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CENTRO DE ESTUDOS
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
OS 25 ANOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
DES. NEY WIEDEMANN NETO – Bom-dia a todos! Vamos
dar início a mais um encontro do Projeto Horizontes do Conhecimento do
Centro de Estudos.
Estamos sendo prestigiados com a presença do nosso 3°
Vice-Presidente, Des. Francisco José Moesch, que vai conduzir os trabalhos e
apresentar os palestrantes, Dr. Bruno Miragem e Dra. Cláudia Lima Marques,
a quem, desde já, agradeço pelo comparecimento e pela aceitação do convite
para falarem sobre um tema que é muito caro a todos nós, o Código de
Defesa do Consumidor, ferramenta de trabalho de todos os que atuam na
jurisdição do Direito Privado.
O Código do Consumidor, que foi revolucionário e mudou
muito os paradigmas da própria relação na sociedade, está completando este
mês 25 anos. Para festejarmos esse aniversário convidamos pessoas que têm
se destacado como protagonistas na reflexão, na pesquisa, no estudo e na
doutrina do Código de Defesa do Consumidor.
Agradecendo aos senhores por estarem aqui conosco, passo
a palavra ao Des. Francisco José Moesch, que conduzirá os trabalhos desta
manhã.
DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH – Gostaria de dizer que é
uma alegria muito grande participar, juntamente com o Des. Ney Wiedemann
Neto, do Projeto Horizontes do Conhecimento.
Hoje estamos comemorando os 25 anos de uma lei realmente
revolucionária. Posso dizer aos senhores que eu fui uma espécie de
testemunha ocular dessa lei nos últimos 30 anos, desde o seu anteprojeto. O
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trabalho passou por importantes valores que foram escolhidos, primeiro, por
uma comissão de juristas internacionais, depois por uma comissão do
Ministério de Justiça, para depois, o que é muito importante, ter a recepção do
nosso sistema de administração da Justiça.
Quero saudar de forma muito especial o Des. Ney Wiedemann
Neto, Coordenador do nosso Centro de Estudos. Há pouco eu dizia à
Professora Cláudia e ao Professor Bruno que o Des. Ney Wiedemann Neto
me lembra um músico da minha cidade chamado Henrique Uebel, que tocava
sete instrumentos ao mesmo tempo. O Des. Ney está fazendo isso hoje na
Administração do Tribunal, e faço esse reconhecimento público pelo seu
trabalho e pela sua disponibilidade, em nome do Presidente Aquino e em
nome da Administração. O nosso reconhecimento também à sua equipe junto
ao Centro de Estudos.
O Código de Defesa do Consumidor foi revolucionário porque
trouxe direitos básicos dos consumidores, não só por estarem na lei, mas
também por esses direitos básicos serem uma recomendação da ONU a todos
os países filiados. O Código modificou questões ligadas à saúde, ao serviço
público, à oferta, à qualidade de produtos, à responsabilidade objetiva, à
questão da publicidade, à questão da responsabilidade civil por danos morais,
patrimoniais, individuais, coletivos e difusos, assim como o acesso à Justiça.
No nosso entender, todo esse trabalho de 25 anos com o
Código de Defesa do Consumidor, que precisa sempre de uma vigilância no
todo e no detalhe, tem dois grandes destaques: o Professor Bruno Miragem e
a Professora Cláudia Lima Marques.
Apresento um resumido currículo do Professor Bruno
Miragem, que é Doutor e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É graduado em Ciências
Jurídicas e Sociais pela mesma Instituição, onde obteve os títulos de
Especialista em Direito Internacional e Especialista em Direito Civil. É
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Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul no curso de Graduação e no programa de Pós-Graduação em
Direito. É Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do
Consumidor. Tem experiência na área de Direito, com atuação acadêmica e
exercício da advocacia nas áreas de Direito Civil, Direito do Consumidor,
Direito Econômico, Direito Empresarial e Direito Administrativo. E acrescento o
Direito Constitucional.
Posso dizer aos senhores que o Professor Bruno é um dos
autores mais consultados, principalmente nas atividades do nosso Órgão
Especial, especialmente em sua obra Comentários à Constituição do Rio
Grande do Sul.
Gostaria de registrar que considero uma homenagem o que a
Professora Cláudia, o Professor Bruno e o Ministro Benjamin fazem à
Magistratura Nacional e à Magistratura do Rio Grande do Sul, assim como é
uma homenagem aos senhores que integram este auditório, na condição de
servidores do Tribunal, de convidados – e aqui estão a Professora Tereza
Cristina, o Professor Marcos, o Des. Miguel Ângelo, o Des. Jorge do Canto, a
Desa. Ana Paula e tantos outros.
Saliento que, de nada adiantaria a lei tratar de direitos
básicos, de princípios gerais, de responsabilidade civil, de práticas comerciais
abusivas, de sanções administrativas, de infrações penais, se não houvesse
receptividade de interpretação nos Tribunais.
Queremos homenagear o Professor Bruno Miragem e a
Professora Cláudia Lima Marques e dizer que a presença dos senhores nesta
comemoração dos 25 anos do Código de Defesa do Consumidor é uma honra
para todos nós.
É com muito orgulho para o nosso Tribunal que passamos a
palavra ao Professor Bruno Miragem.
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DR. BRUNO MIRAGEM – Bom-dia a todos! É com muita
satisfação que temos a oportunidade de estar neste Tribunal.
Cumprimento o nosso estimado Professor-Desembargador
Francisco Moesch, o estimado Professor-Desembargador Ney Wiedemann, os
Senhores Desembargadores que nos prestigiam, colegas servidores,
convidados, professores, estudantes, advogados. É um grande orgulho
pessoal estar aqui com os senhores festejando os 25 anos do Código de
Defesa do Consumidor.
Entrando neste espaço onde ocorrem as sessões do Pleno,
que eu tanto assisti, acabei me dando conta de que eu comecei a estudar
Direito do Consumidor nos livros da Professora Cláudia e nas decisões do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Nas primeiras pesquisas, na época
da Graduação ainda, eu optei por fazer pesquisas de jurisprudência. Não sei
se hoje eu teria fôlego para aquelas pesquisas volumosas, para fazer um
panorama dos 10 anos de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul em temas relacionados ao Direito do Consumidor.
Como foi dito pelo Des. Francisco Moesch, a história do
Direito do Consumidor no Brasil é uma história pré-legislativa, com os
movimentos de consumidores, com a articulação de professores, ativistas,
consumeristas. Torna-se uma história legislativa com o advento do Código de
Defesa do Consumidor, realizando um mandamento constitucional de
proteção do consumidor, inscrito pelo constituinte no art. 5°, inc. XXXII, no art.
170, inc. V e no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
que determinou a realização de um Código.
Eu tenho absoluta tranquilidade de dizer, e tenho certeza que
muitos convergirão com o meu pensamento, que nós não teríamos uma lei
com esse vigor e não teríamos uma disciplina jurídica como é o Direito do
Consumidor hoje, com a sua autonomia, com a sua riqueza do ponto de vista
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conceitual, do ponto de vista das eficácias que ele construiu nos vários temas
em que se envolve, se não fosse o papel da jurisprudência.
No Brasil é lugar comum falar-se de leis que pegam ou de leis
que não pegam. Falar-se da pouca eficácia, da pouca efetividade de
legislações, muitas vezes muito bem intencionadas, mas que, por razões
próprias da nossa cultura, mais sociais que jurídicas, acabam não produzindo
os resultados esperados por quem as editou ou por quem delas pretendia
obter um resultado positivo aos seus interesses. O Código de Defesa do
Consumidor, felizmente, não foi uma dessas leis.
O Código de Defesa do Consumidor foi uma lei inovadora,
pode-se dizer com muita tranquilidade que foi uma lei revolucionária.
Revolucionária de conceitos, revolucionária na forma de se pensar uma série
de institutos no Direito Brasileiro, dentre eles institutos fundamentais do Direito
Privado.
Quem já me ouviu em outras oportunidades vai dizer que eu
repito a mesma coisa, mas eu aprendi que a gente às vezes tem que repetir
para não ser esquecido e para continuar valorizando e avançando. O contrato
é um antes e é um depois do Direito do Consumidor, a visão que nós temos
sobre o contrato no Direito Privado; a responsabilidade civil é uma antes e é
uma depois do Código de Defesa do Consumidor. A noção que nós temos de
responsabilidade, as hipóteses de responsabilização, a visão que nós temos e
elementos técnicos da responsabilidade civil, seja dos pressupostos de
responsabilidade, conduta, atividade, nexo de causalidade, nexo de
imputação, a noção de dano. O art. 6º do Código de Defesa do Consumidor
diz: “São direitos básicos do consumidor: inc. VI - a efetiva prevenção e
reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”.
Isso em 1990. Todo o trabalho dessa lei, todos esses conceitos do contrato,
da responsabilidade civil, matéria que não tínhamos até então uma visão, mas
de toda a construção que se estabeleceu em relação à noção de abuso, abuso
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do direito, abuso do exercício de prerrogativas jurídicas, cláusulas abusivas,
práticas abusivas.
No plano do Processo Civil, também é um Código que foi
muito cheio de si, invadindo transversalmente distintas áreas. O Processo Civil
Brasileiro, sem dúvida nenhuma, é um antes e é um depois do Código de
Defesa do Consumidor, e sabemos todos, não só em matéria de tutela coletiva
de direitos - pois de fato o Código instaurou, junto com a Lei da Ação Civil
Pública, um sistema de tutela coletiva -, mas também na tutela individual. O
Des. Ney tem trabalhado no âmbito do Tribunal de Justiça com o novo Código
de Processo Civil, e até hoje, volta e meia, apresenta-se com ideia de
novidade temas que foram inaugurados com o Código do Consumidor: tutela
específica da obrigação de fazer, não fazer e dar. A própria questão do ônus
da prova e a distribuição do ônus da prova. Claro que hoje se fala, dentro da
ideia de proteção ao consumidor, na inversão em favor do consumidor, mas
naquele tempo os processualistas diziam que subvertia a lógica do processo.
Agora, com o Novo Código de Processo Civil, estamos a discutir exatamente
uma noção de ônus da prova distribuído, de acordo com as possibilidades de
demonstração dos fatos no processo e de acordo com as condições das
partes. Ou seja, são temas que o Código de Defesa do Consumidor trouxe em
1990.
No âmbito administrativo, quanto ao Sistema Nacional de
Defesa do Consumidor, não há paralelo no mundo, mesmo com as suas
deficiências, com as suas dificuldades, dificuldades que são inerentes ao
Estado Brasileiro. Os PROCONs, que cumprem um papel fundamental, não
têm paralelo no mundo, com todos os problemas que temos. Só que esse
Código, com essas inovações todas, não seria nada mais que uma reflexão do
legislador, uma reflexão acadêmica até, não fosse o papel absolutamente
decisivo de todos os agentes que se envolvem na prática do Direito, muito
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especialmente a Magistratura, o Ministério Público, a advocacia, que tomaram
para si o Código e desenvolveram firmemente os seus conceitos.
O Código de Defesa do Consumidor deu a oportunidade ao
Direito Brasileiro de fazer aquilo que lemos nos livros e que foi feito em Direito
comparado em várias áreas. Hoje falamos com muita razão, com muita
felicidade e com muita alegria no princípio da boa-fé objetiva. Quando vamos
visitar os textos antigos para ver onde surgiu a ideia da boa-fé objetiva nos
deparamos com o § 242 do Código Civil Alemão, uma frase muito singela: “Os
contratantes devem se comportar de acordo com a boa-fé e os usos do
tráfego”. Uma frase que seria só uma frase, se não fosse o trabalho da
jurisprudência, se não fosse o trabalho da doutrina, se não fosse o trabalho de
quem constrói o sentido e o significado das regras do Direito, o Direito em
ação, o Direito que vem vivo dentro dos Tribunais.
Quando fazemos um balanço histórico e necessário desses 25
anos do Código de Defesa do Consumidor, percebemos que a expressão boa-
fé no Código de Defesa do Consumidor é singela no art. 4º; também na
cláusula abusiva, no art. 51, inc. IV. Naturalmente que a boa-fé no Direito do
Consumidor foi estrutural, de alguma maneira foi perpassando uma série de
institutos. Foi o Código do Consumidor que deu um sentido à noção de boa-fé
no Direito Brasileiro – e sobre isso não vou avançar, porque imagino que a
Professora Cláudia vá desenvolver a teoria que ela própria trouxe para o
Direito Brasileiro, a teoria do Diálogo das Fontes. O Direito Civil, em campo
importante e fundamental da aplicação do princípio, também se apropriou
desses. Mas foi a jurisprudência - com a doutrina, com a advocacia, com o
Ministério Público, e agora com a Defensoria Pública - que construiu no Direito
em ação, nas sessões deste Tribunal e de tantos Tribunais do Brasil, o
significado da regra de Direito que se pôs no Código de Defesa do
Consumidor.
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Hoje, 25 anos depois, deparamo-nos com os êxitos e com as
frustrações. As datas inteiras, 15, 20, 25, 30 anos, sempre são épocas de
balanço, assim como na vida pessoal também, se fiz 30 anos, se fiz 40 anos,
fiz 50 anos. E agora? Só sobram mais tantos. Na legislação não é diferente. O
Código de Defesa do Consumidor está fazendo 25 anos e é uma época de
balanço. O que deu certo são as coisas que nós conquistamos, que não são
só conquistas do consumidor, são conquistas do Direito Brasileiro.
Hoje está instalado aqui no prédio do Tribunal de Justiça o
Placar da Justiça, organizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros,
mostrando que existem 105 milhões de ações no País. Esse número é
assustador, pois são 105 milhões de ações em um País de 200 milhões de
habitantes. Temos várias leituras possíveis. Uma delas é dizer que somos um
País cada vez mais litigioso, em que o litigar faz parte do hábito das pessoas.
Outra leitura possível é dizer que esse número chegou desde quando as
pessoas passaram a ser titulares de direitos, ou conscientes de que são
titulares de direitos e que têm um recurso para fazer valer os seus direitos,
que é o Poder Judiciário. No Placar da Justiça há a referência de que 42
milhões de ações não deveriam estar na Justiça, e não deveriam estar porque,
em um sistema de direito - qualquer que seja, em qualquer lugar do mundo -,
para que esse direito seja obrigatório é necessário certo grau de cumprimento
consensual e espontâneo dos destinatários da norma.
Você conhece a norma, você cumpre por determinação a
conduta que lhe é imposta pela lei. No entanto, por várias razões de natureza
cultural, algumas de natureza estrutural, em um jogo de compensações, pode
ser que também valha a pena não cumprir a norma. É certo que 42 milhões de
ações não tratam de Direito do Consumidor, mas certamente, dentro do
mercado de consumo, alguns agentes econômicos, dentro do seu raciocínio
econômico da atividade, fazem a ponderação de que suportar certo número de
ações é algo que vai bem do ponto de vista econômico. Com isso não se
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condena a lógica empresarial, mas, fazendo um balanço de futuro, temos que
pensar qual o sistema de incentivos que vamos estabelecer para que essas
ações não venham ao Judiciário, para que existam soluções extrajudiciais.
Este Tribunal tem um trabalho extraordinário em algumas
situações, e cito o superendividamento no âmbito do consumidor levado pelo
Tribunal de Justiça e pela Escola da Magistratura, um trabalho extraordinário
feito há alguns anos também com a Universidade, mas não é disso
exatamente que estamos a tratar, porque de novo é o Estado.
O que nós temos que pensar, no meu modesto entendimento,
é que o reforço da efetividade das normas e o desestímulo ao
descumprimento das normas sirvam mais do ponto de vista estrutural na
sociedade brasileira que propriamente iniciativas tópicas, que também são
importantes. O reforço do Código, o reforço das suas regras, e também
porque o êxito de uma legislação como o Código de Defesa do Consumidor,
que tem um fundamento, e é um fundamento confessado, não é um
fundamento que fica cinza na legislação, ao contrário, é um fundamento com
origem constitucional.
O Direito do Consumidor é direito do consumidor, não é direito
das relações de consumo. A determinação constitucional foi a de defesa do
estado do consumidor, do sujeito vulnerável, na forma da lei. A lei vai garantir
as condições para que essa proteção se dê pelo Estado, pela aplicação da lei,
garantindo àqueles que se contrapõem, especialmente em matéria de litígios
judiciais, tenham também as garantias que estão em lei processual, que estão
no próprio Código de Defesa do Consumidor: quem prova o quê, como prova?
Se demonstrar que agiu corretamente, que deu a informação pré-contratual,
se demonstrar que o defeito não existe na responsabilidade, se discutiu o
conteúdo da cláusula do contrato entendendo que ela tem algo a ver com a
natureza do negócio, de modo que ela não vai ser abusiva, que, embora a
cláusula possa ser uma desvantagem ao consumidor, diga respeito à natureza
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do negócio e, nesse sentido, tenha uma lógica que a suporte. O espaço do
processo vai permitir que se faça isso, mas o Direito do Consumidor é um
Direito que se funda no princípio da vulnerabilidade, o princípio da proteção do
vulnerável. O consumidor é vulnerável, e este é o termo técnico.
Quando o consumidor vem a Juízo, pensemos na nossa
experiência pessoal, quantas e quantas vezes todos nós, operadores, agentes
nos seus vários órgãos, estudiosos do Direito, dispensamos o ingresso em
Juízo das pequenas lesões do dia a dia. Às vezes eu penso: “Eu sou
Professor vinculado a entidade de Defesa ao Consumidor, defendo o Código
de Defesa do Consumidor, escrevo sobre o Código de Defesa do Consumidor,
e quando acontece comigo eu penso dez vezes antes de ingressar em Juízo”.
Geralmente não ingresso, suporto o prejuízo, faço um cálculo de duas idas ao
Tribunal no valor “x”, o tempo que eu vou gastar, o incômodo que eu vou ter, e
decido não ingressar em Juízo. Naturalmente que muitos fazem isso. Todos
nós fazemos isso, vulneráveis que somos, e sofremos múltiplas lesões todos
os dias.
As pessoas vão a Juízo quando a lesão já não é mais
suportável. E não é um problema de valor, o que é pouco para um pode não
ser pouco para outro. Nós vivemos em um País de contrastes absolutos e por
vezes nós temos que ter a visão de que trezentos reais, quinhentos reais para
alguns pode ser pouco, mas para outros pode ser uma parcela sensível da
remuneração do mês, pode ser um valor que diga respeito a um sonho, a um
objetivo. Muitas vezes também não é só dinheiro, e todo o reconhecimento
que o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu aos danos
extrapatrimoniais é a absoluta demonstração disso. Muitas vezes não é o valor
econômico envolvido, são os maus tratos que o sujeito recebe quando vai
tratar com um fornecedor, outras vezes é o aspecto envolvido do ponto de
vista emocional. Ninguém gosta de ingressar no Judiciário, tem que pagar um
advogado, a pessoa já sai perdendo.
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Quando nós paramos e visualizamos o fenômeno do Direito
do Consumidor hoje é preciso reconhecer que ele tem um fundamento: o
princípio da vulnerabilidade, da proteção do vulnerável e de que todo
consumidor é vulnerável. Outro dia tive a oportunidade de ler uma entrevista
que me deixou muito triste. Um querido amigo, uma pessoa próxima nas lides
do consumidor, falou de paternalismo judicial, que não se pode ter
paternalismo judicial no Direito do Consumidor, como se houvesse. Se
houvesse paternalismo judicial nós não estaríamos com 105 milhões de
ações, os problemas estariam resolvidos. A expressão paternalismo já é ruim,
porque ela pode indicar uma ideia de desvio técnico daquilo que a lei e a
Constituição determinaram. Não se trata de paternalismo, mas de um
fundamento, um termo técnico que erige o Direito do Consumidor, ou seja, a
vulnerabilidade.
Pelo número de ações, o que acontece muito é se pinçar um
caso, dentre centenas de milhares de casos, em que houve um desviozinho,
uma desatenção e daí adveio uma indenização, não extraordinária, mas um
pouco superior à média. Para aquele caso há uma divulgação, há um trabalho
de imprensa, um trabalho de divulgação massiva dizendo que o Judiciário
Brasileiro só protege o consumidor. Não raro nós ouvimos decisões de fora do
Brasil, de sistemas completamente diferentes dos nossos, alguém que se
queimou com café no McDonald's e ganhou bilhões nos Estados Unidos, sem
indicar distinções entre os dois sistemas, sem revelar que aqueles bilhões não
vão invariavelmente para aquela vítima. Essas coisas surgem volta e meia e
nos causam certo encabulamento.
A nossa modesta reflexão é exatamente em sentido contrário.
A proteção do consumidor não está demais, pelo contrário. Por mais que nós
trabalhemos, por mais que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
trabalhe, por mais que o Sistema Judiciário Brasileiro trabalhe, e decida,
porque essas 105 milhões ações vão ser decididas, em mais ou menos tempo
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haverá decisões, sentenças, acórdãos. Por mais que isso ocorra, tem-se a
sensação - usando uma expressão popular - de enxugar gelo, porque vamos
decidir 105 milhões, depois virão mais 105 milhões.
Nós temos que ter uma estratégia de futuro para essa lei tão
importante, que tantos benefícios trouxe ao Direito Brasileiro, à cidadania, às
relações sociais e econômicas, que elevou o padrão de qualidade, tanto de
produtos e serviços quanto das relações entre consumidores e fornecedores
no mercado de consumo.
Há um olhar para a frente - não vou tratar porque será objeto
da fala da Professora Cláudia Lima Marques - que é o campo da atualização
legislativa. Temos que mexer em algumas coisas, porque o Código de Defesa
do Consumidor é de 1990 e há fatos da vida regulados pela lei que não
existiam em 1990. Mas não é só. No Direito do Consumidor nós não podemos
cair naquela ilusão, que muitas vezes acontece, de achar que a lei resolve
tudo, o Estado teatral, o Estado espetáculo. Aconteceu um crime não sei
onde, vamos mudar a lei e vai resolver. Aqui no Rio Grande do Sul temos dois
exemplos: a Lei Bernardo e a Lei Kiss. Evidentemente que a lei não pode
tudo.
É importante atualizar a legislação, no entanto, mais que
atualizar a legislação, é importante também firmarmos, fomentarmos e
promovermos uma cultura, um pensamento, uma ideia-força, no sentido de
que o Direito do Consumidor é um Direito de proteção do vulnerável. É um
Direito que não serve só ao consumidor, ele é um Direito que serve também
ao mercado, porque eleva os padrões de eficiência, de qualidade, e nivela por
cima a concorrência dos agentes econômicos.
O Des. Moesch falava há pouco das diretrizes da ONU, da
Resolução das Nações Unidas. Nós tivemos um trabalho muito forte das
Nações Unidas este ano com a revisão dessas diretrizes. Na resolução nova,
que será editada até o final do ano, nas novas diretrizes de proteção
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internacional do consumidor, uma das grandes questões é o combate ao duplo
standard, ou seja, em uma economia global uma empresa ter um nível de
qualidade para produtos e serviços em países desenvolvidos e outro nível de
qualidade de produtos e serviços em países subdesenvolvidos. A ideia é evitar
isso.
Quando nós, brasileiros, dizemos que não queremos ter um
duplo standard, que o Brasil merece a mesma qualidade de produtos e
serviços do mercado de consumo dos países desenvolvidos, nós também não
podemos, por vezes até inconscientemente, admitir que existam consumidores
de diferentes classes entre os brasileiros. Mesmo que seja um produto mais
barato, tem um padrão, tem um standard de qualidade que tem que ser
cumprido. É mais barato para poder ser acessível por consumidores de menor
poder aquisitivo, mas tem que ter um padrão, tem que ter um standard.
Aqui no Rio Grande do Sul os Juizados Especiais funcionam
de forma extraordinária, mas não raro pode acontecer de alguém dizer que se
trata de uma demanda, usando o nome antigo, de “pequenas causas”, mas
para a pessoa pode ser “a causa”, dando tratamento diferenciado para pior,
menosprezando a demanda. O sistema de Justiça e o sistema de Direito
devem ter esse cuidado para efetivamente valorizar a grande lei que nós
temos, o grande Código que nós tivemos a felicidade de editar há 25 anos, e
que a jurisprudência, a advocacia, a Academia, todos os envolvidos deram
uma contribuição extraordinária, dentro da ideia de não retroceder no nível de
efetividade, no nível de qualidade que se obteve a partir desse primeiro
estágio, desses primeiros 25 anos.
É preciso que nós possamos avançar para corrigir aspectos
do ponto de vista processual, do ponto de vista de interpretação de algumas
disposições do Código, mas, sobretudo - e é essa a mensagem que eu
gostaria deixar aos senhores -, sem retroceder na cultura, na compreensão,
na concepção de cada um sobre o papel do Código de Defesa do Consumidor
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no Brasil contemporâneo. O Código de Defesa do Consumidor é uma lei da
cidadania brasileira, uma lei que o mais humilde dos brasileiros conhece
alguma coisa, algum direito seu. Devemos ter essa cultura, a concepção sobre
a necessidade de continuar avançando e aplicando sem destemor, sem
pruridos, sem encabulamentos, no sentido de achar que está protegendo
demais aqui ou ali, porque se está aplicando uma lei de fundamento
constitucional, com 25 anos, com testemunho unânime de sucesso.
Hoje eu não vejo ninguém capaz de ser contra o Código de
Defesa do Consumidor, como há 25 anos, mas precisamos ter esse espírito,
essa compreensão de que se avança melhorando aquilo que aí está e se
avança construindo uma sociedade de consumo mais solidária.
Eu não preciso dizer aos senhores que o papel do Poder
Judiciário é fundamental, porque 105 milhões de ações estão aqui. É
fundamental para decidir questões individuais de cada pessoa que procura e
deposita no Poder Judiciário a sua esperança, mas também para sinalizar
para a sociedade e para o mercado qual é o sentido da norma e qual é o
sentido do comportamento que se espera que seja cumprido, sem
necessidade de uma intervenção do Estado, um cumprimento espontâneo, um
cumprimento pelo desestímulo à conduta contrária, um cumprimento
sinalizando o que é o correto a fazer, porque muitas vezes é o
economicamente adequado, pois poderá lhe custar mais se eventualmente
ingressar no Poder Judiciário.
Com esta mensagem, agradeço de forma muito honrada o
convite que me foi formulado pelo Tribunal de Justiça e também agradeço pela
oportunidade de ouvir a nossa grande Mestra, a Professora Cláudia Lima
Marques.
Muito obrigado.
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DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH – Eu gostaria de dizer
aos senhores que nós precisamos aproveitar as oportunidades.
A Professora Cláudia Lima Marques soube, como poucos,
aproveitar as oportunidades. Ela recebeu um convite da Universidade para
fazer um curso na Alemanha e isso transformou a sua vida em todos os
sentidos. O Prof. Johannes Doll, seu companheiro e esposo, e os seus filhos,
Pedro e Tobias, também são fruto dessa caminhada.
Muitas vezes temos oportunidades e ficamos com elas, mas a
Professora Cláudia soube ampliar. Ela ampliou todos os vínculos com a nossa
Universidade, com o Poder Judiciário, com a Escola, e, principalmente, com a
comunidade jurídica internacional. Ela tem uma Comenda da República
Federal da Alemanha, uma das comendas mais marcantes que eu assisti. A
oportunidade bem aproveitada vai encantar a quem nos rodeia, vai encantar a
quem nós prestamos o nosso trabalho, mas, acima de tudo, vai nos trazer
felicidade.
O seu trabalho, Professora Cláudia, é um exemplo para todos
nós. Eu conheci pessoas nos eventos da Universidade que a senhora, o
Professor Sérgio José Porto e o Professor Manuel André da Rocha, entre
outros, oportunizaram. Os continentes ficaram pequenos e próximos por meio
desse trabalho, o que é um modelo para nós.
A Professora Cláudia Lima Marques tem Graduação em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1985);
Mestrado em Eberhard Karl Universitäts do Sul, Tübingen, pela Universitäts de
Tübingen (1987); Especialização no Institut der Universität des Saarlandes,
Alemanha; Doutorado na Universität Heidelberg (1996) e Pós-Doutorado na
mesma Universidade (2003), uma bonita homenagem ao Professor Erik
Jayme e sua teoria do Diálogo das Fontes.
Atualmente é Professora Titular da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Colaboradora do Ministério da Justiça; Delegada e Expert do
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PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Brasil na Cidip; Diretora da Associação Luso-Alemã de Juristas, em Berlim; da
IACL, Internacional Association Consumer Law, em Bruxelas; Diretora da
Internacional Law Association Brazil; Presidente do Comitê de Proteção
Internacional dos Consumidores e Diretora da Revista do Consumidor.
A Professora Cláudia tem experiência nas áreas de Direito Civil,
Direito do Consumidor com ênfase em Direito Internacional Privado,
MERCOSUL, Código de Defesa do Consumidor, Direito Internacional Público,
Direito Internacional Privado. Também é Coordenadora dos Cursos de
Especialização: “O Novo Direito Internacional” e “Direito do Consumidor”,
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da
UFRGS.
Para o Tribunal de Justiça, para o Centro de Estudos e para
todos nós, é uma honra muito grande receber a Professora Cláudia Lima
Marques no mês em que comemoramos os 25 anos do Código do
Consumidor.
DRA. CLÁUDIA LIMA MARQUES – Bom-dia a todos!
Inicialmente eu queria dizer da minha alegria e do meu prazer por estar aqui,
principalmente pela oportunidade de poder refletir com os senhores, grandes
pioneiros da Defesa do Consumidor que se reúnem aqui no Tribunal de
Justiça, como o Des. Francisco Moesch, que foi Presidente do Brasilcon do
Rio Grande do Sul por tantos anos, e discutir a beleza da comemoração dos
25 anos, assim como os projetos de futuro.
Eu me inspirei muito, Des. Ney Wiedemann, nesse belíssimo
nome que o Centro de Estudos dá às suas reflexões: Horizontes. Eu vivi na
Alemanha algum tempo, e lá a densidade populacional é tal que a gente não
enxerga os horizontes, sempre tem alguma coisa construída, sempre tem
algum prédio, algo que tira a vista, que a gente não consegue enxergar. Sem
nenhum bairrismo, os horizontes tocam muito aos gaúchos, pois aqui no Rio
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Grande do Sul, principalmente nos Pampas e nos Campos Altos da Serra, o
que nós temos é a possibilidade dos horizontes, enxerga-se longe. Na beleza
do Pampa Gaúcho notamos nossa pequenez, nossas dificuldades, pois ao
enxergar longe vemos quão pequenos somos.
Faço uma homenagem ao Tribunal de Justiça. Recordo-me que,
na época do Desembargador e Professor Ruy Rosado e do Des. Eládio Lecey,
a Escola Superior da Magistratura abriu as suas portas, e nós nos reuníamos
aos sábados para entender o Código de Defesa do Consumidor e colocá-lo
em prática. Essas reuniões eram semanais, e lembro que o Des. Dall’Agnol
trazia uns sanduíches. Aquilo foi magnífico. Primeiro tivemos aulas, depois a
prática começou com grandes leading cases do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, que foram a nossa âncora desde o volume n° 01 da Revista do
Direito do Consumidor. Acredito que não tenha nenhum volume da Revista
que não tenha uma decisão deste Tribunal de Justiça. Meus parabéns pelo
trabalho.
Muito obrigada pela honra de podermos estar aqui para este
momento de reflexão, na presença do querido Presidente do Brasilcon, Bruno
Miragem, Desembargadores, Professores, colegas, da nossa Presidente da
Comissão de Defesa do Consumidor na OAB, Tereza Moesch.
As grandes honras são grandes responsabilidades, então eu
preparei uma coisa diferente para não ficar repetitiva, mas depois do Professor
Bruno Miragem é difícil achar alguma coisa diferente para falar.
Inspirada pelos horizontes, eu gostaria de fazer um balanço
das conquistas do Código e dos horizontes que ele nos abriu, assim como dos
horizontes que a atualização do Código de Defesa do Consumidor está nos
abrindo, sempre avaliando a parte da solidão.
Às vezes, o movimento consumerista é um estado constante
de lutas. Eu imagino que na Magistratura também há uma frustração em razão
da não modificação, apesar da lei, apesar de súmulas vinculantes. Apesar de
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todo o trabalho que acontece, pessoas analfabetas continuam sofrendo
assédio de consumo. Há pouco vimos uma belíssima decisão da Desa. Ana
Paula Dal Bosco, do Des. Jorge do Canto também. Tão bonitas decisões e
nada muda, tanto na primeira parte das conquistas que o Código abriu como
as que ficaram para ser conquistadas ou para serem consolidadas no
mercado brasileiro.
A Comissão de Juristas, que eu tive a honra de participar,
presidida pelo eminente Ministro Antonio Herman Benjamin, fez três projetos
de lei com uma lógica, mas só dois deles foram aprovados, no dia 02 de
setembro, na CCJ do Senado Federal, e estão pautados para serem
aprovados no Plenário do Senado. Nesse caminhar a atualização também foi
perdendo algumas conquistas, muitas delas sugestões aqui do Tribunal, mas,
se estivermos atentos a esses horizontes perdidos, podemos tentar
reconquistar, e eu gostaria de fazer algumas sugestões para todos.
Iniciando a ideia de ir ao limite do conhecimento, o que o
balanço de 25 anos do Código de Defesa do Consumidor traz de mais
importante? Eu destacaria quatro paradigmas que o Código estabelece e
consolida no Direito Brasileiro.
O primeiro paradigma, talvez o mais importante, não é só a
visão de boa-fé, mas a ideia da totalidade da obrigação. A aproximação que
ele fez entre a responsabilidade contratual e extracontratual, e mais ainda,
mais profundo, mais sofisticado, bem Século XXI. Como diz Edgar Morin, a
gente tem que ver a complexidade e pensar a complexidade. O que os
pioneiros da Comissão, coordenada pela Professora Ada Pellegrini Grinover,
viram foi a necessidade de valorizar os fazeres, não só os dares; não só
aquela visão de compra e venda, produto, qualidade do produto, mas a
aproximação da nova economia, da nova visão de riqueza, o que é que as
pessoas querem. As pessoas querem informação, as pessoas querem
segurança, as pessoas querem seguro, as pessoas querem saúde, as
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pessoas querem educação, turismo, lazer, um consumo mais sofisticado,
crédito.
O Código já viu esse novo paradigma. Ele fez um direito dos
contratos, uma oferta, uma valorização da oferta de um momento prévio, de
um momento pós-contratual, pós-eficácia, se preocupou com a cobrança de
dívidas, banco de dados, privacidade, na medida do pensamento de 1990,
mas ele mudou esse paradigma. Muito melhor que o Código Civil, que é de
2002 pela aprovação, mas o paradigma de pensamento é de 1970, já
influenciado pela ideia de totalidade de Karl Larenz, mas ainda não tão forte.
O segundo ponto que eu gostaria de destacar é a ideia da
definição de consumidor, ter um código que proteja o sujeito de direitos nesse
papel, que é um papel líquido, como diria Bauman, na nossa sociedade. A
nossa sociedade não é estanque, mas o status é estanque: sempre idoso,
sempre criança. Nós não temos mais essas coisas perenes na sociedade
brasileira nem no mundo. Tudo muda, e essa mudança pode parecer bonita
para a publicidade, mas é dificílima para o Direito, porque o Direito chega
sempre atrasado na resposta.
Fazer um Direito para um papel da sociedade, um papel que é
instantâneo, um papel que é momentâneo, um papel que não é só individual, é
individual homogêneo, é coletivo, é difuso. O consumidor não é o destruidor
do produto ou serviço de bem consumível, tipo definição do Código Civil, mas
ele é um sujeito de direitos de um determinado momento. Naquele
determinado momento ele se inclui no grupo, e o Código de Defesa do
Consumidor traz uma definição strictu sensu, sem ser contratual. Usando a
dupla ideia de adquirir (contrato) e utilizar (não precisa contrato), pode ser a
criança, pode ser o bystander, pode ser o beneficiário do seguro, ele está
utilizando aquilo e não contratou. Pode ser até uma relação de previdência
complementar fechada que quem está pagando é o seu empregador.
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É uma visão realmente muito impressionante de uma definição
aberta, destinatário final, com a evolução fático-econômica, com a ideia do
finalismo aprofundado, com bastante sensibilidade, mas principalmente a ideia
da equiparação, que foi uma conquista enorme, porque a nossa
jurisprudência, principalmente dos Tribunais Superiores, tem dificuldade de
fazer equiparações, só vê o consumidor como um indivíduo, mas ele é um
grupo, e ele pode nem ser o destinatário final, ele pode ser o exposto a uma
prática.
Na Europa hoje se tem toda uma linha muito bonita, que está
de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, dos discriminados, daqueles
consumidores invisíveis, que não se nota: ele era idoso, ou ele era analfabeto
e surdo. O beneficiário tem que saber isso dele. Tudo isso está na definição
do parágrafo único do art. 2°, que os consumidores participam, que eles
intervêm. Que bonita essa definição total e abrangente.
O terceiro ponto que eu queria destacar, em uma homenagem
ao Dr. Antonio Herman Benjamin, é a Teoria da Qualidade. Em um Brasil que
quer entrar no Século XXI, vamos nos preocupar com a qualidade de produtos
e serviços, vamos trazer uma nova visão de vício, mais econômica, mais
prática, vamos consertar as coisas. Eu não quero rescindir, eu quero que
funcione, quero que a coisa aconteça. Aqui também foi falado da execução
específica dos serviços. Quão difícil é o regime dos serviços até hoje. Com
relação à prestação de serviços, no Código Civil só há dois artigos diferentes
do Direito Romano ou do Código de Clóvis Beviláqua.
Na teoria da qualidade, de segurança, do defeito, do acidente,
o art. 17 pegando todas as vítimas. Muito bonito esse paradigma do coletivo,
paradigma do pontual. Ele participou, ele interveio, ele foi exposto em uma
publicidade e ele não vai nem comprar. No volume 01 ou no volume 02 da
Revista do Consumidor consta um caso concreto de uma publicidade de
chocolate. A defesa da empresa suíça afirmou que aqueles chocolates eram
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vendidos apenas para crianças que podiam entender a publicidade, eram
crianças da classe A e B que tinham visto determinado filme que estava
passando. Aquilo era uma aventura, era uma coisa sem repercussão uma vez
que as outras crianças não comiam chocolates, e as que comiam chocolates
não comiam chocolates daquela marca. O consumidor é o consumidor
eventual possível e o consumidor de verdade. Eu faço uma pesquisa sobre
quem consome chocolates no Brasil, e os não consomem não são
consumidores? A visão do Código é totalmente diferente. Nesse leading case,
que é considerado o maior em matéria de publicidade, foi esclarecido que o
mercado brasileiro é uno, todos são atingidos, expostos pelas mesmas
práticas. Depois houve outras empresas internacionais que utilizaram
publicidades permitidas no mundo, não em todos os países, mas que no Brasil
foram consideradas abusivas porque ofendiam parte da população. Não tem
nada a ver se é consumidor ou não, ele está dentro do papel, ele foi protegido
pelo Código.
O quarto grande presente do Código de Defesa do
Consumidor é o art. 7º. Aqui no Brasil já é difícil conquistar uma lei, aí
conquista a lei e abre dizendo que o importante é a finalidade, a lógica,
proteger o consumidor. Os direitos do consumidor podem estar nos tratados
internacionais; podem estar no regulamento, com uma hierarquia diferente;
podem estar nos princípios gerais do Direito; podem estar até na analogia a
uma coisa que não seja consumo, mas, se assegura um direito ao
consumidor, esses direitos serão incorporados pelo art. 7°. A redação é
interessante: “Os direitos previstos neste Código não excluem outros direitos
decorrentes”, preparando a ideia do Diálogo das Fontes, que é uma teoria
européia, mas é uma visão sofisticada para responder ao pluralismo de fontes.
O pluralismo não vai parar, só tende a aumentar, e as coincidências de campo
de aplicação subjetivo e campo de aplicação material, como afirma o
Professor Erik Jayme, o criador dessa teoria, não existem. Como não há mais
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coincidência, se o sistema fosse um círculo, em um momento eu sou
consumidor, depois sou fornecedor, eu sou idoso sempre, mas eu sou idoso
Presidente da República, eu sou idoso consumidor. Não há coincidência de
campo de aplicação material e campo de aplicação subjetiva.
Então, se eu tiro uma das lógicas do sistema, ou se eu
diminuo só a da constituição dos direitos fundamentais, que vão organizar a
coerência a esse sistema para o Diálogo das Fontes, da coerência restaurada,
eu prejudico a justiça, eu prejudico os valores constitucionais que estão
orientando o falar das várias leis, sair de uma ideia que só uma lei pode falar –
a lei hierarquicamente superior, lex superior, a lei mais especial, a lex
especialis, ou a lei posterior, lex posterior. Agora eu tenho que aplicar várias
leis ao mesmo tempo, planos de saúde a idosos, Estatuto do Idoso, Código de
Defesa do Consumidor, Código Civil. Tudo ao mesmo tempo, sob o sol da
Constituição.
Eu escutei de alguns colegas que se usa demais o art. 7º do
Código de Defesa do Consumidor, mas ele é, talvez, um dos artigos mais
interessantes do Código. Quais foram os problemas das não conquistas, ou os
nossos horizontes que estão ainda não descobertos, ou cobertos por alguma
cortina de fumaça? O Dr. Bruno Miragem mencionou algumas pessoas que
dizem que não vão usar a expressão “consumidor” porque diminui a pessoa.
Eu participei de vários debates em que tínhamos que dizer que o consumidor
é o homo economicus et culturalis, é a figura de homem do Século XXI.
Zygmunt Bauman diz que os novos pobres são os excluídos do acesso à
sociedade globalizada e de informação, mas ele vai ter acesso por meio do
Direito do Consumidor. O pobre é o outro, é o que é o excluído, é o que fica
reduzido em uma ideia de cidadania. O Século XXI é individualista, é
hedonista, não é muito solidário.
Quais são as conquistas que temos que descortinar? Primeiro,
eu diria que são os serviços complexos. Evoluímos muito na visão de contrato,
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de obrigação, de boa-fé, dos dares e dos fazeres. Apesar da vitória da ADI
2591, que foi a maior vitória do Direito do Consumidor, nós não estamos
conseguindo dar solução útil ou modelar alguns serviços complexos. Temos a
Súmula nº 381, que criou um privilégio para os contratos bancários, para que
nulidade absoluta não fosse examinada pelo julgador de 1º Grau. Daí vem a
pergunta: o Tribunal poderia, ex officio, (e na minha opinião poderia) examinar
uma nulidade absoluta de origem constitucional, já que o Estado, na forma da
lei, deve proteger o consumidor? A Súmula está redigida de forma infeliz, e há
pouco o Ministro Sanseverino, que foi um grande Desembargador desta Casa,
pediu o reestudo da Súmula, para nossa alegria e orgulho.
Serviços complexos no sentido da triangulação. Há pouco
participei de uma audiência pública no STJ sobre Previdência Privada
Complementar, em que há o patrocinador, o fornecedor e a pessoa. Há uma
tendência de dizer que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica a
essa relação porque ela é triangular. Há uma decisão do Supremo Tribunal
Federal dizendo que esse tema deve ir para a Justiça Comum, que não é da
Justiça do Trabalho, indicando que não é tema de relação trabalhista. Se não
é consumo, eu não sei o que é.
Eu volto à importância da definição de consumidor. O art. 29
diz que todos que são expostos a práticas comerciais, contratos de adesão, e
o trabalhador - que daqui a pouco vai ser até funcionário público que vai se
submeter ao Regime de Previdência Privada Complementar - quando assina o
contrato de trabalho, já assina o outro, com todas as suas cláusulas e com
todas as suas promessas eventuais, que durante o passar do tempo vão
sendo reduzidas.
O segundo ponto é a responsabilidade em rede - e novamente
faço uma homenagem aos professores europeus Hans Micklitz e outros, da
chamada SECOLA – Society of European Contract Law. Eu fui aceita na
SECOLA, no seu Congresso em Oxford, e eu fui a única brasileira convidada.
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Eles estão fazendo os Códigos de Compra e Venda europeus comuns e o
código que eles chamam de Código Civil, as bases do Código Civil Europeu, e
eles estão preocupadíssimos com isso. Mais ou menos como o Dr. Bruno
Miragem falava, o problema é como incentivar que as pessoas cumpram os
seus deveres. Tem uma figura de Karl Larenz, que eu gosto muito, que diz
que os deveres são como tijolos que constroem um edifício - essa é a primeira
obrigação, o de cumprimento voluntário. Esse edifício projeta uma sombra,
que é o respondere, a segunda obrigação, a obrigação de cumprimento
coativo, imperativo, que é a responsabilidade civil, as garantias. Eles já
arrumaram o primeiro edifício deles e estão preocupados com a sombra. Os
invisíveis não são os vulneráveis, os consumidores. Os turistas, os idosos, os
analfabetos saíram das sombras e vieram para o reconhecimento do Direito
do Consumidor, e agora o problema é não saber quem está do outro lado. A
organização mundial da divisão do trabalho e a facilitação que essa
compatibilidade de mídias fez. O aplicativo que eu uso no meu celular pode
ser um contrato internacional, e eu não estou nem sabendo, eu não identifico
mais quem está do outro lado, Direito Público, se é Direito Privado, eu não
consigo enxergar esse outro. Eles estão defendendo que a sombra tem que
ser uma responsabilidade em rede. Porque se a organização é em rede, e
todo o mundo participa, não vá dizer que eu não tenho nada a ver com isso.
Na sombra tem que aparecer todo o mundo que estava no edifício.
Volto à beleza do Código de Defesa do Consumidor.
Obviamente não se pensou nisso, mas, juntando a teoria da qualidade com as
definições de consumidor, é possível pensar na responsabilidade em rede no
Código de Defesa do Consumidor.
A terceira parte é o problema da essencialidade, art. 18 do
Código de Defesa do Consumidor. Nós voltamos ao momento de valorizar os
produtos, a eficiência do Direito do Consumidor hoje tem a ver com o combate
à impunidade dos pequenos danos. O Código de Defesa do Consumidor, na
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sua teoria da qualidade, impôs coisas muito bonitas, mas a Europa está indo
por uma outra direção. Nós temos regras de prescrição, temos 30 dias para o
conserto. Na teoria tudo perfeito, mas na prática há um grande conflito na
sociedade. O que é essencial? Será que o celular é essencial em relação à
linha; o hardware em relação ao software. As coisas não estão mais
funcionando assim.
O que eles fizeram na Europa - e talvez fosse interessante a
gente também descortinar esse horizonte? Assim como na responsabilidade
em rede, que não se tem ainda uma reflexão forte, eles resolveram fazer uma
garantia geral. Se eu compro uma coisa nova, não usada, tem que funcionar,
e, se não funcionar, a troca tem que ser automática. Se o produto não vai
funcionar por dois anos tem que avisar e talvez vender um seguro a mais.
Nada contra o seguro, eu até acho muito interessante, eu mesma tenho
seguro de garantia estendida, porque acho que é útil para o consumidor.
Vamos diminuir a conflitualidade. Faço uma homenagem à Ordem dos
Advogados do Brasil, que propôs, junto com a Assembleia Legislativa, uma lei
estadual, que chamou de Lei Geral dos Consumidores, para definir como
seriam as essencialidades, pelo menos no Estado do Rio Grande do Sul.
O último e quarto desafio do nosso Código é a discriminação.
O paradigma da igualdade, a ideia da igualdade sempre foi um problema de
Direito Público, não foi um problema de Direito Privado. A liberdade, a
solidariedade e a fraternidade eram problemas de Direito Privado, a igualdade
era um problema de Direito Público. O Código de Defesa do Consumidor
incluiu os serviços públicos, como nessa ideia da proteção da criança na
publicidade, no art. 39, inc. IV, a ideia de impingir produtos às pessoas que
têm reduzido conhecimento. Claro que não vai falar em educação financeira,
não vai falar em idosos, em analfabetos - agora na atualização se fala -, mas a
ideia de não poder discriminar as pessoas já está no Código de Defesa do
Consumidor, e é impressionante.
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A Europa está fazendo isso agora. As novas decisões ou leis
europeias, diretivas e regulamentos são de combate à discriminação dos
consumidores mais vulneráveis. Existem algumas cláusulas dos créditos que
são exclusivas para os idosos. Como pode ter uma cláusula especial para os
idosos? Isso não é discriminá-los? O idoso que vai a um Juizado Especial,
sem advogado, e não consegue ler o contrato, não consegue ouvir o que o
outro diz. Nós não temos que ajudar esse idoso também nos Juizados
Especiais, talvez até via Defensoria?
Quero fazer uma homenagem a todo o esforço que a
Magistratura do Rio Grande do Sul faz, mas a verdade é que esse consumidor
em todos os seus momentos é mais vulnerável. Eles chamam de
vulnerabilidade agravada, consumidores vulneráveis que realmente estão
sendo discriminados, às vezes pelo endereço, às vezes pela origem, pela
educação. No Brasil nós não temos sequer direito a saber por que um crédito
é recusado, e esse foi um dos grandes problemas do scoring. No scoring
estão quatrocentos itens, e vão me discriminar, sem eu saber, pela raça?
Como pode? Tudo isso tem que ser transparente. O Código de Defesa do
Consumidor tem esse início, a proteção na cobrança de dívidas, não
discriminar o superendividado, mas nós não conseguimos realizar essa
conquista.
O que a atualização do CDC trouxe de novos horizontes? O
que já caiu nesse caminhar e o que poderíamos renovar? Antonio Herman
Benjamin considera que a atualização tem três pontos: primeiro é que não
deveria haver retrocesso, porque tem origem constitucional; segundo é que
deveria ser pontual, não deveria modificar os artigos que a jurisprudência tão
belamente, porque a vida sai do caso concreto. O Judiciário passou 25 anos
trabalhando o que é boa-fé, o que é contrato de adesão, o que é cláusula
abusiva, e um grupo de juristas escolhidos pelo Senado Federal muda? Tem é
que colocar mais coisas, porque já está bom; é só incluir direitos, incluir novas
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palavras, como as aqui mencionadas. Não tem menção a analfabeto, não tem
menção a idoso. A ideia é que toda norma tem que ser interpretada a favor do
consumidor, que as lacunas têm que ser preenchidas a favor do consumidor,
um diálogo das fontes mais profundo. Isso está no sistema, mas não está tão
claro. A conexidade entre o contrato de crédito e o contrato principal de
consumo está no art. 52. Mas por que não criar um artigo específico?
Por último, a atualização pontual, que é reforçar a beleza do
microssistema. Existem três reforços: primeiro o reforço da dimensão
constitucional. A vitória da ADI dos Bancos. Não pode haver privilégios no
mercado brasileiro e não se aplicar o Código de Defesa do Consumidor em
determinado setor. Todo o mundo tem que ser esse paradigma mínimo, por
isso a ideia do crédito, a ideia do comércio eletrônico - o Brasil é muito
importante em comércio eletrônico -, contratação a distância, contratação
virtual. Existe o chamado virtual divide, que é uma divisão das pessoas que
vão ser incluídas na sociedade mais informatizada e as pessoas que não vão
conseguir, geralmente os mais vulneráveis. A Europa, por exemplo, tem
decisões sobre o direito das pessoas idosas e de todos os clientes, para não
discriminar os idosos, de acessarem um caixa físico quatro vezes ao mês.
Pelos incentivos, quem usava a Internet, quem só usava os ATMs, não tinha
mais caixa na Europa, desapareceram as pessoas; tinha gerentes de contas,
de investimentos, mas não tinha mais quem atendesse a pessoa e
conversasse com ela. O direito de acessar o seu próprio dinheiro, que está no
Banco, e não pagar mais por isso, porque se fizesse por telefone, ou pelas
máquinas, era um preço, se fizessem pessoalmente, era outro. Isso não pode,
isso também é discriminação.
Dimensão constitucional do Direito do Consumidor, dimensão
ético-inclusiva e solidarista. O nome é do Ministro Antonio Herman Benjamin,
porque todo código tem uma ideia de boa-fé, de pensar no outro, de pensar
refletido, é ver o outro, então é ética. A ideia de inclusiva, o Direito do
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Consumidor é o potencial na legislação mais inclusivo que existe, e leva
consigo todos os outros hipervulneráveis. Sobre a ideia solidarista, eu discuti
com o Ministro Benjamin e perguntei: “Por que, além de ético, inclusivo, ainda
solidarista?” E ele disse: “Porque o belo do Código de Defesa do Consumidor
é isso: liberdade, igualdade, e fraternidade”. Solidarista, a terceira ideia da
modernidade. Eu não posso aplicar o Código de Defesa do Consumidor com
uma ideia simplesmente de eficiência econômica, como se ela não tivesse um
valor ali dentro, que é a justiça distributiva. Eu prefiro pagar 0,01% a mais,
desde que a vítima não fique com o prejuízo, ou que não seja ressarcida pela
metade, porque ressarcir pela metade aquela vítima significa que ela foi
culpada do acidente de consumo, e não o fornecedor.
O Direito do Consumidor é solidário em si. Economicamente
ele faz parte da divisão de riscos na sociedade, e o solidarismo contratual é
justamente isso.
Eu gosto muito da palavra fraternidade, porque fraterno é o
irmão, é aquele que tem uma origem comum. E o que se vê hoje é que esses
consumidores são vistos como inimigos, estão incomodando, estão
reclamando, estão fazendo a indústria do dano moral, ele não é meu irmão. A
ideia da fraternidade ou da solidariedade, no sentido da Revolução Francesa,
é de que todos nós somos irmãos. Ele é eu amanhã, ontem; ele é a minha
mãe, ele é o meu irmão. Ele é a minha família, ele não é um diferente, que
pode receber um dano que não tem problema.
A dimensão da confiança, efetividade e segurança jurídica.
Novamente o Ministro Antonio Herman Benjamin, três grandes ideias: O
Direito do Consumidor é fides, confiar, é um standard, não somente de bona
fides, mas a ideia de que nesse mercado eu posso confiar nas coisas. Eu
tenho que ter confiança, senão não se faz nada, eu não saio do meu ócio para
o negócio jurídico, se eu não confio.
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Efetividade, porque o Direito do Consumidor tem que ser
pragmático, tem que ser efetivo, há uma série de sanções novas, como o
follow the money. Não estou dizendo que, para saber Direito do Consumidor,
tem que ir a Harvard, mas a gente conversa com Harvard e eles aprendem
também com a gente. Não vamos nos menosprezar e dizer que para ensinar
os Juízes brasileiros a decidir tem que contratar a Harvard Law School.
Voltando à ideia da efetividade, se essas evoluções
aconteceram nos outros países, por que não utilizar aqui? Qual é o problema
do follow the money? O que ele vem fazer? No mundo virtual as empresas
também abrem e fecham muito rapidamente, mesmo as grandes telefônicas,
as grandes empresas têm vários CNPJs. Os nossos instrumentos são
localizados, aí eu vou fazer a penhora naquele negócio, daquela pessoa e já
não tem mais, já não visualizo mais. O que não muda é o dinheiro. O dinheiro
sempre estará na mão daquele que é o autor. Seguindo o dinheiro você
encontra o fornecedor. É uma sanção pragmática. Eu admiro os norte-
americanos em muitas coisas.
Segurança jurídica. Infelizmente o PLS nº 282/2012 não
avançou, e com isso eu gostaria de fazer algumas sugestões. O PLS nº
281/2012, que avançou e que se espera ser agora aprovado pelo Senado
Federal, cuida da parte geral do Código de Defesa do Consumidor,
assegurando o diálogo com o Código Civil, e do novo paradigma virtual das
relações a distância e também do turismo, da proteção internacional do
consumidor. Os brasileiros já são o terceiro grupo de turistas no mundo.
Estamos estudando isso muito na Faculdade de Direito, e o Diretor da
BRASILCON, Ardyllis Alves Soares, é um especialista em proteção ao turista.
Hoje os turistas são os chineses, os russos e os brasileiros. Nós estamos no
mundo e somos parte desse mundo, e também tem que existir a proteção
internacional dos consumidores. O PLS nº 283/2012 é sobre prevenção ao
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crédito, um crédito mais responsável, um crédito mais informado, uma oferta
mais calma, e sobre prevenção e tratamento do superendividamento.
Faço uma grande homenagem ao Tribunal de Justiça que, até
mesmo nas suas normas internas, estimula as soluções alternativas pela
conciliação global das dívidas de um consumidor com todos os seus
fornecedores. Essa é uma solução pré-processual, mas existem soluções
processuais e também dificuldades processuais. O Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro tem súmula sobre ação de superendividamento, eles permitem que
um consumidor acione todos os seus credores.
A ideia do modelo gaúcho, que agora está no PLS nº
283/2012, criado pelas magistradas Clarissa Costa de Lima e Karen
Bertoncello, hoje implementado no Estado do Rio Grande do Sul, realmente se
espalha pelo Brasil, está no Tribunal de Justiça do Paraná, de Pernambuco,
da Paraíba, do Distrito Federal, de São Paulo, que surgiu de uma audiência
pública neste local. O Professor Kazuo Watanabe, autor do Código, aceitou a
sugestão dos Juízes que já trabalhavam na prática há mais de 7 anos com o
tema, e esse modelo foi para lei. Qual é o segredo do sucesso desse modelo?
É o mínimo existencial. Eu posso pagar, mas eu tenho que reservar alguma
coisa para a pessoa, porque a ideia é ele pagar, fazer um plano de
pagamento, organizar, dar um tempo. Só que, se ele não reserva o mínimo, se
não tem uma parte que não é consignável, ele não tem como pagar, não vai
funcionar. No Processo Civil é dificílimo isso. Como é que eu vou aceitar todos
os devedores discutindo? Se eu fizer uma revisional com cada um, eu não
preservo o mínimo existencial, então não funciona. Por isso que o modelo
gaúcho é tão interessante e tão eficaz.
O que se perdeu? Perdeu-se a possibilidade de o julgador de
1º Grau, ex officio, demonstrar a abusividade absoluta de uma cláusula. O
contrato a distância tinha mais conexão com a proteção de dados, com a
privacidade, que hoje é um grande tema de consumo, também foi reduzido. O
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que hoje está sendo chamado de drama social na velhice, que é o crédito
consignado, tinha um tratamento mais flexível e foi reduzido na medida
provisória que aumenta, para cartões de crédito, para 35%. A margem
consignável tende a refletir também nesse drama social da velhice.
Perdemos algumas coisas no superendividamento. Havia essa
ideia do plano de pagamento judicial, a solução gaúcha, mas o artigo que ali
está afirma que a pessoa tem que pagar todo o principal, consolida as
cláusulas abusivas; ainda tem que pagar em 5 anos, começando no máximo
120 dias depois da decisão do magistrado. Engessa a forma de pagamento, a
integralidade, não permite uma revisão do contrato. A ideia francesa é a
seguinte: se conciliou com todas as cláusulas abusivas, está ótimo, porque o
consumidor aceitou e tem como pagar; mas, se não conciliou, no Judiciário
nós vamos olhar as cláusulas abusivas, não é uma nulidade absoluta, eu não
posso passar. No momento pré-contratual, tudo bem, mas, no momento
judicial, pré-judicial, extra-judicial, eu não posso não olhar isso. E o pagamento
tem que preservar o mínimo existencial.
Esses são alguns exemplos da nossa evolução, de como
estamos tentando descortinar novos horizontes. O exemplo do virtual divide é
importantíssimo, a ideia do reforço do microssistema no diálogo das fontes
também é importantíssima, que é uma ideia gaúcha, que é a ideia de prevenir
e tratar o superendividamento, porque, se queremos ser uma sociedade
desenvolvida, o crédito é importante fator. Mas o crédito e o
superendividamento são os dois lados da mesma moeda, só que essa moeda
gira e naturalmente cai em um acidente da vida. O problema é o risco
sistêmico, se todo o mundo for a superendividamento, se todo o mundo cair,
então o País todo cai. Aconteceu nos Estados Unidos, e no Código de
Falência deles há a falência da pessoa física, mas eles já estão bem, porque
eles entraram em falência e já se recobraram. Só que o Brasil não tem esse
colchão social, e sem isso é um risco sistêmico enorme nós não pensarmos
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em dar aos consumidores o direito de renegociar a dívida de boa-fé, de
conciliar, de pagar a dívida com um tempo um pouquinho maior, mas pelo
menos de não ser excluído da sociedade de consumo.
Eu queria novamente homenagear o Des. Eladio Lecey, o
Professor Ruy Rosado e todos os pioneiros, como o Professor Francisco
Moesch, o Tribunal de Justiça e todos os seus magistrados, seus servidores.
Nós temos que ter orgulho desse horizonte e não temos que ter nenhum medo
de continuar a fazer um trabalho de ponta. E muitas vezes se recrimina o
Tribunal pela sua eficiência. Eu ouvi um colega de São Paulo dizer que
sempre os leading cases são do Rio Grande do Sul. Essa eficiência, esse
humanismo que os Desembargadores têm demonstrado, que o Judiciário
gaúcho tem demonstrado, é talvez um dos maiores feitos aqui da nossa
Escola da Magistratura, dos Centros de Estudos, dessa seriedade. Nós
preparamos o Judiciário e os servidores que trabalham aqui de forma
sofisticada, e com isso nós enfrentamos problemas também sofisticados,
talvez de forma mais fluida, mais rápida.
Os desafios são imensos, mas o que o Direito do Consumidor
tem de bom é que ele mostra os desafios antes. É pequenas causas, mas o
problema é enorme e a sofisticação do problema também é enorme.
Muito obrigada pelo convite. Espero ter ajudado neste
momento de reflexão.
DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH – Alguém gostaria de
fazer alguma pergunta, alguma intervenção?
DES. JORGE LUIZ LOPES DO CANTO - Em primeiro lugar,
eu gostaria de agradecer tanto ao Des. Moesch quanto ao Des. Ney
Wiedmann por nos oportunizar ouvirmos uma vez mais dois grandes mestres,
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e os tenho como meus mestres, a Professora Cláudia Lima Marques e o
Professor Bruno Miragem.
Eu faço uma pergunta muito simples, talvez de fácil resolução
para ambos, que é exatamente a questão dos 105 milhões de ações e a ideia
que se tem no Poder Judiciário de gestão de ação de massas, de diminuição
do número de processos, de liquidação de processos, e espero que não de
direitos. Como fica a questão do Direito do Consumidor frente a uma
sociedade líquida, como diz Bauman, de relações de consumo, quem não é
consumidor não existe nessa sociedade, e dessa discriminação e afastamento
- como bem colocou a Professora Cláudia Lima Marques e que foi
preocupação também do Professor Bruno - com a realização desse direito
material? Ou seja, temos um Juiz formado no mundo concreto, de direitos
visíveis e previsíveis, que atua atualmente numa sociedade líquida e
inconstante, como se assegura que o Judiciário não acabe por defender - não
aqui no Rio Grande do Sul, nem no País - um Código de ataque ao
consumidor, ao invés de um Código de Defesa do Consumidor. O consumidor
passa a ser um incômodo, um encosto por entrar com uma ação, em vez de
ser considerado um cidadão no exercício do seu direito. E esse é o direito
mais relevante no Século XXI, como destaca Bauman, ou se é consumidor, ou
não é.
Esse é o questionamento simples e singelo que eu faço aos
dois palestrantes: como se faz esse enfrentamento do Judiciário como um
todo, que quer terminar com as ações, quer diminuir o volume? Quando eu
dava palestras para os Juízes novos, eu dizia: “O problema não é ter 200
processos todo dia na mesa, o problema é ter os mesmos 200 processos”,
porque chegaríamos a muitos processos.
Como se enfrenta esse volume de processos, sem traçar um
standard para eles e liquidar esse direito, ou diminuir esse direito do
consumidor? Eu acho que esse é o grande enfrentamento que o Direito do
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Consumidor tem, porque trouxe grandes inovações, e essas inovações agora
começam a ser contrariadas porque, na prática, importou em um volume de
ações. Por isso se pergunta qual é a utilidade do Poder Judiciário, senão
enfrentar as ações? Porque, se for apenas para exterminá-las, melhor
exterminar antes o próprio Judiciário, porque não estaria garantindo os direitos
constitucionais do seu cidadão.
Diante dessa brevíssima colocação, como os juristas veem e
analisam essa questão? Como os juristas respondem aos Juízes como
enfrentamos esse volume, sem perder a humanidade, sem perder a
consciência e a solidariedade dos direitos aqui existentes, nesse mundo
líquido, segundo Bauman?
Esse é o pequeno questionamento que eu deixo a ambos.
DRA. CLAUDIA LIMA MARQUES - Agradeço muitíssimo a
reflexão do Des. do Canto, que me permite traçar dois pontos.
Primeiro, concordando com a premissa, eu recebi da
Associação de Magistrados do Brasil, em Salvador, um material intitulado O
Uso da Justiça e o Litígio no Brasil. Consta Tribunal por Tribunal, e vi o dado
de 42 milhões de ações que não precisavam estar no Judiciário do Rio Grande
do Sul. A ideia dos litigantes, apesar de todo o esforço da jurisprudência, a
legislação por vezes, não das agências regulatórias, que muitas vezes não
ajudam, já estabeleceu qual é a conduta básica. Boa-fé é conduta, mas
também é paradigma de decisão. No momento em que eu estabeleço o que é
a conduta esperada de boa-fé, eu já decidi se fez ou não fez aquela conduta.
Insistentemente eles não cumprem a conduta e voltam, até porque têm
advogados muito bem informados e atuantes, se utilizam obviamente das
possibilidades de recursos e continuam discutindo, e numa dessas pode ser
que funcione.
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O grande número de demandas de massa que indiciam danos
em massa, que é o problema do não cumprimento voluntário das leis no
Brasil, e desse jogo que se faz com uma instituição em que se confia, mas que
no final fica assoberbada pelo número de ações. Eu acho que esse tipo de
campanha é muito boa, porque mostra outro paradigma. Porque o paradigma
normal seria dizer que o Judiciário tem de ficar para as grandes causas ou tem
de escolher as causas que vai decidir, não atrapalhar os Juízes com pequenas
causas. Isso é realmente tirar o Direito do Consumidor da sua dimensão
constitucional, da sua possibilidade de fazer a justiça distributiva.
Aqui o paradigma é outro: o problema não é o Direito do
Consumidor e não são os consumidores; talvez sejam os fornecedores, talvez
sejam as agências reguladoras, que não estão atuando como deveriam, estão
autorizando práticas abusivas. Esse é o paradigma interessante dessa
campanha. Eu vi o Dr. João Ricardo falando sobre isso e fiquei conquistada.
Eu acho que esse é um paradigma bom, porque mostra o seguinte: o
consumidor é a vítima, o que espera a justiça e o peso não vem dele. Há outro
fator que aparece em todas as estatísticas, que é o próprio Estado. O Estado
realmente é um peso enorme para o Judiciário. Esse é o primeiro ponto.
O segundo ponto tem a ver com a entrevista que o Dr. Bruno
Miragem mencionou, dizendo que há um paternalismo e que os consumidores
são tratados como incapazes. Eu fiquei muito chateada com isso, porque todo
esforço hoje em dia no combate à discriminação é para que a gente não seja
uma sociedade discriminatória, no sentido de distinguir pessoas que têm
direito a ser consumidores de outras que não têm educação financeira, que
não sabem ler tão rápido, como os idosos, os que não conseguem entender.
Nós fizemos uma pesquisa empírica com os dados deste
Tribunal de Justiça, do Núcleo de Conciliação, e constatamos que 18,1% dos
idosos que recorrem para pagar as suas dívidas são analfabetos. Se aumentar
para quem tem de 1 a 4 anos de formação, dá mais ou menos 30% deles, que
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é a definição do analfabeto funcional, ou seja, a pessoa que entende, lê,
assina, mas não entende coisas sofisticadas ou complexas; 64% são
mulheres e 95% são arrimo de família, essas mulheres, esses idosos, esses
analfabetos. São dados dos senhores que analisamos no Observatório do
Crédito da UFRGS, junto com o Ministério da Justiça.
As mulheres não são a maioria na população, e nós fomos ver
por que as mulheres não conseguem renegociar com os Bancos e têm de
recorrer ao Judiciário. Existe o mito de que as mulheres gastam muito, são
bipolares, depressivas, não são boas consumidoras, mulher não entende de
contas, aí vai renegociar e acham que ela está brincando. Por essa estatística,
existem três pessoas na sua dependência e é uma senhora de mais de 40
anos.
Os dados do Judiciário são impressionantes com relação aos
idosos: 10% deles têm mais de 80 anos, estão superendividados, confiaram
no Judiciário, conseguiram o que queriam, que era pagar a sua dívida e entrar
novamente na sociedade. Dois deles têm mais de 90 anos, um tem 93 e o
outro 94 anos. Inclusive eu quero entrevistá-los, porque eles são heróis, eles
vêm aqui, entram na fila, vão ao Núcleo de Conciliação, preenchem a fichinha
dos superendividados, fazem uma audiência, pagam, confiam. Lindo! Não tem
nada a ver com incapacidade, ao contrário, tem a ver com cidadania, com
capacidade. O consumidor não é incapaz, e a lei não o trata como incapaz.
Nós temos que sair dessa sociedade que trata o outro como
incapaz, só porque ele está querendo um direito, e tratá-lo com respeito, com
dignidade, sem discriminação. Por que o meu direito é melhor do que o direito
dele?
A minha solução, que é a mesma do Dr. Bruno, seria apoiar os
bons paradigmas e combater os mitos. Claro, na pressão de metas de
trabalho, as pessoas até podem sair mais facilmente pelos mitos, porque é
mais fácil, o que é um grande perigo.
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Eu comparo o Direito do Consumidor a uma chuva, e água é
vida, é renovação. A água é maravilhosa, mas quando chove demais é
tempestade, caem raios. O sucesso do Código de Defesa do Consumidor, a
pujança da nossa advocacia, da Defensoria Pública da União e a do Estado,
que fazem um trabalho excelente. Chove muito, mas cada pingo de água é
uma violação do Direito do Consumidor, por isso temos que saber tratar essa
água, temos que saber escoar, e não simplesmente dizer que a água é ruim.
Água não é ruim, água é vida. O que é ruim é não saber o que fazer com tudo
o que está acontecendo. Poderíamos, pelo menos, escoar de maneira
positiva, trabalhando melhor com as metas, não as do Judiciário, mas com as
metas dos fornecedores, para que eles melhorem as suas práticas com as
agências.
A agência PREVIC falou na audiência pública como se fosse
um Banco, mas ela não pode tomar partido assim, não pode ser capturado
dessa maneira tão forte.
Agradeço muito a sua reflexão e digo que não é uma pergunta
fácil, é um Doutorado.
DR. BRUNO MIRAGEM - Apenas para complementar, e
convergindo com o que já foi dito, na verdade há problemas estruturais e há
problemas conjunturais.
Do ponto de vista estrutural, foi dito pela Professora Cláudia e
o Des. Ney mostrou, há um problema de regulação no Brasil, que passa por
uma certa desconfiança que nós, brasileiros, temos historicamente da
Administração Pública. Essa desconfiança não é desarrazoada, não é
imotivada, mas o fato é que a Administração Pública no Brasil, e toda atuação
administrativa, que deve ser preventiva ao Poder Judiciário, não funciona
como deveria. Os americanos têm uma expressão que diz: More regulation,
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less litigation, ou seja, quanto mais se regula, menos litígio há; você
estabelece as regras do jogo antes.
De fato, há vários testemunhos de que as agências
reguladoras não funcionam. Muitas vezes elas não regulam e, quando
regulam, regulam mal e tomam a sua regulação como se ela fosse equivalente
ou superior à lei. Há esse problema estrutural, que também é cultural, que
foge um pouco da nossa possibilidade.
Outro aspecto importante é que o acesso à Justiça no Brasil é
uma conquista da cidadania, especialmente os custos de acesso à Justiça,
mas esse dado normalmente é lido, por vezes interessadamente, contra o
consumidor, no sentido de entender que por ser fácil entrar na Justiça todos
entram. Parece-me que é o contrário. Tornou-se muito barato para os maus
fornecedores, os ligantes habituais, utilizar o Poder Judiciário como se fosse o
Serviço de Atendimento ao Cliente. Essa lógica é tão perversa que os
Serviços de Atendimento ao Cliente - um dever dos fornecedores oferecerem
aos consumidores para resolverem pequenas questões - cada vez funcionam
pior.
Por outro lado, a solução que se dá, em muitas situações -
não sei no nosso Tribunal, mas em alguns Tribunais do Brasil acontece, o que
eu acho uma perversidade do ponto de vista da lógica - é a seguinte: quando
o consumidor tentou ser atendido pelo Serviço de Atendimento ao Cliente
daquele fornecedor, procurou o estabelecimento e não teve sucesso, quando
ele resolve ir ao Judiciário, quando ele entra no Foro para protocolar a sua
ação, ele não pode protocolar antes de ir a uma determinada sala dentro do
Foro, usando os recursos do Estado, para que ele possa renegociar uma
última vez com uma grande companhia fornecedora.
De alguma maneira esses fornecedores, que são contumazes
clientes da Justiça, acabam socializando o prejuízo, porque reduzem o Serviço
de Atendimento ao Cliente e quando o vão a Judiciário tentam criar um
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programa de renegociação, um programa de atendimento para evitar a
demanda. O evitar a demanda não poderia ser no Foro, deveria ser antes,
qualificando o serviço.
Outro aspecto que deve ser mencionado é que temos alguns
instrumentos, mas ainda há dificuldade na compreensão ou na utilização de
normas que o próprio ordenamento já dispõe, e eu citaria duas.
Uma delas é a questão das astreintes. Eu tenho uma
curiosidade de muito tempo, mas atualmente estou debruçado sobre esse
tema. Quando reformamos a Execução Civil, lá em 1994, criamos as
astreintes, que é a multa por descumprimento de decisão judicial, justamente
para apoiar a tutela específica da obrigação de fazer, fizemos o art. 461 do
Código de Processo Civil e já tínhamos o art. 84 do Código do Consumidor,
garantindo que o Judiciário vai dar uma decisão judicial determinando o
cumprimento e vai impor uma multa diária. Mas o fornecedor que cometeu a
lesão e que tem uma imposição de cumprimento de uma determinada
obrigação, ele não cumpre por um dia, por dois dias, por uma semana, por
duas semanas. De fato, a multa estabelecida justamente para estimular o
cumprimento ou desestimular o descumprimento, em benefício da autoridade
da decisão judicial, não é nem do Direito do Consumidor, acaba acumulando e
fica um valor desproporcional à obrigação que ele tinha de cumprir. Por
exemplo, religar o celular para uma conta de R$ 200,00 e, com a multa
acumulando no tempo, ficar um valor muito superior ao valor da discussão.
Gera uma espécie de constrangimento quando vem a multa para ser
executada e se fala que ela é exagerada. Mas na origem a multa não é
exagerada, acumulando foi que se tornou exagerada, só que aí se
estabelecem comparações, a obrigação era de tantos reais, e a multa acumula
dez vezes, vinte vezes, mil vezes do valor. Tornou-se exagerada por inação
do titular do dever.
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Com isso, acabou-se criando uma compreensão - que é
natural, mas talvez seja algo para repensar - de que as astreintes podem ser
reduzidas porque o cúmulo tornou-se elevado e exagerado, não se levando
em conta que na origem o sentido dela era justamente estimular o
cumprimento da norma.
Tudo isso acabou fazendo com que as astreintes se
tornassem absolutamente desacreditadas na primeira instância, aumentando
os processos e os recursos, Na lógica do empreendedor que planeja o seu
negócio cometendo infrações em massa ele vai imaginar que aquele valor não
vai ser cobrado, ainda mais levando em conta que vai ter um custo judicial
mais elevado que a própria obrigação, ou seja, está na estrutura do negócio.
O outro aspecto são as funções da indenização. Uma
discussão conhecida, antiga, rebatida. Tem função punitiva ou não tem função
punitiva no Brasil?
O Código de Defesa do Consumidor, no art. 6º, inc. VI, fala na
função preventiva da indenização e na reparação de danos, que talvez seja o
fundamento legal não para se importar um modelo inteiro da Common Law e
das punitive damages, mas para se estabelecerem mecanismos, também por
intermédio da indenização, para desestimular a conduta, um instrumento que
permita não deixar tão barata a lesão gerada por fornecedores contumazes.
Observo que, na questão da responsabilidade com o uso de
instrumentos que já temos, de alguma maneira já é possível avançar um
pouco na solução desses litígios. Mas não há dúvida de que não podemos, em
momento nenhum, considerar que os litigantes contumazes são contumazes
porque são os maiores fornecedores, ou seja, proporcionalmente há um
número de ações elevado porque há um número elevado de consumidores.
Vale o que disse o Des. do Canto: “São uma pequena fração,
alguns milhões das mesmas coisas”. Das mesmas questões que poderiam ter
sido resolvidas com uma simples alteração de conduta. Se não foram
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resolvidas é porque se tratava de uma estratégia de negócio. Parece-me que
é nessa estratégia de negócio que o Poder Judiciário deve atuar.
Apenas para complementar o que já havia sido dito, tanto na
pergunta quanto na resposta que foi dada pela Professora Cláudia.
DES. NEY WIEDEMANN NETO – A pergunta do Des. Jorge
do Canto foi excelente, porque foi extremamente abrangente e focou aspectos
que nos são muito caros com relação à judicialização das relações de
consumo, e oportunizou que os dois palestrantes pudessem complementar as
suas manifestações com esse foco que interessa ao Poder Judiciário.
Não podendo estender para novas perguntas, devido ao
horário, renovo o agradecimento aos palestrantes e à condução dos trabalhos
pelo Des. Moesch.
Muito obrigado.
(DEGRAVADO PELO DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA E ESTENOTIPIA DO TJ/RS.)