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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL: COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Matheus Dalbosco Pereira Santa Maria, RS, Brasil. 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL:

COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA

CONSTRUÇÃO DO ESTADO

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Matheus Dalbosco Pereira

Santa Maria, RS, Brasil.

2015

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ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL:

COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA

CONSTRUÇÃO DO ESTADO

Matheus Dalbosco Pereira

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Relações

Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como

requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Relações

Internacionais.

Orientador: Prof. Dr. Igor Castellano da Silva

Santa Maria

2015

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AGRADECIMENTOS

Ao concluir mais uma etapa de minha vida, gostaria de agradecer a todos que, de

alguma forma, foram fundamentais nesse processo. Assim, começo agradecendo a

minha mãe, Andréa, por todo o carinho e tempo que ela já dedicou e ainda dedica a mim

– são elementos essenciais do meu emocional. Agradeço ao meu pai, Afranio, pelo

incentivo que ele me deu à busca do saber, ao questionamento e ao exercício lógico –

requisitos tão necessários para o meu aprendizado. Quando os agradeço por isso, não é

apenas por isso, mas por considerar que foram as suas principais contribuições – e uma

soma muito benéfica a mim.

Desejo também demonstrar minha gratidão a todos os meus familiares, avôs e

avós, tios e tias, primos e primas, entre outros. Apesar de, eventualmente, passarmos

muito tempo longes, cada um contribui, do seu modo, para a minha vida. Expresso

minha gratidão também a todos os meus amigos, de Minas Gerais ou do Rio Grande do

Sul, ou pessoas que, de alguma forma, se importam comigo e desejam o melhor para

mim. Agradeço, em especial, à minha namorada, Camila Hirt Munareto, que não apenas

é minha melhor amiga e uma grande companheira, mas também me deu uma

contribuição fundamental para a finalização deste trabalho. Além disso, também quero

agradecer ao meu orientador, Igor Castellano da Silva, pela sua dedicação, competência

em sua função e por tudo que já me ensinou nos últimos anos.

Por fim, quero fazer um agradecimento especial aos meus avós, Otolip e Marly,

por terem me recebido como um filho em Santa Maria, contribuindo significativamente

para a conclusão dessa etapa da minha vida.

A todos vocês, meu muito obrigado!

Dedico esse trabalho, postumamente, ao meu avô Otolip Dalbosco.

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Igitur qui desiderat pacem, praeparet bellum

(Publius Flavius Vegetius Renatus, De Re Militari – Livro 3, prefácio)

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RESUMO

Trabalho de Conclusão de Curso

Curso de Relações Internacionais

Universidade Federal de Santa Maria

ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL:

COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA

CONSTRUÇÃO DO ESTADO

AUTOR: Matheus Dalbosco Pereira

ORIENTADOR: Igor Castellano da Silva

Data e Local da Defesa: Santa Maria, 02 de Dezembro de 2015.

Estados Unidos e África do Sul experimentaram trajetórias históricas

semelhantes no que se refere à formação social e Estatal. Localizados em regiões

estratégicas e ricas em recursos naturais, ambos os países foram colonizados por

europeus protestantes que tiveram uma relação agressiva com os nativos e que

posteriormente se revoltaram contra a metrópole. Todavia, apesar das semelhanças, os

Estados Unidos vieram a se tornar uma superpotência global enquanto a África do Sul

tornou-se uma potência regional com grandes constrangimentos domésticos. O estudo

objetiva compreender quais elementos da trajetória histórica de formação do Estado

podem explicar por que esses países possuem enormes diferenças de capacidade estatal

no início do século XXI. Para tal, utiliza-se o modelo analítico de Charles Tilly (1996)

baseado nos conceitos de coerção e capital e na sua interação mediante a dinâmica da

guerra (competição sistêmica). Adicionalmente, busca-se avaliar a evolução do

elemento da legitimidade (obediência, efetividade institucional e identidade),

fundamental para o conceito weberiano de Estado. A teoria de Gilpin (1981) sobre

mudanças sistêmicas será utilizada também para a análise de interação dos Estados no

sistema internacional. Supõe-se que a ausência do equilíbrio virtuoso entre coerção e

capital, mas principalmente da legitimidade, foram fatores fundamentais para as

dificuldades enfrentadas pelo Estado sul-africano; situação distinta da experimentada

pelos estados do norte dos Estados Unidos, vitoriosos na guerra de independência e na

guerra civil e responsáveis pelo atual modelo estatal norte-americano. Trata-se de um

estudo hipotético-dedutivo de procedimento histórico-comparativo que adota a técnica

de pesquisa bibliográfica.

Palavras-Chave: África do Sul, Estados Unidos, coerção, capital, legitimidade, Estado,

guerra.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ..................................................................................... 7

2. A CONSTRUÇÃO DOS ESTADOS EUROPEUS .......................... 12

2.1. A lógica da construção do Estado ............................................... 13

2.2. Expansão do Estado europeu para o resto do mundo............... 19

2.3. Legitimidade .................................................................................. 22

2.4. Sistema Internacional ................................................................... 24

3. Guerra e Formação do Estado nos EUA .......................................... 27

3.1. Conquista da independência ........................................................ 27

3.1.1. Coerção ............................................................................................................... 28

3.1.2. Capital ................................................................................................................ 30

3.1.3. Legitimidade ...................................................................................................... 31

3.2. Guerra Civil: consolidação interna e projeção externa ............ 33

3.2.1. Coerção ............................................................................................................... 34

3.2.2. Capital ................................................................................................................ 37

3.2.3. Legitimidade ...................................................................................................... 41

3.3. Segunda Guerra Mundial e ascensão da superpotência ............. 45

3.3.1. Coerção ..................................................................................................................... 45

3.3.2. Capital ...................................................................................................................... 47

3.3.3. Legitimidade ............................................................................................................ 49

4. Guerra e Formação do Estado na África do Sul .............................. 51

4.1. Guerra Anglo-Bôer ....................................................................... 52

4.1.1. Coerção ............................................................................................................... 52

4.1.2. Capital ................................................................................................................ 56

4.1.3. Legitimidade ...................................................................................................... 58

4.2. Guerras de Fronteira sul-africana e fim do Apartheid ............... 62

4.2.1. Coerção ..................................................................................................................... 62

4.2.2. Capital ...................................................................................................................... 64

2.3. Legitimidade ............................................................................................................... 66

5. CONCLUSÃO ..................................................................................... 71

6. REFERÊNCIAS .................................................................................... 76

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1. INTRODUÇÃO

Após séculos de poder fragmentado durante o feudalismo europeu, iniciou-se um

processo de centralização política e militar por parte dos reis a partir do século XV, fato

que marcou o nascimento do Estado moderno. Entretanto, é importante salientar que

nem todos foram bem sucedidos: a grande maioria das tentativas de criar um Estado

falhou e das centenas de entidades autônomas existentes na Europa do século XV,

apenas algumas dezenas sobreviveram até o início do século XXI.

O triunfo nas guerras foi o elemento decisivo dos Estados que sobreviveram, já

que a maioria das unidades que desapareceram no decorrer desse tempo foi absorvida

pelos Estados que conseguiram construir forças militares eficientes. E esse é justamente

o papel fundamental da guerra na construção dos Estados: a formação de uma força

armada demanda um pesado fardo para a população (através de impostos, de

recrutamento, entre outras formas), mas se torna a forma como o governo impõe seu

desejo contra rígidas resistências. Além disso, uma força armada tende a promover

consolidação territorial, centralização e o monopólio dos meios de coerção, atributos

fundamentais para a construção de um Estado. Assim, a relação entre Estado e a guerra

deixa evidente a afirmação de Tilly (1975, p. 42, tradução nossa) de que “A guerra fez o

Estado e o Estado fez a guerra”. O caráter coercitivo também fica claro na clássica

definição weberiana de Estado como “uma comunidade humana que pretende, com

êxito, o monopólio legítimo da força física dentro de um determinado território”

(WEBER, 1982, p. 98).

Nesse contexto, entenderemos coerção como todos os meios que causem danos

existenciais, sejam de modo real ou através de ameaças, com o objetivo de consolidar os

interesses de uns apesar da resistência de outros. Assim, coerção é o meio fundamental

do Estado de garantir a sua sobrevivência (através das guerras) ou arrecadar tributos da

sua população. Da mesma forma, devemos entender capital como a totalidade de bens

que atribuem riqueza ao seu proprietário, como, por exemplo, posse de imóveis,

dinheiro ou ações financeiras.

A teoria de Tilly (1996), assim, relaciona os aplicadores de coerção com os

manipuladores de capital. As cidades, local onde se concentrou muito capital, recorriam

aos detentores de coerção para garantir a proteção de seus negócios, enquanto os

militares e estadistas recorriam ao capital gerado pelas cidades para manutenção e

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ampliação da força armada. Dessa relação surgiram diferentes tipos de Estado, de

acordo com a economia local. Em países com grande circulação de capital, o Estado

podia extrair através de taxas sobre o comércio, mas sofria forte oposição ao seu

controle direto sobre família e indivíduos, de forma que o Estado criou aparelhos

centrais menores e mais fragmentados; por outro lado, em países pouco

comercializados, a arrecadação através de taxas de comércio não gerava grandes

retornos e o Estado extraía seus recursos de forma direta, como através do recrutamento,

de forma que o Estado acabou criando pesadas máquinas fiscais e deu grandes poderes

aos controladores de recursos imediatos, como os grandes proprietários de terras.

Quando a guerra teve seus custos ampliados substancialmente1, a partir dos

séculos XIV e XV, os governantes puderam contar com o capital proveniente das

cidades e centralizar o poder, declarando criminoso o porte de armas para a maioria de

seus cidadãos e banindo os exércitos particulares, tão comuns durante a maior parte da

história europeia. A conquista do monopólio da força deu sentido à definição weberiana

de Estado e evidencia o ciclo de coerção, capital e formação do Estado. Enquanto os

impostos, a principal fonte de arrecadação dos Estados, financiavam os gastos militares,

as forças armadas garantiam a defesa ou expansão das fronteiras e o controle interno.

Durante essa época de centralização, as forças armadas também eram a maior fonte de

despesa do Estado, incentivando um aumento dos impostos e uma reforma tributária

(TILLY, 1975, p. 23-24); uma vez que como salienta Herbst (1990, p. 120-121), é

durante as épocas de guerra que o Estado consegue aumentar os impostos com menor

resistência da sua população – já que o conflito oferece grandes ameaças à segurança2 -

e esses impostos acabam por não retornar aos níveis ante bellum quando terminam as

hostilidades (MANN, 1986, p. 433).

A relação entre Estado e sociedade, porém, sofreu uma enorme alteração a partir

da Revolução Francesa. Com o fim do intermédio da nobreza entre Estado e sociedade,

o Estado ampliou suas capacidades e instituiu o governo direto através de um extenso

serviço burocrático. Essa mudança representou também uma grande intervenção do

Estado na vida das pessoas, e logo as legislaturas nacionais passaram a ser alvo de

1 Dentre as causas, cita-se o advento da pólvora e a valorização da infantaria, bem como o interesse de

formar um exército permanente (WALLERSTEIN, 1988 p. 28). 2 Segundo Herbst, com exceção da guerra não há nenhum outro tipo de crise que exija um aumento de

impostos com tanto vigor e que seja feito sem grande oposição. Além disso, como sugere o trabalho de

Ames e Rapp, o sistema tributário costuma ser regido por uma grande inércia (AMES; RAPP, 1977, p.

177; HERBST, 1990, p. 129).

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reivindicações por parte de grupos bem organizados que exigiam mais proteção,

aplicação de justiça, produção e distribuição; ampliando para muito além da guerra as

funções do Estado (TILLY, 1996, p. 172-181). E assim, haja vista a importância do

suporte dos cidadãos para o bom funcionamento do Estado, entenderemos legitimidade

como a aceitação da autoridade imposta.

Durante os últimos quinhentos anos e através dos mecanismos de coerção e

capital, os Estados nacionais europeus se consolidaram com base em fronteiras bem

definidas e reconhecimento mútuo. E, por meio da colonização e da conquista, a Europa

difundiu o sistema europeu de Estados por quase todo o globo, de forma que a grande

maioria dos países em desenvolvimento do presente, que possui um passado colonial,

herdou o aparelho colonial europeu, incluindo as fronteiras, e se tornou

majoritariamente coercitivo, já que as potências deixaram pouco capital aos seus

sucessores. Dessa forma, a lógica de coerção e capital, que fez o Estado prosperar na

Europa, já deixa de funcionar plenamente quando os novos Estados recebem ajuda

militar das grandes potências e, ao conseguirem empréstimos internacionais, deixam de

precisar contar com a tributação e recrutamento. Além disso, os Estados gerados pelo

colonialismo encontram grande resistência das sociedades e não conseguem extrair

recursos da sua população de forma eficaz.

Por meio de sua expansão para o resto do mundo, o Estado se consolidou como a

principal unidade do sistema internacional. Diante desse cenário, Gilpin (1981) analisa

como as unidades do sistema, os Estados, interagem entre si e como as guerras são

fundamentais para determinar as relações de poder dentro do Sistema Internacional;

sendo responsáveis tanto pela consolidação interna e fortalecimento estatal, quanto

pelas modificações na polaridade mundial e determinação de quais serão os Estados a

decretar as regras do sistema.

Assim sendo, ao percebermos África do Sul e Estados Unidos como dois países

com grandes semelhanças, por conterem um histórico de colonização onde a população

de colonos era de origem protestante, com disputas raciais e escravidão, além de terem

se tornado países atrativos para a imigração, o presente estudo busca entender como o

papel da guerra contribuiu para que os Estados Unidos se tornassem a grande potência

hegemônica da atualidade e a África do Sul permanecesse como uma potência regional

com grandes constrangimentos internos.

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A partir das análises de formação do Estado, deveremos analisar sua atuação

dentro do sistema internacional e de que modo as guerras ampliaram ou reduziram seus

mecanismos formativos. Supõe-se que a ausência de legitimidade interna atue como um

empecilho ao ciclo de coerção e capital, reduzindo assim o desempenho das forças

militares nas guerras e, consequentemente, promovendo um enfraquecimento das

capacidades estatais.

Os Estados Unidos, pela sua enorme capacidade militar, econômica, tecnológica

e por terem se tornado uma superpotência do sistema internacional desde a Segunda

Guerra Mundial, é um país cujas ações causam enormes impactos em todo o mundo. O

estudo de um país dessa relevância não é inovador, mas compará-lo a outros casos de

grandes semelhanças, como a África do Sul, contribui para um melhor entendimento

das dinâmicas do sistema internacional e da relação entre Estado e sociedade. Além de

se testar as teorias na prática, o estudo também dá ênfase para uma das mais importantes

atividades da história humana: as guerras. Como forma de solucionar a sede por poder

dos seres humanos, as guerras determinaram a história como o mecanismo decisivo para

determinar dominadores e dominados.

Trata-se de um estudo hipotético-dedutivo de procedimento histórico-

comparativo que adota a técnica de pesquisa bibliográfica. As teorias se fundamentam

nos debates da sociologia histórica sobre a Construção do Estado e também nas teorias

de mudanças sistêmicas para a análise de interação dos Estados no sistema

internacional. De forma geral, serão utilizados dados qualitativos, mas dados

quantitativos serão usados como forma de tentar medir capacidades estatais, como por

exemplo, a população dos Estados, a porcentagem urbana da população, índices de

produção econômica e Forças Armadas.

Dessa forma, no primeiro capítulo buscaremos um aprofundamento na teoria

sobre a formação do Estado, como ele extrai recursos da sua população, como ele se

mantém e como ele interage dentro do sistema internacional. A análise teórica, que

começa com a formação dos Estados europeus, é de fundamental importância para a

compreensão dos conceitos de coerção e capital. Além disso, também buscaremos na

teoria entender por que esses mecanismos não estão fortalecendo os Estados da África,

Ásia e América Latina.

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Assim, no segundo capítulo, avaliaremos o Estado norte-americano com base

nas três variáveis: capital, coerção e legitimidade. Considerando as guerras como fatores

decisivos, a história foi dividida em três períodos com base em momentos

fundamentais: (1) a guerra de independência, onde os norte-americanos conquistaram

sua independência política e fortalecimento relativo na região (potência regional); (2) a

Guerra Civil, onde os Estados Unidos se consolidaram internamente, eliminaram as

ameaças de secessão e projetaram-se inter-regionalmente (grande potência); (3) a

Segunda Guerra Mundial, onde os Estados Unidos assumiram a hegemonia do sistema

internacional e passaram a decretar suas ordens através do sistema ONU, do seu poderio

militar e do domínio da economia global (superpotência). Em função do objetivo do

trabalho, não avaliaremos as variáveis norte-americanas depois de se tornar uma

superpotência.

No terceiro capítulo, estudaremos o Estado sul-africano a partir das mesmas

variáveis que o capítulo anterior e o dividimos em dois marcos históricos: (1) a guerra

anglo-bôer, que determinou a unificação do território, o sistema político e fundou o

fortalecimento relativo na região (potência regional); e (2) as guerras sul-africanas de

fronteira, tentativa sul-africana de garantir a hegemonia da África austral, a

sobrevivência do regime branco e projetar-se inter-regionalmente (grande potência). Em

decorrência da incapacidade da África do Sul de alcançar a vitória sobre as tropas

cubanas e angolanas, o regime iniciou o processo de transição política que terminaria

com a eleição de Nelson Mandela à presidência do país em 1994.

Assim, poderemos perceber que a África do Sul teve um desequilíbrio muito

consistente entre coerção, capital e legitimidade; algo que prejudicou consideravelmente

o desempenho do país na sua tentativa de garantir a hegemonia regional. Somado a isso

as divisões étnicas da população sul-africana, muito mais do que nos Estados Unidos,

contribuíram para que a guerra não se tornasse um elemento de fortalecimento do

Estado e sim de enfraquecimento. Além disso, é importante notarmos que os Estados

Unidos iniciaram sua industrialização muito mais cedo do que a África do Sul e no

momento que houve as Guerras Mundiais, os Estados Unidos puderam se beneficiar

muito mais economicamente do que os sul-africanos. Com isso, os Estados Unidos

conseguiram ampliar suas capacidades no decorrer do tempo e, quando o momento

favoreceu, tornou-se a superpotência e passou a decretar as leis do sistema

internacional.

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2. A CONSTRUÇÃO DOS ESTADOS EUROPEUS

O modelo de Estado europeu disseminou-se ao longo da história e serviu como

base das organizações formais que deram origem a grande parte dos Estados

contemporâneos. Além de sua capacidade de articular coerção e capital, o fato de que a

maior parte do planeta esteve sob domínio europeu até o século XX e de que, ao

conquistarem a independência, os novos Estados do terceiro mundo herdaram o

aparelho colonial a qual estavam submetidos (TILLY, 1996, p. 274), o que contribuiu

para a propagação do modelo de Estado nacional sobre o globo.

A partir da queda do Império Romano surgiram três tipos de Estado que

divergiram consideravelmente em suas características: 1) os impérios, com grandes

aparelhos militares e extrativos que se baseavam na cobrança de tributos, mas

entregavam a administração aos detentores de poder regionais, os quais obtinham

grande autonomia; 2) os sistemas de soberania fragmentada, como cidades-Estado e

federações urbanas, que possuíam grande quantidade de capital, mas pouco território e

população; e (3) o Estado nacional, que conseguiu unir, numa estrutura centralizada, a

administração militar, extrativa e até distributiva e produtiva. O Estado nacional

constitui-se assim como um conjunto de um vasto território, mas não tanto a ponto que

não possa ser controlado; uma grande população rural, necessária para grandes

exércitos, e uma economia capaz de sustentar as progressivas despesas que uma guerra

exigia (TILLY, 1996, p. 112). Estas características contribuíram para o Estado nacional

prevalecer perante os outros tipos de Estado, e não por ser o ponto final de uma

trajetória evolutiva3.

A longa sobrevivência e coexistência dos três tipos de Estado nega qualquer

ideia de que a formação do Estado europeu constitui um processo isolado e

unilinear, ou de que o Estado nacional – que na verdade acabou prevalecendo

– é uma forma de governo inerentemente superior (TILLY, 1996, p. 69).

Durante os últimos quinhentos anos, esses Estados nacionais europeus se

consolidaram com base em fronteiras bem definidas e reconhecimento mútuo. Além

disso, por meio da colonização e da conquista, a Europa difundiu o sistema europeu de

Estados por quase todo o globo, incluindo África do Sul e Estados Unidos. Como

aponta Tilly (1996, p. 260), “a criação primeiramente da Liga das Nações e, depois, das

3 Por volta de 1420, por exemplo, as cidades-Estado do norte da Itália conquistaram um extraordinário

acúmulo de capital, com receitas das comparáveis aos dos mais bem sucedidos Estados da Europa

ocidental (ARRIGHI, 2000, p. 39).

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Nações Unidas apenas ratificou e racionalizou a organização de todos os povos da terra

num único sistema de Estado”.

Diante de tal cenário, uma profunda exploração dos processos de construção do

Estado na Europa torna-se de grande ajuda para compreender os Estados que se

originaram desse modelo. O presente capítulo, portanto, se divide em quatro partes: a

primeira apresenta o referencial teórico sobre o processo de formação do Estado na

Europa. A segunda parte ressalta que a incorporação do modelo de Estado europeu por

parte dos Estados do terceiro mundo apresentou peculiaridades que os diferenciam da

trajetória europeia e que a compreensão destas é essencial para evitar comparações

equivocadas. A terceira parte busca observar a importância da legitimidade, tanto

doméstica quanto internacional, para o fortalecimento do Estado. E por fim, a quarta

seção apresenta a teoria sobre o Sistema Internacional, já que, uma vez estabelecida a

sua unidade (os Estados), é de fundamental importância compreender de que maneira

essas unidades se relacionam, e como elas se articulam a fim de promover alterações no

mesmo.

2.1. A lógica da construção do Estado

Uma análise simples da história europeia mostra que a grande maioria dos

Estados acabou desaparecendo no decorrer do tempo. As centenas de Estados que

existiam no século XVI transformaram-se em apenas algumas dezenas durante o século

XXI; sendo que a grande maioria destes que deixaram de existir foram absorvidos por

outros Estados mais poderosos através das guerras. Dito isto, se a continuidade do

Estado era determinada pelo seu sucesso nas guerras, percebe-se que a sua própria

existência era completamente dependente da sua força militar. O papel da guerra, assim,

é tão importante para o processo de construção do Estado que Tilly (1975, p. 42,

tradução nossa) afirma que “a guerra fez o Estado e o Estado fez a guerra” 4.

Se a sobrevivência do Estado depende de uma eficiente máquina de guerra,

capaz de garantir ao mesmo a sua sobrevivência e, eventualmente, expansão; a

construção dessa força armada depende de dois recursos elementares: a coerção e o

capital.

4 “War made the state, and the state made war”.

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A história diz respeito ao capital e à coerção. Narra os recursos que os

aplicadores de coerção, que desempenharam um papel importante na criação

dos Estados nacionais, extraíram, para os seus propósitos, dos manipuladores

de capital, cujas atividades geraram as cidades (TILLY, 1996, p. 63).

Na Europa surgiram dois grandes grupos especialistas em coerção5: os soldados

e os grandes proprietários de terras (os nobres da era feudal). Esses grupos

estabeleceram a dominação do continente através de meios violentos – seja por forças

armadas, sejam por prisões, expropriações, humilhações e ameaças. Assim, segundo

Tilly (1996, p. 67-69), a guerra induz à formação e transformação do Estado; uma vez

que os aplicadores de coerção, ao conquistar determinado território, se envolvem na

administração das terras, pessoas e dos bens da região conquistada, o que

ocasionalmente cria interesses que são contrários à guerra. Além disso, em casos de

conquistas de grandes dimensões, muitas vezes a infraestrutura e administração dos

novos territórios exigem manutenções muito maiores do que a capacidade dos

governantes, gerando novos grupos de poder com interesses próprios.

A partir do declínio e consequente queda do Império Romano ocidental, a

Europa passou por um período conturbado de grandes conquistas territoriais. Como

consequência da ausência de infraestrutura, a administração dos territórios foi

consideravelmente fragmentada na Alta Idade Média e os donos de terras concentraram

o poder durante o auge do feudalismo6. Durante esse período, a população europeia era

majoritariamente agrária7 e a nobreza, isenta de controle, de impostos e livre para

controlar e cobrar taxas dos camponeses, muitas vezes fazia uso da máquina estatal em

benefício próprio, principalmente quando reis e imperadores não desempenhavam bem

a sua função. Entretanto, a partir de 1150 d.C., o aumento da produção agrícola, que até

então ia pouco além da subsistência, permitiu um renascimento da urbanização e

também o surgimento da classe mercantil europeia – que em contrapartida aos senhores

de terras detentores de coerção, tornaram-se os detentores de capital.

5Os meios coercitivos são uma combinação de recursos humanos e armas. Os Estados acabaram tendo

certa vantagem para concentrar a coerção e impedir que outros grupos o façam, pois (1) a produção de

armas exige conhecimento, materiais raros e capital abundante; (2) poucos grupos dispõem da capacidade

de mobilizar grandes quantidades de soldados e; (3) poucas pessoas conhecem como combinar homens e

armas no campo tático e estratégico (TILLY, 1996, p. 108). 6 Podemos entender como feudalismo o sistema de organização política onde todas as funções executivas

da sociedade – econômica, judicial, administrativa e militar – eram exercidas pelos mesmos indivíduos.

Comparado com o Estado moderno, o Estado feudal era fragmentado em diversas mãos que se

relacionavam por obrigações feudais feitas pessoalmente (TILLY, 1975, p. 87). 7 A estrutura urbana sofreu um declínio gradual desde antes do início das invasões bárbaras (BRAUDEL,

1985, p. 510)

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Em harmonia com os feudos, as cidades cresceram reproduzindo a hierarquia

política e social vigente durante o feudalismo (BRAUDEL, 1985, p. 510;

WALLERSTEIN, 1988, p. 18). Contudo, as vantagens oferecidas pelas cidades8

favoreceram o surgimento de mercadores, guildas, comércio de longas distâncias,

indústrias e bancos. Ao gerarem acúmulo e concentração de capital, as principais

cidades se tornaram determinantes para suas respectivas vizinhanças9 e quebraram os

vínculos com a estrutura social rural, tornando-se forças organizacionais autônomas

(BRAUDEL, 1985, p. 511; TILLY, 1996, p. 65).

O aumento da urbanização alterou significativamente a relação entre

governantes e governados, pois as técnicas de controle, estratégias fiscais, demandas de

serviços e a política foram modificadas (TILLY, 1996, p. 101-115). O mercado que as

grandes cidades ofereceram aos seus arredores rurais estimulou a agricultura comercial,

fato que favoreceu os comerciantes e produtores, mas enfraqueceu significativamente os

grandes senhores de terras10. Quanto maior esse impacto demográfico sobre o interior,

bem como a extensão do acúmulo de capital, a sua influência e a sua população, maior

era a autonomia das classes dirigentes da cidade e maior era a resistência à penetração

dos Estados nacionais.

Apesar disso, a relação entre cidades e os Estados europeus se tornou

indispensável: os capitalistas das cidades recorreram aos detentores da coerção para

garantir proteção às suas atividades comerciais, ainda que temessem desvios de recursos

para financiar conflitos; por outro lado, o Estado e os militares dependiam do capital das

cidades para sustentar a força armada, ainda que se preocupassem com a resistência que

as cidades ofereceram ao domínio do Estado. Estabeleceu-se assim, até o século XIX,

uma confusa relação de proteção em troca de capital (TILLY, 1996, p. 113).

Os senhores feudais, que até então eram os detentores do poder, evidentemente,

jamais apoiariam um fortalecimento do poder central se não se deparassem com alguns

8 Cidades reduziram custos de transações e permitiram especialização das atividades econômicas,

facilitando o comércio, o armazenamento e os negócios bancários (TILLY, 1996, p. 65;

WALLERSTEIN, 2011, p. XVI). 9 Nas vizinhanças de cidades ativas, o cultivo se tornou mais intenso, incentivando os produtores a

destinarem uma maior parcela de suas safras para o mercado. Além disso, o crescimento urbano

estimulou a melhoria dos meios de transporte, servindo assim de causa e efeito da urbanização. Por fim,

houve diversos movimentos que pressionaram as pessoas a largarem os campos e migrarem para as

cidades, transformando as regiões circunvizinhas em novos aglomerados urbanos. (TILLY, 1996, p. 66). 10

Há uma exceção quando a classe dirigente da cidade também possuía grandes posses de terras no

interior, nesse caso os senhores ganharam força significativa, algo comum nas cidades-estado italianas.

(TILLY, 1996, p. 101).

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16

problemas econômicos11 que ocorreram no século XIV e XV e, principalmente, com o

surgimento de inovações que alteraram o modo de fazer a guerra. O advento da pólvora

e a valorização da infantaria12 aumentaram substancialmente os custos da guerra, bem

como o interesse de formar um exército permanente.

À medida que o sistema medieval entrava em crise, o novo sistema capitalista

nascia nas cidades-Estado da Itália setentrional, como Florença e Veneza, promovendo

uma extraordinária concentração de capital nas mãos dos capitalistas italianos. Arrighi

(2000, p. 38) aponta como o equilíbrio de poder foi fundamental para a sobrevivência

do enclave capitalista e se tornou, posteriormente, uma das bases do sistema de Estados

na Europa. Além disso, fez surgir as representações diplomáticas permanentes, como

forma de manipular o equilíbrio de poder e reduzir os custos de proteção.

Os séculos XVI e XVII marcaram o triunfo do Estado nacional sobre as cidades-

Estado e impérios na Europa. Enquanto Portugal e Espanha buscaram novas rotas para o

lucrativo comércio entre Europa e Extremo Oriente13, o Império Otomano conquistava o

Mediterrâneo oriental, de forma que ambos os acontecimentos acabaram com o

monopólio das cidades italianas desse comércio. Além disso, disputas dinásticas entre

França e Espanha tornaram a Itália palco das Guerras Italianas e reduziram as então

prestigiosas cidades a meros prêmios muito cobiçados, incapazes de fazer frente à

ameaça externa. Por fim, a tentativa imperialista da casa dos Habsburgos e do papado

foi derrotada na Guerra dos Trinta Anos, emergindo o novo sistema mundial de governo

com Estados soberanos, reconhecidos e com territórios mutuamente excludentes,

sistema que vigora até a atualidade (ARRIGHI, 2000, p. 36-43; MCNEILL, 1982, p. 63-

91). Assim, as fronteiras geográficas fixas do Estado moderno se sobressaíram perante

as estruturas territoriais dos Impérios e das cidades-Estado, marcadas pela ambição

universalista e trocas de mercado, respectivamente. Como aponta Spruyt (2007, p. 212),

11

Houve um declínio acentuado da população e uma alta nos preços na Europa do século XIV que foi

causado pelas guerras (como a Guerra dos cem anos), fome e epidemias (como o grande surto da peste

negra de 1348) (WALLERSTEIN, 1988). 12

A guerra medieval era muito baseada nos cavaleiros, mas depois uma infantaria disciplinada se tornou

o cerne dos exércitos (WALLERSTEIN, 1988 p. 28). 13

Esse também foi o início da expansão europeia pelo mundo. Além disso, As reformas militares criadas

por Maurício de Nassau durante a guerra dos Oitenta Anos, inspiradas nas antigas legiões romanas,

provaram ser imensamente superiores às demais práticas militares europeias. Como não permaneceram

em sigilo, as técnicas de treinamento militar de Nassau rapidamente se espalharam pela Europa, fazendo

com que as forças militares europeias, mesmo em menor número, demonstrassem uma grande

superioridade quando confrontavam com outros povos. Como resultado disso; as grandes companhias

comerciais europeias na Índia e na Indonésia passaram a controlar e governar os territórios (MCNEILL,

1982, p.126-135)

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17

essa característica de fronteiras bem definidas precedeu outras características do Estado

moderno, como administração racional, capacidade fiscal e lealdade nacional.

Wallerstein (1988, p. 29-32) destaca ainda que foram dentro dessas fronteiras que

futuramente seriam construídos os sentimentos nacionalistas.

A partir do século XVII, os Estados europeus passaram a monopolizar e

controlar a coerção14. Governantes contaram com o capital gerado pelas cidades

enquanto centralizaram o poder, declarando criminoso o porte de armas para a maioria

de seus cidadãos e banindo os exércitos particulares, tão comuns durante a maior parte

da história europeia. Tilly (1996, p. 125 e 126) salienta que os Estados conquistaram o

monopólio da coerção de formas diferentes, sendo através da cooptação ou da guerra

civil em regiões dominadas pelos grandes proprietários de terras ou através de

negociações com autoridades municipais e policiamento dentro das regiões urbanas, por

exemplo.

A conquista do monopólio da força15 deu sentido à clássica definição weberiana

de Estado como “a comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso

legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 1982, p. 98); e

tornou relevante e distinta a política “interna” e “externa”, que até então se

confundiam16. Além disso, como aponta Wallerstein (1988, p. 136), os reis, na época os

gestores da máquina estatal, se utilizaram do capital proveniente das cidades para

aumentar a centralização do poder e controle interno através de outros três elementos:

burocratização, criação de legitimidade e homogeneização da população.

Quando a acumulação e a concentração dos meios coercivos se desenvolvem

juntos, produzem Estados; produzem organizações distintas que controlam os

principais meios concentrados de coerção dentro de territórios bem definidos,

14

Spruyt (2007, p. 212) alega que a monopolização da violência só pode acontecer se os governos são ao

menos parcialmente legítimos; além disso, está relacionada com a habilidade do governo central em

estabelecer uma administração eficiente com capacidade de arrecadar impostos (SPRUYT, 2007, p. 212).

Wallerstein (1988, p. 29-32) salienta o papel dos impostos no fortalecimento do Estado por ser uma fonte

de renda sem efeitos negativos a longo termo, além de reduzir a receita dos nobres e criar a necessidade

de fronteiras bem definidas. 15

Na maior parte da história europeia era normal que homens comuns possuíssem armas letais; além

disso, também era habitual que detentores de poder local ou regional controlassem meios concentrados de

força que muitas vezes poderiam igualar ou até mesmo sobrepujar as forças do Rei. (TILLY, 1996, p.

125). 16

Durante a Idade Média era impossível distinguir atores exercendo política internacional e doméstica.

Uma complexa rede de bispados, nobres, reis, imperadores e cidades exerciam simultaneamente a

reivindicação da jurisdição de um mesmo território, de forma que ocupantes de um espaço em particular

eram subordinados a diversas autoridades. Como todos esses atores assinavam tratados e engajavam em

conflitos independentemente, nenhum possuía o monopólio da força. É válido ressaltar que durante esse

sistema, a Teoria Neorealista de anarquia internacional fica prejudicada pela ausência de unidades

distintas com esferas mutuamente exclusivas de jurisdição (SPRUYT, 1994, p. 12,13).

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e em alguns aspectos exercem prioridade sobre todas as outras organizações

que operam dentro desses territórios (TILLY, 1996, p. 68).

O desenvolvimento de um Estado centralizado motiva o cultivo do sentimento

nacionalista. Para Wallerstein (1988, p. 146), inicialmente seria possível dizer que os

Estados eram contrários ao nacionalismo, já que suas fronteiras incluíam povos de

diferentes nacionalidades, e, que, apenas nos séculos XVIII e XIX, o nacionalismo

encontrou seus verdadeiros defensores dentro da burguesia17

. A partir de então, como

aponta Arednt (2013, p. 191), o nacionalismo se tornou um precioso aglutinante que

uniu o Estado centralizado com uma sociedade atomizada ao transformar o Estado em

instrumento da nação e o cidadão se identificando como seu membro.

As vantagens obtidas pelo rei no final da idade média com a sua centralização,

burocratização e disponibilidade de capital permitiram que o Estado pudesse aumentar

os impostos18 e contrair empréstimos. Em regiões com grande acúmulo e concentração

de capital, os Estados usaram essas receitas cada vez maiores para aumentar seu poder

coercitivo. Segundo Wallerstein (1988, p. 138), isso possibilitou a existência de dívidas

nacionais, ou seja, déficit nos orçamentos do Estado – algo inexistente até então, já que

para isso o Estado deve possuir a capacidade de realizar atrasos no pagamento –

forçando os indivíduos a esperar - ou mesmo se recusar a pagar, enquanto obriga grupos

a emprestar os excessos de circulantes.

Esse processo de monopolização da força e fortalecimento do Estado evidencia o

ciclo de coerção, capital e formação do Estado. Enquanto os impostos, a principal fonte

de arrecadação dos Estados, financiavam os gastos militares, as forças armadas

garantiam a defesa ou expansão das fronteiras e o controle interno. Durante essa época

de centralização, as forças armadas também eram a maior fonte de despesa do Estado,

incentivando um aumento dos impostos e uma reforma tributária (TILLY, 1975, p. 23-

24). Além disso, como salienta Herbst (1990, p. 120-121), durante as épocas de guerra é

quando o Estado consegue aumentar os impostos com menor resistência da sua

população – já que o conflito oferece grandes ameaças à segurança19 - e esses impostos

17

Apesar disso, o sólido interesse da burguesia holandesa em conquistar a sua independência dos

Habsburgos espanhóis, criou um sentimento que Arrighi (2000, p. 45) chama de protonacionalismo. 18

“Impostos se compõe de cinco categorias amplas: tributos, rendas, impostos sobre a circulação, taxas

sobre os estoques e impostos sobre a renda”. (TILLY, 1996, p. 147) 19

Segundo Herbst, com exceção da guerra, não há nenhum outro tipo de crise que exija um aumento de

impostos com tanto vigor e que seja feito sem grande oposição. Além disso, como sugere o trabalho de

Ames e Rapp, o sistema tributário costuma ser regido por uma grande inércia (AMES; RAPP, 1977, p.

177; HERBST, 1990, p. 129).

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19

acabam por não retornar aos níveis ante bellum quando terminam as hostilidades

(MANN, 1986, p. 433), possibilitando assim uma ampliação da arrecadação estatal.

Assim, a partir da interação entre coerção e capital é possível analisar os

diferentes tipos de Estados que se formaram. Em regiões com intensa aplicação de

coerção e pouca circulação de capital, os governantes extraíam recursos para a guerra

através da requisição direta e do recrutamento, uma vez que os impostos sobre o

comércio geravam poucos retornos, situação que deu origem a pesadas máquinas fiscais

e uma maior concentração de poder a quem controlava os recursos essenciais,

geralmente os grandes proprietários de terras. Por outro lado, em economias com grande

circulação de capital, a presença dos capitalistas e de organizações municipais, ao

mesmo tempo em que reduziu drasticamente o controle do Estado sobre os indivíduos,

possibilitou uma maior arrecadação através de impostos aplicados sobre as atividades

comerciais (TILLY, 1996, p. 161).

Diante disso percebe-se que a guerra representou um papel fundamental no

processo de construção do Estado. Ao promover a guerra para neutralizar seus rivais

externos, tornou-se necessário a obtenção de capital financeiro e humano, o que fez com

que o Estado fizesse uso do seu poder de coerção para extrair tais recursos de sua

população. É necessário ressaltar, contudo, que essa extração não se deu sem a

resistência popular, o que forçou o Estado a promover concessões, como a garantia de

direitos e a criação de instituições (TILLY, 1985, p. 181-183). Assim, as guerras, na

construção do Estado, atuaram como um vínculo entre a sociedade e o mesmo,

contribuindo tanto para o fortalecimento da capacidade estatal, quanto para a sua

consolidação como unidade central do Sistema Internacional.

2.2. Expansão do Estado europeu para o resto do mundo

O processo de formação dos Estados nos países em desenvolvimento apresenta

suas peculiaridades quando comparado à trajetória europeia. A grande maioria dos

países em desenvolvimento herdou o aparelho colonial europeu, incluindo as fronteiras,

sendo este, contudo, majoritariamente coercitivo, uma vez que as potências coloniais

deixaram pouco capital aos seus sucessores e o desenvolvimento do mesmo se deu em

função de promover o controle da colônia. Sendo assim, nos países em

desenvolvimento, segundo Tilly (1996, p. 283), as mesmas forças armadas que antes

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20

eram utilizadas para manter a administração local, acabaram se especializando muito

mais no controle das populações civis e nos combates aos insurgentes do que às guerras

entre Estados20.

Os principais detentores do poder se opuseram à transformação da

organização governamental existente ou distorceram-na, os funcionários

públicos usaram o poder do Estado para satisfazer os seus próprios objetivos,

os partidos políticos se tornaram veículos dos blocos étnicos ou dos vínculos

patrão-cliente, as empresas dirigidas pelo Estado entraram em colapso, os

líderes carismáticos eliminaram a política eleitoral de estilo ocidental, e

muitas outras características dos Estados do Terceiro Mundo contestaram os

modelos ocidentais (TILLY, 1996, p. 275).

Desde o início das independências de países africanos, os líderes reconheceram

um alto potencial de grupos separatistas, que buscam a independência ou desejam se

juntar a outro país. Em detrimento disto, propuseram, na Organização da África Unida

em 1963, que qualquer alteração nas fronteiras coloniais seria ilegítima. Esse sistema,

juntamente com o sistema ONU, se tornou tão eficiente que evitou as guerras de

conquista, tão comuns na Europa do passado, de forma que poucos Estados em

desenvolvimento sintam qualquer ameaça externa (HERBST, 1990, p. 124).

Em contraste com a experiência europeia, a ausência de conflitos externos

dificulta consideravelmente a reforma no sistema tributário, já que, além da guerra, é

muito difícil ter outro motivo que faça o cidadão aceitar um aumento de impostos.

Herbst (1990, p. 130) salienta ainda que guerras civis não conseguem ampliar a

extração, já que o crescimento do Estado moderno não é explicado pelo ambiente

doméstico e sim em relações geopolíticas de violência.

A guerra na Europa desempenhou um papel importante na evolução do

mecanismo do Estado e na relação entre sociedade e Estado porque é de uma

dificuldade extraordinária, fora de tempos de crise, reformar partes

elementares do sistema governamental, como os meios de tributação ou uma

verdadeira mudança na identidade nacional (HERBST, 1990, p. 128,

tradução nossa)21

.

Além disso, a garantia jurídica da soberania estatal, propiciada pela ampliação

do Direito Internacional, pôs fim ao temor de ser conquistado e desaparecer do mapa,

algo vivenciado pela maioria dos Estados europeus. Tal fato, somado aos problemas

20

Uma característica das forças armadas coloniais era um padrão de recrutamento instituído pelas

potências, de forma que recorriam a um determinado grupo étnico, linguístico ou religioso para compor as

fileiras do exército colonial. Algo que se tornou o instrumento de grandes rivalidades étnicas (TILLY,

1996, p. 283). 21

“War in Europe played such an important role in the evolution of the state mechanism and society's

relationship with the state because it is extraordinarily difficult, outside times of crisis, to reform

elemental parts of the governmental system, such as the means of taxation, or to effect areal change in

national identity”.

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21

internos relacionados à identidade e ausência de nacionalismo, fez com que as forças

armadas muitas vezes deixassem de se preocupar com a defesa para controlar a

infiltração, concentrando-se cada vez mais na repressão às populações civis e no

combate aos insurgentes. Em países da Ásia e África, que conquistaram a independência

após 1945, iniciaram-se diversas guerras civis em detrimento de reivindicações de

autonomia ou controle do Estado por grupos marginalizados. O cenário da Guerra Fria

incentivou as grandes potências a intervirem consideravelmente mais nos conflitos,

apoiando facções simpáticas em troca de cooperação (TILLY, 1996, p. 286).

Entretanto, o mecanismo de coerção e capital é questionado como solução para o

fortalecimento do Estado nos países em desenvolvimento. Uma análise sobre o papel da

guerra para arrecadação de capital, fortalecimento das forças armadas e construção do

Estado em uma comparação entre Vietnã e Afeganistão nas guerras contra as grandes

potências da guerra fria (Estados Unidos e URSS, respectivamente), demonstra que dois

fatores chave contribuíram para o fortalecimento do Estado no Vietnã e que são

ausentes no Afeganistão: um núcleo étnico (o mais importante) e a combinação de

guerra e revolução, fator que auxilia na unificação de uma ideologia nacional. Segundo

Taylor e Botea (2008), a guerra nos países em desenvolvimento sem esses elementos

leva os Estados ao enfraquecimento.

O mecanismo de coerção e capital que fez o Estado prosperar na Europa não se

torna mais tão eficiente quando aplicado aos novos Estados. Ao receberem ajuda militar

das grandes potências e deixarem de precisar da tributação e do recrutamento para o

estabelecimento de suas forças armadas; o vínculo entre sociedade e Estado se

enfraquece. Em seu estudo sobre a construção do Estado na América Latina, Centeno

(1997) mostra como a presença dos conflitos não criou Estados capacitados. As fontes

alternativas de capital, como empréstimos internacionais, substituíram os impostos e os

países da região deixaram de ampliar sua extração dos recursos domésticos. Além disso,

no momento em que ocorreram os conflitos (a maioria no pós-independência), os

Estados latino americanos ainda não estavam preparados estruturalmente, politicamente

e ideologicamente para colherem as oportunidades da guerra. Não obstante, Centeno

(1997, p. 1578) apresenta como as dívidas feitas pelas guerras na América Latina foram

financiadas através das exportações de royalties, sem que houvesse um aumento da

extração dos Estados latino-americanos por meio de impostos domésticos. A destruição

da economia e o início da dívida dos países tornou a ascensão de uma burguesia

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22

nacional muito mais difícil e os Estados da América Latina nunca conseguiram impor

uma união interna, essencial para o processo de extração, mesmo com a ameaça externa

existente (CENTENO, 1997, p. 1583).

Os casos da América Latina sugerem que existem três pré-requisitos cruciais

para o desenvolvimento institucional auxiliado pela guerra. Em primeiro

lugar, os Estados relevantes devem ser forçados a se voltarem para dentro, de

forma a enfrentar os desafios financeiros da guerra. Em segundo lugar,

devem existir mecanismos administrativos adequados para gerenciar a

explosão tanto em receitas quanto despesas. Em terceiro lugar, o Estado

central já deve ter estabelecido a sua soberania sobre o território e deve ser

apoiado por atores locais de forma a tornar a extração doméstica rentável

(CENTENO, 1997, p. 1569, tradução nossa)22

.

Desse modo, Centeno (2002, p. 106) destaca a importância da resistência social

frente à penetração do Estado. Nesses casos, a combinação de coerção e capital,

representada pelo recrutamento militar e impostos, não funciona apenas porque existe

um aparelho burocrático; a capacidade do Estado de extrair recursos está diretamente

relacionada à vontade da população em aceitar essas imposições. Assim, a capacidade

estatal não é uma questão apenas de força, mas também o potencial das sociedades de

resistirem ou apoiarem a invasão do Estado.

2.3. Legitimidade

Dentro das ciências sociais e políticas o conceito de legitimidade é um dos mais

confusos e de difícil definição (HARDIN, 2007, p. 238). Todavia, a importância da

análise de legitimidade é atribuir uma ênfase nas relações entre Estado e sociedade e

entender como esta contribui para a formação da política do Estado. Assim, como

aponta Seabrook (2002, p. 3, tradução nossa), analisar a “legitimidade nos permite

visualizar as ações do Estado como sendo mais do que respostas funcionais às restrições

impostas pelo anárquico sistema internacional” 23.

Porém, antes de analisarmos essa relação entre governantes e governados, é

fundamental diferenciarmos o respeito, o consentimento e a legitimidade. O monopólio

22

The Latin American cases suggest that there are three critical prerequisites for institutional

development aided by war. First, the relevant states must be forced to turn inward in order to meet the

financial challenges of war. Second, adequate administrative mechanisms must be in place to manage the

explosion in both revenues and expenditures. Third, the central state must have already established

sovereignty over its territory and must be supported by enough local actors as to make domestic

extraction profitable. 23

“Legitimacy allows us to view state action as more than a functional response to constraints imposed by

an international anarchical system”.

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23

da força, de fato, impõe respeito e consentimento através da coerção. Segundo Hardin

(2007, p. 236-237), em geral, a relação entre cidadãos e seus governos se baseiam

principalmente na aquiescência. Todavia, a legitimidade é algo praticamente pessoal e

emocional – “uma noção moral que não pode ser reduzida para um interesse próprio

racional” (BUCHANAN; KEOHANE, 2006, p. 409, tradução nossa). Em tempos de

guerra, porém, o objetivo das pessoas e dos governos costuma ser o mesmo, que é o de

vencer e sobreviver à guerra; nesse caso é plausível que um governo seja legítimo a

quase todos dentro do país. Por outro lado, em termos de revoltas populares, até a

aquiescência fica em questão, mas é extremamente difícil para uma população se

organizar contra seu próprio governo, principalmente se ele funciona razoavelmente

bem e ainda consegue manter a ordem – nesse sentido, como apontam Buchanan e

Keohane (2006, p. 410), é importante que a autoridade imposta, para manter-se estável,

seja fundamentada em elementos além do medo da coerção; a África do Sul e o

Apartheid, nesse sentido, falharam miseravelmente.

Assim, tendo em vista a dificuldade de trabalhar com algo tão abstrato como o

sentimento individual, ainda que fundamentais para a estrutura de domínio (WEBER,

1982, p. 99), adotaremos duas abordagens distintas da legitimidade: no âmbito

doméstico e dentro do sistema internacional. Internamente, consideraremos a

legitimidade como sendo a relação entre Estado e a sua população, algo diretamente

relacionado com autoridade e dominação (TILLY, 1985, p. 171) – trata-se de uma

interpretação neo-weberiana de legitimidade que se preocupa em como o governo

funciona e se mantém. Dessa forma, a força relativa do Estado perante a sociedade e a

sua capacidade de alterar a distribuição de recursos, atividades e conexões interpessoais

é definida como Capacidade Estatal. Esse conceito nos permite vincular poder nacional

com democracia, já que uma reduzida capacidade estatal representa uma fraqueza do

Estado, ao passo que uma capacidade muito alta representa uma excessiva autonomia do

Estado (CASTELLANO, 2012, p. 2-3; TILLY, 2007, p. 16).

Historicamente, o Estado nacional sofreu uma grande ampliação de suas

capacidades durante a Revolução Francesa. Se até então os Estados funcionavam de

forma indireta, com os reis negociando com os grandes proprietários de terras, os

revolucionários parisienses se viram diante da ausência desses intermediários. O mapa

da França foi, então, reformado em um sistema cheio de departamentos, distritos,

cantões e comunas, enquanto que emissários do governo revolucionário eram enviados

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24

por todo o território; criaram assim o sistema de governo direto. O governo direto

estabeleceu uma gigantesca expansão do Estado e uma invasão sem igual na vida das

pessoas – através da formação de uma imensa rede de funcionários organizados para o

funcionamento do seu serviço burocrático e de imensos exércitos de cidadãos, como o

das Guerras Napoleônicas. Logo, as legislaturas nacionais passaram a ser alvo de

reivindicações por parte de grupos bem organizados que exigiam mais proteção,

aplicação de justiça, produção e distribuição, ampliando para muito além da guerra as

funções do Estado (TILLY, 1996, p. 172-181).

Dentro do sistema internacional, porém, o conceito de legitimidade se torna de

mais fácil compreensão. Nesse contexto, legitimidade implica que as estruturas da

ordem internacional são aceitas por todas as grandes potências (ou que pelo menos

nenhuma seja tão contrária). Assim, como aponta Kissinger (1957, p. 1-2 apud GILPIN,

1981, p. 12, tradução nossa), “uma ordem legítima não torna os conflitos impossíveis,

mas limitam seu escopo” 24. O Estado ou coalizão de Estados que criam as estruturas,

segundo Gilpin (1981, p. 34), serão aceitos como legítimos devido a três fatores: (1) o

“direito de governar” o sistema foi conquistado através de uma guerra e o Estado

dominante demonstrou capacidade o bastante para fazer cumprir sua vontade sobre

outros; (2) a regra da potência dominante oferece vantagens, como benefícios

econômicos e securitização internacional; e (3) a posição da potência hegemônica

costuma ser apoiada por valores comuns a vários outros Estados, como ideologias e

religião.

2.4. Sistema Internacional

A definição de sistema feita por Mundell e Swoboda (1969, p. 343 apud

GILPIN, 1981, p. 26) é de uma agregação de diversas entidades unidas por interações

regulares de acordo com a forma de controle. No sistema internacional25, as principais

entidades são os Estados (outros atores também podem influenciar), que interagem por

meio das relações políticas, econômicas, militares, entre outras.

24

“A legitimate order does not make conflicts impossible, but it limits their scope”. 25

Sistema Internacional é um termo bastante amplo. Como aponta Gilpin (1981, p. 26), até a era moderna

não existia um único sistema internacional, mas sim vários sistemas com pouco ou nenhum contato entre

eles. Para esse trabalho, portanto, usaremos sistema internacional como o sistema de dimensão global da

atualidade e sistemas regionais; como, por exemplo, a África austral.

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25

Assim como em qualquer outro sistema social ou político, o sistema

internacional é estabelecido por atores que criam estruturas com a finalidade de

alcançarem seus objetivos; contudo, como os interesses entre diferentes atores muitas

vezes são conflitantes, os interesses mais favorecidos pela ordem refletem o poder26

relativo das partes envolvidas. Todavia, através do tempo e de acordo com o progresso

econômico, tecnológico, militar, entre outros, os interesses dos atores e a balança de

poder entre eles mudam; de forma que aqueles que seriam beneficiados por tal mudança

e quem têm o poder necessário vão buscar alterar o sistema de acordo com os seus

interesses. O resultado disso, como aponta Gilpin (1981, p. 9), é que o sistema

resultante irá refletir uma nova configuração de poder e os interesses de seus membros

dominantes.

Isso nos leva a outra característica fundamental do sistema internacional: o

controle. Muitos teóricos entendem que a essência das relações internacionais é a sua

ausência de controle, ou a anarquia entre os Estados; todavia, assim como aponta Gilpin

(1981, p. 27-34), apesar dessa anarquia, o sistema exerce um elemento de controle27

relativo sobre o comportamento dos Estados28 que se baseia em três fatores: (1) na

distribuição de poder, a capacidade militar de um Estado de impor a sua vontade sobre

outro; (2) o prestígio, algo diretamente relacionado ao poder, mas distinto: o prestígio é

a probabilidade da vontade do Estado ser obedecida, sem a necessidade de um conflito

(algo que podemos chamar como reputação de força); e (3) poder econômico.

Assim, quando ocorrem transformações que alteram esses fatores e a

distribuição de poder, de modo que outras potências podem desafiar a hegemônica, cria-

se uma incongruência no sistema. Nesse caso, o sistema ainda favorece a potência

hegemônica, mas a base da sua governança desmorona – criam-se, então, desafios para

as potências dominantes e oportunidades para as potências em ascensão. Como no

processo de formação dos Estados, o principal mecanismo de mudança no sistema é a

guerra. Nesse sentido, o que Gilpin (1981, p. 15) chama de “guerra hegemônica” são as

guerras que determinam os Estados dominantes e que irão governar o sistema, bem

como quais serão os interesses que serão favorecidos dentro do sistema.

26

Assim como Gilpin (1981, p. 13), entendemos poder como a capacidade militar, econômica e

tecnológica dos Estados. 27

Existem três tipos de estrutura que caracterizam o controle do sistema: hegemônico, bipolar e balança

de poder(GILPIN, 1981, p. 29) 28

Importante destacar que, em toda a história, nunca um Estado conseguiu controlar todo o sistema

internacional, embora tentem controlar (GILPIN, 1981, p. 28).

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26

Sendo compreendidas como um fator de transformação das estruturas do sistema

internacional e de alteração da ordem estabelecida no mesmo, as guerras foram

fundamentais, tanto para o processo de formação dos Estados quanto para a

determinação da governança do sistema. Sendo assim, da mesma forma que as guerras

foram capazes de promover a alteração das unidades do sistema, concedendo este papel

ao Estado nacional e caracterizando o que Gilpin afirma ser uma mudança do sistema

(sistems change), elas são capazes de modificar a polaridade do sistema e reorganizar

sua hierarquia, o que é tido por Gilpin como uma mudança sistêmica (sistemic change).

A Segunda Guerra Mundial caracterizou-se, assim, como a última guerra hegemônica

até então, decretando a ascensão dos Estados Unidos como superpotência e

estabelecendo a ordem norte-americana para o sistema internacional atual.

Este capítulo buscou fundamentar as análises teóricas dos casos escolhidos a

partir de dois diferentes níveis de análise: da formação do Estado e da sua interação

dentro do sistema. Podemos perceber que o modelo de Estado europeu, fruto da

articulação entre coerção e capital, se propagou pelo globo e se estabeleceu como a

principal unidade do Sistema Internacional. Além disso, é importante destacar que todas

essas interações, capazes de consolidar o Estado e ampliar suas capacidades dentro do

sistema, foram concretizadas a partir das guerras. A partir disso, analisaremos os

Estados de África do Sul e dos Estados Unidos a fim de identificarmos elementos que

contribuíram ou enfraqueceram a capacidade estatal e a sua consequente atuação no

sistema.

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27

3. Guerra e Formação do Estado nos EUA

Desde os primórdios dos Estados Unidos (EUA) existe a crença no

“excepcionalismo norte-americano”, um elemento que transformaria o país em algo

diferente dos demais. Ainda que esse tipo de crença seja comum a todos os povos, nos

Estados Unidos isso ocorreu na sua trajetória da formação do Estado quando comparado

aos países europeus: a imigração quebrou as rígidas estruturas hierárquicas do sistema

feudal e criou uma nação que desde cedo se apoiou em bases republicanas e de homens

livres. A participação política de todos os homens brancos foi tão sólida que inverteu o

processo de modernização política ocorrido na Europa ocidental (BENSEL, 2003, p. 4-

5; HUNTINGTON, 1973, p. 93) e retardou consideravelmente o processo de

centralização da autoridade, de forma que até isso ocorrer, durante a Guerra Civil

(1861-1865), essa anomalia foi estudada por muitos contemporâneos europeus.

Tocqueville (2005, p.69) considerava o país uma união de pequenas nações soberanas;

Hegel (1991, p. 103) negava a existência do Estado, colocando-o como o país do futuro;

enquanto que Marx e Engels (2002, p. 74), na contramão, consideravam os Estados

Unidos como o mais perfeito exemplo de Estado moderno. Entretanto, a partir da

Guerra Civil e da modernização da sociedade decorrente da urbanização e da

industrialização, o Estado norte-americano tornou-se centralizado como os demais e

dispondo de grandes capacidades, demonstradas ao mundo a partir da guerra hispano-

americana. A Primeira e a Segunda Guerra Mundial ampliaram ainda mais as

capacidades norte-americanas, fazendo com que os Estados Unidos se tornassem a

superpotência do cenário internacional e decretassem a sua ordem através da

legitimidade da ONU, do poder das armas atômicas e economicamente pelos acordos de

Bretton Woods (ARRIGHI, 2000, p. 283). Desse modo, o presente capítulo é dividido

em três partes: a primeira, que analisa o Estado norte-americano a partir das guerras de

independência; a segunda, que busca analisar a ascensão dos Estados Unidos a grande

potência; e a terceira, que percebe o país como a superpotência mais capaz do mundo.

3.1. Conquista da independência

Durante todo o período colonial, os colonos puderam se desenvolver

economicamente, politicamente e até militarmente de forma independente; a Guerra dos

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28

Sete Anos (1756-1763)29, porém, alterou esse cenário. Se por um lado os britânicos

venceram o conflito, eliminaram a influência francesa e espanhola com os nativos e

fixaram fronteiras coloniais30; por outro lado, para os americanos não existia mais uma

ameaça externa para a sua colônia e o envio de tropas britânicas para a América em

tempos de paz foi vista como uma opressão31. Além disso, a vitória britânica

proporcionou a possibilidade de desenvolver um império global e passou a cobrar das

colônias americanas uma parte justa de sua manutenção através de forças armadas

permanentes fixadas na América. Os impostos que os britânicos introduziram sobre os

americanos ainda eram muito baixos, de forma que o impacto era muito pequeno, mas

eles nunca conquistaram a posição onde o Estado pode institucionalizar a extração

(MANN, 1993, p. 143-144).

3.1.1. Coerção

Em um período de constante ameaça e pouca segurança, as colônias norte-

americanas criaram o sistema de defesa armada baseada em milícias de valorosos

cidadãos-soldados, de modo que todo homem branco saudável deveria portar uma arma.

Esse sistema de defesa foi muito eficiente ao garantir a segurança colonial contra

pequenos grupos de nativo-americanos e revoltas de escravos, mas tinha pouca

experiência em combates de grande escala. E apesar de poucas vitórias das milícias na

Guerra dos Sete Anos, os colonos eram muito orgulhosos do seu sistema de defesa

(MARTIN; LENDER, 2015, p. 15-16). Esse sistema de milícias de cidadãos foi o que

os colonos usaram para conquistar sua independência, acreditando que a virtude

pública, patriotismo e o sonho pela liberdade contrabalanceariam o treinamento e a

experiência dos soldados profissionais ingleses. De forma a organizar e juntar as

29

As primeiras explorações francesas na América do norte e a fundação de Quebec (1608) foram vistas

como um sinal de alarme para os colonos anglo-americanos. No decorrer dos séculos XVII e XVIII,

várias escaramuças foram travadas entre assentamentos franceses e colônias britânicas, contando também

com a presença de aliados nativo-americanos em ambos os lados (BOYER, 2012, p. 13-14). 30

O rei inglês reservou, em 1763, todos os territórios a leste dos Montes Allegheny, da Florida, do rio

Mississipi e do Quebec para os nativo-americanos, fato que foi visto pelos americanos como um grande

desrespeito do seu direito fundamental de ocupar e colonizar essas terras. 31

A Inglaterra não enviou as tropas reais para a América a fim de coagir os colonos que resistissem às

políticas imperiais e sim como uma maneira mais barata de evitar futuros conflitos contra os índios ou um

ressurgimento francês. Dessa forma, os líderes britânicos não estavam planejando acabar com as já

existentes liberdades políticas da colônia, mas sim preocupados em alcançar eficiência na administração e

economia do vasto império conquistado após a Guerra dos Sete Anos (MARTIN; LENDER, 2015, p. 15)

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29

milícias de todos os estados em uma única força foi criado o Exército Continental, sob a

liderança de George Washington. (MARTIN; LENDER, 2015, p. 31-39).

Contada pelos vencedores, a guerra pela independência dos Estados Unidos

destaca erros britânicos e a motivação dos cidadãos americanos pela liberdade.

Entretanto, como destaca Mann (1993, p. 149), o revisionismo recente percebe que o

governo britânico temia que a rebelião se espalhasse para a Irlanda, de onde a França

poderia ameaçar a própria Grã-Bretanha (e por causa disso, mais tropas foram

disponibilizadas para lidar com uma eventual ameaça irlandesa do que para os generais

na América). Além disso, a entrada de França e Espanha no conflito foi decisiva, de

forma que o conflito poderia ter se arrastado por muito mais tempo sem a participação

desses países. De fato, os últimos anos de guerra mostraram uma situação ameaçadora

para o império britânico: retrocessos na Índia; uma invasão espanhola na possessão

inglesa de Pensacola na Flórida Ocidental; forças franco-espanholas se preparavam para

atacar Gibraltar e ataques das marinhas francesa e espanhola tanto na América como no

Canal da Mancha colocavam os britânicos em uma posição complicada. Os custos da

guerra após sete anos de conflito e a ameaça da perda de muito mais do que treze

colônias acabaram levando os ingleses a aceitarem a independência americana em 1783

(MARTIN; LENDER, 2015, p. 187-188).

Pouco tempo após a independência norte-americana ser reconhecida pelos

britânicos, já na virada do século XIX as relações entre Reino Unido e Estados Unidos

eram razoavelmente amigáveis, de forma que os Estados Unidos eram dependentes das

importações de produtos manufaturados britânicos. Entretanto, o início das Guerras

Napoleônicas (1803-1815) veio a deteriorar drasticamente a relação entre norte-

americanos e britânicos mais uma vez, de forma que ambos entrariam em guerra

novamente, no que ficou conhecido por muitos analistas como a Segunda Guerra de

Independência americana (BICKHAM, 2012, p. 18).

Apesar dos britânicos terem conquistado uma vitória militar indiscutível na

guerra de 1812, com avanços terrestres; destruição da marinha norte-americana;

controle de toda a costa atlântica e a destruição da capital norte-americana, Washington;

a guerra terminou com a assinatura do Tratado de Ghent, estabelecendo o status quo

ante bellum. Segundo Bickham (2012, p. 262-279), o Tratado de Ghent fez com que os

Estados Unidos fossem respeitados como uma nação soberana e os europeus não se

envolveram em posteriores conflitos na América do Norte (como as guerras entre norte-

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30

americanos e mexicanos, contra os índios e durante a Guerra Civil), o que possibilitou a

expansão territorial dos Estados Unidos no decorrer do século XIX32.

3.1.2. Capital

Como resultado da independência política, os padrões de comércio entre colônia

e metrópole foram quebrados e os Estados Unidos puderam explorar novos mercados,

como a China; o Levante; o Báltico e as Índias Ocidentais (CHANDLER, 2008, p. 74).

Entretanto, é a guerra de 1812 e os anos antecedentes a ela de embargo entre norte-

americanos e britânicos que levaram a um aumento significativo da produção de

produtos manufaturados na região norte dos Estados Unidos, substituindo a produção

doméstica pela de fábrica e formando a base para a maciça industrialização que

ocorreria na segunda metade do século XIX (ENGERMAN; SOKOLOFF, 2008, p. 372-

373).

Impulsionada pelo embargo precedente à guerra de 1812, a industrialização nos

Estados Unidos começou a partir do desenvolvimento da indústria têxtil. Em 1815,

Francis Cabot Lowell construiu a primeira fábrica têxtil dos Estados Unidos em

Massachusetts, utilizando-se de máquinas movidas pela força da água (CHANDLER,

2008, p. 80; ENGERMAN; SOKOLOFF, 2008, p. 373). Em pouco tempo, o baixo custo

de produção da fábrica fez com que as pequenas oficinas de tecelagem tivessem grandes

dificuldades para competir e, com a ajuda de uma queda nos preços do algodão e de um

efetivo sistema de financiamento para indústrias, diversas novas fábricas têxteis

começaram a surgir em torno dos rios da Nova Inglaterra.

Entretanto, é apenas a partir da década de 1840 que o processo de

industrialização se intensifica. Novas tecnologias, como o uso do carvão para gerar

energia e a melhora nos meios de transporte através das ferrovias, permitiram uma

dependência muito menor da água, o que possibilitou a construção de fábricas em

regiões urbanas. Além disso, houve uma enorme expansão do mercado interno norte-

americano devido às grandes ondas de imigração proveniente da Europa, aumentando a

32

Bickham explica o motivo de o Império Britânico ter sido generoso nos acordos com os norte-

americanos como sendo (1) humilhar os norte-americanos e mostrar que o Império Britânico poderia

ignorar a soberania deles e; (2) os planos britânicos de acabar permanentemente com a ameaça norte-

americana custariam muito caro e não era do interesse britânico levar a guerra adiante por isso

(BICKHAM, 2012, p. 276-277).

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31

população de 17 milhões em 1840 para 63 milhões em 1890 (CHANDLER, 2008, p. 85-

86). As ferrovias assumiram um papel central na industrialização e, como nos mostra

Chandler (2008, p. 90, tradução nossa), “as grandes somas de dinheiro que foram

necessários para a construção de ferrovias na década de 1850 causou a ascensão dos

bancos de investimento especializado nos Estados Unidos e na centralização e

institucionalização dos mercados monetários do país em Wall Street”.

3.1.3. Legitimidade

Uma vez conquistada a independência, era necessário criar uma Constituição

para a nova nação. Mann (1993, p. 155-159) afirma que houve grande consenso entre as

lideranças políticas sobre algumas questões, como o Estado ser um do tipo

representativo (para os homens brancos), sua laicidade e que deveria exercer pouco

poder militar sobre os cidadãos brancos (mas suficiente para coagir os não-brancos).

Entretanto, o debate foi mais intenso no que diz respeito a qual modelo econômico o

Estado deveria apoiar e no quão centralizado e nacional esse Estado deveria ser. O

resultado disso foi um Estado que garantia a liberdade do cidadão e a sua propriedade,

mas permanecia extremamente descentralizado, de forma que muitas estruturas e

funções governamentais (como educação, saúde, polícia etc.) seriam atribuídas aos

estados. Visto pelos europeus, os primórdios do Estado dos Estados Unidos era franzino

ou até mesmo inexistente; Tocqueville (2005, p. 128), por exemplo, diz que o Estado se

dissolveu logo após a independência e os pequenos estados se desenvolveram como

repúblicas independentes. Hegel (1991, p. 103), já considera que “um verdadeiro Estado

e governo só existiriam nos Estados Unidos quando riqueza e pobreza se tornarem

extremas e que as pessoas não mais puderem satisfazer suas necessidades da forma

como estão habituadas”. Marx e Engels (2002, p. 74), por outro lado, entenderam o

Estado norte-americano como o mais perfeito exemplo de Estado moderno, mas

justamente por entender que tal Estado só existia devido à presença da propriedade

privada. Entretanto, apesar dessas análises europeias, o Estado americano, segundo

Stephen Skowronek (2003, p. 19), “pode ser descrito tanto como se poderia descrever

qualquer outro Estado”.

[De acordo com Stephen Skowronek] os norte-americanos desenvolveram e

mantiveram um estado, abarcando a organização do poder coercitivo e um

senso de rotinas estáveis entre as instituições. Ele era baseado na aceitação de

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32

um conjunto de regras e de instituições que, como os partidos e as cortes,

tinham existência nacional. Era esse Estado de “partidos e cortes” que fazia

guerras contra os índios, arbitrava as disputas entre os estados, mantinha uma

ordem legal integrada numa escala constitucional, ajudava o

desenvolvimento econômico e negociava tratados com outras nações. Essa

estrutura limitada foi essencial para a manutenção da ordem e para o

desenvolvimento social durante a primeira metade do século 19. O Estado

nacional era importante sobretudo no que diz respeito a um aspecto relevante

da política norte-americana no início do século, a expansão territorial

(IZECKSOHN, 2003, p. 50).

Salienta-se, todavia, que esse Estado descentralizado e com grande autonomia

para os estados-membros acabou por acentuar as diferenças entre as regiões norte e sul

e, como aponta Izecksohn (2003, p. 47-53), tornou a ameaça do separatismo um

elemento central na formação dos Estados Unidos. Destaca-se, porém, que apesar da

nova Constituição garantir espaço para a escravidão e exigir grandes propriedades de

terra para eleitores, ela já era mais democrática do que qualquer outro sistema europeu.

Mesmo após a vitória norte-americana e a consequente independência

reconhecida em 1783, os britânicos continuaram tratando os Estados Unidos como uma

colônia e muitas vezes desconsideravam sua soberania33; mais do que isso, o resto da

Europa ainda enxergava os Estados Unidos como parte da esfera de influência britânica.

A guerra de 1812 veio, então, como solução para esses problemas ainda não resolvidos.

Como aponta Maass (2015, p. 71), a guerra de 1812 foi muito mais um “blefe

diplomático” buscando concessões políticas dos britânicos do que uma guerra de

expansão territorial que buscava anexar o Canadá.

A independência norte-americana não representou alterações significativas no

sistema internacional durante esse momento; o Reino Unido, após a vitória sobre a

França Napoleônica, se tornou a potência hegemônica e a Pax Britannica permaneceria

até a Primeira Guerra Mundial. Entretanto, a guerra de independência e a guerra de

1812 deram aos Estados Unidos, mais do que independência política, o que Gilpin

(1981, p. 30-34) chama de prestígio. Ao combater os britânicos, principalmente na

guerra de 1812, os norte-americanos conseguiram se tornar respeitados como uma nação

33

A vitória da Marinha Real britânica na batalha de Trafalgar em 1805 e a vitória de Napoleão sobre

russos e austríacos em Austerlitz, ambas em 1805, levaram a um cenário onde britânicos dominavam os

mares enquanto os franceses dominavam o continente Europeu, de forma que uma vitória de um dos lados

não aconteceria tão cedo. Dessa forma, os britânicos buscaram isolar o continente proibindo o comércio

entre a França e os países que estavam fora do conflito – o que prejudicou diretamente o comércio

americano, que era neutro na guerra. Além de deixar as relações comerciais norte-americanas submissas

aos desejos da Coroa britânica, navios de guerra britânicos passaram a abordar navios mercantes norte-

americanos para um recrutamento forçado de marinheiros para a Marinha Real; e por fim, existia uma

aliança britânica com os índios americanos nas fronteiras dos Estados Unidos. (MAASS, 2015, p. 73-75).

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33

soberana e mantiveram os europeus afastados de posteriores conflitos na América do

Norte – um elemento fundamental para a formulação da Doutrina Monroe (1823) e

expansão territorial norte-americana, tido por Gilpin (1981, p. 23) como o primeiro

objetivo dos Estados para a ampliação de sua segurança e riqueza. Além disso, a ruptura

com o comércio britânico, então líder da produção manufatureira mundial, durante as

guerras motivou uma expansão da produção norte-americana em um período em que as

empresas puderam se estabelecer rapidamente e acompanhar o progresso tecnológico da

revolução industrial.

3.2. Guerra Civil: consolidação interna e projeção externa

Na primeira metade do século XIX, os Estados Unidos se tornam uma potência

continental: o Destino Manifesto34 combinou o fervor, o idealismo e até o misticismo do

Romantismo Americano com o realismo, desenvolvimento econômico e a ocupação

americana por todo o continente (JOHANNSEN, 1997, p. 13). Como resultado,

milhares de quilômetros quadrados foram incorporados aos Estados Unidos.

Além disso, a intensa imigração de europeus para os Estados Unidos, somada à

expansão territorial e constante crescimento industrial e de infraestrutura, tornaram a

nação um gigante econômico ainda na primeira metade do século XIX. Paul Kennedy

(1988, p. 178-179) levanta que observadores da época como Tocqueville (2005, p. 476-

477), já viam os Estados Unidos e o Império russo como as grandes potências do futuro,

e compara o potencial bélico-militar entre as duas grandes nações, mostrando o alto

grau de industrialização norte-americana, já em níveis próximos ao das grandes

potências europeias da época apesar de ter uma força militar muito pequena no período

anterior à Guerra Civil. Entretanto, como salienta Paul Kennedy (1988, p. 178), o

isolamento americano nos assuntos europeus e o cordon sanitaire que a Marinha Real

inglesa impôs para separar o Novo Mundo do Velho Mundo (muito mais do que a

Doutrina Monroe), significam que a única ameaça ao desenvolvimento americano era o

Reino Unido – mas ainda que tenham estado em guerra em 1776 e 1812, novas guerras

34

Em um artigo chamado “Annexation” no jornal Democratic Review de 1845, o jornalista John Louis

O'Sullivan mencionou pela primeira vez o “Destino Manifesto”, evocando a anexação do Texas

(JOHANNSEN, 1997, p. 7-8).

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34

entre os dois países se tornaram cada vez mais improváveis, visto o grande fluxo de

capital e matérias primas desenvolvido entre os dois.

Todavia, dentro da política doméstica norte-americana, dois lados (norte e sul)

disputavam o controle pelo funcionamento securitário, econômico e ideológico do

Estado. Essas divergências fizeram com que, em fevereiro de 1861, onze estados

sulistas se separassem dos Estados Unidos e formassem os Estados Confederados da

América, dando início à Guerra Civil norte-americana (1861-1865).

3.2.1. Coerção

Se desde a independência os Estados Unidos mantiveram um pequeno número

de soldados em suas forças armadas, a guerra civil transformou os dois lados de

amadores a Exércitos de recrutamento em massa, com o uso de modernas armas de fogo

e artilharias, telégrafos, ferrovias e navios encouraçados, entre outros avanços

tecnológicos que a tornaram a primeira guerra total industrializada. Como aponta

Kennedy (1988, p. 178-182), era clara a vantagem do lado norte, que detinha uma

população de cerca de 20 milhões de homens brancos enquanto a Confederação tinha

apenas seis milhões. Além disso, a União recebeu mais de 800 mil imigrantes durante

os anos de conflito e tomou a decisão de alistar soldados negros em 1862, algo que os

confederados evitaram até os últimos meses de guerra – no auge de cada lado, o norte

chegou a ter um milhão de soldados, enquanto os confederados atingiram 464.500

soldados.

Apesar da ampliação do Estado norte-americano em função da guerra, ela não

conseguiu determinar o surgimento de um Estado fiscal-militar permanente e seguiu-se

uma intensa desmilitarização logo após o fim da guerra (ZAKARIA, 2000, p. 142). O

grande crescimento econômico e populacional, ocorrido na segunda metade do século

XIX, colocou os Estados Unidos na vanguarda da economia mundial. Conforme

Kennedy (1988, p. 243, tradução nossa), mesmo que os Estados Unidos “parecessem ter

todas as vantagens econômicas que algumas das outras potências possuíam em partes,

mas nenhuma das suas desvantagens35”, todo esse potencial não se refletia na sua

política externa. Isso fica evidente quando, como aponta Zakaria (2000, p. 74, tradução 35

“The United States seemed to have all the economic advantages which some of the others powers

possessed in part, but none of their disadvantages”.

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35

nossa), “suas aquisições territoriais e protetorados, suas forças de defesa, suas ligações

com o estrangeiro e suas alianças eram insignificantes em comparação com outras

nações de recursos similares36”. O seu Exército, por exemplo, não chegava a ter 25.000

homens em 1890, um número menor que da Bulgária, e a marinha cerca de oito vezes

menor que a marinha italiana, considerada a mais fraca dentre as potências europeias

(KISSINGER, 2007, p. 28; ZAKARIA, 2000, p. 74).

A guerra hispano-americana37

, em 1898, foi o marco de concretização dos

esforços de fortalecimento do Estado após a guerra de secessão e concedeu o título de

grande potência aos Estados Unidos. Em um rápido conflito, os norte-americanos

derrotaram por completo as forças de uma Espanha em plena decadência. O Tratado de

Paris, assinado em 10 de dezembro de 1898, eliminou os últimos vestígios do Império

Espanhol nas Américas e concedeu aos norte-americanos as ilhas de Cuba, Porto Rico e

Guam, além das Filipinas que, como aponta Kennedy (1988, p. 246), transformaram os

Estados Unidos em uma espécie de potência colonial na Ásia, simbolizando a sua

ascensão para a atuação inter-regional.

O sucesso militar gerou ainda uma grande onda expansionista nos Estados

Unidos, de forma que a anexação do Hawaii, após grandes debates ocorridos em

décadas anteriores, finalmente conseguiu ser aprovada. Entretanto, é sob a gestão de

Theodore Roosevelt (1901-1908) que ocorre a grande fase de expansão da força norte-

americana no início do século XX. Em 1904, através do que ficou conhecido como

Corolário Roosevelt, confirmou-se as intenções originais da Doutrina Monroe e deixou

explícito o direito de intervenção dos Estados Unidos no hemisfério ocidental,

esclarecendo qualquer possível ambiguidade sobre quem controlaria a região

(HERRING, 2008, p. 371).

Essa maior atuação norte-americana na diplomacia também veio acompanhada

pela expansão do poder militar, principalmente pela marinha38: entre 1885 e 1889 já

havia começado a construção de 30 modernos navios de guerra, que segundo Zakaria

(2000, p. 113), marcaram uma mudança estratégica em direção a uma postura mais

ofensiva no mar; mas foi durante a guerra hispano-americana que o aumento da marinha

36

“Sus adquisiciones territoriales y protectorados, sus fuerzas de defensa, sus legaciones en el extranjero y

sus alianzas – eran insignificantes en comparación con los de otras naciones de recursos similares”. 37

A guerra entre Estados Unidos e Espanha começou devido à situação problemática em Cuba, que na

época desejava a sua independência (HERRING, 2008, p. 309-314). 38

A marinha é mais importante aos Estados Unidos pela sua posição geográfica e um importante

instrumento de diplomacia e comércio na América Latina e no Pacífico (KENNEDY, 1988, p. 247).

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36

foi consolidado e empregado. Kennedy (1988, p. 247) coloca que a aquisição de novas

bases navais no Pacífico e no Caribe, o uso de navios de guerra como força policial na

América Latina e o envio da Great White Fleet39, demonstram a importância do poder

naval. Em 1914 a marinha norte-americana só era menor que a britânica e alemã; um

aumento impressionante para os 25 anos que antecederam à Primeira Guerra Mundial.

Entretanto, segundo Kennedy (1988, p. 248), apesar de os Estados Unidos ter se

tornado uma grande potência, ainda não era parte do sistema de grandes potências. O

domínio do hemisfério ocidental, a posição confortável de isolamento, distante das

outras grandes potências por milhares de quilômetros de oceano, e a ausência de uma

política internacional mais agressiva com o fim dos mandatos de Theodore Roosevelt,

mantiveram os Estados Unidos como um ator menos relevante no sistema de grandes

potências.

Quando as hostilidades da Primeira Guerra Mundial começaram, os Estados

Unidos estavam geograficamente longe das batalhas. Além disso, a longa tradição de

não se envolver nos conflitos europeus e a vantagem de poder comercializar com os

dois lados da guerra levavam os Estados Unidos para a neutralidade. No decorrer da

guerra, porém, as grandes relações comerciais entre norte-americanos e britânicos

(muito maiores do que com os alemães) somadas à campanha naval do Império Alemão,

baseada em submarinos, levaram a uma grande aproximação com os aliados e a uma

crise na posição de neutralidade. Durante esse período de neutralidade, um intenso

debate sobre a defesa nacional ocorreu entre apoiadores de uma intensa militarização e

os pacifistas, de forma que apenas em junho de 1916 foi aprovado o National Defense

Act e o Naval Expansion Act, ambas as medidas expandiram significativamente o

poderio militar norte-americano (HERRING, 2008, p. 399-410).

A chegada de 850.000 soldados norte-americanos no front europeu e uma

malsucedida ofensiva final deu aos comandantes alemães o presságio da derrota.

(HERRING, 2008, p. 411). Entretanto, como aponta Kennedy (1988, p. 271), não foi

esse o real significado da entrada dos Estados Unidos na guerra, já que as tropas norte-

americanas eram menos preparadas para o moderno conflito do que qualquer força

europeia em 1914, mas sim através da sua força produtiva: a capacidade de lançar

39

A Great White Fleet foi uma frota naval enviada por Theodore Roosevelt em 1907 destinada a dar a

volta ao mundo como demonstração de força para anunciar a chegada de uma nova grande potência no

cenário internacional (HERRING, 2008, p. XV)

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37

navios mercantes às centenas, de construir um destróier a cada três meses e possuir

metade de produção mundial de alimentos.

Com o final da Primeira Guerra, os Estados Unidos já haviam se tornado uma

das grandes potências mundiais, mas, apesar das frustradas tentativas do então

Presidente Wilson40, o que ocorreu foi um súbito isolamento diplomático do país no

cenário internacional, que voltou a ficar focado nos cambaleantes ingleses e franceses.

Como aponta Kennedy (1988, p. 277), com a rejeição do Senado norte-americano pelo

Tratado de Versalhes, as histórias diplomáticas do período são todas centradas na

França e sua procura pela segurança contra uma Alemanha ressurgente. Como ocorreu

em outros momentos, o isolamento norte-americano não foi exclusivo na área

diplomática, mas também nas forças de defesa: no período entre guerras, as forças

armadas norte-americanas ficaram significativamente reduzidas, em torno de 140.000

soldados, apesar de terem permitido a criação de uma moderna Força Aérea e o

desenvolvimento de porta-aviões e de cruzadores pesados (KENNEDY, 1988, p. 328).

3.2.2. Capital

O desenvolvimento econômico das regiões Norte e Sul dos Estados Unidos foi

muito diferente: o Norte caminhou na direção de um capitalismo comercial enquanto o

Sul manteve-se fortemente rural e agrícola, mas como aponta Izecksohn (2003, p. 58),

isso não foi suficiente para colocar o Sul numa posição subalterna ao Norte.

Inicialmente visto como uma prática sem futuro e fora de grandes debates, a escravidão

encontrou seu espaço na grande demanda de algodão das indústrias de tecido como

também nas terras conquistadas no oeste, gerando grandes conflitos e debates sobre a

extensão da escravidão para os novos territórios.

Durante a Guerra Civil, os confederados apresentavam uma grande inferioridade

econômica, com uma reduzida produção industrial em relação ao norte. Além disso, não

conseguiram pagar os custos do conflito, uma vez que a maior fonte de renda vinha

através das exportações de algodão, impedidos de serem negociadas durante a guerra

por causa do bloqueio nortista; o norte, entretanto, conseguia arrecadar dinheiro através

dos impostos e de empréstimos, além de ter estimulado o crescimento econômico e 40

Os 14 pontos de Wilson, expostos em 8 de janeiro de 1918, declaravam os objetivos de guerra da

América na Primeira Guerra Mundial (KISSINGER, 2007, p. 193-194).

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38

industrial com a emissão de dinheiro. Salienta-se, todavia, o impacto da Guerra Civil

sobre a industrialização norte-americana: em vista das necessidades da guerra, muitos

consideram o conflito como o ponto de partida para o desenvolvimento das indústrias

nos Estados Unidos, mas como reforçam Engerman e Stanley (2008, p. 379), o período

anterior à guerra já demonstrava grande aumento da produção agrícola e industrial, e

mesmo que o conflito tenha influenciado alguns setores da indústria, como armamentos

e alimentos, ele não pode ser visto como a causa do crescimento econômico.

Ao final da Guerra Civil, porém, nenhum país possuía condições territoriais e

econômicas suficientes para desafiar a hegemonia britânica (GILPIN, 1981, p. 135). A

Pax Britannica, implantada pelo que Gallagher e Robinson (1953) chamam de

“imperialismo de livre comércio”, deu condições para os britânicos exercerem funções

de governo mundial. Porém, a partir de 1870, com a ascensão do Império Alemão, mas

principalmente dos Estados Unidos, o Reino Unido passou a perder esse controle.

Durante todo esse regime britânico, o sistema foi baseado em empresas de pequeno e

médio porte, altamente especializadas e unidas por uma complexa trama de transações

comerciais centrada no Reino Unido, mas abrangendo o mundo inteiro. Entretanto, a

pressão de uma forte competitividade acabou reduzindo consideravelmente os lucros,

pressionando comerciantes a buscarem novas alternativas de estruturas empresariais

(ARRIGHI, 2000, p. 291-295).

Como a variante alemã, a variante norte-americana de capitalismo de

corporações desenvolveu-se em resposta à intensificação, no mundo, das

pressões competitivas da plena expansão dessa economia mundial de

mercado centrada no Reino Unido. Não foi por um acidente histórico que as

duas variantes emergiram simultaneamente no decorrer da Grande Depressão

de 1873-96. Tal como na Alemanha, também nos Estados Unidos a

intensificação das pressões competitivas convenceu negociantes, políticos e

intelectuais de que um regime de concorrência irrestrita entre unidades

atomizadas não gerava estabilidade social, nem, a rigor, eficiência de

mercado (ARRIGHI, 2000, p. 295).

A formação de conglomerados para limitar a concorrência foi encontrada tanto

pelos norte-americanos como pelos alemães, mas entre as décadas de 1880 e 1890, eles

começaram a divergir radicalmente. Enquanto os alemães passaram a concentrar capital

através de integrações horizontais, os norte-americanos dirigiram-se às integrações

verticais41. Segundo Arrighi (2000, p. 296), a variante de corporações que emergiu nos

Estados Unidos constituiu-se muito mais eficaz e radical do que a variante alemã, em

41

Integrações verticais são as integrações de uma firma com as de seus fornecedores e clientes, enquanto

as integrações horizontais acontecem entre firmas concorrentes (ARRIGHI, 2000, p. 296).

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39

relação ao sistema britânico. Isso só foi possível graças às grandes dimensões da

economia norte-americana, já que as oportunidades de integração vertical na Alemanha

se esgotaram rapidamente, guiando-os para a integração horizontal.

E de fato, como salienta Kennedy (1988, p. 242-249), de todas as mudanças

ocorridas na balança de poder mundial entre fins do século XIX e início do XX, as

maiores e mais decisivas foram nos Estados Unidos. Segundo Zakaria (2000, p. 73),

apesar das crises econômicas que ocorreram nas décadas de 1870 e 1890, a prosperidade

e o progresso norte-americano alimentaram a reputação de um país com oportunidades

ilimitadas, o que atraiu milhões de imigrantes europeus e dobrou a população do país

entre 1865 e 1900.

A Primeira Guerra Mundial acelerou o processo de consolidação dos Estados

Unidos como a maior economia do mundo. Quando o conflito começou, em 1914, o

Ministro do Tesouro britânico acreditava que os investimentos externos britânicos

(feitos em grande parte nos Estados Unidos) seriam suficientes para custear cinco anos

de guerra. Porém, já em 1915, a demanda de armamentos, máquinas e matérias-primas

superaram drasticamente o que tinha sido imaginado, e os Estados Unidos eram os

únicos possíveis fornecedores. Essa situação fez com que os Estados Unidos

recomprassem os antigos investimentos ingleses na infraestrutura norte-americana e

ainda acumulassem imensos créditos; e não apenas isso, mas também se aproveitaram

da posição ainda neutra na guerra e substituíram com rapidez o Reino Unido42 como o

principal investidor estrangeiro e intermediário na América Latina e partes da Ásia.

Esse processo já era inevitável, pois como alega Kennedy (1988, p. 244), a

economia norte-americana superaria toda a economia europeia em 1925 caso não

houvesse a Primeira Guerra. Com o conflito, o processo foi adiantado em seis anos

devido à destruição da infraestrutura europeia, algo que prejudicou significativamente a

produção industrial dos países afetados; de forma que a produção manufatureira de 1920

ainda era 7% menor que em 1913, a produção agrícola cerca de um terço abaixo do

normal e o volume de exportações era apenas a metade do período pré-guerra

(KENNEDY, 1988, p. 279). Por outro lado, países que se mantiveram distantes da

destruição em massa, como os Estados Unidos, viram suas economias impulsionadas

pela guerra de atrito europeia. Como nos mostra Hobsbawm (1995, p. 71), em 1929, os

42

Arrighi (2000, p. 279) conta que a Grã-Bretanha fez muitos empréstimos a aliados mais pobres,

principalmente a Rússia, que faliu e passou pela revolução, tornando a dívida incobrável.

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40

Estados Unidos eram responsáveis por 42% da produção mundial, sendo que Reino

Unido, França e Alemanha, os grandes da Europa, eram responsáveis por 28%. Além

disso, também como resultado da guerra, muitos países estavam com grandes dívidas

em relação aos Estados Unidos; e o aumento muito mais acentuado da produção norte-

americana em relação aos países devedores apenas acentuou as dificuldades destes em

pagar suas dívidas.

Contudo, como destaca Arrighi (2000, p. 279-281), os Estados Unidos

equiparam-se aos britânicos na produção e regulação do dinheiro mundial após a guerra,

mas não os substituíram; e ainda mais importante, “a capacidade norte-americana de

administrar o sistema monetário mundial continuava nitidamente inferior à capacidade

residual da própria Grã-Bretanha”.

Sob esse ponto de vista, como sugeriu Geoffrey Ingham (1989, p.16-7; 1984

p.203), deve ser revista a tese de que o sistema monetário mundial foi

instabilizado pela incapacidade britânica e pela falta de disposição norte-

americana de assumir a responsabilidade por sua estabilização (ARRIGHI,

2000, p. 280).

Londres, propriamente, manteve-se como o grande centro organizacional,

intelectual e financeiro do período, possuindo reservas de ouro em 1920 ainda maiores

do que no período anterior à guerra; e Nova York, maior centro financeiro norte-

americano, continuou inteiramente subordinada à Londres, de modo que “Wall Street e

o Federal Reserve de Nova York se aliaram à City londrina e ao Banco da Inglaterra

para manter e impor o padrão ouro internacional, cujo principal beneficiário era e

continuou a ser a Grã-Bretanha” (ARRIGHI, 2000, p. 281).

Como ressalta Kennedy (1988, p. 282), apesar dos Estados Unidos terem se

tornado a grande nação credora do mundo, a estrutura econômica norte-americana era

muito menos dependente e integrada ao resto da economia mundial, com inclinações

protecionistas e carecendo da eficiência de um Banco da Inglaterra43. Entretanto,

enquanto governos europeus utilizaram o dinheiro dos empréstimos para projetos de

longo termo, principalmente agricultura ou buscando restabelecer o padrão ouro de suas

moedas, os empréstimos não podiam mais ser pagos pelas exportações, sendo pagos por

novos empréstimos, colocando essa estrutura prestes a desmoronar. E em fins de “1928,

a alta de Wall Street começou a desviar recursos dos empréstimos externos para a 43

Segundo Arrighi (2000, p. 280), as instituições financeiras norte-americanas simplesmente não estavam

à altura da tarefa de administrar o sistema monetário mundial. “Na década de 1920, o Sistema da Reserva

Federal, criado em 1913, ainda era um órgão mal articulado e inexperiente, incapaz de exercer com um

mínimo de eficiência até mesmo suas funções domésticas”.

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41

especulação interna” (ARRIGHI, 2000, p. 282). Com a quebra de Wall Street em 1929 e

a depressão da economia norte-americana, iniciou-se uma corrente em cadeia

incontrolável: “um país após o outro viu-se obrigado a proteger sua moeda, fosse

através da desvalorização, fosse pelo controle do câmbio” (ARRIGHI, 2000, p. 283).

Quando até mesmo os britânicos abandonaram o Free Trade em 1931, parecia

claro que os Estados estavam se retirando o máximo que podiam em direção

a um protecionismo tão defensivo que chegou perto de uma política de

autarquia, aliviado por acordos bilaterais. Em tempo, enquanto o

congelamento econômico varria as economias globais, o capitalismo mundial

retraiu-se nos iglus de suas economias de Estados nacionais e dos impérios

que lhe estavam associados (HOBSBAWM, 2000, p. 132, tradução nossa).

O New Deal, segundo A. Marx (1998, p. 103) representou o ressurgimento do

poder centralizado, não visto desde o período da Reconstrução (pós Guerra Civil). De

fato, as maiores ambições do New Deal representam uma grande mudança de postura

para o governo norte-americano, que abandonou sua posição de interferência mínima no

mercado doméstico em favor de tentativas abrangentes de intervenção (SKOCPOL;

FINEGOLD, 1982, p. 255-256). Como salienta Arrighi (2000, p.287), o presidente F.

Roosevelt buscou libertar a economia norte-americana do controle da haute finance – as

grandes lideranças dos mercados financeiros de Londres e Nova York.

3.2.3. Legitimidade

A vitória da União na Guerra Civil em 1865 fortaleceu o Estado americano em

todas as dimensões, “conferindo-lhe os atributos fundamentais da soberania territorial e

governamental” (BENSEL, 2003, p. 2). A partir de então, deu-se início ao período de

Reconstrução do sul seguindo os interesses do Partido Republicano, de forma que,

como coloca A. Marx (1998, p. 92-93, tradução nossa), “O Estado nacional seria

reconstruído sob os termos do Norte” 44. Assim, a região sul foi colocada sob-regime

militar e para reingressar na União os ex-estados confederados deveriam ratificar a

Décima Quarta Emenda45. Durante esse período, negros sulistas serviram em funções

legislativas e verbas foram destinadas à educação pública e hospitais, além de leis

44

“The nation-state would be rebuilt on the North’s terms” 45

A Décima Terceira Emenda, adotada em 1865, aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Mas isso não

seria nem de perto a igualdade plena entre negros e brancos: com a política conciliatória do sucessor de

Lincoln, Andrew Johnson, os legisladores sulistas promulgaram “Black Codes” que restringiam direitos

dos negros e, na prática, criava um regime muito próximo da escravidão. Assim, a Décima Quarta

Emenda (1868) servia para anular os “Black Codes” e garantir a cidadania e direitos iguais a todos

nascidos ou naturalizados nos Estados Unidos, com exceção dos índios (BOYER, 2012, p.58).

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42

aprovadas que protegiam os direitos dos negros libertados e que trouxeram resultados

significantes: o alfabetismo dos negros subiu de 10 para 50% entre 1865 e 1890,

aumentou a quantidade de negros donos de terras e a renda dos negros subiu 46%

(MARX, 1998, p. 94).

Entretanto, escândalos de corrupção e crise econômica levaram sulistas e

nortistas a procurarem por alternativas diferentes dos republicanos e sua reconstrução: o

resultado foi um grande apoio ao partido Democrata (no sul ele era controlado pelos

antigos proprietários de escravos) e um grande turning point ocorreu na história

americana ao desassociar o partido Republicano e o Estado norte-americano. Como

aponta Bensel (2003, p. 4, tradução nossa), “do ponto de vista estadista, essa transição

também pode ser vista como a bonança que acompanhou a falha da reconstrução”, já

que esse processo de transição de um partido revolucionário para um pluralismo

centrado no Estado é uma das marcas da modernização política. Segundo Bensel (2003,

p. 4-5), a modernização política envolve três elementos: (1) a racionalização da

autoridade em toda a nação, destruindo instituições descentralizadoras que resistam à

autoridade; (2) o surgimento de novas funções políticas e de instituições especializadas

para cumprirem tais funções e; (3) ampliação da participação política, principalmente

através do surgimento de partidos políticos de massa. Na maioria dos países europeus, a

modernização ocorreu seguindo essa ordem, porém nos Estados Unidos a ordem foi

reversa. Para os negros, todavia, significou mais do que um novo abandono: como

afirma A. Marx (1998, p. 97-98), eles foram transformados em bodes expiatórios para a

unificação dos brancos e já em 1890, novas imposições segregacionistas retornaram

através de diferentes táticas e muitos dos ganhos anteriores foram revertidos através das

leis segregacionistas de Jim Crow.

A falha da Reconstrução e o fim da supremacia do partido Republicano com o

retorno do partido Democrata levaram ao que Skowronek (2003, p. 39-41) chama de

triunfo do Estado de partidos e cortes. Como desde 1820 o serviço civil era controlado

pelos partidos políticos, a criação de instituições centralizadas e estáveis era impedida

pelo sistema – um reflexo da tradição norte-americana, que se preocupa com a restrição

da autoridade e divisão dos poderes (HUNTINGTON, 1973, p. 7). Como coloca Zakaria

(2000, p. 160, tradução nossa), “O Congresso exercia uma enorme influência sobre o

Poder Executivo principalmente através do clientelismo partidário”, afetando desde os

assuntos cotidianos e também em toda a política do Estado.

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43

Em um período de intensa urbanização e industrialização, que transformou e

acrescentou novos dilemas à sociedade (como o poder das empresas, os direitos dos

consumidores, a pobreza, saúde e higiene entre outros), o pleno fortalecimento do

“Estado de partidos”, incapaz de atender às novas demandas, gerou um impasse nas

relações entre Estado e sociedade. “Instituições e procedimentos criados para servirem

ao desenvolvimento socioeconômico aparecem agora como perversões de

autoperpetuação desse propósito” (SKOWRONEK, 2003, p. 40, tradução nossa). O

vácuo gerado por esse impasse era preenchido pelas cortes jurídicas, que expandiram o

seu poder ao limite em fins do século XIX. As incapacidades internas refletiam também

nos aspectos externos: o aparelho diplomático norte-americano era ainda mais fraco que

suas forças armadas, os Estados Unidos eram representados por poucos embaixadores

honorários e em poucos países; o próprio Departamento de Estado era minúsculo, a

ponto de que o jornal New York Herald sugeriu a sua abolição, em 1892, já que tinha

tão pouco o que fazer (KENNEDY, 1988, p. 246). E como aponta Zakaria (2000, p. 75),

tudo isso fez com que os Estados Unidos fossem considerados uma potência de segunda

ordem, juntamente com outros países com capacidades muito menores, e nenhuma

potência europeia considerava os norte-americanos suficientemente importantes para o

envio de embaixadores.

Esse processo da construção do Estado norte-americano foi longo e custoso, mas

como destaca Zakaria (2000, p. 176, tradução nossa), “Todos os caminhos conduziram

para a mesma direção: até Washington e, dentro de Washington, até a Casa Branca”.

Em um aspecto internacional, quando William McKinley assumiu a presidência em

1897, em certa medida, o Poder Executivo já tinha alcançado a supremacia e o

presidente já governava um Estado forte e burocrático livre da influência do Congresso.

Mas, enquanto o Estado norte-americano ampliava suas capacidades, consolidavam-se

também as leis segregacionistas de Jim Crow e iniciava-se o que A. Marx chama de

“Era de Ouro do racismo” (1998, p. 103). De fato, por volta da década de 1920, os

Estados Unidos consolidaram sua identidade “Anglo-Protestante” através de uma série

de medidas legislativas como o Volstead Act (1920), que proibiu o consumo de álcool,

e o Johnson-Reed Act (1924) que instituiu cotas de imigração para manter o predomínio

dos anglo-saxões protestantes (KAUFMANN, 2004, p. 2).

A grande depressão de 1929, porém, incentivou uma nova e intensa expansão da

máquina pública através do New Deal de Franklin Roosevelt. Skowronek (2003, p 288-

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44

289) considera que ao expandir os serviços burocráticos e tirar as cortes e os partidos do

centro das operações governamentais, o New Deal representou o fim definitivo do

“Estado de partidos e cortes”.

A guerra civil garantiu a consolidação da autoridade interna e possibilitou a

ampliação do Estado norte-americano sob os interesses da parte norte. Entretanto, os

Estados Unidos só foram reconhecidos como uma grande potência do sistema

internacional a partir da sua expansão naval e vitória na guerra hispano-americana de

1898. Além da ampliação da capacidade coercitiva dos Estados Unidos, a crescente

economia norte-americana (juntamente com a de outros países, como o Império

Alemão) fez com que o Reino Unido sofresse um relativo declínio de sua hegemonia e,

como aponta Zakaria (2000, p. 230-231), as dificuldades que os britânicos enfrentaram

na guerra Anglo-Bôer (1899-1902) deixaram evidentes os limites da capacidade

britânica de se impor através da força. Como consequência disso, ainda no final do

século XIX, o Reino Unido já passa a adotar uma política amistosa com os norte-

americanos e toma “a difícil decisão de confiar na boa vontade dos Estados Unidos para

proteger os interesses britânicos no hemisfério ocidental46” (ZAKARIA, 2000, p. 230).

Então, a partir do governo de Theodore Roosevelt, os Estados Unidos conseguiram

alcançar o que Gilpin (1981, p. 24) estabelece como o segundo objetivo dos Estados,

que é o de ampliar sua esfera de influência – nesse caso, o Corolário Roosevelt deixou

explícito que todas as Américas estavam sob a égide dos Estados Unidos.

A incapacidade britânica de sustentar a sua Pax Britannica no início do século

XX gerou um desequilíbrio no sistema internacional e, consequentemente, levou a uma

guerra hegemônica (GILPIN, 1981, p. 209-210). A Primeira Guerra Mundial, portanto,

representou o colapso da ordem social e econômica da Europa, mas não determinou a

ascensão imediata de uma nova hegemonia: um interregno chamado por Carr (1981) de

“Vinte Anos de Crise” ocorreu até que os Estados Unidos se tornassem a potência

hegemônica.

46

“ La penosa decisión de confiar en la buena voluntad de Norteamérica para proteger los interesses

británicos en el hemisferio occidental”.

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45

3.3. Segunda Guerra Mundial e ascensão da superpotência

3.3.1. Coerção

Ainda antes do início da Segunda Guerra Mundial, em meados de 1937 e 1938,

o então presidente Franklin Roosevelt passou a se utilizar de grandes manobras políticas

para convencer o povo norte-americano das ameaças fascistas, pois enfrentava grande

oposição de isolacionistas. Kennedy (1988, p. 331) mostra como durante esse período

os Estados Unidos passaram a se preparar para um futuro conflito: a produção de

aeronaves de guerra dobrou; foi aceita no Congresso uma massiva expansão da

Marinha; testes eram realizados em um protótipo do bombardeiro B-17, os Marines

refinavam sua doutrina de guerra anfíbia e o Exército se preocupava com guerra

blindada. Quando a guerra começou, em 1939, nada disso ainda estava pronto, mas

estavam muito mais adiantados que em 1914. Salienta-se, todavia, as enormes

capacidades norte-americanas quando comparadas aos demais países em conflito:

Kennedy (1988, p. 331-333) aponta como os maciços projetos de militarização dos

Estados Unidos, ainda afetados pela crise de 1929, criaram um impacto muito menor na

economia do que outros países como França, Inglaterra e Itália, que sofriam com graves

problemas estruturais.

O que a queda da França não fez, o ataque japonês a Pearl Harbor fez. O ataque

ao Hawaii minou a idealização norte-americana de que os Estados Unidos estavam

seguros das ameaças externas. E a consequente guerra elevou a política externa para a

mais alta prioridade nacional desde a independência do país. O ingresso dos Estados

Unidos na guerra e o início de uma mobilização total criou um verdadeiro colosso

militar, expandindo suas forças armadas de 174.000 em 1939 para 1.5 milhões em 1941.

Em 1945, eram 12.1 milhões (HERRING, 2008, p. 538-541). Como disse Kennedy

(1988, p. 352-354), apesar de uma superioridade alemã na doutrina operacional, os

recursos norte-americanos eram tão superiores que eles produziam mais embarcações do

que os submarinos alemães poderiam afundar.

Para atender a rápida expansão das demandas diplomáticas e militares do país

que finalmente assumiu sua liderança no mundo, o presidente F. Roosevelt criou uma

grande estrutura para a política externa: dentre os vários órgãos criados, o Office of War

Information (OWI) e o Office of Strategic Services (OSS), precursor da Central

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46

Intelligence Agency (CIA)47, juntamente com a construção do Pentágono. Além disso, a

Segunda Guerra também colocou os militares em uma posição central na formulação da

política externa norte-americana – o que trouxe alterações marcantes nas relações entre

civis e militares e na formulação da política de segurança nacional (HERRING, 2008, p.

544).

Entretanto, é no final da Segunda Guerra que acontece um dos atos mais

controversos da história dos Estados Unidos: o uso de bombas atômicas em Hiroshima e

Nagasaki. Enquanto Truman (o sucessor de F. Roosevelt) e seus assessores justificam o

ato para poupar vidas norte-americanas, muitos revisionistas acreditam que o uso das

bombas atômicas não era necessário e que foram utilizadas como uma ameaça à União

Soviética para que aceitassem os objetivos norte-americanos no pós-guerra (HERRING,

2008, p. 591). De qualquer forma, como disse Kennedy (1988, p. 356-357), as armas

atômicas não apenas simbolizaram o fim de uma guerra, mas também o início de uma

nova ordem no cenário internacional.

As previsões feitas por Tocqueville e outros pensadores do século XIX tinham

se concretizado, as antigas grandes potências de França e Itália já tinham sido

eclipsadas; Alemanha e Japão estavam destruídos; e o Reino Unido em franca

decadência. Estados Unidos e União Soviética agora sustentavam um mundo bipolar,

mas entre eles, o poder dos Estados Unidos era muito maior, não só economicamente,

mas também militarmente e pelo monopólio das armas atômicas (KENNEDY, 1988, p.

357-358).

Nos primeiros anos após o fim da Segunda Guerra, a rivalidade entre Estados

Unidos e União Soviética ficou centrada na demarcação das novas fronteiras da Europa;

e de forma muito semelhante ao pós Primeira Guerra, os Estados Unidos reduziram

drasticamente sua força militar para 600.000 soldados e desativaram muito de sua força

aérea e naval (MAY, 2010, p. 235). Essa situação foi alterada a partir de 1949, onde

alguns eventos fundamentais para o início da cultura de uma Guerra Fria “próxima de

um medo histérico, desconfiança paranoica e conformidade sufocante” ocorreram: em

setembro, a União Soviética explodiu a sua primeira arma nuclear, mais cedo do que

esperavam os americanos; e, além disso, o comunismo triunfou na China, ampliando a

47

O OWI era responsável por censurar a mídia e fazer propaganda de guerra, com o propósito de exaltar a

participação norte-americana e também afetar a moral dos inimigos (HERRING, 2008, p. 542).

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47

disputa centrada na Europa também para a Ásia e dando a impressão de que o equilíbrio

do poder mundial se voltava contra os Estados Unidos (HERRING, 2008, p. 635-637).

O produto mais importante dessa atmosfera sombria foi o National Security

Council Memorandum 68 (NSC-68), de 1950. O documento proclamava, com alarme,

que a União Soviética possuía muito mais forças do que o necessário e que se

preparavam para uma agressão a nível mundial contra todas as instituições livres, e que

para responder a essa ameaça sem precedentes só existiam três opções: (1) isolamento;

(2) guerra preventiva; e (3) uma rápida expansão do poder militar norte-americano.

Considerando a primeira opção como sendo equivalente a uma capitulação e a segunda

como repugnante, o NSC-68 propunha um massivo incremento no orçamento de defesa,

com ênfase no rápido desenvolvimento de uma bomba de hidrogênio, ampliação de

ajuda militar para países amigos e esforços para melhorar os serviços de inteligência

(BACEVICH, 2009, p. 55-56; HERRING, 2008, p. 635-638). Entretanto, mais do que

um documento com uma visão de mundo sombria e que levou a um intenso

rearmamento norte-americano em tempos de paz, o NSC-68 forçou os Estados Unidos a

largarem permanentemente o antigo isolacionismo e a criar um Estado de segurança

nacional. Como aponta Hogan (2000, p. 3), os Estados Unidos “uniram as Forças

Armadas, expandiram os gastos com defesa, utilizaram a ciência com propósitos

militares e criaram novas instituições como o National Security Council e a Central

Intelligence Agency, atualmente dentre os mais conhecidos e poderosos órgãos do

governo”. A transformação do Estado norte-americano também incluiu novos grupos de

gestores da segurança nacional, como especialistas das universidades do país e diretores

de empresas, de instituições financeiras e dos escritórios de advocacia de Wall Street,

além de fazer o Congresso reorganizar seu sistema de comissões para se adequar às

crescentes demandas da segurança nacional no orçamento do governo.

3.3.2. Capital

Se a Primeira Guerra Mundial rendeu grande riqueza aos Estados Unidos, a

Segunda Guerra Mundial centralizou completamente o poder financeiro mundial e

marcou a ascensão da hegemonia norte-americana no que Arrighi (2000) chama de

quarto ciclo sistêmico de acumulação.

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48

Como em todos os casos anteriores de enriquecimento e conquista de poder

prodigiosos, em meio a um crescente caos sistêmico, o grande salto à frente

da riqueza e poder norte-americanos entre 1914 e 1915 foi, primordialmente,

uma expressão da renda da proteção de que o país desfrutava, numa posição

singularmente privilegiada na configuração espacial da economia mundial

capitalista. Quanto mais turbulento e caótico se tornava o sistema mundial,

maiores os benefícios auferidos pelos Estados Unidos, em virtude de suas

dimensões continentais, sua posição insular e seu acesso direto aos dois

grandes oceanos da economia mundial (ARRIGHI, 2000, p. 284-285).

Essa hegemonia pós-1945 foi tão extraordinária que, em 1947, as reservas norte-

americanas de ouro representavam 70% do total mundial e, mais do que isso, a enorme

demanda de dólares por parte de governos e empresas estrangeiras mostrava que o

controle do sistema ia muito além dessa enorme concentração de ouro.

Entretanto, como salienta Arrighi (2000, p.283-287), em Bretton Woods, mais

do que estabelecer a paridade do dólar americano e o ouro, estabeleceu-se um novo

modo de “produzir” o dinheiro mundial. Historicamente, foram sempre os grandes

banqueiros e financistas que controlaram o sistema financeiro, e o sistema de Bretton

Woods conseguiu, através de grandes organizações (como o FMI e o Banco Mundial)

“transferir o controle da liquidez mundial das mãos de particulares para as de governos,

e de Londres e Wall Street para Washington”.

O Plano Marshall estabeleceu, então, a reconstrução da Europa Ocidental à

imagem e semelhança norte-americana e deu uma significativa contribuição para a

expansão do comercial e da produção durante as décadas de 1950 e 1960. Entretanto,

essa expansão e a integração europeia exigiam uma reciclagem da liquidez mundial

muito maior do que estava previsto no Plano Marshall e outros programas, de forma que

a solução para isso foi dada pelo NSC-68, chamado por Arrighi (2000, p. 306-307)

como o “mais maciço esforço de rearmamento que o mundo já vira em tempos de paz”.

[Acheson e Paul Nitze]48

não consideraram nem a integração europeia nem

os realinhamentos monetários como suficientes para manter um superávit de

exportações significativo, ou para dar continuidade aos laços econômicos

entre Estados Unidos e a Europa após o fim do Plano Marshall. A nova

orientação política que propuseram – o maciço rearmamento norte-americano

e europeu – forneceu uma solução brilhante para os grandes problemas da

política econômica norte-americana. O rearmamento nacional proporcionaria

um novo meio de sustentar a demanda, de modo que a economia não mais

ficasse dependente da manutenção de um superávit de exportações. A

assistência militar à Europa proporcionaria um meio de continuar a prestar-

lhe assistência após o fim do Plano Marshall. E a estreita integração das

forças militares europeias e norte-americanas proporcionaria um meio de

48

Acheson era o Secretário de Estado e Nitze o chefe da Policy Planning Staff em 1949 (BLOCK, 1977,

p. 103)

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49

impedir que a Europa, como região econômica, se fechasse para os Estados

Unidos (BLOCK, 1977, p.103-104).

Esse rearmamento proposto resolveu todos os problemas de liquidez da

economia mundial durante a Guerra da Coreia. Além disso, os gastos militares norte-

americanos e a ajuda militar a governos estrangeiros forneceram toda a liquidez para

que a economia mundial pudesse se expandir. Como aponta Arrighi (2000, p. 307),

“com o governo norte-americano agindo como um banco central mundial extremamente

permissivo, o comércio e a produção mundiais se expandiram, de fato, numa velocidade

sem precedentes”, tornando o período para muitos autores como a “idade de ouro do

capitalismo”.

3.3.3. Legitimidade

Promovida pelo New Deal, “A ampliação do poder federal não trouxe reformas

raciais imediatas, mas criaram o potencial para tal reforma posteriormente49” (MARX,

1998, p. 104, tradução nossa). A Segunda Guerra Mundial então consolidou a

centralização do poder do New Deal e enfraqueceu a desigualdade racial: “O embaraço

norte-americano e a contradição entre a retórica antirracista da guerra e o

segregacionismo em casa tornou-se ainda mais acentuado depois da guerra pela posição

internacional emergente e a preocupação com sua reputação50” (MARX, 1998, p. 104-

105, tradução nossa). O debate sobre a questão racial, entretanto, se arrastou por quase

vinte anos, devido à forte oposição de políticos sulistas, e apenas na década de 60 o

Congresso aprovou o Civil Rights Acts, o Voting Rights Act e outras legislações que

consolidaram a garantia aos direitos civis dentro dos Estados Unidos.

A Segunda Guerra também representou a guerra hegemônica que determinou os

Estados Unidos como a nova potência dominante do sistema internacional. Ao assumir

esse papel com base na dimensão de sua força bélica e de seu prestígio, os norte-

americanos atingiram o que Gilpin (1981, p. 24) considera o terceiro objetivo dos

Estados, que é o controle ou grande influência sobre a economia mundial. Assim, no

49

“Increased federal power was not applied immediately to race reform, but did create the potential for

such reform at a later date”. 50

“American embarrassment at the contradiction between the anti-racist rhetoric of the war and

segregation at home was made all the more acute after the war by the country’s emerging international

position and concern about its reputation”.

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50

fim da guerra, já estavam estabelecidos as principais características da nova hegemonia:

as bases do novo sistema monetário foram estabelecidas em Bretton Woods; em

Hiroshima e Nagasaki foram demonstradas as novas armas que sustentariam o novo

sistema; e, em San Francisco, as normas e regras para a legitimação da gestão do Estado

e da Guerra, através da Carta das Nações Unidas.

Ao concluirmos as análises do capítulo, podemos perceber que os Estados

Unidos conquistaram a independência política e, pouco depois (na guerra de 1812), já

conquistam o prestígio internacional, o que foi fundamental para a posterior expansão

territorial do país (Doutrina Monroe, 1823) e para se tornar uma potência regional.

Apesar disso, grandes problemas domésticos e a existência de uma ameaça de secessão

fragmentavam o Estado norte-americano. Contudo, com uma ampliação do Estado,

consequência da vitória da União na Guerra Civil, tal situação foi resolvida. A partir de

então, com suas vitorias na guerra hispano-americana e Primeira Guerra Mundial, os

Estados Unidos se projetaram internacionalmente e, em decorrência de mais uma vitória

na Segunda Guerra, o país se tornou a superpotência mais capaz do sistema

internacional, decretando as ordens do sistema.

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4. Guerra e Formação do Estado na África do Sul

Devido a sua localização estratégica na geografia mundial, a África do Sul foi

alvo da colonização europeia desde o século XVII e a vinda de escravos e trabalhadores

de vários cantos do mundo, juntamente com os povos nativos, deu origem a um

caldeirão de culturas e etnias. As divisões sociais advindas desse processo resultaram

em um amplo histórico de disputas territoriais e rivalidades na região. Ainda que a

descoberta de ouro e diamantes tenha incentivado aos brancos a conquista da hegemonia

territorial, persistia entre eles uma grande disputa pela governança do sistema. Tal

cenário foi modificado em 1902 na guerra anglo-bôer: a vitória britânica moldou o

recém-criado Estado sul-africano conforme os moldes britânicos, mas a majoritariedade

dos africâneres concedeu-lhes o domínio do poder político.

A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial instituiu uma ordem no

sistema internacional contrária ao racismo e a favor da independência política das

colônias europeias na África e Ásia. Porém, essa nova ordem prejudicou o controle do

Estado sul-africano pelas minorias brancas, que reagiram e ampliaram as capacidades

coercitivas do Estado para garantir o seu status quo dominante através do regime do

Apartheid; algo que deixou a África do Sul isolada do sistema e criou grandes

constrangimentos internos. Quando o bastião branco da áfrica austral começou a cair, a

situação se tornou insustentável e os brancos dominantes começaram um processo

pacífico de transição política. Assim, com a vitória de Nelson Mandela para a

presidência da África do Sul em 1994, o país conquistou legitimidade interna e

internacional, mas enfrenta um passado de discriminação que deixou graves problemas

econômicos e sociais.

Assim sendo, o presente capítulo é dividido em duas partes: a primeira, que

analisa a guerra anglo-bôer e a consequente ascensão da África do Sul a potência

regional na África austral; e a segunda, que analisa o Estado sul-africano em meio a sua

tentativa de se garantir como potência regional e a consequente derrota nas guerras de

fronteira sul-africanas.

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4.1. Guerra Anglo-Bôer

Até 1870 o território da atual África do Sul era bastante fragmentado: além da

colônia do Cabo e da colônia de Natal, ainda existiam as repúblicas africânderes e

nações africanas independentes, como o Leshoto e o Estado zulu. Entretanto, como

aponta Thompson (2001, p. 112-113), a população desse território era ainda mais

dividida: os africânderes, que no total compunham a maioria dos brancos de todo o

território; os colonos britânicos; o grupo chamado como “Coloured” que são os

descendentes dos escravos trazidos da Indonésia, Madagascar, África tropical e,

principalmente, dos khoikhoi; os africanos de línguas bantas e os indianos levados para

a colonial de Natal, onde superariam em quantidade os brancos.

O império britânico, a maior potência do mundo no período, até então tinha

pouco interesse na pobre economia que existia na África austral, de modo que o grande

objetivo da administração colonial era sempre a redução de custos. Entretanto, após

1870, diversos fatores contribuíram para uma drástica alteração na postura dos

britânicos. Segundo Worden (2012, p. 24), os historiadores divergem quanto às causas

que levaram o império britânico a adotar uma política mais agressiva: alguns alegam

que a unificação da região levaria ao progresso e desenvolvimento da economia local,

enquanto outros apontam que isso fez parte da competição imperialista entre as

potências europeias pelo interior da África. Além disso, a descoberta de ouro e

diamantes no interior da África do Sul seria, por si só, motivo de maior atenção para os

britânicos, ainda mais quando a economia britânica enfrentou uma grande depressão a

partir de 1873.

4.1.1. Coerção

A partir da década de 1870, então, os britânicos buscaram construir uma

federação na África do Sul e anexaram a Griqualândia ocidental (1871) – local onde

foram descobertas as reservas de diamantes; a República do Transvaal (1877); e

derrotaram o reino Zulu (1879) – o produto mais forte do Mfcane. A anexação do

Transvaal, porém, resultou em maiores problemas: decorridos quatro anos, os

africânderes se revoltaram e expulsaram os britânicos após a batalha de Majuba Hill

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(1881) – ainda que tenha sido muito pequena (menos de 100 mortos), ela se tornou a

Eerste Vryheidsoorlog – a Primeira Guerra pela Liberdade (ou Primeira Guerra Anglo-

Bôer), símbolo do nacionalismo africânder e palco do surgimento de Paul Kruger, o

presidente africânder que liderou uma forte oposição aos britânicos (LE MAY, 1971, p.

28-29).

Paralelamente na colônia do Cabo, o primeiro-ministro era um dos grandes

apoiadores do imperialismo britânico: Cecil Rhodes. Magnata das minas de diamante,

Rhodes buscou impossibilitar a expansão territorial dos africânderes proclamando o

protetorado de Bechuanaland (atual Botsuana) em 1885; ocupando o norte do rio

Limpopo, através da British South Africa Company, formando a Rhodesia (atual

Zimbábue) em 1891 e anexando as últimas porções de terra com acesso ao mar antes da

colônia portuguesa de Moçambique; de forma que os africânderes ficaram

completamente cercados pelos britânicos.

Em 1895, alguns dos Uitlanders51 começaram a conspirar contra o governo de

Paul Kruger e receberam suporte de Cecil Rhodes e da British South Africa Company,

de modo que tentaram invadir o Transvaal para reanexá-lo. Entretanto, os conspiradores

não souberam manter o sigilo e o evento, conhecido como The Jameson Raid, foi um

fracasso, mas serviu para aumentar as rivalidades entre africânderes e britânicos (LE

MAY, 1971, p. 32; THOMPSON, 2001, p. 139). Além disso, as minas de ouro

concederam grandes vantagens econômicas às repúblicas africânderes, algo que as

possibilitou fazer alianças estratégicas com outras nações, como a Alemanha imperial

(presente na atual Namíbia). Por fim, o desgosto das elites africânderes,

tradicionalmente rurais, pelo capitalismo industrial levaram muitos donos de minas a

desejarem uma nova administração (STAPLETON, 2010, p. 86).

Essa combinação de fatores levou à guerra sul-africana (ou Segunda Guerra

Anglo-Bôer) em outubro de 1899. Fortalecidas pelo dinheiro da mineração e armadas

com armamentos alemães, as repúblicas africânderes lançaram um ataque preventivo

antes que os britânicos pudessem levar seus exércitos para a região. Dentre a população,

muitos acreditavam que a guerra era necessária para preservar a sua independência,

enquanto outros acreditavam que o ouro era uma dádiva divina e a guerra levaria à

formação de uma grande República Bôer em toda a África do Sul.

51

Forma como os africânderes chamavam os imigrantes oriundos de várias partes do mundo em busca do

ouro.

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54

Alguns pontos sobre o conflito devem ser elencados: apesar da opinião pública

europeia e norte-americana favorecer as repúblicas bôeres, nenhum governo estrangeiro

ofereceu suporte. Nesse caso, a superioridade numérica dos britânicos era enorme: em

toda a guerra 450.000 homens lutaram pelo lado britânico, enquanto os bôeres contaram

com no máximo 88.000, contando tropas de voluntários estrangeiros. Além disso, como

Portugal concordou em proibir a passagem de armamentos pelo Moçambique, as

repúblicas bôeres (que então eram cercadas pelos britânicos e com uma pequena

fronteira com Moçambique) ficaram isoladas e impossibilitadas de receberam mais

armamentos (THOMPSON, 2001, p. 89).

Apesar da imensa superioridade numérica, os britânicos tiveram grandes

problemas na sua maior guerra desde as guerras napoleônicas (THOMPSON, 2001, p.

115). Ainda que ambas as repúblicas tenham sido conquistadas e anexadas ainda em

1900, uma guerra de guerrilha se prolongaria até 1902. É durante esse período que os

britânicos vão remover a população civil africânder e colocar em campos de

concentração, e cerca de 28 mil africânderes, a maioria crianças, e 20 mil presidiários

africanos morreram por causa de doenças dentro desses campos (STAPLETON, 2010,

p. 86-107). Com ambos os lados desgastados pela guerra, mas os africânderes possuindo

no máximo 15 mil homens e enfrentando 250 mil britânicos, os comandantes bôeres não

viram alternativa além da rendição a fim de preservar a nação africâner, já que não

puderam garantir a independência política (MARX, 1998, p. 67-68).

Após a unificação do território e de se tornar um Domínio do Império Britânico,

a África do Sul se manteve sem uma marinha própria (apenas fornecia apoio para a

permanência da marinha britânica na região); mas era responsável pela sua defesa

terrestre e adotou, até onde era possível em vista do orçamento, um modelo suíço de

sistema militar, onde todos os homens adultos faziam parte de uma reserva em tempo

parcial, podendo ser rapidamente mobilizados quando necessário.

Quando a Primeira Guerra Mundial começou, a África do Sul, bem como outros

domínios britânicos, apoiaram os britânicos contra os alemães. Entretanto, alguns

africânderes demonstravam simpatia pelos alemães e eram contrários ao apoio para os

britânicos, de forma que começaram a planejar uma rebelião. Quando as forças sul-

africanas marcharam para a conquista do Sudoeste Africano Alemão (atual Namíbia), a

revolta africânder também começou e eles se juntaram às forças alemãs. Isso não foi,

porém, suficiente para uma grande oposição às forças sul-africanas que, em 1915,

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conquistaram o território alemão e acabaram com a revolta. Ao término dos conflitos, a

administração Botha, preocupada com o interesse nacional, perdoou os membros da

revolta, enquanto que o território do Sudoeste Africano se tornaria um mandato da Liga

das Nações, sob administração sul-africana (STAPLETON, 2010, p. 116-122).

A eclosão da Segunda Guerra Mundial causou divisões profundas entre os

africânderes. O sentimento predominante era de grande consternação pela aliança da

África do Sul com os britânicos em mais uma guerra europeia, mas os africânderes

reagiram de formas muito diferenciadas. Enquanto muitos se voluntariaram para lutar na

guerra, outros se aproveitaram para difundir ideais nazistas (THOMPSON, 2001, p.

183-184). Apesar dessa divisão e com o aval do Parlamento (80 a favor e 67 contra), as

forças sul-africanas combateram do lado aliado nas campanhas da África oriental (na

expulsão dos italianos da Etiópia), do norte da África, do Madagascar (sob o regime

colaboracionista de Vichy) e da invasão da Itália. Além disso, a África do Sul deu uma

importante contribuição à causa aliada pela sua posição estratégica como rota de

suprimento para as forças aliadas no norte da África e Ásia, já que o Mediterrâneo

estava fechado pelo Eixo (THOMPSON, 2001, p. 177). E como aponta Stapleton (2010,

p. 136-151), a partir de 1945 a África do Sul já possuía sua própria marinha e força

aérea, e a participação nos conflitos tornou o país uma potência continental emergente

distinta do Reino Unido – entretanto, diversos fatores internos limitaram

consideravelmente a capacidade sul-africana de projeção militar, como a dificuldade

dos negros de servirem nas forças.

O resultado da guerra e a propaganda antirracista dos Aliados, evidente na Carta

do Atlântico, contrariavam a opinião pública africânder de que o Estado deveria garantir

a supremacia branca. Essa incongruência levou a uma intensificação do nacionalismo

africânder, que culminou com a ascensão do Partido Nacionalista Africânder e início do

Apartheid. Assim, como forma de garantir o controle branco do Estado, o aparelho

coercitivo do Estado sul-africano foi drasticamente ampliado através de várias leis que

permitiam à polícia prender as pessoas sem julgamento e mantê-las indefinidamente em

confinamento solitário, sem visitas e sem revelar a sua identidade. O governo também

podia banir e extinguir quaisquer tipos de organizações e possuía ferramentas poderosas

para a aplicação do Apartheid: poucos negros recebiam autorização para portar armas de

fogo, enquanto a maioria dos brancos possuíam armas de fogo e experiência com elas; a

polícia era bem treinada e equipada, mas como era pequena em proporção à população,

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o governo nacionalista iniciou um programa maciço de militarização52, de forma que as

Forças Armadas sul-africanas eram, de longe, as melhores ao sul do Saara

(THOMPSON, 2001, p. 199-200).

4.1.2. Capital

Até as descobertas de ouro e diamantes, os dois Estados africânderes53 estavam

na periferia da economia capitalista global. As comunicações eram realizadas através de

mensageiros e as estradas eram trilhas desgastadas pela passagem de pessoas, animais e

carroças. E, como para os africanos, a riqueza dos africânderes era em rebanhos, ainda

que diferentemente dos primeiros, eles possuíam terras individualmente (THOMPSON,

2001, p. 101). Além disso, ambas as repúblicas eram dependentes do comércio com a

colônia do Cabo para a obtenção de armas e munições (WORDEN, 2012, p. 21). A

colônia do Cabo, por sua vez, também era de pouca significância econômica para a

economia britânica. De forma geral, o total das exportações representava uma pequena

parte do comércio externo do império britânico, de forma que poucos britânicos

imigraram para a colônia, poucos investimentos britânicos eram feitos nela e poucos

recursos eram atribuídos para sua administração (THOMPSON, 2001, p. 53). A colônia

de Natal, ao se tornar distinta da colônia do Cabo em 1856, desenvolveu uma indústria

açucareira. Entretanto, devido às medíocres condições de trabalho e aos baixos salários,

os trabalhadores africanos não forneceram essa mão de obra, tão necessária para o ramo

açucareiro, e o governador da colônia importou trabalhadores indianos. A partir de

então, a indústria açucareira se desenvolveu e se tornou o produto de exportação mais

importante da colônia (BHEBE, 2010, p. 183).

52

Em meados de 1970, as Forças de Defesa da África do Sul (SADF) eram majoritariamente ocupadas

por africânderes, sendo eles 85% do Exército, 75% da Aeronáutica e 50% da marinha. Não-brancos eram

raramente empregados, mas poderiam ser alistados, sempre em funções desarmadas, como cozinheiros e

motoristas. Entretanto, teorias de contra-insurgência, elaboradas por norte-americanos e franceses no

Vietnam e Argélia, apontavam que insurgentes bem motivados poderiam derrotar poderosas forças

militares convencionais; de modo que as insurgências só poderiam ser vencidas através de meios não-

militares (a conquista de “corações e mentes” da população). Nesse contexto, soldados nativos com

conhecimento da cultura local eram valiosos; além disso, no caso da África do Sul, manter uma força de

defesa apenas de brancos (sendo eles minoria da população) e a perspectiva de uma guerra convencional

contra Estados vizinhos tornou o alistamento de soldados negros algo desejável; de forma que a partir de

então regimentos de africanos, coloured e indianos começaram a ser montados – na segunda metade de

1980, os brancos já eram apenas 60% da força (STAPLETON, 2010, p. 153-156). 53

Divergências entre os africânderes durante a Grande Trekk levaram ao surgimento de dois Estados: O

Estado Livre de Oranje e a República do Transvaal.

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57

A descoberta de ouro e diamantes teve um impacto gigantesco para a África

austral, já que a migração de trabalhadores para as minas gerou um forte surto de

urbanização. Foi assim que surgiram cidades que até então não existiam, como

Kimberley (cidade dos diamantes), e outras viram sua população aumentar

drasticamente, como Johannesburgo (cidade do ouro) que era então um pequeno vilarejo

e tornou-se uma cidade de 166 mil habitantes em 1900. Além disso, a malha ferroviária

passou de 110 km em 1869 para 4190 km em 1905; e a agricultura e o setor

manufatureiro passaram por uma grande expansão em decorrência do crescimento

demográfico e da urbanização. Como aponta Kaniki (2010, p. 477-482), o país passou

por uma verdadeira revolução econômica após as descobertas de ouro; e com o

desenvolvimento das indústrias, a economia sul-africana atingiu um alto grau de

diversificação. A indústria do ouro, ainda a espinha da economia sul-africana, gerou

uma grande contribuição ao orçamento nacional e fornecia câmbio suficiente para a

importação de maquinários e combustível.

Todavia, a descoberta do ouro no Transvaal foi uma dádiva e um castigo para os

africânderes: enquanto a indústria da mineração levou a uma rápida expansão da

economia e colocou as repúblicas bôeres como a força econômica da região; o caráter

cosmopolita das minas, com imigrantes oriundos de várias partes do mundo (chamados

pelos africânderes como Uitlanders), era visto como uma ameaça à independência

africâner e o desenvolvimento de um capitalismo industrial era mal visto pelas elites

africânderes, de raiz agrícola (THOMPSON, 2001, p. 136). As novas oportunidades e

condições de vida, entretanto, preservaram e reforçaram as históricas divisões raciais. A

divisão da força de trabalho, com brancos ocupando cargos especializados ou de

supervisão e recebendo altos salários, enquanto os negros eram mal pagos e submetidos

às péssimas condições de trabalho, foi fundamental para a construção de uma sociedade

industrial nos mesmos moldes da colonial (THOMPSON, 2001, p. 112).

Economicamente, a África do Sul foi beneficiada pela Primeira e Segunda

Guerra Mundial, gerando um grande estímulo para as indústrias de alimentos e

manufaturados. Desde a formação da União em 1910 até o término da Segunda Guerra

Mundial, a renda nacional do país aumentou em mais de três vezes em termos reais

(THOMPSON, 2001, p. 154), algo que foi fundamental para a formação de uma ordem

regional centrada na indústria e infraestrutura sul-africana, o que demonstra a liderança

do país na África austral. Como resultados desse grande crescimento econômico, os

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brancos pobres desapareceram e os africânderes conquistaram posições importantes na

economia. Os negros, porém, não puderam colher os frutos desse crescimento:

completamente subordinados aos brancos pelas leis segregacionistas, os negros

costumavam receber salários mais de 10 vezes menor que dos brancos (THOMPSON,

2001, p. 156-157).

4.1.3. Legitimidade

Em 1910, seguindo o antigo interesse de formar uma unidade, as colônias do

Cabo e de Natal, além das antigas repúblicas africânderes, se uniram na União da África

do Sul, um domínio autônomo do Império Britânico. Segundo Thompson (2001, p. 150-

151), a Constituição dessa União continha quatro princípios de destaque e que seriam de

grande importância no decorrer da história: (1) seguiu o modelo britânico de Estado

unitário com soberania parlamentar; (2) cada antiga colônia manteve regras diferentes

de direito ao voto, sendo que nas antigas repúblicas africânderes apenas os homens

brancos tinham esse direito; (3) em intervalos regulares de tempo, comissões judiciais

deveriam dividir o território do país em zonas eleitorais para as votações da Câmera

Baixa do Parlamento mantendo aproximadamente o mesmo número de votantes entre

elas54; e (4) inglês e holandês (posteriormente trocada para africânder) seriam os

idiomas oficiais do país. Assim, em 31 de maio de 1910, oito anos após depor armas

como líder das forças militares das repúblicas africânderes, Louis Botha55 se tornou o

primeiro-ministro da recém-formada União da África do Sul.

A partir de então, apesar de grandes divisões entre os próprios africânderes e

entre africânderes e britânicos, as sucessivas administrações sul-africanas se

preocupariam com a consolidação do poder dos brancos no novo país. Diversas leis

foram criadas com o propósito de reforçar o poder dos brancos e tornar os negros uma

mão de obra barata, entre elas o Mines and Work Act (1911, emendado em 1926),

Natives’ Land Act (1913), Apprenticeship Act (1922), Natives Urban Act (1923), Native

54

Segundo Thompson, isso foi fundamental para a formação do governo de Malan e início do Apartheid

em 1948 (2001, p. 151) 55

Como aponta Anthony Marx (1998, p. 74), o fato de os africânderes terem tomado o controle político

após a derrota na guerra anglo-bôer é irônico: até a guerra, os africânderes eram bastante divididos, e

agora o Estado era governado por um dos líderes dos derrotados. Na comparação de A. Marx, seria como

se um sulista fosse eleito presidente dos Estados Unidos após a Guerra Civil e impusesse as leis

segregacionistas de Jim Crow nacionalmente.

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59

Administration Act (1927) e o Native Service Contract Act (1932). Dentre essas, a

Natives’ Land Act é a de maior destaque, já que reservava 88% das terras para uso

exclusivo dos brancos e os 12% restantes seriam destinados para algo como “reservas

indígenas” para os africanos (KANIKI, 2010, p. 477).

Apesar das principais batalhas da Segunda Guerra Mundial terem ocorrido longe

da África do Sul, o conflito gerou grandes transformações dentro do país. Devido à

expansão da indústria de manufaturados e da mineração de carvão, houve uma intensa

urbanização; e como muitos trabalhadores brancos foram para a guerra lutar contra a

Alemanha, eles foram substituídos pela mão de obra negra, o que gerou um aumento de

47% da população negra que morava nas cidades56. Como aponta Thompson (2001, p.

178), em 1946, 76% da população branca era urbanizada, assim como 70% dos

indianos, 62% Coloured e 24% dos africanos – porém, em quantidade absoluta, eram

mais africanos habitando em cidades do que brancos. Em resposta a essas novas

pressões internas e externas no período da guerra57, o governo fez algumas concessões e

a “Color Bar”58 foi aliviada, além de melhoras na educação e aumento dos salários dos

africanos (THOMPSON, 2001, p. 181). Os africânderes, porém, viram essas reformas

com receio de que os falantes de inglês estavam quebrando o pacto de união entre

brancos, criado na guerra Anglo-Bôer, e passaram a temer também pela cada vez mais

numerosa presença dos africanos (MARX, 1998, p. 77). Esses fatores levaram o

nacionalismo africânder a ressurgir com grande força e a uma consequente e inesperada

vitória do National Party59 nas eleições de 1948.

A partir de então, o National Party usou o controle do governo para perseguir os

objetivos da supremacia racial branca e, principalmente, do nacionalismo africânder.

Segundo Thompson (2001, p. 190), quatro ideias serviram de base para o governo do

partido, sendo elas (1) a concepção de que a população sul-africana era dividida entre

quatro grandes grupos raciais (brancos, coloured, indianos e africanos); (2) os brancos,

56

Como nem governo, nem as autoridades urbanas e nem as indústrias providenciaram moradia para a

migração urbana dos negros, os africanos construíram suas moradias com sacos, madeira, ferro ondulado

e papelão nos arredores das cidades. O mais famoso desses assentamentos foi construídos no sudoeste de

Johannesburg, Soweto (THOMPSON, 2001, p. 178). 57

Como coloca Thompson (2001, p. 181), a propaganda dos Aliados, incluindo a Carta do Atlântico, era

antirracista. 58

Color Bar eram os limites que funcionários negros poderiam alcançar na profissão, de modo que os

brancos sempre teriam melhores cargos do que os negros. 59

Partido nacionalista africânder fundado por Hertzog logo após a formação da União. A partir da década

de 1930, se fortaleceu com o suporte de várias organizações culturais e econômicas africânderes, em

especial o Broederbond (THOMPSON, 2001, p. 162)

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60

como a raça civilizada, deveriam ter controle absoluto do Estado; (3) os interesses dos

brancos deveriam prevalecer ante os interesses dos africanos, de forma que o Estado não

era obrigado a providenciar condições iguais para as diferentes raças e; por fim, (4) o

grupo racial branco (falantes do inglês e africânderes) formava uma única nação,

enquanto que os africanos permaneciam a várias nações distintas. Dessa forma, a

Population Registration Act de 1950 fundamentou o Apartheid estabelecendo distinção

racial a partir da aparência e da reputação, enquanto outras leis proibiram relações inter-

raciais e reforçaram a segregação residencial; além delas, outras leis surgiram para

garantir a segregação racial em locais públicos e para a educação. E devido à

inconsistência de dominação racial, até mesmo uma potencial aliança com os

“coloured”, algo que até então recebia o apoio dos nacionalistas africânderes, foi

abandonada e essa categoria perdeu o direito ao voto60. Além disso, o governo também

providenciou meios de tornar as suas instituições mais africânderes, nomeando

africânderes para cargos importantes no serviço civil, nas Forças Armadas, na polícia e

nas corporações do Estado.

Revoltas populares foram comuns na década de 1940 na África do Sul,

principalmente em função do aumento da urbanização dos negros. Mas, como aponta

Worden (2012, p. 108-109), a ascensão do National Party ao governo impulsionou de

forma sem precedentes os protestos durante a década de 1950. Dentre esses protestos, o

massacre de Sharpeville, em 1960, chamou a atenção dos demais países para o

Apartheid e vários pedidos de sanções econômicas contra a África do Sul foram feitos

na ONU (todos vetados pelo Reino Unido e Estados Unidos, já que ambos possuíam

grandes investimentos na África do Sul). Além disso, o evento colaborou para a saída

da África do Sul da Commonwealth e, como aponta Worden (2012, p. 116-117), levou a

África do Sul para um progressivo isolacionismo das tendências políticas do continente

africano e do mundo em geral pelas décadas posteriores.

Entretanto, Apartheid, uma palavra que era um slogan político até então, se

tornou um engenhoso sistema de engenharia social sob o governo de Verwoerd (1958-

1966). Isso se deu através do “Separate Development”, cuja política fundamental foi a

criação de pequenas “nações independentes” chamadas de Homelands ou Bantustans,

de forma que os africanos eram formalmente excluídos da cidadania sul-africana

60

Após várias tentativas e manobras políticas, os direitos de voto dos Coloured foram eliminados em

1956 (THOMPSON, 2001, p. 190-191)

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61

(MARX, 1998, p. 79). O governo, então, impôs um rígido controle sobre todos os

negros sul-africanos e tentou realocar quase todos eles nesses Homelands, exceto

aqueles que os patrões brancos precisavam do trabalho – estima-se que cerca de 3,5

milhões de negros sul-africanos foram realocados entre 1960 e 1983 (THOMPSON,

2001, p. 194).

A descoberta de ouro no Transvaal e o consequente desenvolvimento da

economia local foram fatores incentivadores para a unificação do território, mas o

Estado sul-africano somente foi consolidado após a guerra Anglo-Bôer. Ao opor as duas

maiores forças dentro da África do Sul na virada do século XX, o conflito pode ser

interpretado tanto como uma fracassada guerra de independência dos africânderes

quanto uma guerra civil pela hegemonia das leis e das instituições do país (MARX,

1998, p. 69). Entretanto, apesar de uma custosa vitória britânica, o resultado do conflito

foi uma união entre africânderes e britânicos com a finalidade de manter a supremacia

branca em um território onde a maioria da população era negra. Tal aliança entre os

antigos rivais fica evidente quando Louis Botha, comandante militar dos africânderes na

guerra, foi eleito o primeiro Primeiro-ministro do Estado. Com isso, percebe-se que o

sistema nacional sul-africano seguiu uma lógica semelhante à proposta por Gilpin para

explicar as mudanças do sistema internacional. Para o autor, a estabilidade do sistema é

garantida se nenhum Estado acredita ser vantajoso mudá-lo (2009, p. 10), da mesma

forma foi com o Estado sul-africano, onde nenhum dos lados acreditava que seria

vantajoso alterá-lo novamente; isso explica porque africânderes e britânicos, apesar de

grandes rivalidades, permaneceram unidos (com exceção de poucas revoltas muito

pequenas).

A Segunda Guerra Mundial, decisiva para uma mudança na governança do

sistema internacional, instituiu novas regras e costumes que eram contrários ao

pensamento africânder. Enquanto o pensamento norte-americano, a nova hegemonia,

pregava contra o racismo e em defesa da independência dos países africanos; os

africânderes responderam às novas ameaças à supremacia branca na África do Sul com

ampliação da coerção – começaria assim o Apartheid.

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62

4.2. Guerras de Fronteira sul-africana e fim do Apartheid

4.2.1. Coerção

A resistência ao governo era feita, inicialmente, através de boicotes, greves e

desobediência civil, seguindo táticas preconizadas pelo Programme of Action de 194961,

um documento produzido pelo African National Congress (ANC)62. Dentre esses

protestos, o massacre de Sharpeville, em 1960, se tornou um dramático turning point na

história da África do Sul: internamente, uma série de greves se espalhou pelo país, de

forma que o governo declarou Estado de Emergência, deteve os líderes do ANC e

PAC63 e baniu ambas as organizações; além disso, o massacre mostrou as falhas da

resistência pacífica e fez com que novos métodos de oposição ao Apartheid, mais

violentos, começassem a ser utilizados. O isolamento internacional da África do Sul,

causado principalmente após o massacre de Sharpeville, levou o país a estabelecer o

Armaments Development and Production Corporation (Armscor) em 1968 para facilitar

a manufatura local de armas, equipamentos militares e munições. Nas décadas de 70 e

80, a África do Sul já se tornaria a líder mundial em designer e produção de veículos

protegidos de minas (STAPLETON, 2010, p. 158).

A partir do processo de descolonização da África, os novos regimes africanos

independentes fundaram a Organização da Unidade Africana e instituíram o Comitê de

Libertação, com sede em Dar Es Salaam (Tanzânia) – esse comitê estabeleceu campos

de refugiados sul-africanos, oferecendo também educação e treinamento militar aos

refugiados. Entretanto, como aponta Thompson (2001, p. 213-215), apesar dos novos

países africanos desejarem a erradicação do Apartheid, faltavam meios de fazer isso –

os regimes ainda eram muito fracos, preocupados com a própria sobrevivência e muitas

vezes dependentes da economia sul-africana; e mesmo com forças combinadas não

poderiam se equiparar à força militar da África do Sul. Assim, até 1978, a oposição

internacional ao Apartheid, forte na retórica, ainda era fraca em substância.

61

Essa foi o ponto decisivo do fim das tentativas de conciliação tentada nas décadas anteriores. O

Programme of Action conclamava pela libertação nacional e independência política da dominação branca

através dos boicotes, das greves e da desobediência civil (WORDEN, 2012, p. 95). 62

Criada em 1912 como forma de oferecer oposição à hegemonia branca, a organização de âmbito

nacional conseguiu sobreviver a obstrução oficial e se tornou um formidável instrumento de resistência na

segunda metade do século XX. Com a democratização, a organização se tornou um partido político. 63

Dissidentes africanistas do CNA, sob a liderança de Sobukwe, fundaram o Pan-Africanist Congress em

1959 (THOMPSON, 2001, p. 210).

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63

Apesar de toda a militarização africânder e de alguns sucessos na sua luta contra

movimentos sociais dos negros durante a década de 1960, inclusive com o

aprisionamento das principais lideranças negras (como Nelson Mandela), a consciência

negra conseguiu se difundir pela sociedade e o ano de 1973 marcou o início de uma

nova onda de greves e protestos. Em 16 de junho de 1976, milhares de crianças negras

protestaram contra o ensino do idioma africânder (visto por eles como o idioma do

opressor) em Soweto. O governo reagiu brutalmente em novo massacre, onde se estima

que 575 pessoas morreram (THOMPSON, 2001, p. 212-213). Como resultado, milhares

de jovens negros sul-africanos fugiram do país e receberam treinamento militar em

Tanzânia e Angola.

Pressões internas e externas começaram a pressionar duramente o regime do

Apartheid, de modo que algumas reformas foram feitas com a intenção de se adaptar às

novas situações. Mas além das reformas, a política do governo Botha (1978-1989)

pregava a ideia de que a África do Sul se tornou alvo de um “ataque total” por

revolucionários de dentro e fora do país, e que eles deveriam ser combatidos com a

“total strategy” – uma combinação eficiente dos meios de segurança com políticas

reformistas (WORDEN, 2012, p. 133). Além dos aspectos internos, cada vez mais

problemáticos com aumento da resistência, Botha procurou neutralizar a oposição de

países potencialmente hostis na África austral através da criação de uma “constelação de

Estados” ligados à África do Sul pelo comércio, algo que foi frustrado pela formação

dos Estados da Linha de Frente64. O Estado sul-africano começou então a realizar

invasões militares acompanhadas de suporte indireto a movimentos dissidentes armados

(Renamo em Moçambique e Unita em Angola) e incursões em Lesoto, Suazilândia,

Zimbábue e Botsuana com a finalidade de desestabilizar a região. Além disso, seguindo

um primeiro teste nuclear no Atlântico Sul em 1977, a África do Sul chegou a produzir

seis ou sete pequenas bombas nucleares (STAPLETON, 2010, p. 158).

Entretanto, as reformas promovidas por Botha não convenceram e ainda

facilitaram a resistência. Por toda a década de 1980, então, houve uma escalada na

violência, com aumento da resistência (sabotagem, explosões) e de protestos; e a partir

de 1985, esses movimentos estavam quase conseguindo o seu objetivo de tornar o país

ingovernável (BEINART, 2001, p. 259). Na tentativa de reestabelecer o controle sobre a

república, o governo Botha estabeleceu o estado de emergência e ampliou

64

Estados vizinhos à África do Sul e governados por negros (STAPLETON, 2010, p. 187)

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64

consideravelmente a repressão e os gastos com defesa – nas palavras de Thompson

(2001, p. 235, tradução nossa), “o governo tinha recorrido à tirania legalizada” 65.

Sem resultados positivos na repressão interna e na Guerra de Fronteira66, o

governo do sucessor de Botha, F. W. de Klerk, alterou a política repressiva para uma

conciliatória. Assim, com o início da transição, as Forças Armadas sul-africanas

(SADF) perderam uma considerável influência política. E após o fim do Apartheid,

como aponta Stapleton (2010, p. 192-193), o papel das forças militares sul-africanas

tornou-se um tanto contraditório: com tantos problemas internos e a falta de ameaças

externas, os gastos com defesa não são uma prioridade do país; mas como uma potência

regional com histórico de luta contra a opressão, torna-se um dever da África do Sul

ajudar a promover a democracia e os Direitos Humanos em outros países da África, algo

que se torna uma obrigação devido aos danos causados pelo Apartheid aos países

vizinhos. E de fato, a África do Sul, ao sair do isolacionismo, tem contribuído em várias

missões internacionais tornando-se um membro importante da SADC e UA67,

organizações que são intensamente envolvidas em problemas de segurança

internacional, resoluções de conflitos e manutenção da paz.

4.2.2. Capital

A partir do final da década de 1970, vários fatores internos e externos

começaram a ameaçar o regime de Apartheid68. Internamente, a própria indústria exigia

trabalhadores permanentes e semi qualificados, de forma que o Apartheid não

colaborava mais com as necessidades do capitalismo sul-africano (WORDEN, 2012, p.

132). O alto custo de manutenção do regime; o mau uso dos recursos humanos; uma

indústria que não era competitiva internacionalmente e a perda de investimentos

externos (devido às sanções) prejudicaram fortemente a economia sul-africana, que

entrou em um período de forte recessão. Além disso, como aponta Thompson (2001, p.

65

“The government had resorted to legalized tyranny”. 66

A tentativa sul-africana de se garantir como uma potência regional na África austral teve um custo

financeiro e humano muito alto. Em 1988 as forças sul-africanas sofreram muitas perdas em combate

contra as forças combinadas de Angola (MPLA) e Cuba. O acordo de paz marcou o fim do controle sul-

africano da Namíbia e a retirada das tropas sul-africanas de Angola (THOMPSON, 2001, p. 239-240). 67

Southern African Development Community e União Africana. 68

Concebidas como elemento dissuasor, a África do Sul conduziu um teste nuclear no Atlântico sul em

1977 e chegou a produzir sete pequenas bombas atômicas durante a década de 1980 (STAPLETON,

2010, p. 158)

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65

221-222), a população negra estava crescendo em uma taxa muito maior que a branca,

de modo que a proporção de brancos estava em rápido declínio. Em uma tentativa do

regime de se adequar às pressões, foram feitas algumas reformas, mas elas surtiram

efeitos contrários. A economia não conseguiu recuperar o crescimento; inflação e

desemprego aumentaram e o padrão de vida de todos os sul-africanos (incluindo os

negros) reduziu. Assim, a recessão econômica e os altos gastos do governo levaram o

Estado à bancarrota em 1989, momento em que se deu início às negociações para a

transição de poder.

Desde então a economia sul-africana tem tido grandes problemas para se

recuperar. O histórico de uma força de trabalho mal treinada, com baixa produtividade e

somada a leis trabalhistas que garantem altos salários, deixou a manufatura local sem

competitividade no mercado internacional (WORDEN, 2012, p. 157-158); e a ausência

de mão de obra qualificada cria grandes transtornos para indústrias de ponta, algo que a

educação do país não consegue reverter porque sofre com condições precárias

(THOMPSON, 2001, p. 284-285). Além disso, altos índices de desemprego estimulam a

enorme violência na sociedade sul-africana (com altos índices de assassinatos, roubos e

estupros), algo que é considerado por Worden como uma das causas que afastam os

investimentos externos no país (2012, p. 162). Outros graves problemas que assolam

sucessivos governos sul-africanos são a saúde e a corrupção: além de uma séria

deterioração na qualidade dos hospitais públicos, a África do Sul tem um dos mais altos

índices de contaminação por HIV no mundo – em 2009, mais de cinco milhões de

pessoas portavam o vírus, o que corresponde a cerca de 17% da população total69

(WORDEN, 2012, p. 161). A corrupção, apesar de não ser uma novidade na África do

Sul, aumentou consideravelmente com a ascensão da nova elite política negra – alguns

estudiosos apontam que isso acontece porque a nova elite tem experiências recentes de

extrema pobreza e vê no Estado uma fonte para o enriquecimento próprio

(THOMPSON, 2001, p. 287).

69

O presidente Thabo Mbeki, sucessor de Mandela, alegou publicamente que a AIDS era uma doença

ocidental, que os relatórios alarmistas refletiam estereótipos racistas sobre a sexualidade africana e que os

remédios de combate ao vírus eram possivelmente tóxicos. Apesar de não ser um cientista, Mbeki entrou

na controvérsia sobre a causa da AIDS, onde uma pequena minoria de cientistas apontava outras causas,

como má nutrição (THOMPSON, 2001, p. 294; WORDEN, 2012, p. 161)

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66

2.3. Legitimidade

Na segunda metade do século XX, a África passou pelo “Wind of Change” 70- o

processo de descolonização e independência política dos países africanos. A partir da

década de 60, o Reino Unido passou o poder para nacionalistas africanos na Tanzânia,

Uganda, Quênia, Malaui, Rodésia do Norte (atual Zâmbia), Lesoto, Botsuana e

Suazilândia. As exceções, dentro da África austral, foram a Rodésia (atual Zimbábue),

onde os colonos brancos declararam uma independência não reconhecida temendo que o

poder fosse para os negros, e as colônias portuguesas de Moçambique e Angola – nestes

países a transição de poder foi problemática e à base de conflito. Já na década de 1970,

a ONU, contando com mais membros africanos e asiáticos, passou a dar mais atenção

para o racismo na África do Sul; de forma que e a Corte Internacional de Justiça julgou

o controle sul-africano da Namíbia como ilegal, a Assembleia Geral da ONU declarou o

Apartheid como um crime contra a humanidade e o Conselho de Segurança votou

unanimemente um embargo de armas contra a África do Sul.

O governo sul-africano, por sua vez, conseguiu responder às alterações na ordem

internacional ao comparar os Homelands com a independência política dos países

africanos e, principalmente, colocando a África do Sul como uma nação estável e

indispensável na luta contra o comunismo. Ao se aproveitarem dos temores europeus e

norte-americanos da Guerra Fria e apontarem os movimentos negros (como o CNA)

como comunistas, o governo nacionalista africânder conseguia desviar a atenção dos

seus problemas internos. Além disso, outro motivo que oferecia suporte à manutenção

do Apartheid era a atratividade da economia sul-africana aos investimentos norte-

americanos e europeus, de forma que as potências ocidentais relutavam em perturbar o

status quo na África do Sul.

Entretanto, a tentativa de caracterizar os Homelands como nações africanas

independentes falhou miseravelmente, já que nenhum outro país reconheceu a

independência dessas “nações”; a África do Sul e a Rodésia se tornaram anomalias após

a descolonização (e na Rodésia a minoria branca já estava perdendo o controle na guerra

civil contra as guerrilhas africanas); a discriminação racial foi eliminada das leis norte-

70

Discurso do Primeiro Ministro britânico Harold Macmillan que deixou claro que o Reino Unido não

apoiaria a África do Sul caso ela tentasse resistir ao nacionalismo africano (THOMPSON, 2001, p. 213)

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americanas e muitos ativistas negros dos Estados Unidos abraçaram a causa dos negros

sul-africanos.

O resultado dessas pressões internas e externas foi uma reformulação do

Apartheid, de forma que as duras medidas segregacionistas do período de Verwoerd

foram suavizadas e uma reforma na Constituição criou um parlamento de três câmeras

separadas, sendo uma para brancas, outra para coloureds e outra para indianos. Mas

como salienta Thompson (2001, p 224), essas alterações foram complexas tentativas de

se adaptar às novas circunstâncias sem sacrificar a supremacia africânder.

Como as reformas do Apartheid intensificaram ainda mais os movimentos de

resistência, a partir de 1989 o governo sul-africano mudou completamente sua trajetória.

Vários fatores foram responsáveis pela mudança de uma política repressiva em estado

de emergência para uma conciliatória: (1) a demografia apontava que a proporção de

brancos estava em declínio, do pico de 21% em 1936 já estava reduzida a 15% em 1985

– e a estimativa é que em 2005 seriam apenas 10% (o que de fato aconteceu em 1999);

(2) a economia em profunda recessão; (3) apesar das políticas segregacionistas, brancos

e negros sul-africanos eram extremamente interdependentes; e (4) eventos

internacionais, como a queda do muro de Berlim e a colaboração entre comunistas e

capitalistas na libertação da Namíbia encerraram o suporte dos temores da guerra fria

(THOMPSON, 2001, p. 241-243).

Assim, no início de 1990, em um ato inesperado, Frederik de Klerk (sucessor de

Botha) retirou o banimento do CNA, PAC e do Partido Comunista sul-africano e

libertou diversos prisioneiros políticos, incluindo Nelson Mandela71. Em 1991, várias

leis fundamentais do Apartheid foram revogadas e o governo entrou em negociações

formais com uma série de partes, incluindo o CNA72 (WORDEN, 2012, p. 147).

As negociações não foram um processo fácil. Durante a construção de uma nova

constituição, o governo de Klerk buscou proteger os interesses da população branca

tentando colocar obstáculos constitucionais para evitar a transição de uma dominação

branca para uma dominação negra, mas Mandela e o CNA não aceitaram. Enquanto

71

Mandela fez parte de uma nova geração de líderes do CNA, grupo este que assumiu a organização logo

após a ascensão do National Party. Entretanto, durante a década de 60, Mandela foi preso e condenado a

prisão perpétua em Robben Island – o presídio de segurança máxima da África do Sul destinado a

prisioneiros políticos. 72

Em julho de 1991, o CNA fez a sua primeira conferência na África do Sul depois de trinta anos. O

encontro de 2.244 delegados teve por objetivo transformar o movimento ilegal e secreto em um partido de

massa com uma gestão mais ampla e democrática (THOMPSON, 2001, p. 251).

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isso, a violência não cessou e em certas regiões, como KwaZulu, ela se intensificou.

Além disso, de Klerk e Mandela criaram grande antipatia entre si e as negociações

foram interrompidas por algum tempo após alguns combates, de forma que só

retornaram porque a África do Sul estava beirando à anarquia, com derramamentos de

sangue ocorrendo continuamente e a economia despencando. Dessa forma, A. Marx

(1998, p. 143) compara a necessidade de consenso entre negros e brancos para a

preservação do Estado e sua economia com a aliança anglo-bôer feita no início do

século XX. Na volta das negociações, porém, a autoridade do governo já estava corroída

e Mandela tomou a liderança no processo de transição (THOMPSON, 2001).

No final de 1993, o parlamento sul-africano aprovou a legislação necessária para

ratificar a Constituição interina feita pelo Fórum Multipartidário, de forma a dar uma

continuidade legal entre o velho e o novo regime. Além disso, o parlamento também

criou um Conselho Executivo de Transição, que se tornou o governo de facto da África

do Sul até as próximas eleições, marcadas para 1994. E somente após muito apelo das

lideranças sul-africanas, especialmente de Mandela e de Klerk, as eleições puderam

acontecer pacificamente (ainda que repleta de erros) e Mandela foi eleito o primeiro

presidente negro de uma nova África do Sul.

A ascensão de Mandela à presidência e o fim do Apartheid representam uma

enorme transformação para a África do Sul: o novo presidente contou com o apoio

imediato de toda a sociedade internacional, o país ingressou na Organização da Unidade

Africana e foi readmitido na Commonwealth. Internamente, a ênfase girava em torno da

construção de uma nova nação caracterizada por grandes diferenças; a nova bandeira

juntou as antigas cores com as do nacionalismo africano e o antigo hino foi incorporado

ao hino de libertação Nkosi Sikelela iAfrika (WORDEN, 2012, p. 156).

Entretanto, após o fim do entusiasmo que marcou as primeiras eleições livres,

ficou evidente que os desafios da África do Sul eram muito maiores do que a criação de

uma constituição democrática. Apesar de todos os incentivos promovidos por Mandela

em busca de uma união nacional, o legado de um passado dividido não poderia ser

facilmente resolvido, séculos de colonialismo e Apartheid criaram uma série de efeitos

acumulativos que deixaram o país com graves crises de saúde, educação e segurança.

Diferenças econômicas entre brancos e negros continuam destacadas, de forma que a

pobreza extrema afeta principalmente os negros, mas gradualmente a divisão da

sociedade sul-africana está deixando de se basear em raças para ser dividida por classes.

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Além disso, ataques xenofóbicos contra imigrantes de outros países africanos têm

ocorrido com certa regularidade. Mas, como aponta Thompson (2001, p. 295), apesar da

piora de vários aspectos cruciais da sociedade sul-africana depois da transição de poder,

o novo regime restaurou a dignidade dos negros sul-africanos; pacificou um país à beira

de uma guerra civil; consolidou uma ordem constitucional e manteve a regra da lei;

aceitou a existência de uma oposição política (embora muito fraca) e providenciou a

milhares de pessoas o acesso à água encanada, eletricidade, telefones e moradias

adequadas – o que já são grandes conquistas.

Apesar da África do Sul ter se posicionado ao lado vitorioso na Segunda Guerra

Mundial, a incompatibilidade entre os ideais do nacionalismo africânder e as novas

regras do sistema internacional, governado pelos Estados Unidos, fizeram com que ela,

de certa forma, também tivesse perdido na guerra. Assim, enquanto o mundo

acompanhava a criação da ONU e o processo de descolonização da África, com o

surgimento de dezenas de Estados africanos independentes e governados por negros; a

África do Sul sustentava o regime do Apartheid com base na sua força militar e nos

temores ocidentais da Guerra Fria – algo que se provou insuficiente, pois o país

começou a ficar cada vez mais isolado do sistema internacional, sendo acusado pela

ONU por crime contra a humanidade e se tornando alvo de sanções. Dentro do cenário

doméstico, o Apartheid exigia altos custos para sua manutenção, excluía a maioria da

sua população de direitos básicos; a indústria começou a ser prejudicada pela falta de

mão de obra qualificada e a economia entrou em recessão; além disso, com o

fortalecimento dos movimentos negros, revoltas populares se tornavam cada vez mais

frequentes. Sendo pressionada interna e externamente, a África do Sul buscou, com a

esperança de recuperar o seu equilíbrio, garantir a sua dominância do sistema regional

na África austral através da coerção. Entretanto, com uma economia em recessão, os

altos custos demandados na guerra e as pesadas perdas na luta contra forças cubanas e

angolanas; tornou-se insustentável para a África do Sul alcançar uma vitória nesse

conflito. Assim, enquanto o regime do Apartheid perdia seu suporte coercitivo, tanto

através da independência da Namíbia quanto das revoltas populares que tornavam o país

quase ingovernável; o último suporte do regime, a estrutura bipolar do sistema

internacional, começava a ruir junto com a queda do Muro de Berlim.

A partir de então, as lideranças políticas da África do Sul conseguiram evitar

uma guerra civil e iniciaram o processo de transição pacífica que terminou com a

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eleição de Nelson Mandela para a presidência do país. Nesse momento, a África do Sul

conquistou a legitimidade interna e internacional, mas sofreu uma significativa redução

das capacidades do Estado e enfrenta, desde então, graves problemas sociais e

econômicos decorrentes de um passado opressor, décadas de recessão econômica e

guerras perdidas.

Ao concluirmos as análises da África do Sul, podemos perceber que o país

expandiu expressivamente suas capacidades econômicas e coercitivas após a unificação

do território e formação do Estado, tornando-se imediatamente uma potência regional na

África austral e, como aponta Castellano (2015, p. 98-99), sem nenhuma ameaça a sua

posição em toda a primeira metade do século XX. A mudança sistêmica, ocorrida em

função da Segunda Guerra Mundial e a ascensão dos Estados Unidos à liderança do

sistema internacional, levou a grandes modificações no continente africano, como a

independência política de dezenas de países e a crítica ao racismo. A partir desse

momento, as elites africânderes institucionalizam o Apartheid como forma de garantir

uma posição dominante no âmbito doméstico, mas passam a ter sua posição de potência

regional ameaçada pelos vizinhos. Esta situação terminou com uma tentativa do Estado

sul-africano de garantir seu domínio regional enquanto enfrentava sérios conflitos

internos. Em meio a derrotas, o Estado sul-africano perdeu suas capacidades coercitivas

e de capital, mas conquistou a legitimidade doméstica e internacional com o fim do

Apartheid.

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5. CONCLUSÃO

África do Sul e Estados Unidos são dois países que foram colonizados por

europeus a partir do século XVII e que passaram por grandes semelhanças desde então,

como expansão territorial, escravidão, fortes movimentos nacionalistas, crença em um

futuro predestinado, guerra contra a metrópole, industrialização e diversificação da

economia, entre outros. Entretanto, atualmente, os países se encontram em situações

muito distintas: enquanto os Estados Unidos se tornaram uma superpotência, a África

do Sul se tornou uma potência regional com grandes desafios internos. Em frente a isso,

o presente trabalho buscou compreender como se formaram os Estados sul-africano e

norte-americano e como essas unidades interagiram no sistema internacional.

Ao considerarmos as variáveis propostas por Tilly de coerção e capital como as

bases da análise da formação do Estado, o primeiro capítulo buscou um aprofundamento

da teoria, bem como um entendimento de como o Estado moderno se formou na

Europa. Isso foi fundamental para compreender o papel da guerra na formação dos

Estados e como se formaram essas estruturas tão capazes a ponto de se espalharem por

todo o mundo – nesses casos, porém, os Estados formados pelo colonialismo europeu na

América Latina, Ásia e África criaram grandes incongruências com o histórico dos

Estados da Europa: o mecanismo de recrutamento e arrecadação de impostos não gerou

grandes capacidades estatais. Assim, entendemos também a análise entre Estado e

sociedade (legitimidade) como fundamental para um aumento ou redução das

capacidades do Estado.

Por fim, terminadas as análises de como um Estado se forma e se mantém,

buscamos na teoria a forma como os Estados se relacionam e se organizam no sistema

internacional. Apesar da anarquia característica, as relações internacionais também

possuem regras e são relativamente controladas por uma ou mais potências. Nesse caso,

as guerras também possuem um papel fundamental, por ser o principal mecanismo de

mudanças no sistema: quando, a partir de mudanças na distribuição do poder, cria-se um

desequilíbrio no sistema, uma guerra costuma ser o meio de tornar o sistema equilibrado

novamente e assim o lado vencedor passa a ditar as suas novas regras.

Após a devida compreensão de como um Estado se forma e como ele interage no

sistema internacional, passamos às análises dos casos escolhidos. No segundo capítulo,

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dividimos a história dos Estados Unidos, desde a sua formação até o momento em que

ele se torna uma superpotência, a partir de três conflitos decisivos: a Guerra de

Independência, a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, percebemos

como a Guerra de Independência e a Guerra de 1812 não apenas concederam a

independência política aos Estados Unidos, mas também motivaram a sua

industrialização e, principalmente, concederam prestígio ao país – algo que foi

fundamental para a sua posterior expansão territorial e alcançar dimensões continentais.

Estavam fundadas as bases da potência regional.

Entretanto, enquanto os Estados Unidos ampliavam seu acúmulo e concentração

de capital e mantinham uma capacidade coercitiva forte o bastante para resolver seus

problemas com os nativo-americanos; divisões ideológicas se fortaleceram com a

ausência de uma autoridade central forte. A Guerra Civil, nesse caso, foi responsável

por uma enorme expansão das capacidades do Estado norte-americano e determinou o

grupo que seria responsável pelo seu controle. Apesar disso e das suas enormes

capacidades, os Estados Unidos se mantiveram isolados e marginalizados no sistema

internacional, situação que só foi alterada após a guerra hispano-americana e a Primeira

Guerra Mundial, quando o país funda a sua atuação inter-regional, própria de uma

grande potência. Nesse momento, os Estados Unidos já haviam ultrapassado o Reino

Unido em vários aspectos, mas ainda não controlavam o sistema internacional; com a

entrada do país na Segunda Guerra, finalmente os norte-americanos se tornaram uma

superpotência e decretaram suas regras para o sistema internacional através da ONU, do

seu poderio militar e do controle da economia mundial, consolidando-se como a

superpotência mais capaz.

No terceiro capítulo, então, analisamos o mesmo processo de formação do

Estado e sua atuação no sistema internacional da África do Sul. Dividimos assim a

história da África do Sul, desde a formação do domínio britânico até a atualidade,

através de dois conflitos fundamentais: a guerra anglo-bôer e as guerras de fronteira sul-

africanas. Assim, podemos perceber que a guerra anglo-bôer foi uma tentativa frustrada

de garantir a independência africânder e terminou com uma aliança entre britânicos e

africânderes para manter o Estado nas mãos dos brancos. Este pacto político pós-guerra

gerou as bases para o surgimento da principal potência regional da África austral. A

Segunda Guerra Mundial, apesar de ter sido longe da África do Sul e ter tido uma

pequena participação das forças do país, causou grandes transformações internas, já que

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a vitória dos Aliados instituiu uma nova ordem mundial contra o racismo e a favor da

independência política da África e Ásia; isso representou um golpe duro para a

ideologia africânder, que respondeu com a institucionalização do Apartheid.

Em desacordo com as novas regras do sistema internacional, a África do Sul se

tornou bastante isolada, sendo alvo de sanções da ONU e acusada de crimes contra a

humanidade. Quando a resistência interna, apoiada pelos recém-formados países

africanos, aumentou e a economia sul-africana começou a ser afetada pelas sanções e

falta de mão de obra qualificada, a África do Sul tentou garantir o controle da ordem

regional da África austral, desejando incluir a força os países da região em sua esfera de

influência e terminar com suas ameaças ao regime. Entretanto, sem conquistar sucesso

na sua empreitada e com o país se tornando ingovernável (guerra civil), iniciou-se a

transição política para dar legitimidade interna e externa ao Estado sul-africano, ao

custo de uma grande diminuição das suas capacidades. A África do Sul experimentara,

portanto, incentivos semelhantes ao dos Estados Unidos da segunda metade do século

XIX: guerra interna e regional, com presença de forças opositoras extrarregionais.

Entretanto, dada a baixa legitimidade doméstica e internacional do regime, os

solucionou de forma diversa: no conflito interno e regional, o Estado foi derrotado.

Ademais, entre os fatores mais importantes que diferenciam os casos avaliados,

é importante salientarmos que a África do Sul foi, até a descoberta do ouro e diamantes,

um país periférico na economia global, cuja importância era a rota marítima que passa

pelo Cabo da Boa Esperança. Isso fez com que, por cerca de duzentos anos, o território

da África do Sul quase não recebesse investimentos nem se tornasse um destino

procurado para imigração. Os Estados Unidos, ao contrário, receberam intensa

imigração desde o estabelecimento das primeiras colônias britânicas e conseguiram

prosperar e diversificar sua economia. Quando a África do Sul foi formada pela união

entre britânicos e africânderes após a guerra anglo-bôer (1899-1902), os Estados Unidos

já tinham vencido suas guerras de independência (1776 e 1812) e suas guerras que

garantiram legitimidade interna (1861-1865) e colocaram o país entre as grandes

potências (1898). É importante salientar isso para percebermos que os Estados Unidos

tiveram mais de um século de vantagem em relação à África do Sul para resolver seus

principais problemas domésticos e, eventualmente, corrigir falhas estruturais.

Além disso, outra diferença significativa entre Estados Unidos e África do Sul

está na composição das suas populações. Os Estados Unidos foram colonizados pelos

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britânicos e manteve-se o perfil branco protestante da população até a ampliação das

capacidades estatais do país. A África do Sul, pelo contrário, se tornou um caldeirão de

povos distintos e que travaram várias guerras entre si, ampliando as rivalidades

existentes; nesse caso, com tantos interesses e identidades conflitantes, torna-se muito

mais difícil para um Estado ampliar suas capacidades. Esses casos confirmam a teoria

de Taylor e Botea (2008, p. 34) de que Estados etnicamente homogêneos são mais

capazes de levantar dinheiro, construir exércitos e a serem bem sucedidos em guerras do

que outros mais heterogêneos. Em suma, conseguem de forma mais rápida romper com

o gap de capacidades em relação às potências centrais.

Os elementos aqui elencados foram determinantes nos momentos de conflito.

Quando ocorreu a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, África do Sul e Estados

Unidos estavam geograficamente longe dos combates e tiveram suas economias

beneficiadas pela guerra de atrito na Europa; entretanto, os Estados Unidos, em estágio

avançado de industrialização, era o único país apto a produzir todos os recursos

necessários para a guerra europeia, incluindo navios de guerra, e se beneficiou muito

mais do conflito do que a África do Sul. Além disso, na tentativa sul-africana de

garantir sua hegemonia na África austral, o país também passava por um conflito

interno, devido às suas divisões étnicas e sociais, e não conseguiu alcançar a vitória

militar mesmo perante vizinhos teoricamente mais fracos e apoiados por potências

extra-regionais.

Assim sendo, podemos perceber que os Estados Unidos foram vitoriosos em

todas as suas guerras fundamentais para o fortalecimento do Estado, conquistando a

independência política (1775-1783); o prestígio internacional (1812-1814); a coesão

interna (1861-1865); a criação de uma esfera de influência no hemisfério ocidental

(1898) e sua ascensão à hegemonia dominante do sistema internacional (1939-1945). A

África do Sul, por outro lado, perdeu todas as guerras: a tentativa de independência foi

fracassada na guerra anglo-bôer (1899-1902), embora alcançada em termos políticos; a

ideologia dominante do sistema internacional tornou-se incompatível com o interesse

das elites dominantes (1939-1945), e a tentativa de garantir sua esfera de influência

regional fracassou com a independência da Namíbia e retirada das tropas sul-africanas

de Angola (1988).

Em frente a isso, o presente trabalho buscou contribuir para a compreensão da

guerra como um agente de transformação no Sistema Internacional, revelando sua

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dualidade, uma vez que, ao mesmo tempo em que é agente de destruição, promove a

construção de suas unidades e o estabelecimento da ordem. Além desse aspecto, sendo a

guerra um elemento recorrente nas relações internacionais, o seu estudo e a real

compreensão dos seus impactos torna-se de fundamental importância para compreender

as relações humanas, as disputas por poder e a hierarquia do sistema internacional.

Vale salientar, contudo, que o campo de estudo do presente trabalho não se

limita às questões aqui retratadas e que o debate na área ainda requer de outras

contribuições. Uma alternativa para tanto seria a análise das características

populacionais/demográficas dos Estados, fator este fundamental para a relação entre

Estado e sociedade e para questões de capacidade estatal. Tal análise possibilitaria

assim, a compreensão, tanto de questões referentes ao comportamento das elites, quanto

de questões de relações sociais. A partir disso compreender-se-ia, por exemplo, se o

perfil capitalista das elites norte-americanas contribuiu com o acúmulo e concentração

de capital nos Estados Unidos ou se, da mesma forma, o perfil agrícola das elites

africânderes prejudicou a industrialização da África do Sul. Além disso, o fator mais

relevante da análise populacional seria, provavelmente, a relação estabelecida entre os

negros sul-africanos e o Estado do Apartheid e a forma como esta limitou as

capacidades estatais da África do Sul. Portanto, amplos caminhos de pesquisa surgem

na tentativa de resgatar o conceito de legitimidade para a avaliação de processos

virtuosos e perniciosos de formação histórica de Estados.

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