3
Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca Escola Básica e Secundária Diogo Bernardes Cód. Agr.: 152626 Página 1 de 3 ÁLVARO DE CAMPOS 1. Fase decadente Este heterónimo apresenta uma evolução, começando por uma fase decadente com uma acentuada nostalgia do além, a embriaguez do ópio dos sonhos dum Oriente que não há, o horror à vida e um estilo confessional brusco. “É antes do ópio que a minh’alma é doente.” “A vida a bordo é uma coisa triste, (…) E a minha mágoa de viver persiste. (...) Por isso eu tomo ópio. É um remédio. Sou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamento E ver passar a Vida faz-me tédio. (...) A minha vida mude-a Deus ou finde-a… (...) E afinal o que quero é fé, é calma, E não ter estas sensações confusas. Deus que acabe com isto! Abra as eclusas E basta de comédias na minh’alma!” Atormentado pela doença da alma que é a inadaptação, não encontra sentido para a ação, não tem energia (abulia), sente a vida inútil, atormenta-o o tédio e, então, refugia-se no ópio e acaba a desejar a morte… 2. Fase da vertigem futurista Segue-se a segunda fase, a da vertigem das sensações modernas, da energia explosiva. É a fase do futurismo, do verso livre, do estilo esfuziante, torrencial, exclamativo, interjetivo, da volúpia sensual de ser objeto, da prostituição febril das máquinas. Anti- simbólico e antifilosófico, glorifica as máquinas, a técnica, a velocidade, glorifica a vida moderna. O poema “Ode triunfal” é o expoente máximo desta fase… Exalta a energia, a velocidade, a força da civilização mecânica. Pretende “sentir tudo de todas as maneiras”, numa histeria de sensações. “À dolorosa luz das grandes máquinas elétricas da fábrica Tenho febre e escrevo. (…) Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina! (…) Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera. Amo-vos carnivoramente, Pervertidamente e enroscando a minha vista Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis, Ó coisas todas modernas, Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima Do sistema imediato do Universo! Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus! Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks, Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes, Na minha mente turbulenta e encandescida Possuo-vos como a uma mulher bela.

Estética de Álvaro de Campos

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Fases e temáticas da poesia de Álvaro de Campos

Citation preview

Page 1: Estética de Álvaro de Campos

Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca Escola Básica e Secundária Diogo Bernardes

Cód. Agr.: 152626

Página 1 de 3

ÁLVARO DE CAMPOS

1. Fase decadente

Este heterónimo apresenta uma evolução, começando por uma fase decadente com uma

acentuada nostalgia do além, a embriaguez do ópio dos sonhos dum Oriente que não há, o

horror à vida e um estilo confessional brusco.

“É antes do ópio que a minh’alma é doente.”

“A vida a bordo é uma coisa triste,

(…) E a minha mágoa de viver persiste.

(...) Por isso eu tomo ópio. É um remédio.

Sou um convalescente do Momento.

Moro no rés-do-chão do pensamento

E ver passar a Vida faz-me tédio.

(...) A minha vida mude-a Deus ou finde-a…

(...) E afinal o que quero é fé, é calma,

E não ter estas sensações confusas.

Deus que acabe com isto! Abra as eclusas

E basta de comédias na minh’alma!”

Atormentado pela doença da alma que é a inadaptação, não encontra sentido para a ação,

não tem energia (abulia), sente a vida inútil, atormenta-o o tédio e, então, refugia-se no ópio e

acaba a desejar a morte…

2. Fase da vertigem futurista

Segue-se a segunda fase, a da vertigem das sensações modernas, da energia

explosiva. É a fase do futurismo, do verso livre, do estilo esfuziante, torrencial, exclamativo,

interjetivo, da volúpia sensual de ser objeto, da prostituição febril das máquinas. Anti-

simbólico e antifilosófico, glorifica as máquinas, a técnica, a velocidade, glorifica a vida

moderna.

O poema “Ode triunfal” é o expoente máximo desta fase… Exalta a energia, a velocidade,

a força da civilização mecânica. Pretende “sentir tudo de todas as maneiras”, numa histeria de

sensações.

“À dolorosa luz das grandes máquinas elétricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

(…) Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

(…) Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.

Amo-vos carnivoramente,

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,

Ó coisas todas modernas,

Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,

Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes,

Na minha mente turbulenta e encandescida

Possuo-vos como a uma mulher bela.

Page 2: Estética de Álvaro de Campos

Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca Escola Básica e Secundária Diogo Bernardes

Cód. Agr.: 152626

Página 2 de 3

(…) Eu podia morrer triturado por um motor

Com um sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.

Atirem-me para dentro das fornalhas!

Metam-me debaixo dos comboios!

Espanquem-me a bordo de navios!

Masoquismo através de maquinismos!

Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

(...) Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!”

Este é um texto eufórico, triunfalista, sensacionista, feérico, cantando o espasmo da

vertigem das sensações provindas das fábricas, das máquinas, das realizações da técnica

industrial, dos ruídos das multidões.

3. Fase do cansaço e da angústia existenciais

A terceira fase é a do Álvaro de Campos cansado, angustiado, em que, no presente,

domina a recordação do passado, da idade de ouro da infância.

“Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga

abstrata do tempo, (…) é todo o mistério de que nada dura”. (Pessoa/ Bernardo Soares, Livro do Desassossego).

No poema “Aniversário”, a infância é apresentada como uma época inocente, onde não há

ainda a dor de pensar. É o tempo inocente, a “alegre inconsciência” que não é possível recuperar a

não ser pela evocação, que conduz necessariamente à tristeza e à angústia. O tempo passa,

inexoravelmente, e tudo devora e destrói, roubando-nos o paraíso (Paraíso Perdido).

“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

(…) No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma.

(…) O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes…

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

(…) Hoje já não faço anos.

Duro”.

Em “Dactilografia”, volta o conflito passado (infância)/ presente, o conflito entre o outrora

e o agora:

“Temos todos duas vidas:

A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,

E a que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;

A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,

Que é a prática, a útil,

Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

(…) Na outra somos nós,

Na outra vivemos;

Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;

Neste momento, pela náusea, vivo na outra…”

O cansaço, o tédio e o desejo de morrer acabam mesmo por se apoderar do sujeito

poético. É a confissão da derrota…

Page 3: Estética de Álvaro de Campos

Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca Escola Básica e Secundária Diogo Bernardes

Cód. Agr.: 152626

Página 3 de 3

No poema “Lisbon revisited”:

“Não: não quero nada.

Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!

A única conclusão é morrer”.

No poema “Não, não é cansaço”:

“Não, não é cansaço…

É uma quantidade de desilusão

Que se me entranha na espécie de pensar,

É um domingo às avessas

Do sentimento,

Um feriado passado no abismo…”

No poema “O que há em mim é sobretudo cansaço”:

“O que há em mim é sobretudo cansaço

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto em alguém.

Essas coisas todas

– Essas e o que falta nelas eternamente;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço, cansaço.

E o resultado?

(…) Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço,

Íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço…”

Por fim, o poema “Esta velha angústia”:

“Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim,

Transbordou da vasilha,

Em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos, em estilo de pesadelo sem terror,

Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que…,

Isto.”

Prof. Luís Arezes