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90 ANOS APÓS O PRIMEIRO MANIFESTO SURREALISTA, AINDA É POSSÍVEL DETECTAR SEUS FRAGMENTOS EM MEIO A DEBATES, REFLEXÕES E IDEIAS DO UNIVERSO DAS ARTES POR JUNIOR BELLÉ | capa | 52 ESTILHAÇOS DE UM OLHO MÁGICO FOTOS: CORBIS

Estilhaços de um olho mágico

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90 anos após o primeiro manifesto

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“Tamanha é a cren-ça na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afi-nal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgos-

toso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou, pelo menos, não o repugnou tomar sua decisão (o que ele chama decisão!). Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém--nascido, e quanto à aprovação de sua consciência mo-ral, admito que lhe é indiferente.”

Foi com tais palavras que o francês André Breton (1896-1966), à época um escritor de tão somente 28 anos, abre o parágrafo inicial do I Manifesto Surrealista, lançado em 15 de outubro de 1924. Apesar de a bebe-deira não ser o fator central, o porre que Breton e seus confrades deram ao mundo da arte por meio deste texto foi de tal maneira profundo que presenteou a todos com uma ressaca inesquecível. Quiçá eles desejassem liquefa-zer no álcool as memórias de uma Europa pós-guerra, ou a crescente intuição de que outra ainda pior se anun-ciava. O fato é que aqueles jovens tiveram a pachorra de esculhambar os cânones estéticos. Ou talvez isso não seja exatamente verdade. “Ainda há pouco, o grande decano do surrealismo em Portugal, Artur Cruzeiro Seixas, nas-cido em 1920, dizia que o surrealismo era uma aventura ética, e não um modelo estético”, pondera António Cân-dido Franco, professor do Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora, em Portugal.

Já Fiona Bradley, no livro Surrealism (Movements in Modern Art), diz que o surrealismo foi, a princípio, um “empenho de caráter literário”. “Não se havia estabelecido nenhuma linha de ação para os artistas visuais do surrea-lismo até que Breton escreveu O surrealismo e a pintura, em 1925, e não existiu nenhuma exposição específica até que se inaugurou a Galeria Surrealista, em 1926”.

É importante ressaltar que, nesta época também, Freud não estava simplesmente vivo, mas revolucioná-rio. Ele alçara a psicanálise ao protagonismo das investi-gações sobre as entranhas mais sutis dos seres humanos. O impacto desse avanço do inconsciente nos surrealistas foi irrecuperável. Por meio da arte, eles buscavam o que

nomearam de “O Maravilhoso”, ou ao menos uma soleira na qual pudessem escorar-se e admirar este novo mundo, que entendiam estar na comunicação com o irracional, com o ilógico. Pretendiam, assim, orientar o consciente a partir das bases irreconhecíveis do inconsciente. Daí a pai-xão por temas como o estado de sono, pelos sonhos, pela liquidez do tempo e pelo fantástico. A ideia era que tudo ocorresse de modo natural, nas brechas ainda não impreg-nadas pela razão, o que os levou a compor obras em torno da infância, da loucura, da insônia, da alucinação e das drogas que levam aos estados alterados de consciência.

O DNA As preocupações do surrealismo entre 1924 e 1929 –

ano de lançamento do II Manifesto Surrealista –, quando ele ainda tateava em busca de reconhecimento, giravam

em torno da “função psíquica da arte”. Afinal, “a psicaná-lise deixou uma marca fortíssima no código genético da nascença do surrealismo e não mais deixou de influir no desenvolvimento da sua vida”.

Não à toa, assim Breton definiu a si mesmo e a seus correligionários no I Manifesto: “Surrealismo. S.m. Auto-matismo psíquico puro, por meio do qual alguém se pro-põe a expressar – verbalmente, utilizando a palavra escrita,

André Breton, retratado por Man Ray em 1930; na página ao lado, o tríptico Yesterday, Today, Tomorrow, fotografado em 1924 pelo mesmo artistafo

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ou qualquer outra maneira – o verdadeiro funcionamen-to do pensamento, na ausência do controle exercido pela razão, livre de qualquer preocupação estética ou moral”.

Esta herança antirracionalista é o que alça o surrea-lismo ao conflito com outras tendências artísticas, como os construtivistas e os formalistas, que floresceram na Europa após a 1ª Grande Guerra. Pela gênese francesa, o surrealismo emparelha-se com similares em proposta, porém não em método e resultado, como o cubismo, for-talecido pela volta dos romantismos francês e alemão. Até compartilhava valores com o simbolismo e a pintura me-tafísica, mas é especialmente com o viés dessacralizador e emputecido do dadaísmo que sempre conversou mais. António lembra que “o empenho político do surrealismo

e dos surrealistas fez-se em torno de questões como a li-nha antiarte e a tradição revolucionária do movimento dadaísta”. Além do mais, muitos surrealistas se escolaram naquela corrente, inclusive Breton, que rompeu com o dadaísmo apenas em 1922. Ambos promoviam uma crí-tica severa à racionalidade burguesa e saudavam O Ma-ravilhoso, o universo fantástico e os domínios do onírico.

Para concretizar este anseio em uma obra de arte, pintores surrealistas testavam métodos para criar ima-gens de maneira automática, testavam colagens e assem-blages, assim como os escritores lançavam-se à escrita automática, ao monólogo interior e às demais técnicas experimentais. Nome importante durante essa primeira fase do movimento, o poeta Jacques Prévert (1900-1977) destacou-se pelo uso de construções literárias novas, como os absurdos quebra-cabeças e enigmas descabidos. Todos esses métodos de criação artística, empregados para dar vazão ao inconsciente, são um legado perma-nente deixado pelos surrealistas, que, apesar de não te-rem inventado a maioria deles, foram, sem dúvida, os que melhor apropriaram, estudaram e amplificaram seu uso.

De acordo com a pesquisadora em Estudos Lite-rários da Universidade Estadual Paulista, Adriana Rodrigues Simões, que estuda a obra de Prévert, “ele participou do grupo surrealista por cinco anos, de 1925 a 1930. É interessante notar que, durante esse pe-ríodo, ele não publicou quase nada, exceto uma letra de música e outros dois textos. Um deles foi o Mort d’un monsieur, que marcou seu rompimento com o surrealismo e o que ele julgava como autoritarismo de Breton. Os anos que permaneceu no grupo foram de gestação de grande parte dos poemas do livro Paroles,

Sem ideias ou composições preconcebidas, André Masson realizava seus desenhos automáticos (à esquerda): deixava a caneta fluir livremente sobre o papel, sem controle consciente sobre o processo. Quase sempre, o desenho final era deixado intacto, mas, às vezes, ele reforçava os elementos figurativos que haviam emergido do abstrato. Por refletirem o inconsciente, são frequentemente usados como ponto de aceitação das artes visuais e da ruptura com o dadaísmo. Em 1925, os surrealistas começaram a fazer desenhos coletivos e poemas com uma técnica chamada Cadavre Exquis (imagens do meio e da direita). Praticamente um jogo, o nome deriva da frase formada no primeiro: “Le cadavre exquis boira le vin nouveau.” (“O cadáver requintado beberá o vinho novo”). Dobrava-se um papel, um artista desenhava (ou escrevia) em um pedaço, dobrava novamente a folha, escondendo seu desenho (ou frase), e outro artista dava continuidade sem ver o trabalho anterior. Faziam isso sucessivamente e, quando abriam o papel, o resultado eram figuras ou poemas com combinações aparentemente aleatórias de elementos, já que cada parte tinha sido feita por uma pessoa diferente. Além de ser usado até hoje por artistas, essa técnica influenciou, por exemplo, o cut-out na escrita de William Burroughs, cujos princípios se assemelham bastante ao Cadavre Exquis.

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publicado em 1946, também colaborando enorme-mente para seu estilo e toda a sua obra posterior”.

Adriana aponta que é possível perceber a heran-ça surrealista no estilo satírico e até no humour noir de Prévert, “tanto que, anos depois, após fazerem as pazes, Breton incluiu o primeiro poema de Paroles em sua An-thologie de l’humour noir, por considerá-lo fiel ao espírito surrealista. Em sua linguagem e em seu modo de com-posição poética são notáveis as influências, como nos estarrecedores jogos de palavras”.

Algumas das técnicas mais interessantes da poesia de Prévert, como colar imagens etimológicas, porém apenas aparentemente desconectadas, é, ou poderia muito bem ser, uma importação que fez de sua atividade como ro-teirista. Não foi apenas Luis Buñuel (1900-1983), talvez o mais conhecido dos cineastas surrealistas, quem mudou os rumos da sétima arte. Prévert foi o escritor francês que mais diretamente influenciou o cinema entre as décadas de 1930 e 1950, escrevendo roteiros clássicos, a maioria para o diretor Marcel Carné (1906-1996), os quais alicer-çaram o que ficou conhecido como o Realismo Poético francês. Essa escola inspirou diretamente o cinema noir norte-americano, decisivo para a criação do neorrealis-mo italiano e, apesar das divergências, sem ele não have-ria a nouvelle vague como a conhecemos.

Esse histórico de influenciações não é desproposita-do. Cinema e surrealismo admiram um no outro a ob-sessão pela imagem e pelo sonho. De acordo com a pes-quisa de Fernando Mendonça, da Universidade Federal de Pernambuco, intitulada Sonho surrealista no cinema, “se ligarmos a importância da imagem ao fato de o sur-realismo ter adotado o processo cubista de colagem, che-garemos rapidamente à conclusão de que o cinema é um dos meios mais eficazes e genuínos para a transmissão

Os questionamentos propostos por René Magritte exerceram influência sobre várias gerações de artistas. Acima, Les valeurs personnelles (1952) inspira a mudança de escala no pente gigante de Vija Celmins (1970); abaixo, a reflexão sobre a forma de representação e a relação arbitrária entre objetos e imagens proposta em Les charmes du paysage (1928) dialoga com Canvas (1956), de Jasper Johns, e Stretcher frame (1968), de Roy Lichtenstein

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da arte surrealista.” Para Mendonça, a imagem é um dos objetos mais funcionais para a antilógica do movimento, e ela foi avançando até mesmo no sacro terreno das pala-vras: “Um bom exemplo é a escrita automática, que não se importa somente com o sentido que seu texto pretende passar (isso, quando pretende algo), mas se preocupa até em maior escala com a aparência/imagem, ou seja, a for-ma plástica de suas palavras.” Não bastasse isso, o cinema ainda possuía a “característica peculiar” de poder “imitar a articulação dos sonhos”, ou seja, forjar o tão buscado Maravilhoso. Sussurrar na orelha da psicanálise.

A concepção de Um cão andaluz, maior expoente do cinema surrealista, nasceu de um sonho de Buñuel e outro de Dalí. O primeiro sonhou com uma nuvem cortando a Lua, o último, com uma mão repleta de

formigas. Foi no roteiro desse filme que os espanhóis testaram uma técnica nova de automação da escrita, que nada mais era que um jogo de assemblagens. Eles o chamaram de “Cadavre Exquis”, ou algo como “cadáver requintado”. A ideia, segundo Buñuel, era justamente “não aceitar nenhuma ideia, nenhuma imagem que pu-desse dar lugar a uma explicação racional, psicológica ou cultural. Abrir todas as portas ao irracional.” A rup-tura com o enredo tradicional, a invenção de uma novi-dade em técnica de construção de trama, e a recusa da linearidade, de tempo ou de espaço, são cicatrizes per-manentes que o filme, lançando em 1928, deixou não só para o cinema, mas para toda a arte narrativa.

Um sujeito que, sem a menor dúvida, assistiu a esse filme atende pelo nome de David Lynch. De acordo com Rogério Ferraraz, na tese O veludo selvagem de David Lynch: a estética contemporânea do surrealismo no cinema ou o cinema neo-surrealista, muitas carac-terísticas apresentadas em Um cão andaluz podem ser encontradas no cinema contemporâneo, e a obra de Lynch, que dialoga intimamente com seu tempo, é a prova cabal, a evidência, o corte, o talho. E ele foi feito usando as mesmas facas: a beleza compulsiva que acon-tece no choque entre duas realidades distintas, o amor louco normalmente representado na mulher, o humor negro e a valorização do mistério, e o acaso objetivo como uma concepção filosófica. E isso não é recente, descende de Eraserhead, seu primeiro longa, de 1972, feito com apenas US$ 20 mil. Segundo o famoso crítico de história de cinema, Claude Beylie, Lynch “provou, desde (...) Eraserhead, pesadelo experimental nascido de um cruzamento de Frankenstein com Um cão anda-luz, que deveríamos contar com a sua poesia tenebrosa”.

A parceria entre Buñuel e Dalí ainda renderia outro clássico, L’Âge d’or, que décadas depois emprestaria suas imagens a pintores, seus delírios a poetas e o título a uma célebre canção do Legião Urbana: “Lá vêm os jovens gi-gantes de mármore / Trazendo anzóis na palma da mão / Não é belo todo e qualquer mistério? / O maior segredo é não haver mistério algum”. Foi durante a produção deste filme que os jovens espanhóis, já gigantes do surrealismo, começaram a se desentender. Mas é importante pontuar que Dalí não abandou o gosto por este método de traba-lho quando se dedicava ao cinema. Inesquecível também sua colaboração posterior com Hitchcock – quem esque-ce a sequência do sonho em Quando fala o coração, no original intitulado Spellbound, de 1945?

II MANIfestODe acordo com o professor José Niraldo de Farias,

da Universidade Federal de Alagoas, é a partir do se-gundo manifesto que o surrealismo passa a investigar mais a si mesmo, com o intuito de resolver suas contra-

DESEMBARQUE NA AMÉRICA LATINAJosé Niraldo conta que é na segunda fase do surrealismo que acontece a

internacionalização da poesia de Breton. E a América Latina é parte fundamental desse processo. Um dos fatores primordiais foi a viagem de Breton, em 1938, ao México, como parte de um comitê do governo francês que promovia uma conferência em parceria com a Universidade Nacional Autônoma do México. Lá ele conheceu pessoalmente Trotsky, que o convidou a uma viagem até Erongarícuaro, uma espécie de refúgio de intelectuais, entre os quais estavam Frida Kahlo e Diego Rivera. Foi nesta viagem que o histórico Pour un art révolutionnaire indépendent foi escrito por Breton e Trotsky, ainda que, por questões de segurança, a assinatura do bolchevique tenha sido substituída pela de Diego Rivera.

Além desta proximidade, que venceu a geografia, o surrealismo expandiu-se até os ares latinos através da presença de alguns escritores em Paris. Esse era o caso de Octavio Paz (1914-1998) e Vicente Huidobro (1893-1948). No Brasil, quem mais bebia da efervescência europeia era o poeta alagoano Jorge de Lima (1895-1953), que, em 1930, fincou residência no Rio. Rapidamente, seu ateliê tornou-se ponto de encontro de intelectuais, entre os quais estavam Drummond (1902-1987) e Murilo Mendes (1901-1975), grupo que logo incorporaria outro importante poeta, João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Murilo se tornou grande amigo e parceiro de letras de Jorge, e é notório o impacto que ambos tiveram sobre a produção poética e literária brasileira, seja por suas obras, seja pela influência que exerceram sobre seus pares. Mesmo sendo o anfitrião, Jorge teve seu legado obscurecido pelas seguidas recusas da Academia Brasileira de Letras (ABL) de dar-lhe uma cadeira e pela crítica a seu catolicismo.

Aliás, de acordo com José Niraldo, este era um ponto crucial na diferença entre o surrealismo francês e sua interpretação brasileira, cujo impacto em nossa literatura foi mediado especialmente por Jorge de Lima e Murilo Mendes: “Em ambos, há muitos aspectos que se chocam frontalmente com algumas ideias postas no manifesto. Uma delas é a religiosidade. Mas esse assunto também é problemático em Jorge de Lima. A crítica se equivocou ao estigmatizá-lo como um escritor católico. Evidentemente, como um escritor brasileiro, não há nenhuma prova de que ele tenha percebido o movimento surrealista como uma estética a ser seguida fielmente. Ele é um poeta de múltiplas filiações. Bebeu em muitas fontes, mudando sempre. Na realidade, as alterações são importantes para a manutenção do legado. Somos surrealistas antes do surrealismo”.

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dições no que concerne à função social da arte: “Essa preocupação percorre o movimento por inteiro, e ele é permeado por incessantes debates, tensões, contradi-ções e até desavenças pessoais. O fato é que Breton não se conformava com uma possível oposição entre a vida interior e o mundo dos fatos. Por isso, foi bastante criti-cado por Pierre Naville [1903-1993], Sartre [1905-1980] e Camus [1913-1960]. No manifesto de 1924, ele detona com o realismo e atribui valor poético ao materialismo, segundo ele, congruente com a elevação do pensamen-to”. O movimento passa, a partir de então, a dialogar mais intimamente com a política. Afinal, a Revolução Espanhola batia à porta, assim como faria pouco depois a 2ª Guerra Mundial. Havia uma necessidade imperati-va que impelia os surrealistas a se posicionar.

Foi durante esse período, propriamente em 1927, que Breton filiou-se ao Partido Comunista Francês, ao mes-mo tempo que proclamava, no manifesto, a libertação da arte em relação a qualquer dogmatismo enclausurante. A poesia seria a única saída para a libertação. É claro que isso lhe rendeu sérios problemas com o PCF, do qual foi expulso em 1933. Sua relação com o marxismo só seria retomada em sua viagem ao México, em 1938, quando conheceu pessoalmente Leon Trotsky (1879-1940).

Apesar da aparente simbiose com o ex-líder bolche-vique, sua lua-de-mel não durou muito. O motivo da dis-córdia tinha nome: Revolta de Kronstadt. Breton escreve, em seu artigo mais enfático no Le Libertaire, periódico da Federação Anarquista Francesa, de 11 de janeiro de 1952, intitulado A clara torre: “(...)O que se pode con-siderar como triunfo da Revolução Russa e a realização de um Estado operário provocava uma grande mudança de visão. A única sombra do quadro – que se precisaria como mancha indelével – residia no esmagamento da in-surreição de Kronstadt, em 18 de março de 1921. Nunca os surrealistas conseguiram passar por cima disso. (...)”

O que Breton chama de “esmagamento da insurrei-ção” foi um ataque incessante, sob ordens de Trotsky, que durou em torno de dez dias e contou com mais de 50 mil homens do Exército Vermelho. O número de mortos jamais foi contado, estima-se em milhares. “A verdade”, segundo José Niraldo, “é que a proposta sur-realista sempre foi, desde o início, incompatível com qualquer corrente partidária. A proposta libertária do movimento é muito mais abrangente; o poético buscava englobar o político”.

Talvez essa volatilidade ideológica de Breton tenha um viés mais sensível, afinal ele sabia que tinha sua própria trincheira a defender e domínios a avançar. Para António Cândido, “o surrealismo tem a sua pró-pria revolução a fazer, de tipo ético ou psíquico, e só algo lateralmente, e sempre com alguma decepção, se interessou pela revolução dos outros”. Ele sugere que

L’Âge d’or (no alto), de Buñuel e Dalí, é um exemplo das influências surrealistas em obras de cineastas como David Lynch. No centro, cena de Eraserhead e, acima, a desconcertante imagem da orelha em Blue Velvet, ambos do diretor americano

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este foi o caminho que levou o surrealismo a cruza-mentos posteriores com o situacionismo e o fluxus. “Mas o cruzamento que me parece mais profícuo e natural é o que diz respeito ao anarquismo. Ainda há pouco, o poeta brasileiro Sérgio Lima, que tanto tem feito desde a década de 1960 pelo movimento surrea-lista no Brasil, dizia que o surrealismo tinha hoje a anarquia por horizonte.”

De acordo com Breton, no mesmo artigo A clara torre, este era o horizonte desde o início: “Foi no negro espelho do anarquismo que o surrealismo reconhe-ceu-se pela primeira vez, bem antes de definir-se a si mesmo”. De acordo com o pesquisador Pietro Ferrua, em seu prefácio ao livro Surrealismo e anarquismo, a relação entre ambos foi oficializada em 12 outubro de 1951, data da publicação da Declaração Prévia, assinada por Breton e outros 16 surrealistas. Naquele dia, eles inauguraram sua coluna periódica no veículo oficial de uma federação anarquista, colaboração que durou 15 meses. Durante as décadas seguintes, indivi-dualmente, os surrealistas seguiram escrevendo para outras publicações. Ferrua sugere que não foi à toa que pichações com slogans surrealistas, como “A imagina-ção no poder” e “Sonhe o impossível” apareceram nos muros de Paris em maio de 1968.

BeBeNDO eM suAs águAsHá uma série de “ismos” que beberam diretamente

na fonte surrealista, seja na arte, seja na política. Além dos já mencionados, há, por exemplo, o expressionis-mo abstrato e a pop arte estadunidense, que por si só se tornaram inspiração para incontáveis movimentos ar-

reViSTAS De ArTe O fato de a primeira fonte na qual beberam os surrealistas ter sido a literatura,

explica um pouco o que António Cândido chama de “vocação do surrealismo francês de se fazer através de revistas”. Ainda em 1919, Breton, Soupault e Aragon fundaram a Littérature, que logo se tornou referência e uma espécie de estágio obrigatório para muitos daqueles que depois encamparam o surrealismo. Ela se transformou no veículo certo para o tipo de experimentação que, em 1924, se consolidaria no surrealismo propriamente dito. A revista só morreu com a chegada da La Révolution Surréaliste, o primeiro veículo especifico do movimento.

Existiram ainda, posteriormente, muitos outros títulos. Entre eles estão a SASDLR (Le Surréalisme au Service de la Révolution; 1930-1933); a Minotaure (1933-1938), editada por Albert Skira; VVV (1942-1944), concebida por Breton no exílio em Nova York; e La Main à Plume (1941-1944), lançada pelos dissidentes do surrealismo francês. A vocação a que se refere António não era uma exclusividade de Breton. Depois de sua morte, em 1966, o surrealismo seguiu expondo-se em revistas, como a Supérieur Inconnu, fundada por Sarane Alexandrian (1927-2009), que resistiu até 2011. Existiu também a Phases (1954-1975), fundada por Edouard Jaguer, que fora colaborador do La Main à Plume.

Mesmo o contato efetivo com artistas visuais se deu por mediação literária, e, claro, de uma revista: a primordial Littérature, a qual o artista Max Ernst, então de braços dados com o dadaísmo, lia na Alemanha. Por intermédio de Breton, em 1921, ele promoveu sua primeira exibição em Paris, cidade que em outubro de 1928, no Studio 28, projetaria pela primeira vez Un chien andalou (Um cão andaluz), escrito por ele em parceria com Dalí e Buñuel. Antes disso, ainda em 1925, a conexão surrealista com outras artes já havia se intensificado, quando Breton comprou um quadro de André Masson (1896-1987) e, poucos meses depois, o conheceu pessoalmente. Foi Masson quem o apresentou a seu então vizinho de estúdio, com o qual a intimidade era tamanha que ambos resolveram abrir um rombo na parede que os dividia, a fim de facilitar a comunicação. Seu vizinho chamava-se Joan Miró.

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tísticos subsequentes. As técnicas de colagem comparti-lhadas por elas são semelhanças notáveis, assim como a assanhamento nostálgico com o dadá e o engajamento político travado desde a fronteira artística. Essa proxi-midade germinou até estéticas mistas, como o setentis-ta lowbrow, ou surrealismo pop, um bem bolado entre ambas somado a outras esquisitices deveras bacanas que o pessoal da Califórnia andava transando naqueles tempos. Um dos catalisadores dessa conversa segura-mente foram as obras de Max Ernst e René Magritte.

Este último, nascido no pequeno município de Lessi-nes, na Bélgica, autor de quadros que marcaram, calcifi-caram e constituíram o mais puro da genética surrealista. Magritte doou ao movimento os contornos por onde se reconhecer e seguir. Entre suas mais notórias obras es-tão Os amantes, de 1928, O espelho falso e A traição das imagens, ambas de 1929, e A condição humana, de 1933. Com isso, o belga se tornou um dos mais influentes de sua geração, sendo reverberado intensamente na indús-tria cultural e alcançando assim público e reconhecimen-to massivo. A canção de Paul Simon, René and Georgette Magritte With Their Dog After the War, não está solitária nestas referências e iluminações. Tampouco Tom Stop-pard, quando escreveu a comédia After Magritte.

“Um dos movimentos literários franceses que posso citar é o OuLiPo [Ouvroir de Littérature Potentielle], que em comum com o surrealismo possui a proposta de li-bertação da literatura, mesmo que sob a forma de rígidas regras, além da fundação e participação do ex-membro do grupo surrealista, Raymond Queneau [1903-1976]”, analisa Adriana. Mas, para ela, o que mais impactou a arte foi “sua aposta no sonho, a abertura para caminhos inexplorados e a renovação de sua linguagem tradicional”.

Pontualmente, é possível ver marcas surrealistas no trabalho de artistas bastante divergentes, como Alberto Giacometti (1901-1966), Alexander Calder (1898-1976), Hans Arp (1886-1966), Henry Spencer Moore (1898-1986), Roberto Matta (1911-2002) e uma infinidade de outros. No Brasil, é notável o eco surreal em Ismael Nery (1900-1934) e Cícero Dias (1907-2003).

Não seria diferente em Portugal, país que confor-mou corrente surrealista própria. Segundo António, a década de 1960 proporcionou ao surrealismo português suas maiores reverberações, “como o abjeccionismo e o surreal-abjeccionismo, que resultaram da chegada de uma nova geração, mas o mais marcante do trajeto sur-realista em Portugal vem das duas décadas anteriores, do período que vai de 1947 a 1953.” Para António, mesmo com o regresso do sentido orientando o horizonte de boa parte da arte contemporânea, “mesmo com a imposição de um rumo preciso”, nós seguiremos carentes de um território virgem, um lugar “onde se inscrevam o sonho e o sem sentido. É essa a atualidade do surrealismo”. c

Na página ao lado, é inegável a similaridade entre a colagem Amapola (1999), do chileno Roberto Matta, e Coquilles Fleurs, pintura feita em 1929 por Max Ernst. Mark Ryden (1963) e Tim Biskup (1967) são dois renomados artistas que fazem parte do movimento lowbrow, iniciado nos anos 1970 na Califórnia