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ESTÉTICA DA RECEPÇÃO (REZEPTIONSÄSTHETIK / READER- RESPONSE CRITICISM) Escola de teoria literária identificada na era pós-estruturalista, a partir dos finais da década de 1960, em primeiro lugar na Alemanha e mais tarde nos Estados Unidos, tendo em comum a defesa da soberania do leitor na recepção crítica da obra de arte literária. Na Alemanha, tomou o nome de Rezeptionästhetik; no mundo anglo-americano, vingou a expressão reader-response criticism; em português, por força da dificuldade de tradução literal da expressão inglesa, tem-se preferido a tradução estrita do original alemão. Na origem, foi um grupo de críticos da Universidade de Konstanz, que começou por divulgar as suas teses na revista Poetik und Hermeneutik, a partir de 1964. Numa época em que Hans-Georg Gadamer desenha um novo rosto para a hermenêutica, com Wahrheit und Methode (1960), uma justaposição chama de imediato a atenção para o facto de, para uma estética da recepção do leitor, as questões do sentido e da interpretação textual dos modelos hermenêuticos serem tão indispensáveis como as questões linguísticas e formais. Ao contrário da reader-response criticism, que é constituída por críticos mais ao menos independentes (Normand Holland, Stanley Fish, David Bleich, Michael Riffaterre, Jonathan Culler), a estética da recepção reúne maior consenso entre os seus seguidores. Embora Wolfang Iser seja talvez o mais conhecido membro desta escola fora do seu contexto alemão, Hans Robert Jauss, discípulo da hermenêutica de Gadamer, é o mais inflexível dos críticos da estética da recepção. No seu ensaio nuclear, “A História Literária

Estética Da Recepção

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A Questão da importancia do leitor para a interpretação de textos qualquer.

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Page 1: Estética Da Recepção

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO (REZEPTIONSÄSTHETIK / READER-RESPONSE CRITICISM)

Escola de teoria literária identificada na era pós-estruturalista, a partir dos finais da década de

1960, em primeiro lugar na Alemanha e mais tarde nos Estados Unidos, tendo em comum a defesa

da soberania do leitor na recepção crítica da obra de arte literária. Na Alemanha, tomou o nome

de Rezeptionästhetik; no mundo anglo-americano, vingou a expressão reader-response criticism;

em português, por força da dificuldade de tradução literal da expressão inglesa, tem-se preferido a

tradução estrita do original alemão.

Na origem, foi um grupo de críticos da Universidade de Konstanz, que começou por divulgar as

suas teses na revista Poetik und Hermeneutik, a partir de 1964. Numa época em que Hans-Georg

Gadamer desenha um novo rosto para a hermenêutica, com Wahrheit und Methode (1960), uma

justaposição chama de imediato a atenção para o facto de, para uma estética da recepção do

leitor, as questões do sentido e da interpretação textual dos modelos hermenêuticos serem tão

indispensáveis como as questões linguísticas e formais. Ao contrário da reader-response criticism,

que é constituída por críticos mais ao menos independentes (Normand Holland, Stanley Fish,

David Bleich, Michael Riffaterre, Jonathan Culler), a estética da recepção reúne maior consenso

entre os seus seguidores. Embora Wolfang Iser seja talvez o mais conhecido membro desta escola

fora do seu contexto alemão, Hans Robert Jauss, discípulo da hermenêutica de Gadamer, é o mais

inflexível dos críticos da estética da recepção. No seu ensaio nuclear, “A História Literária como

um Desafio [Provokation] à Teoria da Literatura” (1970; traduzido para português com o título A

Literatura como Provocação - História da Literatura como Provocação Literária, trad. de Teresa

Cruz, Vega, Lisboa, 1993), procurou ultrapassar os dogmas marxistas e formalistas que não

privilegiam o leitor no acto interpretativo do texto literário. Qualquer obra de arte literária só será

efectiva, só será re-criada ou “concretizada”, quando o leitor a legitimar como tal, relegando para

plano secundário o trabalho do autor e o próprio texto criado. Para isso, é necessário descobrir

qual o “horizonte de expectativas” que envolve essa obra, pois todos os leitores investem certas

expectativas nos textos que lêem em virtude de estarem condicionados por outras leituras já

realizadas, sobretudo se pertencerem ao mesmo género literário. A história da literatura como

“provocação literária” é uma reacção contra a limitação da soberania do leitor na estética

marxista, onde está circunscrito à posição social que se lhe determina, e contra a tirania formalista

que “apenas necessita do leitor como sujeito da percepção” (pp.55-56). A proposta de Jauss para

uma estética da recepção da obra de arte pretende levar-nos mais além do estudo das condições

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de produção dessa obra e do autor dela: “Se se olhar a História da literatura no horizonte do

diálogo entre obra e público, diálogo responsável pela construção de uma continuidade, deixará

de existir uma oposição entre aspectos históricos e aspectos estéticos, e poderá restabelecer-se a

ligação entre as obras do passado e a experiência literária de hoje que o historicismo rompeu.”

(pp.57-58).

Embora se registem diferentes pontos de vista no seio da escola americana conhecida por reader-

response criticism, os críticos atrás nomeados parecem concordar na importância do leitor no que

respeita à determinação do sentido de um texto, ao contrário da tradição que toma o texto como

uma entidade que recolhe já na sua natureza o seu próprio sentido, deixando para o leitor crítico a

tarefa de o identificar. A reader-response criticism não valida este papel restrito do leitor mais

como um tradutor-intérprete do sentido do texto do que como um interpretador criativo que

pode agir sobre esse sentido modificando-o. Norman N. Holland, em 5 Readers Reading (1975), ao

comparar cinco diferentes mas legítimas leituras de um mesmo texto literário (“A Rose for Emily”,

de Faulkner), procura mostrar que é aquilo a que chama o “tema-identidade” ( identity theme) do

leitor que constitui o sentido do texto. Tomando como modelo inspirador as propostas de

Wolfgang Iser sobre o leitor implícito e o leitor real, apresentadas nas obras Die Implizite

Leser (1972) e Der Akt des Lesens - Theorie asthetischer Wirkung (1976), os críticos norte-

americanos proclamaram a falência da objectividade do texto, aliás um princípio partilhado pela

desconstrução. O texto literário deixa então de ser tomado como um númeno kantiano ou

qualquer objecto inteligível, para ser compreendido como um meio de estabelecer uma espécie de

contrato de concordância entre leitor e autor.

Hoje, o tipo de questões teóricas que pré-ocupam o estudioso do fenómeno literário tende a

concentrar-se, auto-reflexivamente, nos conceitos que dominam num dado momento histórico e

nos conceitos que sempre dominaram a própria história da linguagem. Como propõe Stanley Fish,

o principal divulgador da reader-response criticism norte-americana, a literatura não pode conter

propriedades formais pretensamente definidoras do que é ou não é a literatura: “A literatura é o

produto de um modo de ler, de um acordo comunitário acerca daquilo que deverá contar como

literatura, que leva os membros da comunidade a prestar um certo tipo de atenção

acriarem literatura.” (Is There a Text in This Class?, 1980). O “modo de ler” não é fixo, mas varia ao

longo dos tempos, por isso Fish propõe a estética não como sendo a especificação definitiva de

propriedades literárias e não literárias, mas sim “uma descrição do processo histórico pelo qual

tais propriedades emergem”. O conceito de “comunidade interpretativa” surge então como

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corolário deste conhecimento relativo da natureza da literatura: “Os sentidos não são propriedade

nem de textos fixos e estáveis nem de leitores livres e independentes, mas de comunidades

interpretativas que são responsáveis tanto pela configuração das actividades do leitor como pelos

textos que essas actividades produzem.”

Todo o leitor pode ser de alguma forma, em algum momento, por algum motivo um crítico. É

impensável a crítica que não resulte de um acto de ler e porque este é a sua origem, a escrita só se

revela no acto de consumação da leitura. Não há críticos/escritores em primeira instância. A

produção do texto crítico só é possível depois do acto de ler algo que também é escrita. A ideia

barthiana-estruturalista do crítico como um prolongamento do escritor, continuando sempre a ser

escritor, um especialista da escrita, um demiurgo do texto, perde a sua lógica na origem: antes de

ser escritor, o crítico tem de ser leitor, tem que estar dependente, subordinado por um dever de

originalidade, a um texto já concebido. Não tem como missão a reconstituição do objecto

analisado, mas a sua interrogação, não a sua repetição, mas a dissecação da sua natureza. Desde

os Princípios de Crítica Literária (1924), de I. A. Richards, que a prática crítica toma como princípio

geral de actuação o postulado do crítico como leitor, como um leitor mais atento e especializado,

cuja missão é expor o seu ponto de vista formado pela leitura explícita do texto literário. O Barthes

estruturalista recusará esta perspectiva. Para ele, a crítica literária não é identificável com a

leitura, o crítico não é um leitor, porque este é aquele que se limita ao acto de ler palavra por

palavra um texto, simplesmente repetindo-o. Enquanto a leitura é assumida como um processo de

simples identificação com o texto, a crítica - não faz, portanto, sentido a separação que nos parece

natural entre leitura crítica e leitura espontânea, em que a primeira se refere a um exercício

especulativo e a segunda a um mero acto de descodificação verbal sem intuito de "tocar" no texto

- coloca o crítico a uma certa distância do texto.

A estética da recepção quer devolver ao leitor um estatuto estético e epistemológico que é

suposto ser mais importante do que o do autor ou da própria obra de arte literária. Tal questão

arrasta vários problemas que os textos doutrinários da estética da recepção ainda não discutiram.

Se a recepção do leitor é mais importante do que tudo o mais, tudo o mais - obra, autor, contexto,

intertexto, etc. - perde valor teórico; se uma obra de arte literária só pode ser uma obra de arte

quando o leitor a validar, qualquer obra de arte, no momento da sua concepção e produção,

ficaria condicionada à existência de um leitor, isto é, de um estranho que não entrou no génio

artístico para este se poder exprimir; se um escritor só pode ver-se reconhecido como tal quando

o leitor o determinar, qualquer escritor viverá sempre na dependência de um daimon ameaçador.

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Portanto, não podemos enunciar nestes termos a questão que conduz à soberania do leitor. O

primeiro aspecto a salientar para rever este problema é dizer que se trata não de uma questão de

aferir produtos ou validar méritos artísticos mas de recognição. O papel do leitor crítico não deve

ser intervir na produção da obra de arte, interferir no trabalho do autor, emitir juízos de valor

sobre a obra criada a fim de a situar em qualquer lista de referência. Se um leitor trabalha

criticamente sobre um texto, não modifica em nada a razão em que o autor desse texto quis

assumi-lo como obra de arte, por isso nenhum texto literário nem nenhum autor depende da

existência eventual de um leitor. Só podemos falar com rigor de dependência existencial na razão

inversa: não há leitores sem previamente existirem autores e textos para serem lidos. A tarefa de

ler do leitor só pode ser iniciada quando o escritor tiver terminado a sua tarefa de escrever, pelo

que o autor está sempre numa posição privilegiada em relação ao leitor, apenas neste ponto da

validação da obra de arte como tal. Ora, se um leitor quiser agir criticamente sobre um texto, não

tem que se preocupar, aparentemente, com tal questão. Contudo, se se exigir colocar no prato da

balança o texto produzido para poder ser avaliado o seu grau artístico, o que acontece

irremediavelmente é o divórcio imediato com a percepção que o autor tem ou teve desse texto no

momento da sua produção.