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O ISLÃO POLÍTICO: ONTEM E HOJE

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JOHN M. OWEN IV

O ISLÃO POLÍTICO: ONTEM E HOJE

Tradução deJOSÉ ROBERTO/JOÃO QUINA EDIÇÕES

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Para Malloy, Frances e Alice

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SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ..................................................................................... 11LISTA DE QUADROS ............................................................................................. 11PREFÁCIO ................................................................................................................ 13

INTRODUÇÃO. ACONTECEU AQUI .................................................................. 17LIÇÃO 1. NÃO SUBESTIMAR O ISLAMISMO ...................................................... 57LIÇÃO 2. AS IDEOLOGIAS SÃO (USUALMENTE) NÃO MONOLÍTICAS ....... 89LIÇÃO 3. AS INTERVENÇÕES ESTRANGEIRAS SÃO NORMAIS .................... 123LIÇÃO 4. UM ESTADO PODE SER SIMULTANEAMENTE RACIONAL

E IDEOLÓGICO ..................................................................................... 153LIÇÃO 5. O VENCEDOR PODE SER «NENHUM DOS REFERIDOS» .............. 191LIÇÃO 6. OBSERVAR A TURQUIA E O IRÃO ..................................................... 223EPÍLOGO. O QUE FAZER E O QUE NÃO FAZER ............................................ 261NOTAS ....................................................................................................................... 275BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 311ÍNDICE REMISSIVO .............................................................................................. 333

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GRÁFICOS, MAPAS E QUADROS

Gráfico 6.1. Crescimento do PIB per capita, Estados Unidose União Soviética, 1950-1990 ................................................ 243

Mapa 6.1. Tipos de regime no mundo muçulmano .................................. 247Gráfico 6.2. Opinião acerca do Irão em vários Estados árabes, 2006-2011 ... 252Gráfico 6.3. Turquia: popular mas em decréscimo, 2011-2013 ................. 258Gráfico 6.4. Análise da opinião árabe sobre a Turquia, 2011-2013 ........... 259

QUADROS1.1. Que influência deveria ter o Alcorão nas leis? ................................... 303.1. Intervenções estrangeiras e realinhamentos na Europa, 1945-1950 ... 1416.1. Frotas mercantes e exércitos europeus, 1670 .................................... 2296.2. Quotas-partes relativas da produção da indústria mundial, 1830 e 1860 . 2406.3 PIB e PIB per capita das principais potências europeias, 1820 e 1870 .. 2406.4. Crescimento económico nas superpotências, 1970-1980 ................... 242

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PREFÁCIO

Aproximadamente um século depois de ter surgido pelaprimeira vez no Egito, o islão político defronta-se com o mundoe o mundo defronta-se com o islão político. Também chamada«islamismo», esta poderosa ideologia política sustenta que a co-munidade de milhares de milhões de muçulmanos só será livre egrande se for devota — se os muçulmanos viverem sob a lei is-lâmica da xaria imposta pelo Estado, tal como tem sucedido aolongo da maior parte da história islâmica. Os islamitas desde hámuito que são confrontados por muçulmanos que rejeitam a xa-ria, e por não muçulmanos que exercem pressão ou os influen-ciam para a rejeitar. Estas confrontações integradas por vezestêm sido benignas, no sentido de partes que se encontram frentea frente, e por vezes malignas, no sentido de partes contráriasque inclusivamente se combatem. Sejam benignos ou malignos,os confrontos continuam a ser importantes porque moldam nãosó as vidas dos muçulmanos mas também a política de muitospaíses e, de facto, de todo o mundo.

O islão político começou nos anos 20 como uma chamadaaos muçulmanos que viviam em sociedades modernas e secula-res para regressarem à xaria procedente do Alcorão e de váriosoutros textos autorizados do islão. Como encontraram resis-tência por parte de militares e outras elites, os islamitas torna-ram-se crescentemente políticos, com o desejo de influenciarou capturar os Estados que se encontravam a remodelar as suassociedades para que esses Estados tornassem obrigatória a xaria.

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Nos anos 50, muitos movimentos islamitas tinham-se radicaliza-do e foram impiedosamente suprimidos pelos regimes a que ti-nham devotado o seu ódio.

Graças à erudição de numerosos especialistas em jurispru-dência islâmica, teologia e história, possuímos um vasto conhe-cimento do islamismo. Mas muita desta erudição trata esta ideo-logia como se fosse sui generis, única, para ser estudada apenasisoladamente. Como qualquer fenómeno social, o islão políticotem características singulares que só podem ser compreendidasmediante profundo estudo. Porém, o islamismo é um ismo, umaideologia, um plano para o ordenamento da vida comum. Comotal, pode ser proveitosamente comparado com outros ismos.

Nenhuma região do mundo gerou tantos ismos como oOcidente — a Europa e as Américas1. Embora estudiosos e jor-nalistas tracem ocasionalmente paralelos entre o Médio Orienteatual e o Ocidente em séculos passados — terroristas jiadistascom anarquistas de cerca de 1900, ou a Primavera Árabe com asrevoluções europeias de 1848 — até agora ninguém arriscouuma comparação sustentada entre o islão político e as ideologiasocidentais do passado.

Este livro procede a essa comparação. Começa com a ob-servação, já efetuada por estudiosos do islamismo, de que estaideologia complexa e robusta não pode ser entendida sem umareferência à mais ampla ideologia à qual ela constitui uma rea-ção: o secularismo. Na sua forma original, o secularismo nomundo muçulmano determinava que as leis derivavam exclusi-vamente da razão e da experiência humanas e não de uma reve-lação divina. O secularismo chegou a territórios muçulmanos noséculo XIX, por intermédio dos colonizadores europeus, e no sé-culo XX, pelas mãos de políticos autoritários modernizadores co-mo Mustafa Kemal da Turquia e Reza Pahlavi do Irão. O secu-larismo de contornos rigidamente definidos do século XX encon-tra-se hoje extinto por completo no Médio Oriente — muitos

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muçulmanos aceitam que o islão deve pelo menos influenciar alei e o governo — mas os islamitas ainda se afirmam e lutamcontra as várias cambiantes de secularismo mais moderado.

Na coexistência com o seu oposto, o islamismo é, maisuma vez, semelhante às ideologias do passado do próprio Oci-dente. O Islão Político: Ontem e Hoje tem como base o meu traba-lho académico anterior, especialmente o meu livro de 2010, TheClash of Ideas in World Politics2, focado nos conflitos ideológicosna Europa e nas Américas que se estenderam pelos países aolongo de décadas, interferiram com as relações de poder e alte-raram as expectativas e os comportamentos, geraram novos pa-drões de conflito e cooperação, confundiram simultaneamenteas partes envolvidas e os observadores e que terminaram afinalem tempos e sob formas inesperados. Do passado do Ocidenteinvestiguei seis lições gerais para os fazedores de política e os ci-dadãos que procuram lidar com os prolongados tormentos ideo-lógicos no Médio Oriente.

Estou grato a muitas pessoas e instituições por me teremajudado na conceção, pesquisa e escrita deste livro. O Institutefor Advanced Studies in Culture na Universidade da Virgínia fa-cultou-me ideias e críticas — com académicos como JamesHunter, Ashley Berner, Josh Yates, Joe Davis, Neslihan Çevik,Chuck Mathewes e George Thomas — e o seu distinto viveirointelectual, Watson Manor. John Moon e a IMR Foundation, aEarhart Foundation e a Smith Richardson Foundation propor-cionaram o suporte financeiro que me permitiu dedicar o bemmais precioso de um académico — o tempo — a este livro. Pelainestimável assistência de pesquisa, agradeço a Bob Kubinec eMalloy Owen. As trocas de impressões mantidas com MichaelBarnett, Peter Katzenstein, Ahmed al-Rahim, Judd Owen, Ale-xander Evans e os meus colegas do Politics Department da Uni-versidade da Virgínia — especialmente Bill Quandt, Jonah Schul-hofer-Wohl e Jeffrey Legro — foram imensamente úteis.O Centre of International Relations da Universidade da British

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Columbia proporcionaram-me um local para investigar e escre-ver durante os verões. Pelo Mapa 6.1., os meus agradecimentosa Chris Gist.

A bolsa Smith Richardson permitiu-me realizar três work-shops em Washington, em que testei alguns dos argumentos comacadémicos, militares, serviços de informações e analistas políti-cos. Agradeço à Brookings Institution e à Heritage Foundationpor terem acolhido estas movimentadas sessões. Agradeço tam-bém a todos os que compareceram, especialmente MichaelO’Hanlon, Steve Grand, Nathan Brown, Karim Sadjadpour, Pe-ter Mandaville, Marc Lynch, Charles «Cully» Stimson, ReuelMarc Gerecht, Jim Philips, Lisa Curtis, Peter Henne e Tim Shah.Um obrigado especial a Roger Herbert por assegurar a logísticae por me ter oferecido a sua crítica ao próprio manuscrito.

Enquanto era ainda diretor editorial na Princeton Universi-ty Press, Chuck Myers foi simultaneamente defensor e crítico;sem ele, este livro nunca teria sido escrito. Eric Crahan em Prin-ceton conduziu o projeto com competência e dedicação. Osdois revisores do manuscrito, Jeremy Pressman e Dan Nexon,alertaram-me para coisas que eu não vira e afastaram-me de al-guns erros de facto e de interpretação. Joseph Dahm foi um so-berbo editor de copy desk.

A minha querida família apoiou-me estando presente e dei-xando-me por vezes estar ausente. Por compreender e até apre-ciar as peculiaridades de ser casada com um académico, a minhamulher Trish é sine qua non. Dedico este livro aos nossos três fi-lhos, Malloy, Frances e Alice, que diariamente me recordam queDeus é bom e que vale a pena escrever um livro como este.

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Introdução

ACONTECEU AQUI

A história não se repete, mas rima.— Atribuído a Mark Twain

O Médio Oriente tem sido de algum modo e nestes anosmais recentes muito como foi o noroeste da Europa há quatrocen-tos e cinquenta anos. Nesse período, uma onda de insurreição var-reu três países ocidentais e ameaçou eclodir em mais. Em 1560,a onda atingiu a Escócia; em 1562, a França; em 1567, a Holanda.

Cada insurreição foi diferente, porque cada país era dife-rente. A Escócia era um território relativamente isolado, de ter-reno escarpado e pouca população, permanentemente apreensi-va quanto à possível invasão pela sua vizinha do sul, a Inglaterra.A França era uma grande potência, senhora de vastos terrenosde cultivo e riqueza, em que os seus governantes há muito rivali-zam com os de Espanha pela supremacia na Europa. Os PaísesBaixos, ou Holanda, eram pequenos, também relativamenteprósperos, e diretamente governados por Espanha. Como sem-pre sucede, os rebeldes no interior e fora dos países tinham exi-gências e motivações diversas.

Mas as três revoltas tiveram muito em comum. Em con-traste com as revoltas de camponeses que pontualmente abala-ram algumas regiões no início da Europa moderna, estas três re-voltas foram conduzidas por nobres — proprietários de terras,com títulos, preparados para a guerra. Num certo sentido, osnobres escoceses, franceses e holandeses representavam uma velhahistória, lutando contra um monarca que procurava centralizar o

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poder às suas custas. Nos casos escocês e holandês, o monarcaera um estrangeiro: francês para os escoceses, espanhol para osholandeses. Talvez mais singularmente, os chefes dos três con-juntos de aristocratas revoltosos — e provavelmente a maioriados homens comuns que combatiam por eles — eram seguido-res de um credo cristão que, conforme o ponto de vista de cadaum, ou era radicalmente novo ou constituía a procura fiel do cris-tianismo original. Todos eram seguidores de um ramo do protes-tantismo fundado nas décadas precedentes pelo teólogo francêsJoão Calvino.

Que tantos rebeldes nos três países fossem calvinistas —ou reformados, como também eram chamados — não era umacoincidência. Os calvinistas tinham em comum um conjunto dedoutrinas respeitantes a Deus e ao homem, entre as quais se en-contrava a de que um ser humano nada podia fazer para se sal-var mas devia confiar na misericórdia de Deus, e que Deus tinhadecidido por sua própria vontade quem iria salvar antes de criaro mundo. Os reformados também tinham convicções diferentessobre como a Igreja deveria ser organizada, como deveriam vi-ver os fiéis, e como a Igreja e as autoridades civis se deviam rela-cionar. As Igrejas reformadas não tinham bispos e sacerdotes,mas em vez disso eram governadas pelos anciãos e pelos diáco-nos. Os cristãos deveriam aspirar a vidas santas, pondo «o maiorempenho no fortalecimento da vossa vocação e eleição», nas pa-lavras de São Pedro1. E a própria comunidade devia aspirar àsantidade, com as autoridades civis e eclesiásticas separadas mascom as primeiras a reforçarem os ensinamentos das últimas.

Isto não era, então, o calvinismo generalizado da Igreja pres-biteriana norte-americana, no século XXI ou mesmo no século XIX.O primitivo calvinismo moderno era — como o catolicismo, oluteranismo e outros ismos cristãos da época — uma ideologiapolítica assim como um conjunto de doutrinas religiosas. Emer-gira num tempo em que a ordem social, política e económica da

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Europa central e ocidental estava construída em torno da IgrejaCatólica Romana e fora parcialmente construída por ela. Na Eu-ropa medieval, a Igreja — paróquias, dioceses, ordens religiosas— possuía vastas extensões de terra e gerava abundante riqueza.O clero gozava de profunda influência sobre os príncipes, no-bres e camponeses. A legitimidade do sistema hierárquico socialdependia em parte do imprimatur da Igreja. Alguns bispos, in-cluindo os papas, governavam vastos territórios e podiam recru-tar os seus próprios exércitos. Na Europa do século XVI, o calvi-nismo era em parte definido como anticatólico, e ser anti oupró-católico era tanto um compromisso religioso como político.

Isto levanta uma segunda semelhança relacionada com asrevoltas escocesa, francesa e holandesa: todas foram dirigidascontra os monarcas católicos que estavam presos aos ensina-mentos e instituições da Igreja de Roma. Eram, em certa medi-da, revoltas anticatólicas. As afirmações e os escritos dos seusdirigentes encerram um estilo especialmente religioso; um mani-festo de 1559 dos Lords of the Congregation (Lordes da Con-gregação) era dirigido à «geração de Anticristo, os pestilentosprelados e os seus tonsurados na Escócia», e prosseguia: «Nósiremos iniciar a mesma guerra que Deus ordenou que os israeli-tas travassem contra os cananeus; isto é, o acordo de paz nuncaserá conseguido, até que vós renuncieis à vossa clara idolatria e àcruel perseguição dos filhos de Deus. Disto vos damos conheci-mento em nome de Deus eterno, e do Seu Filho, Jesus Cristo,cuja verdade professamos, e cujo evangelho iremos pregar e ossantos sacramentos justamente ministrar, enquanto Deus nosder forças para resistir à vossa idolatria.»2 Isto não era apenasuma peculiar «maneira de falar», um pio ornamento de apreen-sões mais mundanas. Os calvinistas naqueles três países empe-nharam-se em lutas iconoclastas, destruindo imagens nas igrejasporque para eles estas imagens eram ídolos que usurpavam aglória que era justamente devida a Deus. Os calvinistas tinhamdiferenças profundas e, assim parecia na altura, irreconciliáveiscom os católicos.

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Mas num outro sentido, as três insurreições não foramcoincidentes: os calvinistas comunicavam além-fronteiras nacio-nais, encorajando e aprendendo uns com os outros, fazendo cir-cular sermões, panfletos, cartas e viajando. Os historiadores re-ferem-se a uma «Internacional Calvinista», uma rede de cristãosreformados que existiu em diversos países, com o seu centronervoso sediado na cidade por eles adotada de Genebra. GarrettMattingly escreve que «todos eles, em toda a parte, vibravam aqualquer impulso que agitasse a sua rede de contactos». AndrewPettegree observa que os calvinistas holandeses foram encoraja-dos pela revolta huguenote em França: «No ano que se seguiuao surto dos conflitos em França, os calvinistas holandeses [...]começaram a imitar o comportamento provocador e de confron-to que tanto sucesso proporcionara aos evangelistas franceses.»3

Em todos estes países, também havia católicos e tinhamum imperativo paralelo de suprimir o calvinismo. Também elesformavam uma sofisticada rede com o seu nó principal em Ro-ma. As revoltas e as tentativas de as suprimir foram realmenteparte de um único fenómeno mais vasto, uma contestação acer-ca da religião que se propagou do noroeste ao centro da Europa— e não apenas religião no sentido moderno, mas no sentidodaquele tempo, quando Igreja e Estado eram íntimos e a religiãoestabelecida de um país afetava as suas instituições, o modo devida e a forma como o poder e a riqueza eram distribuídos.A raiz do problema foi a cristandade ocidental ter sido dilacera-da por uma crise de legitimidade, uma luta sobre a melhor maneirade organizar a sociedade. A crise pode observar-se especialmen-te na Reforma e Contrarreforma da época.

Porque a crise de legitimidade foi transnacional, com os ca-tólicos solidários entre si independentemente das suas pátrias, eos calvinistas a fazerem o mesmo, não surpreende que os gover-nantes de muitos países participassem nos desfechos das revol-tas. A Inglaterra protestante e a França católica intervieram na

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revolta escocesa. A Inglaterra fez o mesmo para apoiar os calvi-nistas franceses (ou huguenotes). Mais tarde, o Estado germâ-nico do Palatinado tomou o partido dos calvinistas, tal comoEspanha tomou o dos católicos. Nos Países Baixos, as tropas es-panholas intervieram naturalmente para derrubar os calvinistas,e as tropas inglesas, huguenotes e alemãs ajudaram os calvinis-tas. Até os sultões otomanos — que, como imperadores muçul-manos, não tinham participação na Reforma — foram envolvi-dos, oferecendo ajuda aos luteranos e calvinistas contra osHabsburgos católicos que governavam grande parte da Europa.

Mas há mais. Nas décadas anteriores, uma semelhante rea-ção em cadeia detonara no Sacro Império Romano — sensivel-mente o atual território da Alemanha — com os católicos emconfronto com os luteranos. E bem depois da década de sessen-ta do século XV, outras reações em cadeia iriam desencadear-sepor toda a Europa. Uma delas seria especialmente catastrófica: arevolta encabeçada por calvinistas na Boémia levou a uma esca-lada de intervenções e contraintervenções que se traduziria naterrível Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Enquanto essecomplexo combate varria talvez um quinto da população daAlemanha, estalou a Guerra Civil Inglesa (1642-1651). Foramestas violentas guerra civil e internacional que ajudaram os euro-peus a ver, renitentemente, qual era o seu caminho para a tole-rância religiosa dos ocidentais, hoje tida como adquirida.

Uma das revoltas dos anos de 1560 falhou. Em França, oshuguenotes e os católicos combateram intermitentemente du-rante várias décadas, por vezes com selvajaria. Atingiu-se porfim um impasse em 1593 quando Henrique IV, partidário hu-guenote, concordou converter-se ao catolicismo para obter Parissem oposição («Paris bem vale uma missa», consta que terá afir-mado).

Mas as revoluções escocesa e holandesa foram bem-sucedi-das e forjaram algo de novo na Europa: um reino reformado.

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Os insurretos escoceses obtiveram uma rápida vitória e estabele-ceram um reino reformado (presbiteriano) em 1560. Os holan-deses tiveram de combater os espanhóis durante quase duas dé-cadas, mas em 1585 estabeleceram as Províncias Unidas dosPaíses Baixos e estabeleceram a religião protestante. Os calvinistasrevelaram-se competentes não só na mobilização para a revoltamas também na consolidação e institucionalização do poder.

Foi há muito e foi na Europa. Mas, em muitos aspetos, zo-nas do mundo muçulmano de hoje apresentam uma inquietantesemelhança com aquele tempo e aquela parte do mundo. Aolongo do século passado, governantes de muitos países de maio-ria muçulmana acumularam poder por meio do enfraquecimen-to de outros intervenientes nas suas sociedades. Alguns estende-ram a sua influência a países estrangeiros. Redes de ideólogoscom núcleos em lugares como Teerão, Riade e Cairo cruzaramas fronteiras de países muçulmanos, com membros em algunsdeles, monitorizando, educando e encorajando os seus pares emoutros. Onde a Europa moderna inicial teve os seus massacresreligiosos, o Médio Oriente tem tido o seu terrorismo — que seestendeu a Ásia, África, Europa e América do Norte, de formamais catastrófica a Nova Iorque e Washington em 11 de setem-bro de 2001. E evidentemente, ondas de revolta, repressão, re-volução e intervenção estrangeira têm ocorrido periodicamenteem países muçulmanos. (Ao longo deste livro uso a expressão«Médio Oriente» para designar a vasta região que se estende doNorte de África ao Sudoeste Asiático, embora as lutas ideológi-cas que analiso se prolonguem a zonas da África subsariana, sule sudeste asiático, e algumas cidades na Europa e na América doNorte.) Por vezes, quando uma revolução triunfou, foi estabeleci-do um novo regime que proclamou o regresso às raízes islâmicas4.

É difícil entender inteiramente o que se está a passar nestassociedades muçulmanas. A história, os interesses, o poder, as

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ambições e as crenças dos vários intervenientes, e a forma comoestas questões interagem são extremamente complexos. Mas épossível abrir-se caminho e o mais direto é os estudiosos e espe-cialistas em política sobre o Médio Oriente ou o islão oferece-rem o seu conhecimento. Os especialistas têm-no feito desde hámuitos anos, em obras demasiado numerosas para poderem seraqui mencionadas. A análise profunda de académicos que falame leem árabe, parse, afegão, urdu e outras línguas, que conhecemintimamente as histórias e as culturas, é indispensável para osdecisores políticos, estudantes e cidadãos que procuram com-preender as desconcertantes e preocupantes dinâmicas do Mé-dio Oriente.

Mas uma segunda maneira, complementar, de compreen-der o Médio Oriente ainda quase não foi empreendida. Envolveaproveitar a vantagem analítica da própria história dos conflitosideológicos no Ocidente. Porque a história das sucessivas revol-tas no noroeste da Europa nos anos de 1560 é apenas uma dasmuitas histórias que possuem um elo estranhamente familiar.Mais uma vez, também aqui não há coincidência. Uma razão im-portante pela qual as dinâmicas das sociedades e regiões muçul-manas se parecem tanto com a Europa moderna dos primeirostempos é porque desde há pelo menos um século o Médio Oriente temsido agitado por uma crise de legitimidade — uma disputa sobre a melhorforma de ordenar a sociedade. Não é a religião islâmica que está a ge-rar os problemas, não mais do que a doutrina calvinista per sesemeou a discórdia no início da Europa moderna. É antes umprofundo e prolongado desentendimento entre muçulmanos so-bre até que ponto o islão deve moldar as leis e instituições dasociedade.

Durante um certo número de décadas, os muçulmanos dis-cutiram, organizaram, formaram redes, revoltaram-se, reprimi-ram, aliaram-se, estabeleceram amizade, traíram, mataram emorreram a favor da ideologia ou de visões de uma vida boae da ordem pública. Os muçulmanos não têm sido capazes de

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concordar sobre questões básicas da sociedade. Foram polariza-dos no interior e para lá dos países, por vezes até ao ponto daguerra civil, e frequentemente ao ponto em que muitos se identi-ficam mais com estrangeiros que partilham os seus princípios doque com os seus concidadãos que o não fazem. A crise de legiti-midade complicou as políticas interna e internacional, criandoalianças e animosidades que podem ser especialmente nocivas eresistentes ao compromisso. A crise afetou seriamente os inte-resses dos Estados Unidos e outras potências estrangeiras emocasiões específicas: a Revolução Egípcia de 1952, a RevoluçãoIraniana de 1979, os ataques de 2001 da Al-Qaeda, mais recente-mente a Primavera Árabe que teve início em finais de 20105.

Alguns autores estabeleceram analogias entre estas dinâmi-cas e os conflitos ideológicos no próprio passado do Ocidente6.Este livro leva essa visão muito mais longe. É a primeira compa-ração analítica sustentada entre o Médio Oriente de hoje e as vá-rias crises de legitimidade de dimensão regional na história daEuropa e das Américas — crises que apresentaram cadeias deacontecimentos notavelmente similares. Apresento lições sobre apresente agitação das sociedades muçulmanas e as suas complexasinterações e interpenetração com o resto do mundo, extraídas dosconflitos ideológicos passados em outras partes do globo.

Neste livro faço duas afirmações essenciais:

1. Compreender o islão político exige a compreensão pré-via da sua longa e obscura luta com o secularismo.

2. Compreender a luta islamita-secularista exige a com-preensão das origens, dinâmicas e fim último dos confli-tos ideológicos semelhantes na história do mundo oci-dental.

Embora eu descreva o conteúdo de cada ideologia — lute-ranismo, monarquismo, liberalismo, islamismo, etc. — abstraio--me desse conteúdo e concentro-me simplesmente no facto de

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que cada ideologia foi forçada a enfrentar uma luta com uma oumais alternativas. O conteúdo é importante, e estas ideologiasvariaram extensamente nos seus objetivos, estratégias e táticas.Calvinistas radicais, republicanos e comunistas nunca se envol-veram em ataques bombistas suicidas, ao contrário dos islamitasradicais. Muitos islamitas parecem querer apenas que o mundonão islâmico os deixe sozinhos, embora muitas ideologiasocidentais tenham tido ambições globais. Mas fecho de propósitoos olhos a estas importantes diferenças porque as semelhançasformais — a competição ideológica — são suficientemente dig-nas de nota e instrutivas para um livro. Elas revelam que muitodo que pensamos acerca do islão político está errado.

A RIMA DA HISTÓRIA

Nas páginas seguintes, extraio lições de três longos perío-dos nos quais as sociedades ocidentais divergiram, interna e in-ternacionalmente, acerca da melhor maneira de organizar a so-ciedade, e poderosos movimentos ideológicos se difundiram porregiões inteiras, promovendo a agitação pela mudança e inter-rompendo as «normais» políticas internas e internacionais.

O primeiro é o período da luta entre católicos e protestan-tes acerca de que forma o cristianismo devia ser estabelecido oufavorecido pelo Estado. Esta disputa grassou na Europa ociden-tal e central sensivelmente desde 1520 até cerca de 1690.

O segundo confronto surgiu em 1770 e prolongou-se porum século. Na Europa e nas Américas os povos divergiram pro-fundamente sobre se o melhor regime seria a monarquia, comum rei e os seus súbditos, ou uma república, em que as autorida-des eram eleitas pelos cidadãos.

O terceiro conflito apareceu em 1910 e durou até finais daúltima década de 80. É o conflito mais conhecido dos leitoresatuais e predominou entre comunismo, liberalismo e fascismo.