma

normal seria dizer que o Judiciário tem de ficar para as grandes causas ou tem

de escolher as causas que vai decidir, não atrapalhar os Juízes com pequenas

causas. Isso é realmente tirar o Direito do Consumidor da sua dimensão

constitucional, da sua possibilidade de fazer a justiça distributiva.

Aqui o paradigma é outro: o problema não é o Direito do

Consumidor e não são os consumidores; talvez sejam os fornecedores, talvez

sejam as agências reguladoras, que não estão atuando como deveriam, estão

autorizando práticas abusivas. Esse é o paradigma interessante dessa

campanha. Eu vi o Dr. João Ricardo falando sobre isso e fiquei conquistada.

Eu acho que esse é um paradigma bom, porque mostra o seguinte: o

consumidor é a vítima, o que espera a justiça e o peso não vem dele. Há outro

fator que aparece em todas as estatísticas, que é o próprio Estado. O Estado

realmente é um peso enorme para o Judiciário. Esse é o primeiro ponto.

O segundo ponto tem a ver com a entrevista que o Dr. Bruno

Miragem mencionou, dizendo que há um paternalismo e que os consumidores

são tratados como incapazes. Eu fiquei muito chateada com isso, porque todo

esforço hoje em dia no combate à discriminação é para que a gente não seja

uma sociedade discriminatória, no sentido de distinguir pessoas que têm

direito a ser consumidores de outras que não têm educação financeira, que

não sabem ler tão rápido, como os idosos, os que não conseguem entender.

Nós fizemos uma pesquisa empírica com os dados deste

Tribunal de Justiça, do Núcleo de Conciliação, e constatamos que 18,1% dos

idosos que recorrem para pagar as suas dívidas são analfabetos. Se aumentar

para quem tem de 1 a 4 anos de formação, dá mais ou menos 30% deles, que

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é a definição do analfabeto funcional, ou seja, a pessoa que entende, lê,

assina, mas não entende coisas sofisticadas ou complexas; 64% são

mulheres e 95% são arrimo de família, essas mulheres, esses idosos, esses

analfabetos. São dados dos senhores que analisamos no Observatório do

Crédito da UFRGS, junto com o Ministério da Justiça.

As mulheres não são a maioria na população, e nós fomos ver

por que as mulheres não conseguem renegociar com os Bancos e têm de

recorrer ao Judiciário. Existe o mito de que as mulheres gastam muito, são

bipolares, depressivas, não são boas consumidoras, mulher não entende de

contas, aí vai renegociar e acham que ela está brincando. Por essa estatística,

existem três pessoas na sua dependência e é uma senhora de mais de 40

anos.

Os dados do Judiciário são impressionantes com relação aos

idosos: 10% deles têm mais de 80 anos, estão superendividados, confiaram

no Judiciário, conseguiram o que queriam, que era pagar a sua dívida e entrar

novamente na sociedade. Dois deles têm mais de 90 anos, um tem 93 e o

outro 94 anos. Inclusive eu quero entrevistá-los, porque eles são heróis, eles

vêm aqui, entram na fila, vão ao Núcleo de Conciliação, preenchem a fichinha

dos superendividados, fazem uma audiência, pagam, confiam. Lindo! Não tem

nada a ver com incapacidade, ao contrário, tem a ver com cidadania, com

capacidade. O consumidor não é incapaz, e a lei não o trata como incapaz.

Nós temos que sair dessa sociedade que trata o outro como

incapaz, só porque ele está querendo um direito, e tratá-lo com respeito, com

dignidade, sem discriminação. Por que o meu direito é melhor do que o direito

dele?

A minha solução, que é a mesma do Dr. Bruno, seria apoiar os

bons paradigmas e combater os mitos. Claro, na pressão de metas de

trabalho, as pessoas até podem sair mais facilmente pelos mitos, porque é

mais fácil, o que é um grande perigo.

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Eu comparo o Direito do Consumidor a uma chuva, e água é

vida, é renovação. A água é maravilhosa, mas quando chove demais é

tempestade, caem raios. O sucesso do Código de Defesa do Consumidor, a

pujança da nossa advocacia, da Defensoria Pública da União e a do Estado,

que fazem um trabalho excelente. Chove muito, mas cada pingo de água é

uma violação do Direito do Consumidor, por isso temos que saber tratar essa

água, temos que saber escoar, e não simplesmente dizer que a água é ruim.

Água não é ruim, água é vida. O que é ruim é não saber o que fazer com tudo

o que está acontecendo. Poderíamos, pelo menos, escoar de maneira

positiva, trabalhando melhor com as metas, não as do Judiciário, mas com as

metas dos fornecedores, para que eles melhorem as suas práticas com as

agências.

A agência PREVIC falou na audiência pública como se fosse

um Banco, mas ela não pode tomar partido assim, não pode ser capturado

dessa maneira tão forte.

Agradeço muito a sua reflexão e digo que não é uma pergunta

fácil, é um Doutorado.

DR. BRUNO MIRAGEM - Apenas para complementar, e

convergindo com o que já foi dito, na verdade há problemas estruturais e há

problemas conjunturais.

Do ponto de vista estrutural, foi dito pela Professora Cláudia e

o Des. Ney mostrou, há um problema de regulação no Brasil, que passa por

uma certa desconfiança que nós, brasileiros, temos historicamente da

Administração Pública. Essa desconfiança não é desarrazoada, não é

imotivada, mas o fato é que a Administração Pública no Brasil, e toda atuação

administrativa, que deve ser preventiva ao Poder Judiciário, não funciona

como deveria. Os americanos têm uma expressão que diz: More regulation,

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less litigation, ou seja, quanto mais se regula, menos litígio há; você

estabelece as regras do jogo antes.

De fato, há vários testemunhos de que as agências

reguladoras não funcionam. Muitas vezes elas não regulam e, quando

regulam, regulam mal e tomam a sua regulação como se ela fosse equivalente

ou superior à lei. Há esse problema estrutural, que também é cultural, que

foge um pouco da nossa possibilidade.

Outro aspecto importante é que o acesso à Justiça no Brasil é

uma conquista da cidadania, especialmente os custos de acesso à Justiça,

mas esse dado normalmente é lido, por vezes interessadamente, contra o

consumidor, no sentido de entender que por ser fácil entrar na Justiça todos

entram. Parece-me que é o contrário. Tornou-se muito barato para os maus

fornecedores, os ligantes habituais, utilizar o Poder Judiciário como se fosse o

Serviço de Atendimento ao Cliente. Essa lógica é tão perversa que os

Serviços de Atendimento ao Cliente - um dever dos fornecedores oferecerem

aos consumidores para resolverem pequenas questões - cada vez funcionam

pior.

Por outro lado, a solução que se dá, em muitas situações -

não sei no nosso Tribunal, mas em alguns Tribunais do Brasil acontece, o que

eu acho uma perversidade do ponto de vista da lógica - é a seguinte: quando

o consumidor tentou ser atendido pelo Serviço de Atendimento ao Cliente

daquele fornecedor, procurou o estabelecimento e não teve sucesso, quando

ele resolve ir ao Judiciário, quando ele entra no Foro para protocolar a sua

ação, ele não pode protocolar antes de ir a uma determinada sala dentro do

Foro, usando os recursos do Estado, para que ele possa renegociar uma

última vez com uma grande companhia fornecedora.

De alguma maneira esses fornecedores, que são contumazes

clientes da Justiça, acabam socializando o prejuízo, porque reduzem o Serviço

de Atendimento ao Cliente e quando o vão a Judiciário tentam criar um

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programa de renegociação, um programa de atendimento para evitar a

demanda. O evitar a demanda não poderia ser no Foro, deveria ser antes,

qualificando o serviço.

Outro aspecto que deve ser mencionado é que temos alguns

instrumentos, mas ainda há dificuldade na compreensão ou na utilização de

normas que o próprio ordenamento já dispõe, e eu citaria duas.

Uma delas é a questão das astreintes. Eu tenho uma

curiosidade de muito tempo, mas atualmente estou debruçado sobre esse

tema. Quando reformamos a Execução Civil, lá em 1994, criamos as

astreintes, que é a multa por descumprimento de decisão judicial, justamente

para apoiar a tutela específica da obrigação de fazer, fizemos o art. 461 do

Código de Processo Civil e já tínhamos o art. 84 do Código do Consumidor,

garantindo que o Judiciário vai dar uma decisão judicial determinando o

cumprimento e vai impor uma multa diária. Mas o fornecedor que cometeu a

lesão e que tem uma imposição de cumprimento de uma determinada

obrigação, ele não cumpre por um dia, por dois dias, por uma semana, por

duas semanas. De fato, a multa estabelecida justamente para estimular o

cumprimento ou desestimular o descumprimento, em benefício da autoridade

da decisão judicial, não é nem do Direito do Consumidor, acaba acumulando e

fica um valor desproporcional à obrigação que ele tinha de cumprir. Por

exemplo, religar o celular para uma conta de R$ 200,00 e, com a multa

acumulando no tempo, ficar um valor muito superior ao valor da discussão.

Gera uma espécie de constrangimento quando vem a multa para ser

executada e se fala que ela é exagerada. Mas na origem a multa não é

exagerada, acumulando foi que se tornou exagerada, só que aí se

estabelecem comparações, a obrigação era de tantos reais, e a multa acumula

dez vezes, vinte vezes, mil vezes do valor. Tornou-se exagerada por inação

do titular do dever.

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Com isso, acabou-se criando uma compreensão - que é

natural, mas talvez seja algo para repensar - de que as astreintes podem ser

reduzidas porque o cúmulo tornou-se elevado e exagerado, não se levando

em conta que na origem o sentido dela era justamente estimular o

cumprimento da norma.

Tudo isso acabou fazendo com que as astreintes se

tornassem absolutamente desacreditadas na primeira instância, aumentando

os processos e os recursos, Na lógica do empreendedor que planeja o seu

negócio cometendo infrações em massa ele vai imaginar que aquele valor não

vai ser cobrado, ainda mais levando em conta que vai ter um custo judicial

mais elevado que a própria obrigação, ou seja, está na estrutura do negócio.

O outro aspecto são as funções da indenização. Uma

discussão conhecida, antiga, rebatida. Tem função punitiva ou não tem função

punitiva no Brasil?

O Código de Defesa do Consumidor, no art. 6º, inc. VI, fala na

função preventiva da indenização e na reparação de danos, que talvez seja o

fundamento legal não para se importar um modelo inteiro da Common Law e

das punitive damages, mas para se estabelecerem mecanismos, também por

intermédio da indenização, para desestimular a conduta, um instrumento que

permita não deixar tão barata a lesão gerada por fornecedores contumazes.

Observo que, na questão da responsabilidade com o uso de

instrumentos que já temos, de alguma maneira já é possível avançar um

pouco na solução desses litígios. Mas não há dúvida de que não podemos, em

momento nenhum, considerar que os litigantes contumazes são contumazes

porque são os maiores fornecedores, ou seja, proporcionalmente há um

número de ações elevado porque há um número elevado de consumidores.

Vale o que disse o Des. do Canto: “São uma pequena fração,

alguns milhões das mesmas coisas”. Das mesmas questões que poderiam ter

sido resolvidas com uma simples alteração de conduta. Se não foram

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resolvidas é porque se tratava de uma estratégia de negócio. Parece-me que

é nessa estratégia de negócio que o Poder Judiciário deve atuar.

Apenas para complementar o que já havia sido dito, tanto na

pergunta quanto na resposta que foi dada pela Professora Cláudia.

DES. NEY WIEDEMANN NETO – A pergunta do Des. Jorge

do Canto foi excelente, porque foi extremamente abrangente e focou aspectos

que nos são muito caros com relação à judicialização das relações de

consumo, e oportunizou que os dois palestrantes pudessem complementar as

suas manifestações com esse foco que interessa ao Poder Judiciário.

Não podendo estender para novas perguntas, devido ao

horário, renovo o agradecimento aos palestrantes e à condução dos trabalhos

pelo Des. Moesch.

Muito obrigado.

(DEGRAVADO PELO DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA E ESTENOTIPIA DO TJ/RS.)