Estado, economia, ética, interesses

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    ESTADO, ECONOMIA, ETICA, INTERESSESPara a construo democrtica no Brasil

    Fbio Wanderley Reis

    I

    Os problemas analticos e doutrinrios relacionados com a confusaquesto da autonomia do estado constituem um bom ponto de partida paranossa discusso. Se a questo da autonomia do estado considerada do pontode vista de suas conexes com a democracia como aspirao ou meta, v-seque as posies existentes a respeito na literatura de cincias sociais e defilosofia poltica podem ser distribudas em duas grandes tendncias.

    A primeira delas sustenta que o estado no deve ser autnomo, pois aautonomia do estado seria contrria noo de soberania popularcomo

    componente central do ideal democrtico. Essa tendncia pode ser descritacomo correspondendo posio liberal clssica, na qual o estado aparececomo algo a ser contido ou controlado. A tradio contratualista de filosofiapoltica expressa bem os supostos em que a tendncia se funda, visualizando ainstaurao do estado atravs de um debate constitucional entre indivduosracionais, livres e iguais, cada um dos quais mantm o poder de veto sobre asdecises em discusso, que devero, portanto, ser tomadas por unanimidade.Assim, essa tendncia remete diretamente a uma concepo radical dedemocracia.1

    Mas ocorre tambm com frequncia uma tendncia divergente. Aqui, aposio antes a de que, para ser democrtico, o estado deve ser autnomo,de maneira a no se constituir no mero instrumento de interesses particulares

    ou de maneira que, embora caiba v-lo em geral como o instrumento decertos interesses, ele no se mostre demasiado sensvel s vicissitudes doembate cotidiano dos interesses e possa, em sua atuao, ocasionalmentedistanciar-se daquilo que pareceria corresponder em cada circunstncia aosinteresses pelos quais em princpio se orienta. Por contraste com o nvelconstitucional em que supostamente se processam as decises na perspectivacontratualista, esta segunda tendncia visualiza um estado que, sendoconstitucionalmente dependente de uma estrutura de relaes entre forassociais que lhe externa e anterior, ao mesmo tempo se mostra capaz deexibir certo tipo de autonomia operacional nos limites dados por aqueladependncia.2

    Publicado em Planejamento e Polticas Pblicas, no. 1, junho de 1989.1

    . Uma formulao recente dessa posio que se dirige especificamente questo daautonomia do estado se encontra em Adam Przeworski e Michael Wallerstein, "PopularSovereignty, State Autonomy, and Private Property", Archives Europennes deSociologie, XXIII, 2, 1986, 215-259. Relativamente ao contratualismo em filosofiapoltica, a meno obrigatria sem dvida John Rawls, A Theory of Justice,Cambridge, Harvard University Press, 1971.2

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    Naturalmente, a noo do estado como o "capitalista ideal" de certasanlises marxistas, capaz de lucidez e flexibilidade na defesa a longo prazo dosinteresses do capital, ajusta-se idia da autonomia operacional (ou relativa)do estado.3 Mas a mesma idia ocorre tambm de maneira bastante clara emdiscusses relacionadas mais diretamente com o tema da democracia e do

    enquadramento institucional do processo poltico democrtico,independentemente das simpatias dos autores para com o marxismo. Assim,ela se acha presente em certas anlises j clssicas de um cientista polticoconservador como Samuel Huntington, nas quais se contrastam as sociedades"pretorianas", expostas ao vale-tudo do confronto no-regulado entre asdiversas "foras sociais", e as sociedades "cvicas", em que tal confronto mediado e regulado por instituies polticas efetivas. Na anlise deHuntington, o processo de institucionalizaao poltica, ou de criao deinstituies polticas capazes de operar de maneira efetiva e estvel, entendido como envolvendo justamente a criao de condies para a"autonomia do sistema poltico" relativamente s foras sociais que seconfrontam, de sorte que o que resulte da operao das instituies polticasno seja simplesmente a expresso das vicissitudes do confronto cotidiano e

    direto de interesses ou do fato de que esta ou aquela fora social tende aprevalecer nele.4 J no campo simptico ao marxismo, idia anloga seencontra igualmente na caracterizao da democracia feita por AdamPrzeworski em trabalho recente, onde a introduo institucional (isto , devida regulao exercida por normas que tenham vigncia real) de um elementode incerteza no processo poltico, contrariamente determinao inequvocaque este tenderia a sofrer dadas as relaes de fora no nvel estrutural, tomada como o elemento definidor por excelncia da democracia.5

    Nessas duas tendncias, uma vinculando a democracia neutralizaodos perigos da autonomia do estado e a outra ligando-a afirmao de talautonomia, encontram-se envolvidas, como bem claro, concepesdiferentes da prpria sociedade, e da que decorrem as prescries

    contrastantes no que se refere articulao da sociedade com o estado. Nocaso da primeira tendncia assinalada, a sociedade aparece como um pblicohomogneo, a afirmar sua soberania sobre o aparelho do estado. J no caso dasegunda tendncia, a sociedade surge como uma estrutura desigual,estratificada ou de classes, desigualdade esta que vista como projetando-se

    . A distino entre os nveis operacional e constitucional da convivncia poltica formulada em termos anlogos em James Buchanan e Gordon Tullock, The Calculus ofConsent, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1962.3

    . Um reexame (nem sempre muito lcido) da literatura marxista recente a respeito detemas como o das relaes entre estado e capitalismo pode ser encontrado em John

    Urry, Anatomia das Sociedades Capitalistas, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982.Contrastando com o volume de Urry precisamente pela lucidez e agudeza das anlises,veja-se Adam Przeworski, The State and the Economy under Capitalism, manuscrito,Universidade de Chicago, 1988.4

    . Veja-se Samuel Huntington, Political Order in Changing Societies, New Haven, YaleUniversity Press, 1968.5

    . Adam Przeworski, "Ama a Incerteza e Sers Democrtico", Novos Estudos Cebrap, 9,julho de 1984, 36-46.

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    sobre o estado e condicionando sua natureza, isto , fazendo dele em princpioo instrumento de certos interesses privados poderosos (ou de certos poderesprivados, por contraste com a posio de concepes doutrinrias quepretendem ver no estado, enquanto agncia pblica, o foco nico de poder);da que a afirmao da democracia exija a autonomizao do estado.

    Como sugere a meno feita acima concepo do estado como"capitalista ideal", a dualidade de perspectivas descrita de especialrelevncia para a discusso do velho e crucial problema das relaes entrecapitalismo e democracia. Uma das variantes da questo fundamental acontida pode talvez formular-se, em termos das categorias sugeridas, damaneira seguinte: se se tem capitalismo, caberia exigir autonomia"constitucional" do estado para que se pudesse falar de democracia, ao invsda mera autonomia "operacional" da segunda perspectiva?

    Claramente, se a autonomia constitucional entendida comoacarretando uma organizao do estado que no tenha compromisso com ocapitalismo e com as desigualdades ou a estrutura de classes que lhe soinerentes, pretender vincular a democracia com a autonomia constitucional do

    estado em condies de vigncia do capitalismo seria algo tambminerentemente contraditrio pois a realizao da democracia requereriaento fatalmente a eliminao do capitalismo. Se se trata, portanto, deexaminar a questo da democracia no mbito do capitalismo, tal exame, quetender a assumir a forma da anlise sociolgica, por contraste com a dadiscusso filosfica ou doutrinria, redundar necessariamente na procura dascondies em que ocorre a autonomia operacional do estado. Por certo, aanlise filosfica cumpre papel importante, sobretudo o de manter diante dosolhos que existe, naturalmente, a possibilidade de se falar de democracia emcondies distintas das do capitalismo, e que essas condies serao talvezaquelas em que se poder ter as formas mais plenas de democracia, se sepresume que os arranjos constitucionais a se estabelecerem na ausncia docapitalismo sero capazes de garantir efetiva igualdade na sociedade que se

    trate de organizar e podero ser tomados, portanto, como correspondendoefetivamente aos supostos igualitrios do modelo contratualista. A dificuldadeprincipal teria a ver ento com outros possveis fatores (no-capitalistas) dedesigualdade e de subordinao de certos interesses a outros.

    Mesmo no nvel sociolgico de anlise, porm, pode-se pretender colocara questo geral em termos que pareceriam diferentes dos que so impostospela ateno s condies para a autonomia operacional do estado sob ocapitalismo: tratar-se-ia, nessa tica alternativa, de estudar as condies paraa ocorrncia ou a realizao de uma revoluo de tipo socialista, atravs daqual se superaria o capitalismo e se avanaria, como consequncia, rumo scondies estruturais supostamente mais favorveis democracia que seacaba de mencionar. Do ponto de vista analtico, contudo, este nguloaparentemente novo perfeitamente equivalente ao que corresponde aoproblema de avaliar as condies para a autonomia operacional do estado:estudar as condies para a superao revolucionria do capitalismo emdeterminadas circunstncias histricas no seno estudar o avesso, de certaforma, das condies para se alcanar, nessas mesmas circunstncias, aestabilizao democrtica do capitalismo atravs da transformao do estadonuma aparelhagem institucional que no se reduza a um instrumento dedominao de classe, e o xito na obteno de respostas para um dos lados

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    dessas indagaes fornecer necessariamente as respostas tambm para ooutro lado.

    Ademais, o carter problemtico e instvel da situao vivida pelo Brasilna atualidade (e, em geral, pelos pases mais ou menos perifricos ao sistemacapitalista mundial que se acham s voltas com as oscilaes entre

    autoritarismo e democracia) pode ser descrito como tendo a ver, em ltimaanlise, precisamente com os riscos que tal situao contm (ou percebidacomo contendo por foras polticas relevantes) de que possam ocorrertentativas bem sucedidas de organizar o estado de maneira autnoma comrespeito estrutura social de relaes de poder -- vale dizer, de maneira quepossa vir a revelar-se hostil estrutura de poder prevalecente, ou na qual oestado possa ser usado contra ela. Por outras palavras, um componenteimportante do problema "constitucional" que defrontamos o problema decomo neutralizar o risco de revoluo. Por certo, congruentemente com o quese acaba de sugerir, seria correto dizer que, do ponto de vista de outrosinteresses ou foras polticas, o mesmo problema "constitucional" pode serdescrito igualmente bem como sendo o problema de como fazera revoluo eorganizar a sociedade ps-revolucionria. Mas parece no haver dvida de que

    a preocupao corrente com a consolidao da democracia no Brasil, nestemomento em que o pas emerge de longa e penosa experincia autoritria,acha-se decisivamente condicionada pelo reconhecimento de que as opesefetivamente abertas para uma eventual "soluo" do fundamental problemade interao estratgica que assim se coloca no incluem a supresso docapitalismo. A discusso apropriada do problema, portanto, requer que asquestes sejam ponderadas com especial sensibilidade para as severaslimitaes do presente ou, se me atrevo a diz-lo, de um ponto de vista quecabe caracterizar como antes conservador. Em outras palavras, ou teremoscapitalismo com democracia ou capitalismo sem democracia e a "soluo"para o problema da democracia parece requerer antes de tudo que osproblemas do capitalismo sejam resolvidos, e que este possa florescer eamadurecer.

    Como quer que seja, a correspondncia entre os dois lados acimaindicados do problema analtico decorrncia direta do fato bsico de que asituao em exame se caracteriza pelo conflito ao menos latente entre forasou interesses sociais distintos, e que as alternativas que ela comportadecorrero das vicissitudes desse conflito isto , do fato de que este ouaquele foco particular de interesses se veja favorecido, ou de que se manifesterelativo equilbrio de foras propcio a certa autonomia do estado e a certocompromisso democrtico. Da que a anlise sociolgica deva ser uma anliseatenta para o condicionamento estratgico do estado, cuja natureza se vaidecidir antes de mais nada em funo da estrutura de riscos e oportunidadesque se oferecem aos atores correspondentes aos diferentes focos deinteresses, atores estes para cuja definio o prprio sistema capitalista e seudesenvolvimento concorrem de maneira crucial.

    II

    As idias formuladas na seo anterior envolvem, assim, a aceitao daposio segundo a qual o estado, no sistema capitalista, se mostraestruturalmente dependente perante os interesses do capital e propenso a

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    privilegiar tais interesses.6 Um postulado desse tipo decorre naturalmente daabordagem analtica atenta para o carter estratgico e pelo menoslatentemente conflitual do jogo de interesses na sociedade, abordagem esta naqual alternativas como o confronto revolucionrio aberto, a repressoautoritria em que se extremam as "afinidades eletivas" sempre presentesentre estado e capital e, finalmente, algum tipo de equilbrio e de compromisso

    democrtico surgem como diferentes rumos em que se poderia orientar aquelejogo e que fornecem, enquanto possibilidades postas ao menos no horizontedos atores, os parmetros dentro dos quais o jogo se desenvolve.

    Essa perspectiva permite conceber o problema geral das relaes entrecapitalismo e democracia como um "problema constitucional" bsico, que secoloca ao dar-se a afirmao e penetrao do capitalismo junto a umaestrutura de tipo tradicional, com os consequentes deslocamentospopulacionais e a redefinio da articulao entre identidades e interessespessoais e coletivos, criando-se a necessidade de reacomodao no convviode categorias e grupos sociais importantes, em particular as classes sociais. Asalternativas indicadas no pargrafo anterior representam formas distintas emque tal problema pode em princpio "resolver-se", cada "soluo" podendo

    apresentar, naturalmente, maior ou menor grau de eficcia e estabilidade. Emparticular, cabe ressaltar a instabilidade que caracteriza a soluo autoritria,distinguida pela aberta represso de determinados interesses e pela presenade forte elemento coercitivo. Em contraste, as duas outras alternativas, umavez levadas a cabo, tenderiam a caracterizar-se por marcada estabilidade, masa realizao cabal de qualquer delas seja a revoluo anticapitalista bemsucedida, seja o compromisso democrtico estvel parece exigir condiesbastante especiais, e a ocorrncia de ambas se mostra antes excepcional.Assim, a regra relativamente qual tais casos aparecem como exceescorresponderia justamente s idas e vindas do problema constitucional noresolvido, assumindo a forma da condio pretoriana da anlise de Huntingtonanteriormente mencionada. Nessa condio, a ausncia de instituiespolticas efetivas redunda no vale-tudo em que cada "fora social" se utiliza

    dos recursos de qualquer natureza com que possa contar e na consequenteoscilao do quadro poltico entre, por um lado, arranjos abertamenteautoritrios, tipicamente marcados pelo controle ostensivo do processo polticopelos militares, e, por outro, formas populistas nas quais o estado se mostraexageradamente exposto ao varejo de uma multiplicidade de interesses que seafirmam de maneira mais ou menos imediatista, estreita e "fisiolgica".

    Merece destaque tambm a singularidade da soluo representada pelocompromisso democrtico estvel. Tal singularidade reside em que, porcontraste com a alternativa revolucionria em que se elimina o capitalismo, asoluo democrtica supe o amadurecimento do sistema capitalista como tal,que assim se torna capaz de equacionar o problema constitucional que eleprprio engendra. Esse desdobramento tem claro carter paradoxal, que cabe

    6

    . A elaborao da idia da dependncia estrutural perante o capital pode encontrar-seem Claus Offe e Volker Ronge, "Teses sobre a Fundamentao do Conceito de `EstadoCapitalista' e sobre a Pesquisa Poltica de Orientao Materialista", em Claus Offe,Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984,bem como em Adam Przeworski, Capitalism and Social Democracy, Nova York,Cambridge University Press, 1985. Mas veja-se especialmente Przeworski, The Stateand the Economy under Capitalism, op. cit., pp. 148-155.

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    ver em correspondncia com a idia marxista das contradies inerentes aocapitalismo. As suposies envolvidas afirmam, por um lado, que a penetraodo capitalismo levar, por sua lgica mesma (na qual ressalta o efeitocorrosivo exercido pelo igualitarismo inerente ao princpio do mercado sobre oscomponentes de desigualdade e hierarquia da estrutura social tradicional), prevalncia de um fator conflitual ou mesmo revolucionrio que tende a

    ameaar a sobrevivncia do sistema, fundado como este se acha nadominao por parte dos interesses do capital. Por outro lado, contudo,postula-se igualmente que o desenvolvimento e a maturao do sistemacriaro as condies em que se tornar possvel neutralizar o potencialrevolucionrio que lhe inerente, atravs de um processo no qual, por assimdizer, a dimenso contraditria mesma do capitalismo se verinstitucionalizada e os arranjos institucionais da democracia envolvero umcompromisso garantidor do prprio capitalismo. Claramente, so expressivasdas ambiguidades a contidas as perenes perplexidades da reflexo deinspirao marxista no esforo de avaliar o que h de avano real, por um lado,e de manipulao bem sucedida pelas classes dominantes, por outro, nosganhos polticos e sociais realizados pela classe trabalhadora no bojo dademocracia capitalista.7 Seja como for, lcito ver a vigncia da democracia

    poltica estvel sob o capitalismo como representando o "apaziguamento" dasconsequncias que decorrem da dependncia estrutural do estado e dasociedade capitalistas perante o capital, trao este que fornece, como se disse,um parmetro decisivo para o desdobramento geral do processo. Na anlise deAdam Przeworski, por exemplo, esse apaziguamento envolve oestabelecimento de um pacto ou compromisso no qual os trabalhadoresaceitam a propriedade privada e o controle pelos capitalistas das decisesrelativas a investimentos, enquanto os capitalistas aceitam a democracia e asconsequentes polticas sociais favorveis aos trabalhadores por parte doestado isto , aceitam a autonomia relativa ou "operacional" do estado.8

    III

    Se se pondera nessa tica o "problema constitucional" tal como seapresenta na atualidade brasileira, ou seja, o problema da acomodao noconvvio entre foras e classes sociais potencialmente antagnicas (e daeventual consolidao da democracia) em circunstncias em que a afirmao ea penetrao parciais do capitalismo no engendraram ainda seno o crculovicioso do pretorianismo e da oscilao entre populismo "fisiolgico" eautoritarismo militarista, v-se que o desafio de construo institucional acontido encerra uma peculiar articulao entre a busca imediatista dosinteresses por parte dos atores, de um lado, e, de outro, a capacidade queestes revelem de ampliar os horizontes e apreender de maneira "reflexiva" eintelectualmente sofisticada a situao em que se encontram, particularmenteos dilemas existentes na prpria interao em que se vem envolvidos unscom os outros. Um ngulo importante da questo o de que a idia da buscamais ou menos imediatista e irrefletida de interesses normalmente tende a

    7

    . Para a discusso mais detida desses pontos, veja-se Fbio W. Reis, "ConsolidaoDemocrtica e Construo do Estado" e "Partidos, Ideologia e ConsolidaoDemocrtica", ambos em Fbio W. Reis e Guillermo O'Donnell (organizadores), ADemocracia no Brasil, So Paulo, Edies Vrtice, 1988.8

    . Cf. Przeworski, Capitalism and Social Democracy, op. cit., pp. 136 e seguintes.

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    referir-se a interesses econmicos ou materiais (no limite, a interessespassveis de serem descritos como "fisiolgicos"), enquanto a ao deconstruo poltico-institucional, em particular na forma de pactos oucompromissos como o de que fala Przeworski, ao visar criao de umcontexto adequado busca regulada de interesses, surge por definio comouma ao "de segundo grau", de natureza reflexiva e capaz de considerao

    mais sofisticada ou menos mope dos interesses talvez mesmonecessariamente capaz de ter presente o ponto de vista ou o interesse dosdemais agentes envolvidos na interao e de incorporar, assim, certo elementode propenso ao compromisso ou propriamente "tico".

    Em conexo com isso, esclarecedor destacar o contraste existenteentre as perspectivas que usualmente predominam na discusso de assuntoseconmicos, de um lado, e polticos, de outro. Com efeito, caracterstico quea discusso de questes econmicas se assente em pressupostos "realistas",de acordo com os quais o egosmo e a motivao de lucro so os mveis porexcelncia da atividade desenvolvida pelos agentes. Nenhum economista quese preze cogitaria, por exemplo, de traar estratgias para o desenvolvimentoeconmico que se baseassem em apelos altrustas dirigidos aos agentes

    econmicos, ou na expectativa de que estes viessem a ser movidos por"esprito pblico" em seu comportamento. J no caso da poltica, porm, aconcepo corrente de que esta seria distinta, pois a se trataria deatividades diretamente relacionadas com o "bem pblico" ou com os interessesda coletividade como tal, pretendendo-se ver nisso uma razo vlida parapresumir que caberia esperar dos agentes da poltica orientaes diferentesdas que prevalecem na esfera econmica. Da que muito da discusso arespeito das perspectivas de desenvolvimento poltico-institucional, bem comomuitas das recomendaes para a eventual consolidao da democracia noBrasil, estejam baseadas em pressupostos que contam com altrusmo e espritopblico, envolvendo uma postura moralista da qual esto longe de escapar osprprios economistas, quando lhes acontece voltarem-se para os temascorrespondentes.

    precria, contudo, a tentativa de separar poltica e economia nessestermos. Para comear, a distino entre interesses particulares e interessepblico relativa, havendo, mesmo na esfera convencionalmente consideradacomo privada, mltiplos nveis nos quais a realizao de interesses coletivos"parciais" depende de restries aos interesses estritamente particulares ouatomsticos, ou nos quais os interesses coletivos se apresentam como "benspblicos" do ponto de vista das subcoletividades ou coletividades parciaisenvolvidas. Alm disso, os atores que surgem como propriamente econmicosna perspectiva convencional, e aos quais se aplicam sem questionamentos ospostulados realistas acima indicados, incluem-se, naturalmente, entre osatores de papel decisivo na prpria dinmica a ser vista como especificamentepoltica. Este , percebe-se, o postulado fundamental subjacente no apenas idia da dependncia estrutural do estado perante o capital nas sociedadescapitalistas, mas tambm prpria perspectiva terico-metodolgica em quese privilegiam a viso estratgica e o jogo dos interesses ligados a posiesdiversas na estrutura social para a explicao da dinmica da sociedade e dapoltica. Uma consequncia importante da imprpria idealizao da atividadepoltica a de que, como o dia-a-dia da vida poltica falha em corresponder atal viso ideal, ela passa a ser alvo do repdio e da condenao generalizada,promovendo-se curiosa inverso em que "poltica" termina por se tornarsinnimo de comportamento interesseiro, egosta e atico.

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    Especificamente quanto questo do desenvolvimento institucional, apergunta que surge a de se estaramos fazendo boa construo institucionalse os princpios destinados a gui-la incorporassem como condio de xito ade que os agentes polticos fossem virtuosos, cvicos e altrustas. Tal condiorequereria que se comeasse pela reforma moral da sociedade brasileira e

    certamente remeteria a um futuro indeterminado qualquer expectativa dealcanar a genuna democracia. A construo institucional bem sucedida noexigir precisamente, ao contrrio, que a institucionalidade que se venha aimplantar seja capaz de processar institucionalmente as piores virtualidadescontidas nos traos reais que distinguem os atores politicamente relevantes?Pondere-se o exemplo famoso da contribuio trazida pelos Federalistas,especialmente James Madison, elaborao da constituio dos EstadosUnidos. Temendo os males que as faces poderiam acarretar para a repblicaamericana, os preceitos que defende Madison se traduzem no na exortaoedificante contra os vcios do comportamento faccioso, mas na aparelhageminstitucional dos checks and balances que contam com as faces e buscamassegurar sua neutralizao recproca.9

    A peculiaridade da articulao requerida entre reflexividade eimediatismo, de que se falou acima, surge com clareza. O ponto crucial o deque o desafio contido na tarefa de construo institucional se situa entre asduas pontas de um dilema. Por um lado, ela necessariamente requerreflexividade e distanciamento, pois o mero jogo imediatista dos interesses justamente o que define o "pantanal" prprio da situao pretoriana, equalquer esforo de construo institucional que no fosse mais do que aexpresso direta de tal jogo no resultaria seno em assegurar a continuidadedo pretorianismo. Por outro lado, contudo, o trabalho de construoinstitucional no pode pretender eficcia se no for mais do que a projeo deum sonho, e deve, ao contrrio, caracterizar-se pelo realismo, o que significaque a necessria postura reflexiva deve estar referida aos interesses em seuimediatismo e contarcom eles. Posta em termos do tema das "condies da

    democracia" que foi usual na literatura de sociologia poltica um par dedcadas atrs, a perspectiva que da decorre permite enunciar que, se hcondies a serem tidas em conta para a construo da democracia autnticanum pas como o Brasil, tais condies so antes de mais nada aquelas que seencontram diante de nossos olhos e que efetivamente conformam a realidadebrasileira atual.

    A necessria reflexividade, portanto, no significa moralismo. Mas h umimportante desdobramento disso: ela tampouco significa a simples refernciamilenarista ou utpica a um ideal dado. Considere-se a perspectiva que sepode apontar como caracterstica de nossa recente assemblia constituinte,orientada pela suposio de que se vivia no pas um "momento fundacional" eque a tarefa a ser executada era a de elaborar uma constituio para osprximos sculos, na qual se resolvessem de vez as questes substantivasenvolvidas nos enfrentamentos do presente. O resultado que se oscila entrea adoo de formulaes que correspondem expresso incua de anseios ouideais milenaristas, por um lado, e, por outro, de dispositivos que representam

    9

    . Veja-se, por exemplo, Robert A. Dahl, A Preface to Democratic Theory, Chicago, TheUniversity of Chicago Press, 1956, especialmente o captulo 4, "MadisonianDemocracy".

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    o simples resultado da correlao conjuntural de foras e do jogo de pressesocorridas no momento mesmo do trabalho de elaborao constitucional.

    IV

    Uma vertente dos debates sobre a crise brasileira da atualidade se

    traduz na questo da natureza "poltica" ou "econmica" da crise, ou de saberonde est a "culpa" pela crise, no capitalismo ou no estado e na poltica. Este sem dvida o foco, por exemplo, do artigo do ex-ministro Mrio HenriqueSimonsen publicado pela revista Veja, com grande repercusso, em outubro de1987, certos aspectos do qual podem ser tomados para a breve elaborao dealgumas ramificaes do problema geral.10 Simonsen denuncia com nfase osmales do "capitalismo cartorial" existente no Brasil, denncia que se estendeem geral ao estado e poltica brasileiros (vistos como o lugar da "farsa", dabusca de favores e benesses, de acordo com a inverso acima indicada), aosquais contraposta a meta de um capitalismo "verdadeiro".

    A questo decisiva que se planteia esclarecida pela indagao de ondeseria possvel firmar a alavanca para a eventual transformao desse estado

    de coisas. A existncia de um capitalismo cartorial deriva de um estadopervertido que se mete impropriamente com um capitalismo em princpio"bom" (como corresponde sem dvida ao que pretende Simonsen) ou daapropriao do estado por um capitalismo talvez imaturo, "selvagem",distorcido? Naturalmente, o estado no existe no vcuo, e, como sustenta aabordagem esboada acima, a explicao das caractersticas por ele exibidas,sejam elas quais forem (inclusive a eventual caracterstica de ser interventor,ativo, talvez "impropriamente" autnomo ou mesmo clientelista,empreguista), ter de ser encontrada na sociedade (donde a precariedade, emltima anlise, da usual contraposio entre modelos explicativossupostamente baseados no estado, de um lado, e na sociedade, de outro). Se adinmica estado-sociedade resulta em capitalismo cartorial, preciso mudar oestado ou a sociedade (a economia, o capitalismo)? Ou ser preciso romper

    formas talvez peculiares de articulao entre os dois, qual caberia atribuirtraos supostamente "perversos" que caracterizariam o caso brasileiro?

    Tome-se a contraposio do capitalismo cartorial a um supostocapitalismo "verdadeiro". Em correspondncia com as ressonncias ticas oumoralizantes que marcam fortemente o texto de Simonsen, possvelaproxim-la, por exemplo, da distino estabelecida por Max Weber entre ocapitalismo moderno, ligado por ele tica protestante, e diversos tipostradicionais de "capitalismo", associados com traos como aventureirismo,avareza, busca irrestrita do ganho etc.11 A distino de Weber certamentepermitiria dizer que o capitalismo dos puritanos mais "tico" do que ocapitalismo aventureiro ou inescrupuloso de vrios lugares e pocas (e talvez

    10

    . Mrio Henrique Simonsen, "O Risco de Optar pelo Atraso", Veja, 997, 14 de outubrode 1987, 24-35.11

    . Max Weber, A Etica Protestante e o Esprito do Capitalismo Moderno , So Paulo,Livraria Pioneira Editora, 1985. Uma conveniente apresentao compacta das idias deWeber a respeito pode encontrar-se em Reinhard Bendix, Max Weber: An IntellectualPortrait, Nova York, Doubleday, 1962, especialmente captulo 3, "Aspects of EconomicRationality in the West".

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    mesmo mais "verdadeiro", pois provavelmente corresponderia melhor, emtermos weberianos, ao "tipo ideal" de capitalismo). Mas note-se que ofundamento da distino de Weber , obviamente, a idia de que a atividadeeconmica e, no limite, o prprio capitalismo, como tal, podem seraventureiros e aticos tanto quanto ticos e talvez "racionais". E claro que aindagao acerca dos fatores que respondem pelo fato de que a atividade

    econmica venha a ser, em diferentes sociedades, tica ou atica,inescrupulosa ou puritana, aplica-se igualmente anlise do que se passa navida poltica de tais sociedades: tambm a poltica pode ser tica ou atica, ecertamente no acidental que os pases onde o capitalismo moderno eracional prosperou mais cedo sejam tambm, em geral, aqueles onde oprocesso poltico democrtico e institucionalizado pde instaurar padrescomparativamente bem sucedidos de moralidade e civismo na vida pblica.Contudo, se se toma como certa a anlise weberiana das afinidades eletivasentre puritanismo e capitalismo, no se pode pretender que o que ocorre naesfera poltica quanto a este aspecto decorra diretamente do que ocorre naesfera econmica, ou vice-versa. Como se sabe, Weber se preocupa, em ltimaanlise, com a emergncia de uma complexa configurao sociocultural,suscetvel de ser descrita como o racionalismo ocidental, da qual os traos que

    correspondem especificamente ao capitalismo moderno no so seno umadimenso entre outras.12

    No caso do Brasil, sem dvida possvel apontar um processo polticodistinguido por falta de escrpulos e "aventureirismo" e um estado corrompidopela ausncia de princpios na busca dos interesses bem como umcapitalismo caracterizado por traos anlogos. Mas o curioso na perspectivaexemplificada pelo artigo de Simonsen (que, como veremos em seguida, estlonge de ser seu representante isolado, mesmo fora do mbito da anliseeconmica) que h a clara suposio da existncia de um vnculo causal noqual a corrupo do capitalismo, que se torna cartorial e orientado para abusca de favores e benesses, vista como derivando da ao e da presenaextensa do estado. Ora, essa perspectiva simplesmente ignora a complexa

    articulao entre os interesses econmicos privados e o estado expandido quetambm acompanha o dinamismo capitalista dos pases ocidentaiseconomicamente avanados quer se pense, por exemplo, na "tecnoestrutura"de que nos fala Galbraith h tempos ou no "neocorporativismo" que tanto temocupado, mais recentemente, os cientistas sociais desses pases.13 A lgicacomplexa e contraditria, por si mesma, do dinamismo capitalista, na qual seproduzem atores organizacionais poderosos e empenhados no controle dascondies de seu ambiente, induz a expanso do estado e sua articulaocorporativa com interesses privados e mesmo o refluxo que se observa agoranos pases capitalistas avanados, com o "neoconservadorismo" e a crise doestado de bem-estar, no pode ser avaliado seno como vicissitude incerta deuma trajetria marcada decisivamente por aqueles traos.

    12

    . Uma notvel releitura recente de Weber nessa tica abrangente WolfgangSchluchter, The Rise of Western Rationalism: Max Weber's Developmental History,Berkeley, University of California Press, 1981.13

    . Sobre o neocorporativismo, veja-se especialmente Suzanne Berger (organizadora),Organizing Interests in Western Europe: Pluralism, Corporatism, and theTransformation of Politics, Nova York, Cambridge University Press, 1981.

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    Naturalmente, no se trata, na perspectiva de Simonsen, de questionar,em conexo com a idia de um "capitalismo verdadeiro", os prprios supostos"realistas" da anlise econmica: os heris capitalistas continuam, presume-se,egostas e motivados pelo lucro, e no haveria por que falar de um problematico a propsito dessa motivao. Tal problema surge apenas quando oegosmo privado se mete com o estado e se vale dele ou antes, quando os

    potenciais capitalistas "verdadeiros" (digamos, os descendentes de imigrantesbem sucedidos na atividade empresarial no Brasil, imigrantes estes que soexplicitamente contrastados, como exemplo positivo, com nossa aristocraciacafeicultora "chinfrim") se deixam corromper pelos agentes que se movem nombito ou na vizinhana do estado...

    Contudo, se se admite, em nome do realismo, o egosmo privado, noparece haver como pretender que esse egosmo se detenha diante do estado.Preservados talvez os estritos limites da legalidade (que representam, de resto,segundo a anlise weberiana, o limite decisivo tambm no caso do empresriopuritano empenhado no xito econmico pessoal como prova de eleiodivina), o estado um dado do ambiente em que o capitalista motivado peloganho privado atua, dado este a ser manipulado como qualquer outro. Se cabe

    supor que o bem pblico seja extrado pela "mo invisvel" do jogo dosinteresses privados na ausncia do estado, por que no supor que a moinvisvel venha a atuar da mesma forma na presena do estado, ou na situaoem que os prprios agentes do estado devam ser vistos como integrando-se nojogo de interesses? Se se quer ser consistente, tudo o que se faria necessriopara esse resultado pareceria ser que o estado no fosse a mquina coesa edisciplinada capaz de perseguir interesses prprios (pblicos?) ou objetivosfixados "por cima" e revelia do jogo de interesses parciais.

    O carter paradoxal dessa posio evidente. Pois terminar-se-ia porfazer o elogio justamente da sensibilidade "pretoriana" ou populista do estadoao jogo do "mercado poltico", em decorrncia da qual o estado se deixa"feudalizar", "balcanizar" ou apropriar "fisiologicamente" no varejo de uma

    variedade de interesses mais ou menos estreitos ou imediatistas. patente,porm, que esta representa uma condio negativa diante do ideal do estado aum tempo democrtico e eficiente na busca de objetivos maioresdemocraticamente fixados to negativa quanto, no outro extremo, a condiona qual o estado autoritrio, apropriado privadamente por certos interessespoderosos que contam com o respaldo da fora militar, controla o processopoltico e impe decises cruciais de poltica econmica e social. Se se parte desuposies realistas com respeito motivao e orientao docomportamento dos agentes privados, includos os capitalistas, a resposta indagao sobre o que fazer se v submetida a um par de constries: elaexige, por um lado, o reconhecimento de que cumpre atuar no plano doestado, se no se opta pela estratgia mais que duvidosa da reforma moral dasociedade; por outro lado, ela depende tambm do reconhecimento de queaquela indagao assume a forma de como defendero estado, que devenecessariamente ser sensvel se vai ser democrtico, da sanha dos interessesprivados, inclusive e especialmente dos poderosos interesses dos capitalistas e como assegurar a indispensvel autonomia daquele estado aberto e sensvel.Quanto aos agentes do estado, por seu lado, certamente a situao ideal seriaa de que se contasse com agentes abnegadamente identificados com ointeresse pblico. Mas claro que este no pode ser o postulado de qualqueranlise que se pretenda realista, e a tarefa de defesa do estado contra osinteresses privados se coloca tambm com relao aos prprios agentes que

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    operam nele. A construo da democracia envolve, portanto, no a simplesconteno ou minimizao do estado (por mais que possa recomendar-se estaou aquela privatizao de empresa...), mas o esforo, visto afirmativamente,de construir(ou reconstruir) o estado, ou de construir uma institucionalidadesuficientemente complexa para se mostrar capaz de contando com aoperao do mercado dos interesses no plano convencionalmente considerado

    como poltico tanto quanto no plano econmico, e tratando de process-lainstitucionalmente com realismo manter-se adequadamente equidistante dosdois extremos negativos recm-indicados.

    V

    Restam algumas questes cruciais, destacando-se a de como produzirou onde buscar a reflexividade capaz de conviver lucidamente com a estreitezae a miopia dos interesses de qualquer natureza (inclusive os que possam serconsiderados interesses polticos) e de manipul-los em proveito da construode uma democracia estvel. As dificuldades envolvidas ficam patentes no fatode que mesmo a anlise sociocientfica, que formalmente se define pela buscade acuidade em seus diagnsticos, da qual a capacidade de reflexividade e

    distanciamento seria condio indispensvel, se confunde no esforo. Aperspectiva acima exemplificada com o texto de Simonsen expressiva deembaraos que provavelmente caberia ver como caractersticos da maneirapela qual os economistas, e talvez o senso comum, tendem a abordar osproblemas do estado e da poltica. Mas no creio que as coisas sejam muitodistintas no campo estrito da cincia poltica.

    Com efeito, os trabalhos de cincia poltica se acham permeados, por umlado, pelo apego ingnuo e acrtico a um modelo idealizado de "polticaideolgica". Tal modelo envolve a idia do comportamento orientado por"valores", entendida essa categoria em contraste extremado e imprprio com ade "interesses" e tomada como envolvendo o predomnio no apenas daperspectiva de longo prazo sobre a de curto prazo ou imediatista, mas tambm

    do coletivo sobre o individual e prescrevendo-se o "interesse coletivo" como"valor" para o indivduo, no obstante o claro fator de incongruncia dado peloparticularismo "atico" que se pode apontar em qualquer interesse, mesmocoletivo. O anseio perene por partidos ideolgicos, chamados a substituirnossos partidos-frente pragmticos e "amorfos" vistos estes como supostasingularidade ou esquisitice brasileira, embora na verdade se mostrem antes aregra do que a exceo nas circunstncias das disputas eleitorais prprias dademocracia poltica onde quer que se d estavelmente , decorre diretamentedessa idealizao do papel da ideologia na poltica.14

    Por outro lado, na cincia poltica brasileira h tambm com frequncia,em correspondncia com a idia de um capitalismo "autntico" e bom de quese falou acima, o recurso ao menos implcito ao modelo em que a "sociedade"prevalece sobre o estado, em que os interesses (legtimos) brotados da"sociedade civil" se fazem "representar" (tambm legitimamente) no mbito doestado por contraste com a imagem negativa ligada idia (que se pretendeseja descritiva das condies que prevalecem no pas) do estado que"predomina" sobre a sociedade e realiza a "cooptao" ou o "corporativismo",

    14

    . Em "Partidos, Ideologia e Consolidao Democrtica", op. cit., discuto extensamente omodelo da "poltica ideolgica" e sua conexo com a questo dos partidos no Brasil.

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    eventualmente patrocina o "clientelismo" etc.15 bastante clara a conexodessa perspectiva com a noo liberal, de que se falou no incio, dos perigos doestado e de sua eventual autonomia para o ideal da soberania popular, comsuas ramificaes na concepo filosfica do contratualismo.

    Muito do que se pretende apresentar como diagnstico do caso brasileiro

    e indicao do caminho a ser trilhado para a sua desejada transformaoredunda, como decorrncia, na mera contraposio daquilo que supostamentenos caracteriza a modelos idealizados e doutrinrios da vida poltica ou deaspectos especficos dela (de maneira anloga postura milenarista ou utpicaantes apontada), acompanhada de edificantes exortaes de que mudemos deuma condio a outra. Vale registrar que, mesmo do ponto de vistaestritamente tico, tal postura no vai alm daquilo que Max Weber designoucomo a "tica de convices", caracterizada pelo empenho "expressivo" demanifestar convices ou valores de maneira antes rgida ou inflexvel. A essatica Weber contrapunha a moralidade superior correspondente "tica daresponsabilidade", atenta para as consequncias que decorrem das aes eportanto empenhada no distanciamento e na sobriedade capazes de permitir aapropriada avaliao de tais consequncias. bvio que a tica da busca

    eficaz e esclarecida de um objetivo o da consolidao democrtica, digamos, que pretenda valer-se da anlise acurada dos problemas envolvidos, nopode ser, tudo somado, seno a tica consequencialista da responsabilidade.16

    Se tais so as dificuldades mesmo no plano do trabalho sociocientfico,como esperar a necessria reflexividade e flexibilidade por parte daqueles aosquais competiria inevitavelmente a tarefa de construo institucional, isto , osprprios atores envolvidos no processo poltico?

    No creio que haja lugar para otimismos a respeito. Ao contrrio, sou daopinio, em boa medida pelas dificuldades assim apreendidas, de que oprocesso poltico brasileiro est destinado a seguir desdobrando-se, no futurovisvel, em sobressaltos e provavelmente em recadas autoritrias. Procurando

    avanar alm do simples pessimismo, porm, creio ser possvel destacar, nestemomento da vida brasileira, tres categorias de atores cujo papel pelo menospotencialmente importante:(a) o empresariado; (b) os trabalhadores ou, maisamplamente, o que se poderia designar como os "setores populares", com sua"vanguarda" sindical; e (c) os militares. A indispensvel simplificao resultaem colocar de lado o papel de atores como as classes mdias e a Igreja, porexemplo. Tampouco se consideram entidades como os partidos polticos, poisestes podem ser vistos como objeto do prprio esforo de construoinstitucional.

    Os dados bsicos de nosso "problema constitucional" tal como acimacaracterizado esto contidos, naturalmente, nas relaes que se do entre as

    15

    . Simon Schwartzman provavelmente o autor brasileiro que mais nitidamenteexpressou, em tempos recentes, algumas das principais idias envolvidas nessecontraste, especialmente no volume So Paulo e o Estado Nacional, So Paulo, Difel,1975.16

    . Veja-se Schluchter, The Rise of Western Rationalism, op. cit., especialmente captulo4, para a elaborada discusso do componente tico de configuraes scio-culturaisdiversas em Weber.

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    duas primeiras categorias de atores, isto , trabalhadores e empresrios. Doponto de vista da possibilidade de que cada um dos atores reais ou virtuaismencionados venha a manifestar a capacidade de reflexividade necessria aodesdobramento favorvel do processo democrtico no mbito do capitalismovigente, no parece haver muito a esperar do lado de nossos "setorespopulares", para utilizar a designao mais abrangente. Uma ponderao de

    grande importncia precisamente a que se refere heterogeneidade de taissetores, compostos como se acham de uma frao efetivamente integrada aosistema econmico (incluindo a parcela mais diretamente passvel de sermobilizada pela "vanguarda" sindical), frao esta qual se contrapemamplos contingentes populacionais que se situam marginalmente ao sistemaeconmico mas que representam, no obstante, participantes de decisivaimportncia no processo eleitoral por constituirem a parcela majoritria doeleitorado brasileiro. Um componente crucial da problemtica brasileira daatualidade tem a ver precisamente com o descompasso que a se revela entrea precariedade da incorporao permitida pelas viscosidades e deficincias daexpanso econmica do pas, por um lado, e a lgica expansiva eincorporadora do processo democrtico baseado nas disputas eleitorais, poroutro. Pois, na larga brecha entre os dois planos, no h como evitar que o

    processo eleitoral com frequncia represente (ou seja percebido comorepresentando) uma espcie de input"selvagem" e ameaador relativamentes convenincias e lgica "sadia" do sistema socioeconmico.

    Para a frao economicamente destituda e marginal dos setorespopulares, contrariamente atuao de qualquer fator que eventualmentejustificasse a expectativa de reflexividade, o que se tem que a marginalidadesocioeconmica se faz acompanhar de traos intelectuais e psicossociaispropcios continuidade do importante papel exercido por mecanismos de tipoclientelista e populista no processo poltico-eleitoral. O resultado geral asingular mescla entre, de um lado, certo tipo de "consistncia populista" (emque se tende a sufragar sempre aquele nome ou partido percebido, de maneiramais ou menos difusa, como capaz de expressar o repdio s condies

    prevalecentes e s figuras que so com elas ligadas) e, de outro, a fluidez e aimprevisibilidade decorrentes de que, na carncia de formas doutrinrias ouideolgicas intelectualmente sofisticadas e estveis de estruturar o universoeleitoralmente relevante, as lideranas polticas escolhidas como veculos doprotesto mudam com as conjunturas cambiantes e apresentam perfis variadose mesmo aparentemente contrastantes quando vistos atravs de categoriaspolticas convencionais. Donde o fator perene de insegurana e sobressalto,aos olhos do establishmentdo excludente sistema socioeconmico nacional,representado pelas decises que emanam do processo eleitoral.

    Por seu turno, a parcela economicamente integrada dos setorespopulares encontra-se exposta, em sua atuao, necessidade de ter derecorrer a uma postura aguerrida e combativa como condio do xito doesforo de organizao coletiva em sua conexo com o problema de afirmaoda identidade grupal. O desafio a envolvido redunda, naturalmente, numcomponente importante do prprio problema de que os trabalhadores comocoletividade desestruturada ou mera categoria nominal possam eventualmentechegar a constituir-se em atorefetivo, capaz de algum grau de ao coesa edisciplinada. Os requisitos de eficcia quanto a este aspecto se relacionam demaneira complicada com dois aspectos do problema geral. Por um lado, h aquesto da insero dos trabalhadores como ator coletivo no processoeleitoral, pois a mensagem aguerrida de "vanguardas" sindicais e talvez

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    partidrias se dirigir necessariamente, se pretender xito eleitoral, numerosa massa destituda e marginal caracterizada pelos traos de"deficincia" ideolgica e propenso ao populismo de que se falou acima. Ora,as chances de que tal mensagem possa vir a ser a assimilada nesses termosso precrias, e surge a indagao de se o sucesso eleitoral no exigir algumaadaptao pragmtica ao jogo "populista". Por outro lado, d-se a dificuldade

    crucial correspondente ao fato de que a possibilidade de xito eventual daatuao dos trabalhadores em qualquer das dimenses indicadas de suaatividade (sua organizao como ator socioeconmico e poltico aguerrido eefetivo e a eventual penetrao eleitoral das mensagens correspondentes) notenderia a representar, em princpio, seno a confirmao de certos temoresbsicos do establishmente a dramatizao, na percepo deste, dos perigosdo jogo democrtico que ajudam a configurar o prprio problema constitucionalcomo tal.

    Assim, as chances de emergncia, junto aos trabalhadores como atorpoltico, de uma perspectiva reflexiva consonante com a real acomodaodemocrtica na vigncia do capitalismo pareceriam depender de certoacmulo, com o passar do tempo, de experincias de interao

    (eventualmente institucionalizada) com os demais atores, particularmente oempresariado, que pudessem ser vistas como bem sucedidas em termos dosinteresses econmicos da categoria -- e que terminassem por permitir, comocorresponde experincia de numerosos movimentos de trabalhadoreseuropeus de inspirao inicialmente revolucionria, a redefinio de suamilitncia de maneira a fixar objetivos no revolucionrios como objetivoslegtimos dela (isto , como objetivos compatveis com a identidade grupal).Vale a pena ponderar a respeito algo que surge com fora de anlises decuidadosa base emprica conduzidas recentemente por Adam Przeworski:contrariamente ao postulado fundamental de muito da literatura dedicada questo da "desradicalizao" do movimento operrio europeu, postuladosegundo o qual a organizao do operariado lhe permitiria fazer a revoluo,na verdade o que se constata que, aos olhos dos prprios trabalhadores, a

    organizao torna a ao revolucionria dispensvel, e a militncia radical eeventualmente herica se mostra como algo prvio ao xito organizativo.17

    Para formular a mxima a contida em termos das conhecidas categorias deexite voice, cunhadas por Albert Hirschman, no se recorre a voice quando apossibilidade de exitest disponvel. E o objetivo ltimo da ao poltica,mesmo aguerrida e eventualmente violenta, , naturalmente, o de substituir anecessidade de voice pela possibilidade de exit, a guerra pelo mercado ou,no mximo, pelo forum parlamentar de qualquer tipo em que a prpria voice seinstitucionaliza e banaliza.

    Quanto aos militares, a avaliao de seu papel se defronta comimportante ambiguidade. Por um lado, os militares cumprem, naturalmente, demaneira aberta ou latente em diferentes momentos, um decisivo papel noprocesso poltico brasileiro, e sua relevncia poltica a expresso mais cabalde nossa condio pretoriana de debilidade institucional e a evidncia principalde um problema constitucional no resolvido. De outro lado, porm, suaatuao em certo sentido derivada ou secundria. Pois, em geral, eles sevem mobilizados nesta ou naquela direo de acordo antes de mais nada comas vicissitudes das relaes estabelecidas, segundo os dados fundamentais de

    17

    . Cf. especialmente Przeworski, Capitalism and Social Democracy, op. cit., p. 77.

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    nosso problema constitucional, entre as categorias principais correspondentesa empresrios e trabalhadores, bem como de acordo com a projeo de taisvicissitudes na dinmica mais estreitamente poltica, tal como a que dizrespeito ao processo eleitoral.

    Nessas circunstncias, torna-se precria a eventual expectativa de que

    se pudesse ter nos militares brasileiros uma fonte autnoma de aesreflexivamente orientadas no sentido da efetiva construo democrtica,segundo a frmula de "o soldado como institution-builder" que teve algumavoga, tempos atrs, na literatura de cincia poltica. Essa possibilidade terica limitada ainda mais em sua viabilidade prtica por dois aspectosrelacionados: em primeiro lugar, o fato mesmo de que os militares tm sido umparticipante assduo no processo poltico brasileiro e um contendor nosenfrentamentos que a se do acarreta como consequncia que, junto fraomais atuante e politicamente relevante do operariado (sua "vanguarda"sindical e setores que lhe so mais diretamente ligados), a imagem dosmilitares tenda a ser marcadamente negativa, surgindo eles como talvez oprincipal antagonista (no obstante a ocorrncia, ao contrrio do que secostuma supor, de uma imagem positiva dos militares bastante difundida junto

    s camadas populares do eleitorado, como demonstram vrios surveyseleitorais recentes); em segundo lugar, o papel de aclito relativamente acertos interesses bsicos do establishmentse associa com a tendncia, porparte dos militares, de se apegarem a formulaes especialmente rgidas ezelosas, e mesmo paranicas, daquilo que serve ou se ope aos valoresprprios do sistema que supostamente se trata de preservar.

    Se no cabe esperar, assim, que os militares possam vir a ser um fatorautnomo de lucidez e equilbrio na transformao institucional do pas rumo democracia consolidada, seu peso na vida brasileira, especialmente conjugadocom a rigidez intelectual e ideolgica que tende a caracteriz-los, tornainexorvel a constatao de que eles so um dado e um dado crucial a sertido em conta em qualquer esforo de realismo, reflexividade e lucidez em prol

    daquela transformao. Uma forma de se tratar de processar tal dadocongruentemente com o esforo de construo institucional realstica aquifavorecido (ao invs do mero jogo de faz-de-conta que se observou nosdebates da recente Assemblia Constituinte, que se resumiram, no fundo, emdecidir sobre se se iria ou no proibir os militares de dar golpes) consistiria emdar ao importante ator militar algum tipo de representao adequada emesferas da aparelhagem do estado (junto ao Poder Executivo e talvez mesmoao Legislativo) nas quais se pudesse assegurar seu convvio e intercmbioinstitucional regular com outros segmentos relevantes da sociedade brasileira.Assim se estaria buscando, de imediato, regular o jogo real que tem osmilitares como partcipes, tratando ao mesmo passo de neutralizar o carter dequisto armado e paranico que sua insero na vida poltica brasileira temexibido e de criar condies que talvez viessem a permitir reeduc-lospoliticamente pela via institucional.

    Resta o empresariado. Esta sem dvida a categoria crucial. Paracomear, se correta a hiptese da dependncia estrutural do estado peranteo capital na sociedade capitalista, a percepo que tenham os capitalistas deseus interesses, na suposio de que possa expressar-se com alguma coeso,representa, naturalmente, um parmetro decisivo para a forma que a atuaodo estado vir a assumir e certamente mesmo para sua eventual feiopoliticamente democrtico-constitucionalista ou autoritria. Em volume

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    recente, Peter Gourevitch mostra de maneira persuasiva, luz do exameminucioso de perodos de crise profunda na histria de vrios pases ocidentais(Alemanha, Frana, Gr-Bretanha, Estados Unidos e Sucia), a maneira pelaqual o grau de coeso obtido entre os setores empresariais condicionadecisivamente a autonomia das polticas estatais e as chances de que setoresalheios ao empresariado possam influenciar tais polticas.18 Uma observao

    especfica de interesse para os debates brasileiros que as anlises deGourevitch permitem a que destaca as diferentes "propenses marginais" desetores empresariais diversos a coalizes mais ou menos favorveis aosinteresses trabalhistas, e consequentemente a diferentes formas de articulaodos grandes atores econmicos com o estado. Duas maneiras alternativas dese dar tal articulao so, de um lado, a negociao tripartida entre estado,associaes patronais e sindicatos de trabalhadores que se tornoucaracterstica do "neocorporativismo" e, de outro, um business-dominatedcorporatism favorecido pelos setores empresariais conservadores e baseado nacartelizao e em encomendas governamentais como instrumento principal deestabilizao do mercado.19 E' digno de nota a respeito, especialmentetratando-se de pases de capitalismo avanado, o fato de que ambas asalternativas, em oposio ojeriza ao estado professada por muitos dos que

    anseiam por um capitalismo brasileiro autntico, contemplam importante papelpara o estado. Vale ponderar, alm disso, o que h de sugestivo no paraleloentre essas diferentes preferncias ou opes empresariais relativamente aoestado e a esquizofrenia que parece caracterizar, a respeito, o empresariadobrasileiro, dividido entre o desejo de "conter" o estado e restringir osinconvenientes do intervencionismo estatal, por um lado, e, por outro, asdemandas de que o estado fornea infraestrutura, financiamentos, incentivos,empreitadas sem falar da ocasional atuao policial do estado contratrabalhadores em greve.

    Ao lado da decisiva posio estrutural do empresariado, e emdecorrncia dela, cabe destacar a respeitabilidade e legitimidade mpar de quetendem naturalmente a revestir-se as avaliaes polticas empresariais junto a

    atores importantes do sistema, como aspecto particular do que se poderiadesignar genericamente como a "hegemonia ideolgica" de que desfruta oempresariado. De acordo com o sugerido acima, tal hegemonia ocorre demaneira grandemente relevante para nosso problema geral em particularjunto aos militares. Do ponto de vista da questo da eventual capacidade doempresariado brasileiro para atuar reflexivamente em favor da consolidaodemocrtica, um aspecto a ponderar que se pode revelar importante o quetem a ver com as condies intelectuais comparativamente favorveis quecaracterizam a categoria como um todo, por contraste com as deficincias aserem encontradas a este respeito pelo lado dos atores populares.

    No se trata de criar iluses. No que se refere s relaes empresariado-militares, por exemplo, seria certamente imprprio excluira possibilidade deao autnoma ou mesma estouvada de lideranas militares em decorrnciade meras ambies pessoais ou do eventual diagnstico negativo de dadaconjuntura que derive de sua peculiar parania e no me parece haver razes

    18

    . Peter Gourevitch, Politics in Hard Times, Londres, Corn- ell University Press, 1986,passim, especialmente p. 222.19

    . Ibid., p. 222.

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    para que se conte, em circunstncias semelhantes e mesmo na hiptese deavaliaes distintas em aspectos importantes por parte dos empresrios, coma disposio empresarial de resistir com empenho implantao de novo surtode autoritarismo militarista no pas. De maneira mais ampla, creio ser bastanteclaro que a democracia no , para o empresariado em geral, um valordecisivo, e acredito mesmo que essa avaliao se aplica igualmente ao caso de

    pases capitalistas de maior tradio liberal-democrtica.No obstante, o conjunto de aspectos que compem a crise

    constitucional geral da atualidade brasileira me parece justificar a proposiode que a responsabilidade principal pelos rumos que venha a assumir oprocesso social e poltico no pas recai sobre os ombros do empresariado. Umaspecto provavelmente crucial das perspectivas que podem vir a abrir-se aquiconsiste nas disposies que as lideranas empresariais venham a manifestarcom respeito ao estado. No se trata apenas da esquizofrenia antesmencionada quanto aos efeitos mais diretamente econmicos da atuaoestatal. Tal esquizofrenia pode, na verdade, corresponder antes, em algumgrau, expresso dos diversos interesses mais ou menos imediatos de setoresempresariais distintos, e no h razo para se pretender que tal diversidade

    deixe de existir. Creio, porm, que parte decisiva das esperanas daconsolidao da democracia no Brasil depende de que o empresariadobrasileiro se incline mais coesamente a enfrentar com nimo positivo o desafiode remodelar ou reconstruir a aparelhagem do estado brasileiro. Isto meparece traduzir-se em boa medida, no que concerne especificamente contribuio do empresariado, em ajudar a compor um adequadocorporativismo brasileiro capaz de viabilizar um "pacto social" consistente.

    VI

    A questo do corporativismo, com efeito, merece destaque em conexo com oobjetivo de construo institucional realisticamente orientada, em que altasaspiraes se articulam com realidades desagradveis. Sendo um tema

    saliente das discusses ligadas ao estado no Brasil, o corporativismo tambmum ponto notvel de convergncia e acordo pois todos concordam emcondenaro corporativismo. A idia de corporativismo se acha estreitamenteligada, entre ns, com os traos ditatoriais do Estado Novo e com o fascismo, ea expresso "corporativismo" significa antes de mais nada controle autoritriopor parte do estado apesar de que seja tambm usual um outro sentido (nomenos negativo) da palavra, que se refere defesa egosta de interessesestreitos, particularmente de categorias ocupacionais.

    Cabe fazer algumas ponderaes a respeito. A primeira se refere a algomencionado de passagem anteriormente, ou seja, o exemplo representado pordiversos pases da Europa ocidental onde as ltimas dcadas testemunharam aconstituio de mecanismos corporativos de processamento de decises depoltica econmica e social de crucial importncia. Nas estruturascorrespondentes, frequentemente designadas pela expresso"neocorporativismo", o estado se articula com associaes patronais esindicatos de trabalhadores para constituir uma arena extra-parlamentar ecrescentemente institucionalizada de deliberao da qual parece cada vezmais difcil prescindir. Na verdade, apesar da ocorrncia de denncias docarter supostamente no-democrtico das estruturas neocorporativas, torna-se bastante claro que garantir a democracia nas circunstncias prprias dospases em que elas se do envolve precisamente, no o empenho de

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    desinstitucionalizar ou desmontar tais estruturas, mas antes o esforo deinstitucionaliz-las crescentemente, cercando-as, no processo, de disposiesorganizacionais e legais aptas a assegurarem a visibilidade e o carterresponsvel das decises que nelas se tomam e neutralizando o potencial dedistoro no-democrtica nelas contido.

    Ora, no obstante algumas tentativas de dissociar o corporativismo"social", que corresponderia aos casos europeus mencionados, de um supostocorporativismo "estatal", que corresponderia a casos como o brasileiro, taistentativas se mostram inconsistentes. Elas se baseiam sobretudo no carterautoritrio do prprio sistema poltico como um todo no qual o tipo "estatal" decorporativismo estaria inserido, por contraste com o carter democrtico dosistema poltico que abrigaria o corporativismo "social".20 Isso redundaclaramente em prejulgara resposta questo substantiva crucial, a saber, ade at que ponto no caberia pretender ter no corporativismo (obviamentedefinido de maneira independente da prpria distino entre autoritarismo edemocracia) um fator eventualmente favorvel consolidao de umademocracia estvel. A distino entre corporativismo estatal e corporativismosocial no poderia, assim, servir de obstculo a que se examinasse se nossa

    tradio estatista e "corporativista" no poderia ela mesma tornar-seinstrumental, de alguma forma, na tarefa de construo democrtica.

    Em segundo lugar, uma observao talvez surpreendente primeiravista. Se se tomam os dois sentidos negativos da expresso "corporativismo"apontados acima no vocbulrio brasileiro corrente (corporativismo comocontrole autoritrio pelo estado, de um lado, e como busca egosta deinteresses estreitos de categorias ocupacionais, de outro), cabe procurar acorreo das distores correspondentes a cada um deles precisamente naredefinio e na melhor articulao, de certa maneira, dos aspectos que cadaum deles destaca. Note-se como os dois sentidos da palavra ajustam-seestritamente s duas formas de comprometimento do ideal do estadodemocrtico e eficiente que se assinalaram anteriormente, ou seja, a do estado

    autoritrio e a da apropriao privada e "fisiolgica" do estado por interessesparticulares. Ora, assegurar o estado democrtico e eficiente envolvejustamente, como tambm se observou, encontrar o ponto de equilbrio entreesses extremos, de sorte que o estado venha a ser sensvel aos focos deinteresses existentes na sociedade sem se deixar aprisionar por qualquerdeles. Nessa tica, parece bastante claro que a articulao corporativa (ou"neocorporativa", se se preferir) dos interesses com o estado (em especial dosinteresses funcionais ou ocupacionais, dada sua importncia singular) no temporque ser vista como obstculo, em si mesma, democracia. Ao contrrio, talarticulao se revela um componente indispensvel da necessria articulaogeral do estado com a sociedade -- e, se realizada de maneira adequada,contribuir para impedir tanto a excessiva autonomia do estado como suaimprpria subordinao unilateral a determinados interesses. Por outraspalavras: o corporativismo, bem entendido, parte da prpria democracia; aoinvs da denncia rombuda do corporativismo, portanto, cumpre enfrentarlucidamente a tarefa de construir, com senso de equilbrio e medida, nosso

    20

    . A reintroduo da distino entre corporativismo social e corporativismo estatal naliteratura recente de Cincia Poltica se deve a Philippe Schmitter, "Still the Century ofCorporatism?", Review of Politics, 36, 1, 1974, 85-131. A crtica que no texto se faz distino certamente se aplicam s formulaes de Schmitter nesse artigo.

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    necessrio corporativismo, o que equivale a reconstruir nosso complexo eviciado aparelho estatal.

    Duas observaes complementares para concluir. A primeira se dirige aum argumento que tem sido formulado a propsito da possvel contribuio dearranjos corporativos de algum tipo nas condies brasileiras da atualidade.

    Trata-se de que, como os recursos organizacionais das diversas categorias denossos heterogneos "setores populares" diferem amplamente, a efetivaimplantao de mecanismos corporativos de deciso redundaria em consagrarinstitucionalmente as diferenas de poder existentes entre elas e dificilmentese poderia pretender que os interesses de certos segmentos marginais, poramplos que sejam, encontrassem nas arenas corporativas ressonncia igual dos interesses de determinados setores da indstria paulista, por exemplo. E'certo, para comear, que a criao de uma estrutura corporativa capaz deoperar de maneira real no processamento de decises de poltica econmica esocial de importncia supe que os atores populares a serem representadosnela tenham fora ou consistncia organizacional e falem efetivamente emnome das categorias correspondentes. Contudo, a heterogeneidade dosprprios setores populares no argumento contra o esforo de construir tal

    estrutura. Por um lado, a proposta de construo dela no envolve a idia deque ela venha a substituira arena parlamentar-eleitoral em que os interessesno-organizados podem de alguma forma se fazer valer. Alm disso, no hrazo para imaginar que a presena dos segmentos organizados dos setorespopulares em arenas corporativas signifique que a situao dos seussegmentos no-organizados se torne piordo que a que existe atualmente,quando no h arenas de deciso que incorporem de maneira efetiva sequeros primeiros. Ao contrrio, certamente se justifica presumir que as decises depoltica econmica e social sejam mais sensveis aos interesses dos setorespopulares em geral na medida em que os segmentos organizados destesvenham a ter participao ativa em tais decises.

    Finalmente, lembre-se que o acesso desigual, enviesado ou assimtrico

    ao estado inerente s condies que definem o prprio capitalismo como tal,devendo ser visto como manifestao da prpria dependncia estruturalperante o capital. Com a eventual criao de estruturas corporativas"adequadas", trata-se precisamente de mitigar ou restringir as consequnciasnegativas de tal assimetria inevitvel. A reduo deste vis crucial seriacertamente uma razo para que se aceitasse conviver com outros deimplicaes menos profundas.

    VII

    Em volume de alguns anos atrs, Robert Nozick assinala a possibilidadede que os estudiosos dos processos sociais oscilem (no ser mesmo umatendncia deles?) entre dois modelos fundamentais de explicao. Sempre quea observao de tais processos sugere primeira vista a ocorrncia demecanismos de "mo invisvel", onde fatores de "causalidade objetiva" dealgum tipo levariam obteno de resultados no buscados intencionalmentepelos agentes, a explicao adequada surgiria como correspondendo aapontar, "na verdade", a atuao de alguma "mo oculta", com os desgniosvoluntrios de algum agente (tipicamente sinistro ou conspiratrio, talvez)aparecendo como a causa real dos eventos observados. Contudo, sempre queos mecanismos aparentes sugerem a importncia da atuao voluntria ouintencional deste ou daquele agente (o heri, talvez o estadista), a explicao

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    "verdadeira" consistiria em apontar os fatores "objetivos" cuja operao dariaconta causalmente dos eventos.21 A viva polmica que presentemente seobserva entre partidrios e oponentes da abordagem da "escolha racional" nascincias sociais apenas a manifestao mais recente da tenso que a seexpressa.

    Essa tenso se acha claramente relacionada tenso aqui discutidaentre o imediatismo dos interesses como "dados" e a reflexividade requeridapela rdua tarefa de construo institucional. Pois o entrechoque dosinteresses dados e mltiplos em sua urgncia representa claramente, noobstante a intencionalidade neles contida, o imprio da causalidade (da moinvisvel, mas no necessariamente benigna) nos processos sociais. Por seuturno, a apreenso adequada da "causalidade" em jogo componenteindispensvel de uma intencionalidade consequente, e da prpria possibilidadede racionalidade coletiva. Este o lugar prprio da tica da responsabilidade,que supe que se eliminem as iluses mesmo bem intencionadas e ospreconceitos correspondentes.

    21

    . Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia, Nova York, Basic Books, 1974, pp. 19-2O.

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