18

Click here to load reader

Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

  • Upload
    halien

  • View
    216

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira
Page 2: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira
Page 3: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

AGRADECIMENTOS

Este livro deve muito a alguns amigos, que me apoiaram durante o trabalho de pesquisa e documentação, ou se dispuseram a partilhar comigo as suas memórias. Entre eles não posso deixar de referir os nomes de Amável Fernandes, Ana Major, Ana Mafalda Leite, An-tónio Ennes Ferreira, Elke Schmid, Francisca Van Dunem, Vicente Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, José Gonçalves, Nelson Pestana (Bonavena), Orlando Sérgio, Rui Ramos, Luandino Vieira, Maria Alexandre Dáskalos (que lançou o tarot a Lídia), Ana Paula Tavares, Noelma Viegas de Abreu e, naturalmente, Mário Pin-to de Andrade.

Page 4: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira
Page 5: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

Em memória de Mário Pinto de Andrade

Page 6: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira
Page 7: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

O PRINCÍPIO

Page 8: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira
Page 9: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

«Em nome do povo angolano, o Comité Central do Movimento Po-pular de Libertação de Angola, MPLA, proclama solenemente pe-rante a África e o mundo a independência de Angola. Nesta hora o Povo Angolano e o Comité Central do MPLA observam um minuto de silêncio e determinam que vivam para sempre os heróis tombados pela independência de Angola.»

Agostinho Neto, em Luanda, às zero horas e vinte minutos

do dia 11 de Novembro de 1975

Page 10: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira
Page 11: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

1

Naquela noite Lídia sonhou com o mar. Era um mar profundo e transparente e estava cheio de umas criaturas lentas, que pareciam feitas da mesma luz melancólica que há nos crepúsculos. Lídia não sabia onde estava, mas sabia que aquilo eram alforrecas. Enquanto acordava ainda as distinguiu atravessando as paredes e foi então que se lembrou da avó, Dona Josephine do Carmo Ferreira, aliás Nga Fina Diá Makulussu, famosa intérprete de sonhos. Segundo a velha, sonhar com o mar era sonhar com a morte.

Abriu os olhos e viu o grande relógio de pêndulo preso à parede. Passavam vinte minutos da meia-noite. Angola já era independente. Pensou naquilo e admirou-se por estar ali, deitada naquela cama, na velha casa das Ingombotas. O que fazia naquele país? Pergunta inútil, que todos os dias a atormentava.

Mas naquele momento tinha um outro sentido: o que fazia ela ali?Estava lúcida e não sentia nada, nem a amargura dos derrotados,

nem a euforia dos vencedores (naquela noite era as duas coisas ao mesmo tempo). «É a noite do louva-a-deus», pensou. E viu-se a si própria, recém-nascida, com um grande louva-a-deus pousado so-bre o peito.

Quando era pequena o velho Jacinto falara-lhe daquilo: «Pouco depois de nasceres, a tua mãe olhou para ti e viu um enorme louva-

Page 12: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

-a-deus pousado sobre o teu peito». Muito mais tarde, Vavó Fina voltou a recordar-lhe o episódio. Disse-lhe: «A vida vai-te comer.»

Vavó Fina tinha feito naquele mês cento e cinco anos, mas conti-nuava prática e sólida, como sempre fora. Lídia acreditava em tudo o que ela dizia, inclusive nos presságios. Pensou em acordar a ve-lha para lhe contar o sonho, mas não se mexeu. Estava sem forças. Respirou fundo o ar saturado de perfume de quicombo1 e sentiu-se mais leve. Chegava-lhe aos ouvidos um rumor remoto e redondo; não conseguia separar os diferentes ruídos mas sabia que eram tiros, explosões, gritos de dor, de raiva e de euforia. Eram quase todos sons de fúria, mas devia haver também gemidos de amor, latidos de cães, o profundo bater dos corações. Lídia pensou em Viriato da Cruz, pensou na morte, pensou que para além das janelas fecha-das do seu quarto, a vida prosseguia. Sentou-se na cama, estendeu a mão e tirou da mesinha-de-cabeceira um pequeno caderno de capa preta, comprido, desses onde os merceeiros anotam a lápis as contas do dia.

«Lá fora a vida acontece», escreveu. Riscou a frase e voltou a es-crever: «lá fora a vida acontecia / em seu inteiro e bruto esplendor.»

Depois fez um círculo à volta dos dois versos e acrescentou a data: «11 de Novembro de 1975.»

1 Madeira com a qual se faziam camas por se acreditar que o seu intenso perfume era capaz de afastar os percevejos.

Page 13: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

2

No Largo Primeiro de Maio, o Presidente falava à multidão. Pou-co antes de subir à tribuna um jovem oficial saltara de um jipe para lhe entregar uma mensagem do comandante Jacob Caetano, mais conhecido por Monstro Imortal. A situação era crítica: as colunas sul-africanas tinham subido oitocentos e tantos quilómetros, pul-verizando as frentes sul e centro. Agora, preparavam-se para tomar a pequena cidade de Novo Redondo. Em Quifangondo, a uma dis-tância tão escassa que quando o vento soprava mais forte a praça se enchia da tosse nervosa das metralhadoras, militares cubanos com-batiam ao lado das FAPLA contra antigos comandos portugueses, tropas regulares do exército zairense e guerrilheiros de Daniel Chi-penda e Holden Roberto.

Balas coloridas riscavam a noite e ninguém sabia dizer se eram parte dos festejos ou do aparato de guerra. Os céus da cidade ti-nham-se transformado numa imensa armadilha. Era tão incerto o destino de Luanda, que muitas das delegações convidadas a assistir às cerimónias, incluindo a da União Soviética, tinham preferido não comparecer.

O Presidente falou durante quarenta minutos. Quando terminou, houve por toda a praça um instante de assombro. O Presidente es-tava muito direito no seu fato azul, os olhos sem brilho por detrás das lentes grossas, o sorriso triste — ou irónico? —, com que sempre o víamos. O mesmo com o qual o haveriam de embalsamar quatro

Page 14: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

anos mais tarde.Houve, pois, por toda a praça, um brevíssimo instante de assom-

bro. É assim, pelo menos, que imagino a cena (eu não estava lá). A estreita figura do Presidente no centro do estrado e em torno dele uma massa escura de soldados, convidados e altos dignitários do regime. À frente, naquele instante de silêncio, o povo anónimo.

E então a multidão irrompeu aos gritos e numa explosão de júbilo lançou-se para diante, ao mesmo tempo que a cavalaria avançava para proteger a tribuna. Deitada de bruços, na sua cama de tábuas de quicombo, Lídia Ferreira sentiu que o ar do quarto se enchia de um violento tropel e que de novo a alcançava o abraço do mar.

Page 15: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

3

Lídia do Carmo Ferreira nasceu em 1928, na Chela, numa xitaca2 decrépita e isolada, meio escondida entre dois grandes morros ver-des. Quando tinha dois anos, o bisavô paterno foi buscá-la e levou-a para Luanda. Por isso, Lídia não guardou do lugar onde nasceu a memória de uma imagem, mas apenas sensações, o sentimento de alguma coisa verde e poderosa.

Em 1988 fui ao Lubango. Parti de Luanda num avião militar, um Casa, com bancos de madeira ao longo da fuselagem e pequenas janelas redondas quase ao nível do chão. Sobrevoámos a costa em direcção ao Sul e pouco antes do Namibe virámos para o interior. Agachado, com o rosto colado à janela, pude ver como o chão su-bitamente se levantava num salto prodigioso e toda a paisagem mu-dava de cor.

Na primeira noite no Lubango jantei com responsáveis locais da juventude do partido. Ao meu lado direito sentou-se um jovem de rosto largo e cabelo rijo, cor de cobre. Apresentou-se: chamava-se Barbosa e era natural da Chela. Perguntei-lhe então se conhecia a família de Lídia Ferreira. Barbosa parou de comer e olhou para mim desconfiado:

— É minha tia — disse. — Mas nem sequer a conheço. Aliás, não estou interessado em conhecê-la.

A reacção dele não me surpreendeu. Naquela época havia muita

2 Pequena quinta.

Page 16: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

gente que preferia nunca ter ouvido falar nela. Depois do jantar, veio rondar-me um sujeito de gestos pesados. Começou por falar do tempo, quis saber se eu suportava bem o frio das noites, mas depres-sa mudou de assunto:

— Há pouco — disse — ouvi-o falar com o Barbosa sobre a famí-lia de Lídia Ferreira.

Aquilo, sim, surpreendeu-me. Pensei que estava metido em pro-blemas. Olhei a direito o falinhas-mansas e disse-lhe que mal conhe-cia Lídia Ferreira, a não ser como poetisa, mas tinha ouvido dizer que ela nascera na região. O sujeito abanou a cabeça, afirmativo:

— Nasceu sim senhor — disse. — A minha mãe foi muito amiga da mãe dela.

Lídia nunca me falara da mãe. No entanto, referia-se frequente-mente à avó, uma senhora de origem congolesa, e sobretudo ao avô, na verdade bisavô, Jacinto do Carmo Ferreira. Em 1954, poucos me-ses após a sua morte, dedicou-lhe mesmo um curto poema:

«Longas barbas alvas, desgrenhadasAs mãos sobre o peito, como aves assustadas. Assim eu te relembro, meu avô branco, irremediavelmente morto.

Faz-te tanta falta — sabes? — o velho capacete de cortiça e o bengalim de soba»

Page 17: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

4

Esta é a estória de um amor desesperado. Tudo começou em 1926, ano em que chegou ao Lubango um padre santomense. Chamava-se Isaú da Conceição e era um jovem magro, melancólico, propenso à meditação e à poesia. Gostava das palavras amplas, nocturnas e os seus longos sermões versavam irremediavelmente a efemeridade da vida. Excelente declamador, com uma voz quente e funda, muito em breve se tornou presença indispensável nos prolongados serões da burguesia local. E se o facto de ser negro lhe fechava algumas portas, a virtude de ser pároco ia-lhe abrindo outras.

Foi num desses serões que Isaú da Conceição conheceu Francis-ca Barbosa, e se deixou seduzir pelos seus olhos de abismo. A avó do falinhas-mansas, Dona Assunção, uma senhora enorme, grande como uma casa, e de riso fácil, declamou para mim um dos poe-mas preferidos de Isaú: «Vai alta a lua na mansão da morte», disse, tentando reproduzir a voz profunda do santomense. Era O Noivado do Sepulcro, de Soares de Passos. «Já meia-noite com vagar soou», acrescentei eu, no mesmo tom, e ela olhou para mim com verdadeiro espanto.

Expliquei-lhe que também eu tivera uma avó e as minhas palavras pareceram diverti-la muito.

Dona Assunção fora amiga de Francisca Barbosa. «Coitada», disse-me, «era ainda uma criança quando foi batida pela desgraça».

Esta é a história que ela me contou: Francisca vivia em Chão de

Page 18: Estação das Chuvas - multimedia.fnac.ptmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722033794.pdf · Pinto de Andrade, João Van Dunem, Jorge Silva, ... Casa, com bancos de madeira

Cheia, num casarão gasto pelo tempo e habitado apenas por mu-lheres. Melhor, por gerações de mulheres. As duas mais velhas eram pretas retintas, sem laços de parentesco entre si, para além de serem ambas viúvas de um madeirense chamado Barbosa, antigo profes-sor primário depois comerciante e finalmente agricultor, degredado para África por crime de estupro. Este homem tornou-se quase uma lenda em todo o planalto da Huíla, e mesmo muito para além dele, porque, murmurava-se, impedia as mulheres e as três filhas mulatas de saírem de casa e fazia com elas aquilo que — dizia Dona As-sunção — um homem deve fazer apenas com a sua esposa. E nem sequer o fazia com uma de cada vez e antes com todas a uma só vez. E tendo tido netas da sua própria semente, uma por cada filha, assim também passou a proceder com elas e das três recebeu igual descen-dência. E depois morreu.

Em Agosto de 1907, chegaram à Cheia três homens exaustos e esfarrapados. Eram desertores da coluna portuguesa que tinha ido vingar o vergonhoso desastre militar do Vau de Pembe, ocorrido três anos antes, quando os cuamatas encurralaram o capitão Pinto de Almeida, matando-o a ele, aos dezasseis oficiais que o acompanha-vam e a mais trezentos e tantos soldados.

Nenhum dos homens quis explicar com clareza os motivos da fuga. Finalmente um deles, um tenente mestiço, que disse chamar--se César Augusto e ser natural de Luanda, falou pelos outros dois; explicou que estavam muito cansados, cheios de sede e de fome e que se viam forçados a permanecer na fazenda até se restabelecerem por completo. Acrescentou que tinham a cabeça a prémio por traição à pátria, mas que não reconheciam como sua a pátria que haviam traído. «A nossa pátria é Angola», teria dito o mulato.

As duas mulheres mais velhas ficaram indiferentes, as mulatas e as cabritas aterrorizadas e as três mais novas, umas moças muito páli-das, lânguidas e loiras — de um loiro tão loiro que dava angústia ver — essas, puseram-se a dançar enquanto cantavam numa língua que elas próprias tinham inventado, substituindo as vogais por notas de música, de tal forma que uma mesma palavra podia ter significados