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1 ESTÉTICA E GÊNERO TELEVISIVO: A experiência no programa Brasil Urgente 1 Carolina Santos Garcia de Araújo 2 Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo POSCOM/UFBA Resumo: Neste trabalho, a proposta é mostrar a viabilidade de uma articulação entre Estética e Estudos Culturais para compreender questões relacionadas ao gênero televisivo, no âmbito da análise cultural de gênero. Propomos, para isso, um breve exercício analítico do programa Brasil Urgente (TV Bandeirantes), em que buscamos nos ater à experiência provocada pelos elementos estéticos suscitados por tal objeto. Compreender o gênero sob uma perspectiva cultural significa considera-lo como resultado não de rótulos ou formas pré-definidas, mas como estratégias interativas que se configuram a partir de situações específicas e contextuais. Esta articulação nos permite identificar como tal programa mostra continuidades e constrangimentos no âmbito do gênero midiático, e como a partir dessa dinâmica revela suas condições de existência no contexto da produção televisiva brasileira. Palavras-chave: Gênero; Televisão; Policial; Cultura; Estética. Jacinto Filgueira Júnior, quando apresentou o programa O Homem do Sapato Branco em 1967 na TV Bandeirantes, talvez não imaginasse que a expressão “mundo cão” se tornaria um rótulo de cunho genérico para identificar um grupo de programas da TV brasileira. Jacinto sabia, no entanto, que aquela expressão, significava um certo modo de fazer, capaz de conferir identidade aos programas: “Eu pegava o cotidiano, polícia, pegava figuras grotescas, engraçadas, figuras que realmente marcavam até época. (...) O próprio programa era o cotidiano, aquilo que a cidade tinha e ninguém tinha coragem de mostrar” 3 , disse Jacinto em uma entrevista à Rede TV em 2001. Assim, a estratégia de “mostrar o cotidiano” e suas figuras virou para muitos programas brasileiros uma marca constitutiva, 1 Trabalho apresentado no GT Comunicação, Sensibilidades e Performance do I RECOM Comunicação e Processos Históricos, realizado de 29 de setembro a 01 de outubro de 2015, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cachoeira, BA. 2 Jornalista, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Análise em Telejornalismo (GPAT) POSCCOM/UFBA. E-mail: [email protected] 3 Entrevista disponível no site http://www.youtube.com/watch?v=Ry8BVszRpP4&feature=related

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ESTÉTICA E GÊNERO TELEVISIVO: A experiência no programa Brasil Urgente1

Carolina Santos Garcia de Araújo2

Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo POSCOM/UFBA

Resumo: Neste trabalho, a proposta é mostrar a viabilidade de uma articulação entre

Estética e Estudos Culturais para compreender questões relacionadas ao gênero televisivo,

no âmbito da análise cultural de gênero. Propomos, para isso, um breve exercício analítico

do programa Brasil Urgente (TV Bandeirantes), em que buscamos nos ater à experiência

provocada pelos elementos estéticos suscitados por tal objeto. Compreender o gênero sob

uma perspectiva cultural significa considera-lo como resultado não de rótulos ou formas

pré-definidas, mas como estratégias interativas que se configuram a partir de situações

específicas e contextuais. Esta articulação nos permite identificar como tal programa mostra

continuidades e constrangimentos no âmbito do gênero midiático, e como a partir dessa

dinâmica revela suas condições de existência no contexto da produção televisiva brasileira.

Palavras-chave: Gênero; Televisão; Policial; Cultura; Estética.

Jacinto Filgueira Júnior, quando apresentou o programa O Homem do Sapato

Branco em 1967 na TV Bandeirantes, talvez não imaginasse que a expressão “mundo cão” se

tornaria um rótulo de cunho genérico para identificar um grupo de programas da TV

brasileira. Jacinto sabia, no entanto, que aquela expressão, significava um certo modo de

fazer, capaz de conferir identidade aos programas: “Eu pegava o cotidiano, polícia, pegava

figuras grotescas, engraçadas, figuras que realmente marcavam até época. (...) O próprio

programa era o cotidiano, aquilo que a cidade tinha e ninguém tinha coragem de mostrar”3,

disse Jacinto em uma entrevista à Rede TV em 2001. Assim, a estratégia de “mostrar o

cotidiano” e suas figuras virou para muitos programas brasileiros uma marca constitutiva,

1 Trabalho apresentado no GT Comunicação, Sensibilidades e Performance do I RECOM – Comunicação e Processos

Históricos, realizado de 29 de setembro a 01 de outubro de 2015, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,

Cachoeira, BA. 2 Jornalista, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal

da Bahia. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Análise em Telejornalismo (GPAT) – POSCCOM/UFBA. E-mail:

[email protected] 3 Entrevista disponível no site http://www.youtube.com/watch?v=Ry8BVszRpP4&feature=related

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quando a intenção mais forte era mostrar o inusitado, o imprevisível e a naturalidade das

reações humanas. Neste cenário, prevaleciam as situações dramáticas e/ou com apelos

violentos.

Com o passar dos anos, no entanto, o termo “policial” foi dando lugar ao “mundo

cão”, a essa altura já carregado de uma aura depreciativa por conta da crítica. Mas ainda

assim, não era possível encontrar um consenso, no que diz respeito a uma classificação

indicativa de gênero, para definir os programas que se valem dos apelos dramático, das

situações violentas e das ocorrências policiais. Em uma breve consulta a artigos da área de

comunicação publicados em revistas e anais de eventos de âmbito nacional, é possível

encontrar definições como “telejornal policial”, “programa policial”, “programa popular”,

“telejornalismo dramático” ou mesmo “variedades”, como propõe José Aronchi de Souza em

sua proposta taxionômica organizada no livro Gêneros e Formatos na Televisão Brasileira

(2004). Entre os programas que recebem este tipo de denominação está o Brasil Urgente,

exibido pela Rede Bandeirantes de Televisão. De forma predominante, o programa noticia

casos que envolvem crimes, violência e segurança pública.

O Brasil Urgente aparece para nós então como um objeto emblemático, que nos

faz pensar sobre as tensões em torno do gênero e de seu reconhecimento do campo televisivo.

Temos como panorama a compreensão dos gêneros midiáticos não enquanto rótulos

compostos por códigos fechados para compreensão, mas como estratégias de

comunicabilidade, nos termos de Jesus Martín-Barbero (2009). Isso significa reconhecer que

os gêneros funcionam como um elemento mediador entre a lógica dos sistemas produtivos e

as lógicas dos usos. “(...) Um gênero é antes de tudo, uma estratégia de comunicabilidade, e é

como marca dessa comunicabilidade que um gênero se faz presente e analisável no texto”

(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 303). É o modo como se reconhece e se organiza a

competência comunicativa, enquanto estratégia de interação.

Essa compreensão do gênero se relaciona diretamente com o reconhecimento

também da televisão como fenômeno cultural, social, econômico, político. É nesse sentido

que Raymond Williams (2011) afirma que a televisão é uma tecnologia e uma forma cultural,

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pela sua capacidade de configurar uma interação entre a tecnologia e as instituições sociais e

culturais. Assim, entendemos o gênero como um objeto que nos impele a pensar a articulação

entre os estudos do sensível e a análise cultural, porque ao mesmo tempo em que se estrutura

como uma estratégia que opera na linguagem e na recepção, interage sob as intempéries dos

contextos e é capaz de ativar emoções, experiências, situações comunicativas específicas.

Considerando estes aspectos, escolhemos analisar duas situações ocorridas em

edições distintas do Brasil Urgente, mostrando como elas são indicativas de uma experiência

estética, que por sua vez, opera como produtora de sentido na compreensão de gênero

construída por esse programa. Este exercício é um desdobramento de um trabalho inicial, que

resultou na dissertação de Mestrado “Telejornalismo e a temática policial no Brasil: Análise

cultural de gênero dos programas Brasil Urgente e Cidade Alerta”, apresentada em 2014 ao

Programa de Pós-Graduação em Comunicação de Cultura Contemporâneas da Universidade

Federal da Bahia. Naquele momento, nosso objetivo era identificar as marcas que configuram

o reconhecimento da temática policial no telejornalismo brasileiro a partir da análise de

gênero do Brasil Urgente, do Cidade Alerta (TV Record) e suas versões regionais.

A partir destes outros resultados obtidos, propomos aqui um segundo exercício a

partir de uma pequena parte do nosso corpus, a saber, dois momentos das edições dos dias 23

de novembro de 2012 e 07 de dezembro de 2012. Nosso intuito é oferecer novas perspectivas

para enriquecer as análises em torno do gênero, enquanto um fenômeno de comunicação

complexo, porém, indicativo de nossas condições e transformações culturais.

Estética e gênero: articulações em perspectiva cultural

A Estética, enquanto disciplina filosófica, preocupa-se conceitualmente sobre o

belo. Daí a sua intima relação com os fenômenos de ordem do artístico, e consequentemente,

os juízos de valor e gosto sobre ele. Arte, numa perspectiva tradicional, significa produzir atos

e obras integrados ao cotidiano, com poder de interferência na vida humana, que atendam

plenamente aos anseios cognitivos e provoquem efeitos ético-políticos mais amplos:

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“orientação moral, cultural e religiosa, convivência cívica, conforto espiritual ou efusão

lúdica” (FREIRE FILHO, 2009, p.2).

Com o advento da revolução industrial, a literatura - um dos meios por onde a arte

se materializa - experimentou outras formas de ser apreciada, como a dos folhetins. O

desconforto de alguns escritores em ver a obra num formato com tão menos impacto,

culminou em uma inquietação conceitual em torno do termo cultura. No sentido de impor

limites ao que deve se apreciado e considerado obra de arte, surgiu-se a necessidade de

determinar o que seria digno de cultura, de obra de arte, e consequentemente, de julgamento

estético. Nesse contexto os estudos culturais surgem na Inglaterra, com o propósito de

questionar as concepções totalizantes em relação à arte, cultura e estética.

João Freire Filho identifica Raymond Williams como um dos autores dos estudos

culturais que mais contribuíram no entendimento da relação entre estética e cultura. Isso

porque Williams propôs um esquema analítico que considera como objeto não obras puras,

mas todo e qualquer evento enquanto “prática significante”. “que considera como matéria

válida de investigação não apenas o discurso da elite culta, mas o de todos os membros da

comunidade” (FREIRE FILHO, 2009, p. 148). O que Williams estava propondo é que os

elementos de ordem estética (beleza, proporção, ritmo, etc) podem ser experimentados em

outros espaços e situações - “(...) como a própria paisagem natural, o mobiliário doméstico ou

a cultura popular” (FREIRE FILHO, 2009, p. 150) - porque se relacionam também não só

com o que é representativo, mas sobretudo ao que faz sentido. Esta proposta de Williams é

uma das vias por onde os estudos da comunicação podem se aproximar da estética, e é por

uma perspectiva pragmática e contemporânea da Estética que entendemos que essa relação

pode ser feita.

Dentro da sua origem filosófica, a experiência é entendida no campo estético

como “uma diferenciação inédita do conhecimento - singular e enfático - proporcionado pelas

obras, tornado inteiramente irredutível às situações que conhecemos no curso costumeiro da

vida” (GUIMARÃES, 2004, p. 2). Dá conta de uma relação entre o indivíduo e a obra de arte,

e que é compreendida a partir de princípios filosóficos específicos, tais como o rigor com a

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objetividade e validade do julgamento estético; busca pela firmação da ontologia das obras a

partir de critério de valores; equivalência da dimensão estética à dimensão artística. Segundo

César Guimarães (2004), alguns autores têm se dedicado a uma abordagem pragmática dos

estudos da Estética, no intuito de explorar novas perspectivas e ampliar as perspectivas de

entendimento do fenômeno da experiência para além destes princípios, no intuito de

“aproximar a experiência da arte das percepções e das sensibilidades ordinárias”

(GUIMARÃES, 2004, p. 7).

Esta perspectiva pragmática, explica ainda Guimarães (2006), argumenta que

embora a ideia conceitual base da experiência estética seja algo relacionada ao indivíduo e sua

relação com a obra, ela também pode ter uma dimensão social. A interação do indivíduo

possui consequências que na ordem do coletivo, também orientam outros sentidos.

A atitude possui uma função organizadora do sentido: diante de situações

experimentadas concretamente, ela concerne tanto àquelas regras e convicções que

nos governam imediata e intuitivamente (e das quais não duvidamos), quanto à

significação – aberta à problematização - que passamos a conceder aos novos

fenômenos que experimentamos (GUIMARÃES, 2004, pgs. 3 e 4).

John Dewey e Martin Seel são importantes referências dessa perspectiva

contemporânea de compreensão da experiência estética. Para Martin Seel, a experiência na

contemporaneidade já não tem sentido se pensada apenas como uma “transcendência na

imanência” porque é convocada em contextos específicos de ação e comunicação, “(...) isto é,

em uma situação na qual o sujeito é levado a desenvolver uma compreensão pragmático-

performativa do objeto que lhe é apresentado” (GUIMARÃES, 2004, p.3). Para Dewey, a

experiência estética resulta de uma interação especifica entre sujeito e objeto, implicadas em

uma relação do indivíduo com o ambiente que o cerca.

Em outras palavras: a “experiência” exige a mobilização sensorial e fisiológica do

corpo humano; ela é uma atividade prática, intelectual e emocional; é um ato de

percepção e, portanto, envolve interpretação, repertório, padrões; existe sempre em

função de um “objeto”, cuja materialidade, condições de aparição e de circunscrição

histórica e social não são indiferentes. (GUIMARÃES E LEAL, 2008, ps. 5 e 6)

César Guimarães e Bruno Leal (2008) chamam a atenção de que esta perspectiva

da experiência no entanto, tem levado a muitos estudos de comunicação reduzir tal noção à

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ideia de mediação, esvaziando o seu sentido, e consequentemente a articulação entre os dois

campos. Jesus Martín-Barbero é um autor cuja ideia de mediação é a mais referenciada nesse

sentido.

Para Martín-Barbero (2009), os meios de comunicação massiva são constitutivos

da cena social e configuram-se, dentro do cenário contemporâneo, como uma “complexa

trama de mediações” que articula comunicação, política e cultura. Mediação então, não

significa apenas algo que parte do meio, mas algo que é convocado pela obra, a partir de sua

complexa relação com uma série de instâncias e situações contextuais - a saber, matrizes

culturais, competências de recepção, formatos industriais e lógicas de produção, como ele

organiza de forma metodológica em um mapa que veremos mais adiante. De modo ampliado,

o que Jesus Martín-Barbero oferece então é um modo de se pensar as nossas relações com o

meio considerando a experiência que eles convocam enquanto obra, mas também os seus

aspectos contextuais.

A noção de experiência seria então um modo de entender, do ponto de vista

estético, o que acontece entre o sujeito e qualquer um dos aspectos que fazem parte do seu

mundo, chamando em causa a sensibilidade, e não necessariamente o “significacional”. A

experiência assim seria um fenômeno de oscilação, no caso em que podemos experimentar

algo não necessariamente do modo em que se supunha. A característica que permite a

transcendência na eminência é de propriedade da relação entre o sujeito e o objeto, o que

permite que sejamos captados por objetos estéticos absolutamente diversos.

Sob esta perspectiva que Guimarães e Leal (2007) entendem que, no campo

televisivo, uma série de características, ligadas a aspectos estéticos, culturais, ideológicos,

políticos, entre outros, influenciam uma situação de experiência. A televisão funciona como

um elemento mediador que configura, de modo bastante específico, “(...) o presente e a

realidade que oferece ao seu público. Ao mesmo tempo, essa leitura, essa “experiência” do

mundo propõe uma relação com os “outros” televisivos” (GUIMARÃES E LEAL, 2007, p.

9). Para Jesus Martín-Barbero (1995), pensar a estética e o campo da comunicação na

contemporaneidade significa pensar nas formas como arte e sociedade se realizam, e que para

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ele, isso passa pela compreensão do modo como se realiza “a produção social do simbólico”

(p. 4). Nestes termos é que ele defende que não faz mais sentido que o campo da estética seja

analisado a partir das categorias centrais que balizam o sentido de modernidade - como

progresso e a universalidade, por exemplo - simplesmente porque ela nos remete agora a uma

“sensibilidade e uma experiência social difusa e oscilante, híbrida e fragmentada, que não

responde nem à autenticidade, nem à novidade da experiência moderna” (1995, p. 6).

Alves (2013) nos chama a atenção, no entanto, de que nem todo processo

comunicativo gera uma experiência, e assim, ela deve ser verificada por meios estéticos. E

além disso, tal perspectiva de entendimento da experiência (como acolhemos aqui), só faz

sentido a partir de uma perspectiva interdisciplinar, conforme alegam Guimarães e Leal

(2007). Nesse sentido que propomos uma análise que considera os elementos estéticos

suscitados pelo Brasil Urgente, mas a partir das chaves metodológicas da ideia de gênero

como categoria cultural, como explicaremos a seguir.

Pensamos aqui a televisão e seus conteúdos como um lugar onde podemos

experimentar sentidos e sensibilidades difusas, híbridas. Enquanto um fenômeno cultural de

grande alcance, estabelece relações distintas e peculiares nas sociedades, ocupando lugares

também diferenciados em cada uma delas. Quando reconhece a televisão como, ao mesmo

tempo, uma tecnologia e uma forma cultural, Raymond Williams (2011) quer dizer que ela

constrói a sua história a partir de uma dinâmica complexa (que ele chama de fluxo),

organizando conteúdos e gêneros que, em situações específicas, se configuram como práticas

e produzem sentido. Encarar a televisão dessa forma talvez seja uma pista para a compreensão

de um programa como o Brasil Urgente, e sua existência no contexto brasileiro

contemporâneo, e quais são os atributos que permitem referencia-lo a partir de outros

programas que compõe o acervo histórico da TV no nosso país.

Ferramenta de compreensão: gênero como categoria cultural

Como vimos, Martín-Barbero (2009) entende que um meio como a televisão, por

exemplo, mais especificamente nos contextos contemporâneo e latino-americano, funciona

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como uma complexa trama de medicações que articula comunicação, cultura e política. Esta

trama foi pensada por Martín-Barbero em um esquema metodológico que ele chama de Mapa

das Mediações, o lugar onde se estabelece a tensão e o enfrentamento entre meio e recepção:

Matrizes, Competências, Formatos e Lógicas de articulam sob dois eixos: a) Diacrônico

(histórico e de longa duração), que articula Matrizes Culturais (MC) e Formatos Industriais

(FI); b) Sincrônico (que se realizam ao mesmo tempo), que articula Lógicas de Produção (LP)

e Competências de Recepção (consumo - CR). Estes quatro pontos se articulam através das

mediações provocadas pela ritualidade, tecnicidade, institucionalidade e socialidade. Essas

mediações se tocam, interagem. Percorrer o mapa significa entender como essas relações se

constituem na articulação total entre esses pontos. O objeto de análise é quem vai determinar

o local de entrada no mapa. Uma vez nele, é necessário encarar a passagem pelos pontos a fim

de compreender o sentido desse objeto na trama que envolve comunicação, cultura e politica.

Para pensarmos no nosso objeto, consideramos importante a relação sob o eixo

diacrônico, que remete à história da articulação entre movimentos sociais e discursos

públicos, e destes com as formas produtivas hegemônicas de organização da comunicação

Figura 1 - Mapa das Mediações (MARTÍN-BARBERO, 2009)

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coletiva. Martín-Barbero (2009) usa o exemplo do gênero melodrama, que historicamente, se

constitui num referencial movediço, que articula elementos da ordem do hegemônico e do

subalterno e se traduz em formas distintas, que ao mesmo tempo se entrelaçam por marcas

especificas desse código genérico. Aqui, se articulam elementos residuais e inovadores, e

também velhas e novas competências de leitura. O mapa nos mostra lugares possíveis onde

podemos compreender o lugar do gênero na nossa relação com a cultura, a comunicação e a

política, considerando os elementos estéticos que ele venha a levantar.

É a partir das interações apresentadas no Mapa que Itania Gomes (2011) propõe

pensar o gênero como uma categoria cultural. No centro do mapa, ele é visto como uma

estratégia de comunicabilidade que se constrói articulando os quatro pontos e suas respectivas

mediações. Para Gomes (2011), questões de gênero não tem tido muita atenção; enquanto

vertente literária e do cinema buscam entende-lo como um “elemento textual formal”, os

estudos culturais tem utilizado o gênero como um pretexto para se analisar conjunturas sociais

e novas identidades. Nesse sentido que a tarefa torna-se então buscar um entendimento do

gênero que dê conta dos aspectos textuais, dos códigos que o tornam socialmente

reconhecíveis “(...) mas que não se restrinja à mera classificação/categorização dos produtos”

(GOMES, 2011, p. 112). O gênero ganha lugar no centro do mapa, sendo capaz de operar

como “uma prática de produção de sentido”, que se realiza na troca com as demais práticas.

Pensar em gênero como categoria cultural então, é articular os pensamentos de Martín-

Barbero sobre os meios de comunicação (trama entre cultura, política e sociedade) e sobre

gênero (estratégia de comunicabilidade).

O autor [Jesus Martín-Barbero] nos oferece boas pistas para consolidar o estatuto do

gênero como uma categoria cultural: em primeiro lugar, porque entende que o

gênero é uma estratégia de comunicabilidade ou de interação, e é como marca dessa

comunicabilidade que ele se faz presente e analisável em um texto, numa

perspectiva que se aproxima mais de uma pragmática da comunicação do que de

uma semiótica textual de viés imanentista; segundo, porque postula o gênero como

um elemento central para compreensão da relação entre televisão e cultura

(GOMES, 2011, p. 123).

Nossa proposta neste exercício então é identificar, a partir dos elementos

estéticos, de que forma o programa Brasil Urgente convoca questões de gênero, numa

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perspectiva cultural, ou seja, ver de que forma esses elementos estéticos nos convocam

questões relacionadas a cultura, comunicação, política e sociedade. Neste caso, trazemos duas

situações que entendemos aqui como emblemáticas para ilustrar as principais estratégias para

configurar a possibilidade de um noticiário policial no Brasil.

O Brasil Urgente e suas marcas de gênero

O programa Brasil Urgente foi ao ar pela primeira vez em 2001, tendo como

apresentador o jornalista Roberto Cabrini. A emissora apresenta a atração como uma

reformulação do seu jornal noturno, mas a crítica entende como uma atração que privilegia o

caráter informal e grosseiro.

A partir de amanhã, os informativos da TV Bandeirantes estarão de "cara nova". O

canal estreia sua Central de Jornalismo, redação conjunta da emissora, do Canal 21,

da Rádio Bandeirantes, e o novo cenário dos programas jornalísticos da casa. Além

do visual novo, passam a integrar a programação o inédito "Brasil Urgente", com

Roberto Cabrini, a versão reformulada do "Jornal da Noite", com Maria Cristina Poli

no comando, e o "talk show" "Raio-X", de Salomão Schvartzman, antes exibido pelo

Canal 21. A atração de Cabrini, ex-Globo, segue a linha do "Cidade Alerta", da

Record, com informação apresentada de maneira informal, opinativa e "agressiva".

(Folha de S. Paulo, “Bandeirantes reformula sua programação jornalística”,

02/12/2001).

A promessa, no âmbito institucional, de que se trata de um telejornal, implica no

acionamento de certos códigos de reconhecimento. Por um lado, significa afirmar valores

caros à atividade jornalística, como vigilância, interesse público, objetividade, imparcialidade,

entre outros. Por outro, enquanto constituição da linguagem televisiva vinculadas ao

telejornalismo, temos aspectos como presença da bancada, apresentadores, escalada, uso do

som e de efeitos de câmera, técnicas de reportagem como off, passagem, sonora, etc. Neste

sentido, a própria figura de Roberto Cabrini funciona como um elemento importante neste

reconhecimento como telejornal. Como profissional havia acumulado naquele momento mais

de uma década de experiência na TV Globo, muitos deles dedicados à grandes reportagens, de

ampla repercussão. No entanto, Cabrini ficou no programa apenas até março de 2003, quando

deu lugar a José Luiz Datena, antes apresentador do concorrente direto, o Cidade Alerta. O

programa dobrou os índices de audiência, e fez de Datena um ícone entre os atuais noticiários

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policiais4. Datena não é jornalista de formação acadêmica. Começou no rádio e se ganhou

notoriedade na Rede Record cobrindo eventos esportivos. O sucesso e o reconhecimento

nacional vieram com o Cidade Alerta, que rendeu bons índices de audiência à Record.

Chegou a voltar à Record, durante um curto período, mas o contrato foi desfeito e o

apresentador retornou à Band, onde se mantém. É um dos apresentadores mais bem pagos da

TV no Brasil, estimado em cerca de R$1 millhão por mês.

Com catorze anos de existência, podemos dizer que o Brasil Urgente é um

programa de certa relevância construída uma trajetória importante no contexto da produção

televisiva brasileira. Sua apresentação para o público, a partir da vinheta de abertura, sofreu

algumas mudanças neste tempo mas sempre com o objetivo de chamar a atenção do público

para o sentido de urgência. Apresentamo-la aqui como a primeira via de contato com o

telespectador, por onde os seus primeiros sentidos são ativados em relação à proposta do

programa.

A tipologia contendo o nome do programa sugere esse efeito a partir da entrada

em diagonal, surgindo do canto esquerdo para o direito da tela. Nos primeiros anos, a cor

usada na vinheta era apenas o laranja, uma cor vibrante e que denota sentido de alerta. Nos

anos seguintes a cor azul foi incorporada, até finalizar a versão atual que usa as cores azul, em

maior predominância, e vermelho.

Figura 2 - Vinhetas do Brasil Urgente em 2002, 2005 e 2013 (da esq. para a dir.).

4 Dado do perfil feito pela Revista Veja, publicado em abril de 2011. Disponível em

http://vejasp.abril.com.br/materia/datena-band-apresentador-perfil

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Consideramos significativa a incorporação do azul de forma mais incidente. Esta

cor está presente na vinheta dos quatro principais telejornais brasileiros - SBT Brasil (SBT),

Jornal da Band (BAND), Jornal da Record (Record) e Jornal Nacional (Globo) - e no mais

antigo deles, o Jornal Nacional, é utilizada desde os seus primeiros anos. O vermelho,

entendemos aqui, surge para marcar o sinal alerta, de urgência que o próprio nome convoca.

O movimento efetuado pela arte, da entrada do nome dura cerca de cinco segundo, e mais três

segundos são utilizados para que a imagem final com o nome do programa componha a tela.

A velocidade com que os elementos da arte utilizada na vinheta se compõem também se

relaciona com o ritmo frenético proposto pelo programa, que é apresentado ao vivo.

A trilha sonora utilizada na abertura é a mesma da sua estreia, e foi composta pelo

maestro Mario Boffa Júnior, a pedido da emissora. O som é grave e enérgico, e ajuda a

compor o clima de alerta, como salienta Schiavoni:

O ritmo acelerado da música contribui para criar o efeito de sentido de urgência, de

pressa, de “corrida contra o tempo”. [...] No final da vinheta, quando a logomarca do

telejornal já está na tela, a diminuição da velocidade das imagens (paralelogramos

achatados) é acompanhada por um contínuo sonoro. É interessante destacar a

questão do “contínuo”, porque as imagens não chegam a se estabelecer, ou seja,

fixar-se na tela, apenas diminuem o ritmo. O mesmo acontece com o som.

(SCHIAVONI, 2007, pgs. 78 e 79).

Datena, o principal condutor do programa, entra em quadro ocupando o cenário

do programa, que é configurado sobre projeção em chromakey. Telas de televisões se colocam

em profundidade, deixando o apresentador em uma perspectiva evidenciada, que sugere

liderança e autoridade. Do centro, Datena controlaria o que está ao seu redor - entrada de

repórteres e imagens ao vivo e reportagens gravadas.

As três possibilidades de enquadramento de câmera em que Datena executa sua

performance no estúdio revelam modos simbólicos do apresentador exercer este controle.

Pelo lado esquerdo aparece uma grande imagem aérea e noturna que mostra a cidade

iluminada. Ao centro temos uma visão em profundidade em que aparecem mais telas com

imagens da logomarca do programa. Ao lado direito, onde continua o plano de fundo do

cenário anterior, tem-se ao fundo um painel composto pelo o que seria telas de TV, que juntas

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formam uma só tela maior. É nessa direção também que Datena interage com uma tela virtual,

que desce ao seu pedido em algumas matérias.

Figura 2 - Brasil Urgente nacional: cenário

O esforço para manter um comportamento comedido e o vestuário formal são

elementos que dialogam com as preferências estéticas dos telejornais convencionais. Este

apelo à sobriedade funciona como argumento às premissas de compromisso, seriedade e

isenção valoradas pela atividade jornalística. Ao mesmo tempo, Datena permite-se amenizar

essas características no texto verbal, quando utiliza uma linguagem mais direta e coloquial

para se referir ao telespectador e à própria equipe. Utiliza gírias, expressões da sabedoria

popular e algumas frases que utiliza com frequência adquirem efeito de bordão, como por

exemplo “me dá imagens”.

Datena usa gírias, apelidos e expressões da sabedoria popular como estratégia

para se aproximar dos modos de comunicar das classes ditas populares, como se desejasse

romper com os paradigmas de formalidade construídos pelo telejornal. O programa é ao vivo,

e ao inserir estes diálogos como imprevistos, ocorridos à naturalidade, Datena convoca o

telespectador a entrar na esfera da produção, do bastidor, no intuito de que ele se “familiarize”

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com o que vê. Em consequência, tais estratégias simulam os efeitos de instantaneidade,

verdade e transparência.

Datena comporta-se como um guardião da moral da sociedade, prometendo ser

duro e incisivo com aqueles que desejam perturbar esta ordem. No site institucional da

emissora, é caracterizado como um profissional famoso por ser “polêmico” e não ter “papas

na língua”, ou seja, disposto a dizer a verdade independentemente das consequências que isso

possa trazer. A postura de revolta e indignação adotada pelo apresentador está vinculada a,

segundo a sua postura inicial, situações que abalem a moral e os bons costumes, ou que

revelem dificuldades do cenário político-econômico do país. Datena é portanto, o principal

condutor do programa e o modo como este programa constrói uma experiência de gênero está

fortemente vinculado à sua performance. Observamos como em duas situações específicas ele

interage e quais os elementos que se conectam à esta conduta, e convocam uma específica

situação comunicativa, produtora de sentidos.

A) Edição 23/11/2012

O apresentador anuncia, como cabeça de reportagem, a entrada de cenas de um

assassinato brutal, ocorrido “em plena luz do dia”. Exibe-se uma nota coberta nota, com

narração do repórter Getúlio Costa. O crime acontecera na cidade de Macapá, em 2012, e só

agora o acusado teria sido preso. As imagens apresentadas pertencem a uma câmera de um

estabelecimento comercial localizada diretamente sob o local do crime. A mulher está de

costas, próximo à entrada do estabelecimento. O homem se aproxima e desfere facadas nas

costas da mulher. Ela agoniza no chão, o homem vai embora e uma criança passa correndo, ao

lado da mulher caída. A imagem do momento do assassinato é exibida com detalhes e sem

efeito de sombreamento, cortes ou efeito embaçado, que dificulte ou atenuasse os detalhes dos

golpes de faca. Enquanto o repórter narra a cena e dá informações sobre a prisão do acusado,

a cena exata em que ocorre o ferimento fatal é reprisada no mínimo cinco vezes.

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Figura 4 – Brasil Urgente nacional: câmeras registram assassinato

Após a exibição, o apresentador comenta:

Datena: “A gente que é contra mostrar isso aí na televisão. Eu acho que é importante você

mostrar isso na televisão pra você ver o que tem, o que tem de gente má, ruim, bandida, e que

merece um, um cara que mata uma mulher desse jeito, merece outra coisa que não seja pena

de morte? [...] Você não acha que esse cara tem que ser mostrado, pra gente ver que nesse

país tem gente que merece pena de morte? Ou não, ou você acha que não? Isso aí ele tá

matando a mulher como se fosse um porco, a coitada da menina grávida de quatro meses!”.

Embora faça a ressalva de que o programa é “contra” a exibição de imagens

fortes, Datena trata de legitimá-la pelo debate que ela é capaz de provocar, e que é de

interesse do programa em discutir. Embora no discurso o apresentador desmereça as cenas,

são elas que possuem o poder de endossar seu discurso de que a barbárie é a consequência

fatal de um não ordenamento moral do sistema judicial, ou melhor, da não redução da

maioridade penal, assunto que ele na sequência emenda.

A força com que a vítima é apanhada, o corpo ensanguentado, a frieza do

assassino que desfere golpes de facas, a repetição exaustiva da cena. Todos estes elementos

comungam ainda com as estratégias do grotesco e do sensacionalismo, como se fossem

necessárias para endossar argumentos e discussões seguintes capitaneadas pelo mediador

principal. Entendemos aqui, que provocar a sensação de angústia e choque no telespectador é

uma estratégia que conecta às formas ancestrais de contar histórias de crime e polícia,

inauguradas pela literatura e pelo cinema. Nas regras do telejornalismo convencional,

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qualquer deslize que nos coloque fora da objetividade e da formalidade estética extrapola o

gênero, colocando em outro lugar, em geral depreciativo. O que nos interessa aqui não é

depreciar, mas sim, reconhecer que esta estratégia nos conecta culturalmente a um modo de

contar histórias, a um contexto contemporâneo de violência, e na disputa de poderes entre a

Instituição Policial, Governo e Judiciário, onde com força insere-se a tribuna do

telejornalismo, enquanto mediadora dessa experiência. Vejamos que, ao escolher esse tipo de

situação, Datena subtrai as consequências éticas, com se qualquer tipo de censura ou rechaço

à exibição fosse pouco diante do apelo político que ele estaria tentando levantar, que é o de

medidas mais severas de combate à criminalidade afim de que se reestabeleça a ordem e o

bem estar social.

Assumindo esta postura, Datena marca também um posicionamento que se

constrói no limite do gênero. As situações de crime e ação policial seriam reveladoras destes

problemas sociais maiores, e de acordo com os argumentos de Datena, apenas programas

dedicados a estes temas teriam condições de levantar esse debate. Conforme tenta justificar na

mesma edição, em sequência à exibição das cenas do assassinato, caberia à reportagem

policial, desde sempre, revelar “verdades inconvenientes” porém necessárias e importantes

para se problematizar a sociedade e seu cotidiano.

Datena: Eu acho que tem que mostrar, o Nelson Rodrigues dizia isso! Se você empurra a

sujeira pra debaixo do tapete, você não mostra os podres da sociedade. Expondo os podres

da sociedade, e o Nelson Rodrigues além de dramaturgo, durante muito tempo foi repórter

policial, e sabia bem o que é isso, e é por evitar de falar a verdade que na questão da

segurança pública nos chegamos a esse ponto. [...] O objetivo é chocar? Não! O objetivo é

mostrar que nós temos assassinos desses aí! Porque a gente fica com moleza, moleza, moleza,

falando manso, falando manso, falando manso, e de repente essas bestas-feras cruzam com

alguém da minha, da sua, da nossa família.

O momento específico em que o assassino desfere facadas na vítima é o alvo da

reprise da cena. Quando a imagem da cena sai da tela e fica apenas em Datena no estúdio, o

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apresentador reclama e pergunta à equipe porque eles tiraram a imagem. Faz uma pausa e

afirma “Porque tá muito forte?”, como se tivesse recebido essa justificativa do ponto

eletrônico para retirada da imagem e responde: “É, tá muito forte mas tem que mostrar! Ah,

então sabe o que nós podemos fazer? [aumenta o tom de voz]. Mostra...er, desenho da Xuxa

aí, pô!”. Desse modo, Datena, enquanto apresentador e âncora, materializa a estratégia maior

de construção do programa que é o de buscar popularidade a partir do uso de certos códigos

vinculados à cultura popular, mas negociando fortemente com certos valores e estratégias

convencionadas pelo telejornalismo brasileiro para gerar o efeito de credibilidade,

compromisso e seriedade.

B) Edição 07/12/2012

Nesta edição, a manchete que foi abordada em todo o programa foi sobre um idoso

que havia sido espancado em um assalto. Na cabeça da reportagem, o repórter narra o fato:

Repórter Lucas Martins (em off):

Aos 79 anos, este senhor, que conquistou o

pouco que tem à base de muitos calos nas

mãos, e rugas no rosto, foi espancado por dois

covardes que queriam tomar do idoso o que ele

não tinha.

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A reportagem inclui entrevista com a vítima, com o vizinho que ajudou a socorrê-

lo, fotos dos acusados, passagem do repórter em frente à Delegacia, e termina com o

depoimento bastante emocionado da irmã da vítima, uma senhora que ainda não tinha visto o

irmão após o ocorrido. Ela vê o seu estado pelas imagens registradas pela equipe. A imagem

volta para Datena no estúdio, que comenta:

Datena:

Tem gente que ainda faz

apologia ao crime. Tem

gente que ainda acha que

ser bandido eh legal. [...]

Então vocês, babacas,

canalhas, safados, sem

vergonhas, que fazem

apologia ao crime, que

gostam de adorar a

criminosos, fazer apologia a

criminoso, né, ficar

defendendo por ai,

brincando, com criminoso, e

fazendo musiquinha, ou

coisa parecida pra fazer

apologia ao crime, vocês

também são responsáveis

por esse tipo de canalha que

faz esse tipo de coisa, olha

aí! Olha aí o que fizeram

com o velhinho!

Descrição:

Datena se exalta e

aponta o dedo para o

telespectador,

direcionando o

discurso a quem “faz

apologia ao crime”.

Termina apontando o

dedo para a tela que

teria a sua frente, que

estaria mostrando a

imagem em close do

rosto do idoso

machucado.

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Em seguida, pergunta ao telespectador “que tipo de pena merece um cara que faz

isso com um velhinho”, e pede à equipe que coloque em tela o número do “Orelhão do

Latino”, que seria o número disponibilizado pelo programa para que o público mande

mensagens de texto através do celular. Mais tarde, aparecem mensagens na legenda em crawl,

no rodapé da tela: “pena de morte - AM; pena de morte - SP; pena de morte - RJ; uma surra -

ES; pena de morte - BA; prisão perpétua - AM”, entre outras mensagens exibidas ao longo do

programa, que teriam sido enviadas pelos telespectadores.

No papel de apresentador em comando de uma atração de grande audiência,

Datena simula a ideia do debate, da discussão, organizando uma espécie de plebiscito

simbólico para articular a discussão sobre um tópico que posiciona-se a favor. Para isso, a sua

postura exaltada diante da tela é o principal artifício de validação deste debate. Datena

aumenta o tom de voz, a feição remete à raiva, indignação. O telespectador pode ter a

sensação de que ele perderá os limites, que a raiva pode lhe levar a alguma atitude

inconsequente, que de fato, a tela pode ser uma “caixinha de surpresas”. Tal estratégia aparece

aqui como um artifício para validar o debate – a situação do personagem representa uma entre

as milhares de injustiças que aconteceriam e a redução da maioridade penal seria a solução.

Ao mesmo tempo em que o exagero na performance de Datena - pelo corpo e pelo discurso –

extrapolam a sobriedade e isenção esperada pelo modelo convencional do jornalismo, e

contrastam com o seu traje formal, Datena abre brechas para através dessa “informalidade”

construída, simular a construção de valores simbólicos concernentes ao campo jornalístico

como o de verdade e de interesse público.

A ocorrência da performance em transmissão direta também funciona aqui como

um recurso que ajuda a imprimir um efeito de transparência e veracidade ao discurso verbal

de Datena, que é validado também pelo efeito de naturalidade imprimido pelo uso da

linguagem coloquial. Segundo Juliana Gutmann (2012), a transmissão direta, ao lado da

performance dos mediadores e dos elementos de composição audiovisual, funcionam no

telejornal contemporâneo como estratégias para produção de sentido de interesse público e

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atualidade. No caso do Brasil Urgente, a performance do mediador principal se orienta pela

retórica da indignação no discurso verbal.

A transmissão direta ajuda a legitimar o que está sendo noticiado, pela

possibilidade do tempo real. Os efeitos de audiovisual revelam uma especifica articulação

“entre o dizer e o mostrar” (GUTMANN, 2012, p. 61) No caso deste programa, revela um

esforço em mostrar-se alinhado às possibilidades tecnológicas e o seu espectro de

modernidade, que orientaram modos de se fazer telejornalismo no Brasil.

Embora se verifiquem como tendência no telejornalismo contemporâneo, a partir

de quanto as potencialidades visuais da imagem ampliam seu aspecto valorativo na

construção e legitimação da notícia (GUTMANN, 2012) tais artifícios se constroem aqui no

Brasil Urgente também como um reforço a um apelo sensacional gerado por alguma dessas

notícias, potencializando efeitos de repulsa, choque, espanto, tensão, curiosidade, admiração.

Considerações finais

Não foi a nossa intenção realizar uma análise propriamente estética do Brasil

Urgente, mas sim, mostrar como a Estética é um elemento importante em um contexto de

análise cultural de gênero, onde procuramos entender as estratégias que viabilizam a condição

de existência de tal programa, em contextos específicos.

A análise das duas situações nos mostram que as chaves estéticas acionadas pelo

melodrama, pelo grotesco e pelo sensacionalismo aparecem aqui como lugares onde podemos

ver algumas das referências de gênero advogadas pelo programa, operadas enquanto

estratégias. O suspense, a angustia, o choque, aparecem como artifícios centrais de um

formato que ao mesmo tempo em que resgata modos historicamente construídos de fazer da

narrativa policial, também nos coloca em cheque com valores e expectativas contemporâneas

do fazer jornalístico na televisão brasileira.

Nesse sentido, os elementos suscitados pelas cenas em análise nos mostram que

Brasil Urgente disputa pela manutenção de um discurso baseado em valores tradicionais da

cultura brasileira, num movimento complexo entre tradição e inovação. Através dos recursos

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de tecnologias, negocia com os padrões que convencionaram o telejornalismo e que

configuram tendências contemporâneas no fazer televisivo para legitimar-se enquanto

jornalísticos e enquanto produtos televisivos modernos. Mas ao mesmo tempo, sobrepõem

esse uso ao poder do discurso verbal empregado pelo apresentador, que recorre a uma

performance apoiada nos códigos que historicamente remetiam aos programas populares,

dedicados aos temas do mundo-cão. Reforça assim, a condição crucial que a oralidade tem

enquanto uma das mais fortes matrizes do modo de fazer televisivo brasileiro. Assistimos a

um movimento que fez o depreciado mundo-cão se transformar em outros tipo de programa,

com estratégias reformulas, não necessariamente novas. E ainda, que a experiência sobre o

que significa ser um noticiário policial no Brasil requer o entendimento deste programa como

um lugar de disputas e tensões entre valores e modos de fazer, nos campos jornalístico,

televisivo e cultural.

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