27
1 ESTRATÉGIAS E PERCURSOS DE MOBILIDADE DA EMPREGADA DOMÉSTICA BRASILEIRA COMO TRABALHADORA ESTRANGEIRA EM PORTUGAL 1 Autor: Marcelo José Oliveira (UFV-MG) 1. INTRODUÇÃO Estima-se que dos 200 milhões de migrantes estrangeiros no mundo as mulheres compõem a metade deste contingente, sendo que muitas delas ainda assumem o papel de principal provedora de família no país de origem. 2 Entre os anos 80 e 90 do séc. XX e primeira década deste século Portugal e Espanha receberam levas significativas de trabalhadoras estrangeiras, oriundas principalmente de países da América Latina, África e Leste europeu. Estudos produzidos por pesquisadore(a)s que investigam o eixo Brasil- Portugal apontam que brasileiras figuram de maneira expressiva no setor de serviço doméstico em Portugal. 3 Estas trabalhadoras apostam em um projeto profissional internacional e se submetem muitas vezes aos riscos da clandestinidade, próximas da rede de tráfico humano e trabalho precário, ou escravo em alguns casos. 4 O presente artigo leva em consideração os seguintes aspectos desta mobilidade laboral: 1) as estratégias articuladas em torno dos recursos materiais e simbólicos que efetivamente motivam e propiciam a viagem para o país de destino e sua permanência; 2) o impacto deste projeto de trabalho internacional nas rearticulações das práticas de família e de estilo de vida que lhes conferem autonomia para decisões, realocando-as noutra relação de empoderamento em seu círculo social no Brasil; 3) o impacto das recentes mudanças econômicas e políticas em Portugal sobre as perspectivas de permanecer no país; 4) as condições de trabalho precário e vulnerabilidade social a que se submetem em função 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. Agradeço o apoio da Fapemig para a participação neste evento. 2 Perez, 2008. 3 Cf. Machado (2014), Reis Oliveira & Gomes [coord.] (2014), Abrantes (2012), Balsa (2012), Padilha et. al. (2012), Pinho (2012), Batista (2011), Egreja & Peixoto (2011), Grilo (2011), Dias (2010), Abreu (2009), Fernandes (2009), Gomes (2011; 2009), BLÉTIÈRE (2008), Silva (2008). 4 Pais (2010), Pereira (2009), Piscitelli (2009; 2007), Silva (2008), Peixoto (2007).

ESTRATÉGIAS E PERCURSOS DE MOBILIDADE DA … · econômica que o país vivia e pela demanda por mão-de-obra nos ... em torno de 400 mil, dividindo-se as demais cifras entre

  • Upload
    vokhue

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

1

ESTRATÉGIAS E PERCURSOS DE MOBILIDADE DA EMPREGADA

DOMÉSTICA BRASILEIRA COMO TRABALHADORA ESTRANGEIRA EM

PORTUGAL1

Autor: Marcelo José Oliveira (UFV-MG)

1. INTRODUÇÃO

Estima-se que dos 200 milhões de migrantes estrangeiros no mundo as mulheres

compõem a metade deste contingente, sendo que muitas delas ainda assumem o papel

de principal provedora de família no país de origem.2 Entre os anos 80 e 90 do séc. XX

e primeira década deste século Portugal e Espanha receberam levas significativas de

trabalhadoras estrangeiras, oriundas principalmente de países da América Latina, África

e Leste europeu. Estudos produzidos por pesquisadore(a)s que investigam o eixo Brasil-

Portugal apontam que brasileiras figuram de maneira expressiva no setor de serviço

doméstico em Portugal.3 Estas trabalhadoras apostam em um projeto profissional

internacional e se submetem muitas vezes aos riscos da clandestinidade, próximas da

rede de tráfico humano e trabalho precário, ou escravo em alguns casos.4 O presente

artigo leva em consideração os seguintes aspectos desta mobilidade laboral: 1) as

estratégias articuladas em torno dos recursos materiais e simbólicos que efetivamente

motivam e propiciam a viagem para o país de destino e sua permanência; 2) o impacto

deste projeto de trabalho internacional nas rearticulações das práticas de família e de

estilo de vida que lhes conferem autonomia para decisões, realocando-as noutra relação

de empoderamento em seu círculo social no Brasil; 3) o impacto das recentes mudanças

econômicas e políticas em Portugal sobre as perspectivas de permanecer no país; 4) as

condições de trabalho precário e vulnerabilidade social a que se submetem em função

1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2016, João Pessoa/PB. Agradeço o apoio da Fapemig para a participação neste evento. 2 Perez, 2008. 3 Cf. Machado (2014), Reis Oliveira & Gomes [coord.] (2014), Abrantes (2012), Balsa (2012), Padilha et.

al. (2012), Pinho (2012), Batista (2011), Egreja & Peixoto (2011), Grilo (2011), Dias (2010), Abreu

(2009), Fernandes (2009), Gomes (2011; 2009), BLÉTIÈRE (2008), Silva (2008). 4 Pais (2010), Pereira (2009), Piscitelli (2009; 2007), Silva (2008), Peixoto (2007).

2

da permanência ilegal em Portugal, aliado ao suposto lugar que a mulher brasileira

ocupa no imaginário português.5

1.1. O Contexto em Espanha: primeiras incursões.

Entre dezembro de 2009 a março de 2010 realizei três meses de estágio de pesquisa

em Madri, integrando equipe de um projeto de colaboração internacional entre Brasil e

Espanha.6 O estudo desenvolvido envolveu o levantamento de publicações eletrônicas

em Ciências Sociais e Aplicadas em Open Access sobre o fenômeno da migração

internacional na direção Brasil-Espanha, com atenção aos temas “trabalho” e “gênero”.7

Verificamos que na época a Espanha, com quase 46 milhões de habitantes, contava em

torno de 4 milhões de imigrantes estrangeiros em situação legal. Nas duas décadas que

antecedem à crise recessiva que se inicia no ano de 2008 houve acentuado incremento

da população espanhola em função da presença imigrante, atraída pela prosperidade

econômica que o país vivia e pela demanda por mão-de-obra nos setores de serviços,

indústria e construção civil.8 Da leva de milhares de imigrantes, no conjunto de

nacionalidades com mais de 100 mil pessoas, os de língua espanhola registram maior

presença, que facilmente supomos pela própria influência das relações políticas e

culturais históricas.9 Os brasileiros em 2009 somavam em torno de 40 mil, segundo

estimativas da Embaixada do Brasil na Espanha, contra 37 mil em 2005, segundo dados

do Instituto Nacional de Estatística do país, figurando o Brasil entre as nacionalidades

de menor número.

A onda migratória laboral voltada para a Espanha ocorre como consequência do

rápido crescimento econômico deste país a partir dos anos oitenta: por exemplo, as

5 Sobre imaginário em torno da mulher brasileira em Portugal ver Gomes (2013), Monteiro (2010), Pais

(ibid.), Piscitelli (ibd.) 6 O trabalho de pesquisa contou apoio de fomento CAPES, e com a orientação e supervisão da Profa. Dra.

Carmen S. Rial (PPGAS-UFSC), e co-orientação da Profa. Dra. Miriam P. Grossi (PPGAS-UFSC). 7 Os resultados do trabalho apresentei em três congressos com os títulos “Maria: migração internacional

de empregadas domésticas brasileiras”, no II Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, 2011,

Salvador; e “Maria”, no Seminário Internacional Fazendo Gênero 9: Diáspora, diversidades,

deslocamento, 2010, Florianópolis. Em 2013 reapresentei os dados revistos no Fazendo Gênero 10, no

simpósio temático intitulado “Migrações e Feminismos: nexos e obstáculos”. 8 Dados divulgados pelo INE, acessado no site http://www.ine.es/jaxi/tabla em 01/01/2010. 9 Somados entre equatorianos, colombianos, argentinos e bolivianos, na ordem de 1,57 milhões; seguidos

dos africanos, com os marroquinos como a nacionalidade de maior número, em torno de 600 mil;

seguidos por romenos, em torno de 400 mil, dividindo-se as demais cifras entre Reino Unido, Alemanha,

Itália, China e Bulgária. E em menor escala, abaixo dos cem mil, estão peruanos, franceses, portugueses,

ucranianos, dominicanos, venezuelanos, argelinos, cubanos e brasileiros (PERÉZ, 2008).

3

modificações e medidas complementares de Leis orientadas pela concepção do “Estado

de Bem Estar Social” conduz boa parte da população autóctone economicamente ativa

ao trabalho qualificado pela tendência de formação escolar garantida e do aumento da

população jovem com formação universitária; fato que produz um déficit de mão-de-

obra menos qualificada, abrindo espaço para as políticas de absorção de mão-de-obra

estrangeira não especializada.10 O que o governo espanhol não contava era com a crise

recessiva mais intensa a partir de 2008, o que afetou a política de regras de entrada e

legalização da mão-de-obra estrangeira no país.11 Foi neste cenário econômico recessivo

espanhol que em 2010 tive contato com três brasileiras envolvidas com serviços

domésticos no exterior, que passo a relatar.12

Durante o período do estágio de investigação realizei duas entradas na Espanha

pelo aeroporto de Barajas. No primeiro percurso, embarcando no aeroporto de

Guarulhos, no Estado de São Paulo, fui ao lado de uma mulher que aparentava um

pouco mais de cinquenta anos de idade. Travamos conversa informal por horas e me

informou ser empregada doméstica e que estava em viagem para visitar a filha

adoentada que trabalhava para uma “patroa” espanhola.

Em meu primeiro retorno ao Brasil pude conhecer outra trabalhadora em

serviços domésticos. Embarquei novamente em Barajas e a mesma ocupava a poltrona

ao meu lado. Por cordialidade, nos conhecemos e estabelecemos longa conversa, por

horas. Trata-se de uma simpática paranaense que aparentava em torno de quarenta anos

de idade. Quando desembarcamos no aeroporto de Guarulhos entramos juntos na fila

dos guichês da alfândega. Nesta mesma fila havia duas jovens mulheres a nossa frente, e

o assunto que conversavam desperta minha atenção pelos comentários que teciam sobre

a situação de emprego para brasileiros na Espanha: uma delas afirma que “para as

mulheres ainda estava bom” em oportunidades de trabalho, mas para os homens estava

“cada vez pior” em função da recessão.

Associo o episódio acima a outro que aqui relato. Numa de minhas primeiras

idas ao Banco do Brasil em Madri conheci um brasileiro que também aguardava

10 Cachón Rodríguez, 2009. 11 Em 2010 os dados do INE, e os divulgados pela mídia, indicavam em torno de 4 milhões de

desempregados no país. Dados que representam 7% da população economicamente ativa na Espanha, e

que estimularam a forte pressão de vários setores (políticos, empresariais, de mídia e sociais) sobre o

governo do presidente Zapatero. 12 Os contatos mencionados foram ocasionais, sem intenção de marcar entrevistas de pesquisa, já que a

empregada doméstica ainda não avaliávamos como dado pertinente ao nosso levantamento de

informações.

4

atendimento: um jovem na faixa dos trinta anos de idade, oriundo de uma cidade do

interior de São Paulo, que vivia há mais de quatro anos na Espanha exercendo a

profissão de eletricista. Na agência pretendia fazer um depósito da quantia que recebeu

pela recente rescisão de seu contrato de trabalho. Chegou no país com a esposa,

influenciado, segundo ele, pela família da mesma, que já vivia em Madri havia cinco

anos. A companheira trabalhava em serviço doméstico. O mesmo ainda tinha em vigor

visto para trabalho, mas afirmou ter planos de logo voltar ao Brasil devido a recessão

espanhola. Porém, não pretendia “voltar de mãos vazias”, e fez referência a esta

expressão como algo vergonhoso em retornar “do mesmo jeito” que partiu, ou seja, com

pouco dinheiro. Estava separado da companheira há um ano e retornaria sozinho.

Segundo ele, a mesma permaneceria com a família e com o trabalho de doméstica.

Quando de ida à Madri pela segunda vez, partindo do aeroporto de

Florianópolis, no Estado de Santa Catarina, sentei ao lado de uma brasileira

acompanhada de seu marido italiano. Ambos aparentavam um pouco mais dos quarenta

anos de idade. O casal estava retornando a Milão. A mulher, extrovertida, logo começou

a fazer comentários comigo sobre o voo e o final de suas férias no litoral sul brasileiro.

Estendendo a conversa, comentei que estava em viagem de estudos sobre brasileiros que

saem do país para trabalho na direção Espanha, e me informou que trabalhava para uma

“patroa que é professora de uma universidade em Milão”.13

Com os encontros casuais que acima relato constato a presença certa da

empregada doméstica na ponte aérea internacional, decidida a disputar postos de

trabalho na Europa. Obviamente deduzo que estes encontros casuais não ocorreram à

minha sorte justamente por estar pesquisando o tema, mas, sim, à sorte de um fenômeno

migratório recente. No cenário internacional de circulação de mão-de-obra estrangeira,

o trabalho doméstico figura como oportunidade de empregabilidade, resistindo a recente

crise recessiva em alguns países europeus. Consequentemente, a trabalhadora doméstica

em trânsito internacional se percebe num ramo que resiste a crise econômica global em

função da posição estratégica que a profissão ocupa neste cenário, decorrente, por

exemplo, da necessidade de novos rearranjos da divisão social do trabalho na família

metropolitana. E a trabalhadora doméstica brasileira possui perfil sociocultural e

profissional que lhe posiciona em condições de competir no mercado estrangeiro. Ou

seja, possui habilidades laborais qualificadas por ser educada na cultura familiar de

13 Sobre emigração de catarinenses em direção à Itália ver Assis (2007).

5

traço ibérico e mediterrâneo,14 da “cultura do lar”, que lhe garante empregabilidade por

incorporar valores que estabelecem a relação entre higiene-limpeza e hierarquia moral

no asseio da casa.15

Constata-se uma onda migratória a partir da primeira década deste século, na

direção Europa, de um número crescente de mulheres ocupando postos no serviço

doméstico, setor de serviços, além dos segmentos de hotelaria, restaurantes, fábricas e

indústrias, com muitas delas na condição de “contrato informal” de trabalho. Em termos

de política internacional para captação de mão-de-obra estrangeira, o envolvimento com

este projeto profissional ainda implica em incertezas e riscos diante dos acordos entre os

Estados que integram a Comunidade Europeia e a Zona do Euro. Da entrada turística à

permanência como trabalhadora estrangeira envolve estratégia ousada, pelo fato de que

a entrada no país não está garantida somente com a checagem do passaporte, da posse

de cartão de crédito, quantia suficiente em euros e seguro saúde para o tempo de estadia,

e passagem de retorno. Não é raro a polícia de imigração que atua em aeroportos

europeus ferirem vários acordos internacionais sobre Direitos do turista e do imigrante.

Em Lisboa ouvi de uma brasileira o relato dramático da experiência a que fora

submetida pela polícia do aeroporto de Barajas em dezembro de 2013, quando fazia

uma conexão com destino a Lisboa. A mesma fora abordada no guichê para

apresentação de passaportes quando procedia à averiguação de entrada. Segundo ela,

sem qualquer motivo evidente, foi detida por horas e submetida a interrogatório

sistemático. Como não tinha em mãos comprovantes de reserva de hotel, ou documento

que atestasse que sua amiga portuguesa a esperava, permaneceu durante dezoito horas

numa sala do aeroporto em custódia da polícia de imigração, saindo dali escoltada por

uma guarda de dois policiais até o assento do avião que a traria de volta ao Brasil, na

condição de deportada. No desembarque em terra brasileira foi recebida na porta do

avião pela Polícia Federal, que lhe fez algumas perguntas, a liberando em seguida.

14 Sobre traços de cultura da empregada doméstica brasileira ver Velho (2012) e Brites (2007). Sobre

cultura e moral mediterrâneas ver Oliveira (2008), Grossi (2004), Bourdieu (2005[1998]), Peristiany

(1971[1965]). Sobre a relação entre higiene e pureza moral ver Douglas (1978). 15 Importante ressaltar que aqui não faço referência àquela jovem de classe média que nos anos setenta do

século passado partia em direção aos Estados Unidos da América com o desejo da aventura itinerante,

fazendo coro a uma geração inspirada pelo Movimento de Contra Cultura, também motivada pela

formação no exterior, ou ainda frustrada com a ditadura militar no Brasil, e que para se sustentar e custear

os estudos exerce funções temporárias em serviços de faxina, entre os de baby-sitter e garçonete.

6

A experiência no aeroporto de Barajas de controle de entrada de estrangeiros

vivenciei quando iniciei o estágio de pesquisa no país, em dezembro de 2009. Na

primeira entrada fui instado, no guichê para apresentação dos documentos, sobre o que

iria fazer e quanto tempo ficaria. Após responder, pediram-me que apresentasse

somente o passaporte, e não solicitaram a apresentação de outros documentos que

comprovassem o que havia informado sobre o estágio de pesquisa. Saindo dos guichês,

mais adiante, fui “triado” pelos policiais da imigração. Pediram para sacar da bagagem

todos os pertences e, literalmente, colaram o nariz no interior das malas e em todas as

peças de roupas e demais objetos, na tentativa de “farejarem” alguma substância ilícita.

A Espanha é reconhecidamente uma das portas de entrada de drogas na Europa e este

procedimento é praxe com estrangeiros quando “triados” pela polícia no aeroporto. Em

minha segunda entrada, um mês depois, perguntaram somente quanto tempo iria ficar,

conferiram o passaporte e me liberaram. Observei que desta vez os policiais da

imigração que fazem a triagem estavam ocupados revistando malas de outros

imigrantes. Esta preocupação com drogas e clandestinidade pode levar a outras formas

de procedimento policial: duas outras informantes, mãe e filha, turistas brasileiras em

Madri, disseram-me que em sua chegada em Barajas no mês de fevereiro de 2010

foram incluídas num grupo de doze mulheres que permaneceram duas horas no setor de

imigração, submetidas a interrogatório sistemático feito por dois policiais, sem

esclarecerem os motivos exatos do porquê daquela apreensão. Sequer haviam acessado

suas bagagens e foram retidas logo no guichê para a apresentação de passaporte. Do

grupo, após duas horas, somente uma equatoriana fora conduzida a outro setor para

fornecer outras explicações. As demais foram liberadas.

1.2. O Contexto Português e Metodologia de Pesquisa

Motivado pela experiência das evidências que verifiquei em Madri, desenvolvi

outro estágio de pesquisa em Lisboa, de março a dezembro de 2014, focado

especificamente na investigação sobre brasileiras que atuam no setor de serviço

doméstico em Portugal. Almejei detectar os aspectos que caracterizam esta mobilidade

transatlântica, levando em consideração o contexto de percursos e articulações entre a

7

condição de trabalhadora clandestina e a busca pela regularização da condição legal

como trabalhadora estrangeira neste país.16

A metodologia de investigação envolveu três etapas correspondentes durante o

período em referência: 1) levantamento bibliográfico científico sobre imigração

brasileira em Portugal, sendo priorizado respectivamente o repositório físico da

biblioteca do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e seu acervo

eletrônico de periódicos científicos open access, assim como a mídia eletrônica e

impressa de periódicos de circulação nacional e local; 2) Mapeamento, com base na

literatura especializada consultada, dos contextos de presença da mão-de-obra

estrangeira em Portugal, com foco no trabalhado doméstico remunerado; 3) incursão

etnográfica cotidiana para constatação da incidência da presença da trabalhadora

doméstica brasileira em setores públicos e institucionais na cidade de Lisboa.17

*

Desembarco em Lisboa no início de março de 2014. Nesta empreitada inicial

vivi ânimos que influenciaram a maneira como percebi o “objeto” de investigação, de

modo que me furtar aqui deste tom subjetivo seria omitir os estímulos que provocaram

questões oriundas das relações de campo e de interações que definem peculiaridades da

inserção etnográfica, e dizem respeito às relações de distanciamento e aproximação

provocadas pelo próprio deslocamento cultural. Os ânimos mencionados estão situados

nos seguintes contextos de relações interpessoais que estabeleci: acadêmico (esfera

institucional de formação e desenvolvimento da investigação a partir do Instituto de

Ciências Sociais da Universidade Lisboa ICS-UL; comercial de consumo (esfera das

16 Trata-se de um projeto pós-doutoral contemplado, via edital, com bolsa de pesquisa CNPq. O trabalho

contou com a orientação e supervisão da Profa. Dra. Cristiana Bastos, antropóloga e investigadora

vinculada ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), Instituição que sediou o

desenvolvimento do projeto. Registro meus especiais agradecimentos ao ICS-UL e à professora Cristiana

pela forma solícita e competente que dedicou para que o trabalho de investigação pudesse ser

desenvolvido. 17 Para além das informações coletadas nas interações cotidianas no período de 10 meses, num balanço

das entrevistas formais realizadas, de média e longa duração, contabilizo os seguintes números: 06

trabalhadoras domésticas brasileiras em Lisboa, com foco na narrativa biográfica relacionada à trajetória

migratória; 02 Coordenadoras de Projetos de Organizações Não Governamental, voltadas à imigração

brasileira e demais nacionalidades, respectivamente Casa do Brasil de Lisboa e Associação ComuniDária;

01 profissional atuante na Rede de Gabinetes de Inserção Profissional Imigrante (GIP), do Alto

Comissariado para Migrações do governo português; 02 investigadores doutorandos, respectivamente

vinculados ao ISEG e ICS, especialistas no tema trabalho doméstico e imigração em Portugal.

8

relações cotidianas na frequentação da vida pública de bairro e cidade); de vizinhança

(esfera restrita aos universos de residência em dois bairros, em relações mais próximas

e informais, onde o face-to-face é marcado por detalhes de forma nas relações que travei

com portugueses, portuguesas, imigrantes estrangeiras e estrangeiros, entre eles

brasileiros e brasileiras);18 e da organização da sociedade civil (esfera das relações de

contato que estabeleci com duas instituições não governamental que têm como missão a

recepção de brasileiros e brasileiras imigrantes em Portugal, denominadas “Casa do

Brasil de Lisboa” e “Associação ComuniDária”).19

A aproximação com o universo intelectual do ICS permite-me repensar algumas

questões delineadas anteriormente no projeto e me leva ao esboço de outras sobre a

experiência imigrante de se “ser brasileira/o” em Lisboa. Entretanto, também percebo

no espaço acadêmico a preocupação de colegas brasileiras que se repete entre

trabalhadoras domésticas que entrevistei: preocupação que diz respeito ao cuidado com

o cultivo de uma estampa de brasilidade, de um modo de ser, que se paute pelo recato

que se distancia do “estereótipo” da “mulher exótica” que fere os “bons costumes”

portugueses. Não sem consequências ocorreu a forte exportação de mão-de-obra

brasileira do mercado sexual para Portugal,20 bem como a exportação de novelas

18 Sobre a possibilidade de aproximações informais com vizinhança portuguesa nas ruas e praças do

bairro, divido esta convivência em dois períodos: o primeiro quando estava residindo em Lisboa sem a

presença de minha esposa e filho adulto, período de março à meados de julho de 2014; a outra, contada a

partir de meados de julho à segunda quinzena de dezembro do mesmo ano, acompanhado de minha

esposa e filho. No primeiro período de morada, no bairro da Graça, dividi o aluguel e espaço da casa com

um italiano, professor de sociologia da Universidade de Aveiro. O mesmo trabalha há anos em Portugal e

possui significativo conhecimento sobre a cultura portuguesa e cotidiano de Lisboa. Este trabalhador

estrangeiro muito me falou sobre lugares e “maneiras de se estar” em Portugal. Foi um dos interlocutores

para várias questões que reformulei com relação ao contexto social, cultural e político que se inserem as

brasileiras imigrantes em Portugal. No segundo período, com minha esposa e filho, contamos com a

companhia de nosso cão de estimação: um lhasa apso de seis anos de idade, que atendia pelo nome de

“fred”. Chamo a atenção para nosso cão porque sua presença, e por ser um animal dócil e gracioso, em

muito contribuiu em nossa visibilidade social nas ruas e praças dos bairros que moramos, facilitando os

motivos de início de muitas das longas conversas que tivemos com moradores e moradoras afeitos a

animais de estimação, e que também passeavam com seu cão. Foi com estes interlocutores vizinhos que

nos apropriamos de muitas informações sobre a vida pública em Lisboa e Portugal. Em específico a

amizade que estabelecemos com um senhor e uma senhora, aposentados, que muito nos falaram sobre as

condições de vida de uma Portugal do “escudo” e a atual do “euro”. 19 Ambas instituições com missão cultural e social de Direitos com relação a integração de imigrantes

brasileiros na sociedade portuguesa, abertas a outras nacionalidades; porém, a segunda, por uma causa

especificamente política e de Direitos da trabalhadora estrangeira em Portugal, com foco mais voltado ao

“trabalho digno” e “cidadania plena da mulher imigrante”. Expresso aqui meu agradecimento ao pronto

apoio e colaboração da Casa do Brasil de Lisboa e a Associação ComuniDária, que sem seu apoio o

trabalho de investigação em Lisboa teria sido muito mais difícil. 20 Ver Gomes (2011) e Pais (2010).

9

brasileiras para este país, como afirmou um dos investigadores que entrevistei. Esta é

uma das preocupações de condição de trabalhadora estrangeira que algumas brasileiras,

que disputam postos de trabalho e ascensão social em Portugal, têm que lidar.

A separação das esferas acima mencionadas se faz pelo caráter das relações,

porém não é raro se confundirem, como as relações de consumo e de vizinhança

amistosa, mesmo que para um estrangeiro a fronteira entre estas duas seja bem

demarcada. Por exemplo, a amizade cúmplice que fiz com os garçons e um dos

proprietários portugueses do restaurante ao lado da casa onde morei durante os

primeiros meses, no Bairro da Graça.21 Bem como a amizade que estabeleci com a

proprietária caboverdiana de uma tasca localizada na mesma rua, frequentada

predominantemente por homens de Guiné Bissau, São Tomé (e Príncipe) e Cabo Verde

ligados à construção civil. Ambientes que participei ativamente durante a estada em

Lisboa, e os percebi contrastados em público, em relações sociais de cultura e de poder

aquisitivo. Na prática de uma escuta cotidiana, nestes dois estabelecimentos ouvi e

conversei sobre opiniões que se cruzam, mas em nenhum momento se confundem: de

um lado os nativos lisboetas e do outro os estrangeiros africanos, “os pretos”, como são

comumente denominados no jargão local. De um lado os trabalhadores patriotas classe

média, em sua maioria profissionais liberais, do outro os trabalhadores estrangeiros

ligados ao trabalho braçal da construção civil. Uma dualidade marcada por distintas e

contrastantes posições de classe, “raça” e cultura numa mesma rua, o que não é raro

num universo urbano cosmopolita europeu das grandes capitais com forte apelo

turístico.

Na esfera que denomino de organização da sociedade civil situo a “Casa do

Brasil” e a “Associação ComuniDária”.22 Como mencionado anteriormente, trata-se de

duas organizações não governamental que interagem com os brasileiros e brasileiras

imigrantes em Portugal, também atendendo outras nacionalidades. As mesmas são

21 Muitos dos diálogos que estabeleci neste estabelecimento iniciavam pelo mote da gastronomia,

culminando com assuntos sobre vida pessoal. Meus interlocutores garçons e o proprietário

recomendavam-me passeios típicos aos portugueses. Certa ocasião o proprietário disse-me: “Tens que

conhecer o verdadeiro fado português”. E houve um final de noite de domingo, após fechar o restaurante,

que me levou a uma cantina de fado no bairro de Alfama, e apresenta-me a fadista Celeste Rodriguês,

irmã de Amália Rodriguês. Nesta noite sentávamos à mesma mesa com Celeste e seu neto. Entre uma

conversa e outra, Celeste levantara três vezes para executar performances, acompanhada de um jovem

violonista português. Relato este episódio para dar a medida do tom de relação de confiança e

consideração que estabeleci com os garçons e o proprietário do restaurante, com os quais muito conversei

sobre vários aspectos da vida em Lisboa. 22 Para mais informações sobre estas instituições acessar http://www.casadobrasil.info/ e

http://www.comunidaria.org/.

10

procuradas por vários imigrantes que buscam a regularização de sua condição no país:

como informações sobre os órgãos e trâmites com os serviços do governo português

para regularização de trabalhadores estrangeiros, cursos de curta duração de capacitação

para entrevistas de trabalho, proficiência básica em inglês, entre outros. Além destas

atividades outras são promovidas de cunho cultural e político, que dizem respeito a

temas pertinentes à condição imigrante.

Na casa do Brasil de Lisboa pude apresentar e discutir algumas intenções da

pesquisa com profissionais que ali desenvolvem projetos de atendimento de imigrantes

brasileiros e participei das reuniões do “Projeto Acolhida”. Este último envolve

reuniões de acolhimento de brasileiros e brasileiras em Portugal, promovendo trocas de

experiências e debates úteis a partir de temas sobre cultura e cotidiano português,

trabalho imigrante, discriminação e preconceito, entre outras atividades de formação.

Trata-se de ações que priorizam a informação, integração, sensibilização e

conscientização para os Direitos e Deveres do imigrante. As reuniões ocorrem

regularmente e com agenda previamente anunciada. Participei de seis reuniões,

acompanhando os debates sobre preocupações e tensões mais vividas pelas imigrantes

brasileiras em Lisboa, além de participar de outras atividades sociais realizadas para

integração, entre as quais destaco as do mês de junho de 2014, relacionadas ao Mundial

de Seleções de Futebol (Copa do Mundo). Também fui cursista numa formação de curta

duração oferecido pela Casa em parceria com a Associação Portuguesa de Apoio a

Vítima, intitulado “Discriminação Racial: reconhecer e agir”; um curso, segundo a

preletora, com clara demanda para trabalhadores estrangeiros. Foi neste espaço de

interlocução que observei com mais precisão a demanda imigrante com relação as

expectativas em função da chegada recente no país, dificuldades e facilidades de

adaptação, frustração e otimismo para a permanência e para inserção em postos de

trabalho, entre outros aspectos.

O contato com a Associação ComuniDária ocorreu de outra forma, pela própria

proposta militante da entidade. Trata-se de instituição sem fins lucrativos que intervém

na promoção de igualdade de gênero e proteção de Direitos de mulheres trabalhadoras

imigrantes em risco de exclusão social e de precariedade nas relações de trabalho. As

ações também envolvem informação, sensibilização e conscientização para os Direitos

da imigrante na causa pelo “trabalho doméstico digno”, segundo principal slogan da

campanha que a organização realiza. A proposta, segundo sua representante, é romper

11

com o assistencialismo e fortalecer um coletivo que reivindique seus Direitos.

Encontrei na associação outro espaço de intenso diálogo, bem como fui ativo

colaborador em algumas ações de intervenção e relações com outras organizações afins

e atores do parlamento português. Nesta aproximação pude constatar o grave problema

do trabalho precário a que são submetidas as trabalhadoras domésticas estrangeiras,

entre brasileiras, africanas oriundas de ex-colônias portuguesas e mulheres do leste

europeu.

2. IMIGRAÇÃO, TRABALHO E A PRECARIZAÇÃO

2.1. Política de Imigração e a Presença Brasileira em Portugal

Segundo relatório produzido pelo Observatório das Migrações,23 Portugal, assim

como outros países da União Europeia, a partir dos anos 90 tornou-se um foco de

entrada da mão-de-obra estrangeira. Movimento de entrada que contrasta com seu saldo

migratório negativo em 2014. A realidade demográfica portuguesa de saldo negativo

preocupa e obriga o governo a reavaliar a política de imigração como uma das

estratégias para a sustentabilidade econômica do país, em função da diminuição

gradativa da população economicamente ativa. Por outro lado, a captação de mão-de-

obra estrangeira exige mudanças que precisam estar em sintonia com os acordos

internacionais que regram sobre as políticas de imigração pactuadas entre os Estados-

Membros da União Europeia. Outros fatores interferem nesta captação: a recente

entrada em massa na Europa de levas migratórias de refugiados e a intensificação dos

atentados terroristas nos últimos anos, o que compromete a “Estratégia Europeia 2020”

para a política de integração plena dos fluxos imigratórios, visando a consolidação de

uma União Europeia mais competitiva e economicamente sustentável.

Entre os anos 2007 e 2012 o governo português atendeu praticamente a maioria

dos 223.231 pedidos de nacionalidade portuguesa, rejeitado somente 18% deste número,

sendo a maior parte desta concessão para filhos de imigrantes nascidos em Portugal.

Obviamente a preocupação com o défice demográfico requer do Estado mobilização

para garantir nacionalidades num pais com a população estimada em 10,5 milhões de

habitantes, sendo que 3,7% (394.496) deste percentual é de estrangeiros residentes

23 Reis Oliveira & Gomes (coord.), 2014.

12

cadastrados.24 De fora desta conta está a população estrangeira não regularizada, em

condição clandestina, que pela própria condição dificulta a estimativa, podendo

surpreender em cifras se devidamente detectada.

No “1º Seminário de Estudos sobre Imigração Brasileira na Europa”, realizado

em 2011, foram apresentados dados, com base em estatísticas de 2009, sobre a crescente

presença brasileira em Portugal, juntamente com imigrantes africanos e do leste-

europeus: 25% da população estrangeira em Portugal é brasileira, somando 116.220

indivíduos, divididos entre 52.061 homens e 64.159 mulheres,25 confirmando a

tendência geral de feminização do fenômeno da migração internacional. As mulheres,

público (bares, cafés e restaurantes), no ramo de limpeza e serviços domésticos,

incluindo cuidados com crianças e idosos, conforme já mencionado. O perfil geral é

mulheres entre 25 e 45 anos de idade, oriundas principalmente dos Estados de Minas

Gerais, São Paulo, Paraná, Goiás e Espírito Santo.26

A mobilidade internacional brasileira para trabalho chama a atenção para novas

lógicas migratória, que não se resumem ao argumento de que a emigração é motivada

principalmente pela baixa escolaridade e condição de pobreza no país de origem. Sobre

esta premissa podemos considerar os seguintes aspectos relacionados que estimulam a

emigração brasileira nas últimas décadas: (1) aumento do poder aquisitivo em décadas

recentes dos segmentos populacionais mais empobrecidos no Brasil, em função do

crescimento econômico do país até 2013, oportunizando maior oferta de trabalho e

renda;27 (2) o aumento do poder aquisitivo aliado às políticas de inclusão educacional e

digital na escola pública, levando os segmentos mais pobres da população ao relativo

acesso a internet, participando de redes sociais e acessando informações via mídias

online que estimulam o desafio de uma carreira internacional (sobre este ponto os

adolescentes têm assumido um papel chave na inserção da família nas redes sociais

online); (3) inserção da empregada doméstica brasileira como trabalhadora estrangeira

na Europa, que aponta para um protagonismo feminino de risco, mas que conta com

uma rede social ativa em relações de apoio no país de origem e destino; (4) o fato de

que esta mobilidade feminina atual não se resume à pretensão de reagrupamento

24 Reis Oliveira & Gomes (coord.), 2014, p.39. 25 Os dados de 2005 sobre brasileiros com permanência legalizada em Portugal contam 67.457

indivíduos, entre as Autorizações de Residência (ARs), prorrogação de Autorizações de Permanência

(APs) e Vistos de Longa Duração (VLDs). Conferir em Abreu & Peixoto, 2009, p. 739. 26 Gomes, 2011, p. 6-8. 27 Ver “Atlas de Desenvolvimento no Brasil - 2013”, com acesso no endereço “www.atlasbrasil.org.br”.

13

familiar no país de destino,28 já que há indícios de que a mesma também se caracteriza

inicialmente como um projeto independente, sem depender economicamente de parceiro

afetivo, mesmo que algumas destas trabalhadoras possuam filhos no Brasil; e (5) o

aumento da captação de mão-de-obra estrangeira no setor doméstico e de limpeza pelos

países europeus, em função da necessidade da família urbano moderna com relação à

gestão do lar, como consequência da crescente qualificação profissional de segmentos

da população feminina economicamente ativa que não mais tem se reservado ao papel

de doméstica, ou se submetido a tripla jornada de trabalho. A migração pela busca por

espaços de trabalho num país estrangeiro está relacionada justamente a possibilidade

que estas mulheres vislumbram de melhores condições de vida a partir de um projeto

avaliado viável pela rede social que acionam, pelo barateamento das passagens aéreas e

pelo acesso as informações na mídia sobre o até então crescimento econômico

europeu,29 sendo que o peso simbólico e prático da Europa é evidente em termos de

“símbolos ativos” em circulação global.30

Mesmo com a recente crise recessiva em Portugal os postos de trabalho no setor

doméstico têm se mantido, porém, levando a renegociações de redução da carga horária

e salários, ou do valor da hora-trabalho no caso da diarista, implicando um jogo de

barganha entre remuneração justa e condição legal ou clandestina de trabalho.

Conforme os contatos que estabelecem para a chegada em Portugal, o primeiro trabalho

pode estar garantido, sendo que os salários variam conforme a condição de contratação.

É fato que a maior parte das “patroas” contrata informalmente, pois evitam pagar os

encargos sociais previstos em Lei em função dos impostos implicados. Por outro lado, a

contratação formal também não poderá ocorrer se a trabalhadora estiver em condição

clandestina.31 No caso, para os primeiros meses de estadia no país, a condição de interna

pode parecer oportuna em função da própria clandestinidade, mas envolve riscos por ser

contexto propício para se tornar refém de condições precárias de trabalho, inclusive,

algumas vezes, de trabalho escravo. Depois de meses exercendo a função na condição

de interna, algumas optam por dividir um aluguel com outra trabalhadora e por

28 Peixoto, 2007. 29 A recente regulamentação em Lei no Brasil das regras de contratação da emprega doméstica ainda não

vem sendo percebido como ganho real em benefício de oferta de trabalho e maiores salários. O debate

público na mídia tem feito coro na importância da Lei, ao mesmo tempo em que as opiniões se dividem

quanto aos impactos a curto, médio e longo prazo. 30 Ortiz, 2000. 31 Pérez, 2008.

14

desempenhar a função como diarista, podendo exercer atividade em mais de uma casa

por semana.32 Tudo depende da nova “rede de indicações” que estabelecerá, seja por

indicação de uma colega de profissão ou de suas patroas.

2.2. Projeto Profissional e a Racionalização Afetiva

Em conversa com conterrâneos e conterrâneas que recém conheci em Lisboa

ouço afirmações que me surpreendem. Seguem algumas que avalio emblemáticas e

possuem relação direta com o objeto de investigação que me detenho:

“Dos lugares que já estive no exterior, o lugar mais difícil de ser brasileiro é Portugal”.

Frase dita por um brasileiro (branco de olhos castanhos), pós-graduando em Lisboa.

“Se já somos as ‘putas’, mesmo! Por que ter medo de se ser do nosso jeito? Mesmo que

a gente acerte ou erre, seremos sempre as suspeitas”. Frase dita por uma brasileira

(branca de olhos castanhos), pós-graduanda em Lisboa.

“Nosso jeito de ser, espontâneo, feliz e alegre, aqui [em Lisboa] parece que agride [...]

Meu jeito de brasileira intimida”. Frase dita por uma advogada brasileira (negra), casada

com um português, pós-graduanda em Lisboa.

“Em qualquer lugar que ando em Lisboa cuido com a fala ou fico calada, para que não

percebam que sou brasileira”. Frase dita por uma brasileira (branca de olhos azuis) que

vive há anos em Lisboa, empregada doméstica, divorciada de um português.

Outras afirmações fazem contraste:

“Voltei ao Brasil depois de quatro anos e não aguentei dois meses. Não me acostumo

mais. Retornei faz quatro meses”. Frase dita por um brasileiro (pardo de olhos escuros),

atendente numa loja de roupas e calçados de propriedade de casal chinês, em Lisboa.

“Estou aqui há nove anos. No começo foi muito difícil. Passei muita dificuldade com

minha primeira patroa. São difíceis, mas tens que ter calma com os portugueses. Não

quero mais retornar ao Brasil. Conheci meu marido aqui [um brasileiro] [...] Por ele já

tínhamos voltado, mas eu não quero. Quero cuidar de minha filha aqui. A vida aqui é

bem mais segura”. Frase dita por uma brasileira (parda escura de olhos negros),

empregada doméstica em Lisboa.

32 Em 2014 o valor médio de uma diarista em Lisboa era de sete euros a hora.

15

“Estou aqui há doze anos. Voltei para o Brasil e não habituei. Só vou voltar como

turista. Desculpem, mas temos que tomar mais cuidado com os brasileiros do que com

os portugueses em Lisboa. Os brasileiros aqui [em Lisboa] ‘ficam muito espertos’

[ironia]”. Frase dita por um brasileiro (branco de olhos castanhos), casado com uma

portuguesa, desempregado, e usufruindo do seguro desemprego em Lisboa.

Os fragmentos de falas que reúno expressam de certa forma muito do que ouvi

de brasileiros e brasileiras em Lisboa. Porém, o que parece ser paradoxo não

necessariamente escapa de certas lógicas que imprimem as características de um

fenômeno. Quando as impressões contraditórias vinham de uma pessoa só, o que não foi

raro, como uma relação de “amor e ódio”, manifestava-se como incerteza, como um

dilema refletido sobre uma decisão a ser tomada entre o permanecer em Portugal ou

retornar ao Brasil.

*

Segundo informações que obtive junto a uma das organizações de apoio, um

número significativo de mulheres que vivem a condição de trabalhadora estrangeira

relataram já ter sofrido preconceito e discriminação, ou alguma forma de assédio, sexual

e moral, ou de já ter ou estar vivendo a experiência de trabalho precário em seu primeiro

período de permanência no país. O que costuma ocorrer, após algum tempo de

experiência em trabalho precário e de vulnerabilidade social, é buscarem alternativa na

nova rede social que estabeleceram no país, e através desta rede também se aproximam

das instituições de apoio ao imigrante.33 Durante sua estadia renova relações de amizade

e afeto, seja pelas relações de trabalho ou de lazer, redimensionando o projeto de

permanência, cuja decisão de não mais voltar definitivamente ao Brasil atrela-se a

outros motivos, para além dos que motivaram a saída de seu país. Entre os motivos está

o de parceria conjugal estável estabelecida no país de destino, e/ou de investimento na

educação de filhos, sejam filhos que reagruparam ou os que nasceram em Portugal.

“Trabalho” e “relação amorosa” estável aparecem como uma combinação importante. O

lugar da “estabilidade” nesta intenção vai de encontro às relações seguras e de confiança

necessárias na experiência estrangeira. Ou seja, há propósitos no projeto pessoal de

imigração sendo ressignificados, e a afetividade na direção da conjugalidade e/ou

33 No trabalho de colaborador que desenvolvi na Associação Comunidária pude acompanhar algumas

destas entrevistas e testemunhar dramáticos relatos sobre assédio moral e condição precária de trabalho.

16

filiação concentram os motivos mais fortes na decisão da permanência duradoura. Cuido

para que esta afirmação não percorra ou se resuma a ideia utilitária de que o matrimônio

com cônjuge português levará ao caminho mais fácil do green-card, mesmo que o

projeto de estabilidade afetiva (heterogâmica) leve a isto. Mas, para além disto, o

contexto sobre o qual estamos tratando, como mencionado acima, é de mulheres que

não necessariamente estão na busca de reagrupamento familiar com o cônjuge; aliás,

são elas que puxam o reagrupamento de filiação para o país estrangeiro.

O que há de comum entre as intenções de sair do Brasil e permanecer em

Portugal é o fato de não serem cultivadas a partir de um cálculo frio, do balanço entre o

que se vai gastar e ganhar em renda. O cálculo existe, mas o próprio é motivado pela

vontade de realizações e mudanças de vida que não possuem equivalência com o que se

ganhará e se gastará, e se vai ser possível economizar o suficiente para as remessas.

Lidamos com um fato a priori: a decisão por este deslocamento sintetiza o desejo por

uma radical e importante mudança de vida. Como afirmara a representante da

Associação Comunidária: “As brasileiras vêm [para Portugal] porque romperam com

alguma coisa [no Brasil] [...] Rompeu com algum ciclo.” Segundo a mesma, o perfil da

imigrante brasileira que tem atendido na associação é também de mulheres que chamam

o reagrupamento da rede familiar extensa.

2.3. Situando o Desejo à Luz da Teoria e dos Dados

Se as intenções até aqui tratadas sobre um projeto de vida num país estrangeiro

situam um desejo em nada aleatório, desenhado a partir de uma vontade de “romper

com um ciclo” no país de origem, para iniciar outro, para, quem sabe, retomar o ciclo

anterior em outras condições de protagonismo, necessário situarmos este movimento na

literatura que o trata.

Pelo levantamento bibliográfico realizado, constato escassez de publicações

referente à temática “serviço doméstico” e “imigração de brasileiros em Portugal”. Com

relação ao serviço doméstico, os artigos consultados focam discussão na precariedade

histórica das condições de trabalho, emergência do mercado, formas de recrutamento e

contratação, desproteção Legal, mão-de-obra estrangeira e clandestinidade. Sobre a

imigração brasileira um dos temas abordados diz respeito à problemática em torno do

imaginário estereotipado da mulher brasileira, com foco no estigma e discriminação.

17

Dois aspectos precisamos considerar sobre a escassez de produção científica e

publicação: (1) com relação ao serviço doméstico o tema ainda é considerado

“marginal” e “emergente”; (2) com relação à imigração brasileira o fenômeno em

Portugal é relativamente recente. Constato que os investimentos de pesquisa ocorrem de

fato a partir do ano de 2008, e com relação ao serviço doméstico a partir do ano de

2012, se considerarmos para ambos os casos as produções de mestrado e doutorado; a

publicação em livro a ocorrência é mínima.

*

Situar o fenômeno da imigração da trabalhadora doméstica brasileira em

Portugal exige que localizemos a relação entre o desejo por este projeto profissional e o

contexto social e cultural que o propicia. Por exemplo, a experiência liminar de lidar

com o sentimento da saudade provocada pela ruptura e ausências com as coisas e

pessoas no Brasil, do estranhamento cultural quando lidam com formas de etiquetas no

trato da vida pública que pouco tem a ver com certo “jeito brasileiro de ser”, de lidarem

com prescrições morais tradicionais no que diz respeito à sexualidade, que incidem com

mais gravidade sobre a mulher brasileira, que é colocada sob suspeita moral.34

Sobre esta “suspeita moral” passei por uma experiência intrigante no restaurante

que frequentava num dos bairros que morei: entrei no estabelecimento para comer algo

e meu amigo garçom mostra-me matéria jornalística que noticiava a detenção policial de

modelo brasileira que posara seminua para sessão de fotos em famoso monumento

histórico, conhecido como Padrões do Descobrimento.35 Em tom de amistoso deboche,

pergunta-me se a conheço, para em seguida afirmar: “Se a conheces, me apresentes!”

Também levei a conversa na brincadeira, e o que ficou evidente foi o seu desejo de

conhecer brasileiras, tocado pelo imaginário da sensualidade e sedução. Uma análise

mais detida sobre a construção social da imagem da mulher brasileira e o lugar que

ocupa no imaginário português exige também abordagem histórica que remonte o lugar

colonial que a imagem sobre brasileiros ocupa na ideografia portuguesa. E não precisa

ser português para ser tocado pelo imaginário da sedução. Segmentos da mídia

comercial e de entretenimento no Brasil constantemente vendem esta mulher sensual

34 Sobre o imaginário da mulher brasileira em Portugal ver Gomes (2013). 35 Matéria publicada pelo jornal Correio da Manhã, na seção Notícia Exclusiva (da edição em Papel), do

dia 02 de maio de 2014.

18

como produto nacional, seja numa propaganda de cerveja ou de pacotes turísticos.

Entretanto, a imagem da mulher sedutora assombra em muitas situações a vida de

brasileiras que conheci em Lisboa. Numa das sessões de acolhida na Casa do Brasil

escutei nos depoimentos de duas jovens que esta imagem de mulher sedutora, próxima

de certa vulgaridade, dificulta nas entrevistas para trabalho. A expressão que uma delas

ouviu numa das entrevistas a que se submeteu foi a seguinte: “Para este trabalho não

queremos brasileiras”.

Há em evidência a ligação da imagem de brasileiras com o mercado sexual, o

que é fato a existência delas oferecendo serviços sexuais neste país. Num passeio pelas

ruas do miolo comercial e histórico de Lisboa, principalmente pelos arredores da região

da Mouraria, constata-se a presença de brasileiras ligadas à prostituição de rua. O

serviço sexual é oferecido abertamente nestes arredores, como na calçada do Centro

Comercial Mouraria, e é comum se ouvir o sotaque brasileiro.36 Estas brasileiras não

percebi como maioria estrangeira nas ruas, figurando entre portuguesas, africanas e

mulheres do leste europeu.37 Toco na questão da forma de percepção da imagem

sedutora sob suspeita da mulher brasileira em Portugal porque esta imagem percebi na

relação inversa com o zelo moral cultivado pelas brasileiras que tive contato, que

claramente se preocupam com o recato e discrição para poderem usufruir de espaço em

postos de trabalho.

Confrontando dados estatísticos sobre postos de trabalho que brasileiras

assumem em Portugal e os dados sobre a opinião que portugueses têm da mulher

brasileira como suspeitas moralmente, supostamente consideradas “putas” em potencial

ou de fato, resta-nos uma pergunta: Por quê as brasileiras figuram, entre as estrangeiras,

como maioria em nacionalidade requisitada pelos portugueses para trabalho doméstico?

Segundo a estatística sobre contratos formais, é a brasileira a trabalhadora estrangeira

mais contratada para cuidar dos lares portugueses, inclusive de seus filhos e velhos.

36 Devemos estar atentos para o fato de que a emergência de um fenômeno necessariamente não está na

relação direta para a forma e proporções que é produzido para virar notícia na mídia impressa e

eletrônica. No caso, a imagem de brasileiras ligada ao mercado sexual e sujeitas aos riscos do tráfico

humano, o que foi inclusive enredo de novela na televisão brasileira em 2013, parece ser a única condição

que muitos brasileiros enxergam para as suas compatriotas que ousam uma vida no exterior contando com

parcos recursos, reproduzindo a equivocada ideia de que se é mulher e pobre, está a um passo da

prostituição e automaticamente nas malhas das redes de tráfico humano. 37Também houve em Portugal episódio envolvendo prostitutas brasileiras que submete a fama da mulher

brasileira ao jugo da “ditadura moral” conservadora portuguesa, e de impacto na mídia nacional. O

episódio que menciono foi denominado “Mães de Bragança”. Sobre este fato ver artigo de José Machado

Pais, já citado, intitulado “’ Mães de Bragança’ e Feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da

sexualidade”, de 2010.

19

Abrantes (2012) analisa os dados estatísticos e de conjuntura sobre as condições e

modalidades do trabalho doméstico em Portugal, apontando para o perfil de

nacionalidade das profissionais. A mão-de-obra estrangeira mais presente neste setor

nos últimos vinte anos é a brasileira (35%), seguida da angolana (11%), cabo-verdiana

(10%), ucraniana (9%), romena (5%), moldaviana (4%); ao lado da mão-de-obra

portuguesa (67%). Estes índices dizem respeito ao rastreamento dos dados sobre fluxos

migratórios e registros de contratação por regulação Legal da arrecadação de impostos e

de seguridade social no setor. Por outro lado, o autor não desconsidera o considerável

desvio padrão de confiabilidade dos mesmos em função da ocorrência de contratação

informal entre todas as nacionalidades. Os dados são considerados em três modalidades:

local de prestação dos serviços (se domiciliar ou institucional), perfil étnico (autóctone

ou imigrante) e forma de regulação do trabalho (formal ou informal). Entre estas

modalidades, a tendência de trabalho na forma de contratação em tempo integral para

um único empregador tem decaído e aumentado a prestação do serviço na modalidade

part-time, possibilitando atender mais de um domicílio e/ou empregador numa mesma

semana. Quando ocorre trabalho de tempo integral para um único empregador, no caso

de domicílios, a co-residência é mais evidenciada entre as imigrantes.

Estes dados também levam à hipótese de que as mulheres que partem de seu país

em direção a Portugal, com o intuito exclusivo de desempenharem o trabalho de

empregada doméstica, distanciam-se da relação com a prostituição por uma questão

prática: pelo fato de que a rede social de informação e referências que lhe propiciará

uma contratação exige indicação de “boas referências” morais. Dificilmente uma

família portuguesa contratará para serviços domésticos uma mulher suspeita de estar

ligada ao mercado sexual, o que procede como lógica moral mais agravada para este

ramo. O contrário pode ocorrer: fui informado em Lisboa por um dos investigadores do

tema que algumas profissionais do sexo tentam de todas as maneiras obter um contrato

falsificado de prestação de serviço doméstico para juntar à documentação necessária a

ser apresentada no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), com o intuito de adquirir

o certificado de residência, no sentido de logo regularizar o Visto no país. Esta

evidência tem sido motivo de maior atenção pelo SEF aos pedidos de visto

encaminhados por brasileiras.

Não há dúvida que o desejo de carreira no trabalho doméstico tem levado a

movimentos de reivindicação por Direitos, tanto no Brasil como em outras partes do

20

mundo, influenciadas pela indignação com a histórica precarização de seu trabalho.38

Por outro lado, como venho sinalizando, segundo relatos e dados de campo, a condição

de trabalhadora clandestina leva muitas destas mulheres à opção de estabelecer contrato

informal como doméstica em tempo integral, submetendo-se à maior barganha de seu

contratante, no intuito de em curto prazo conseguir renda mínima para sua subsistência

e proteger-se dos órgãos de fiscalização do governo português, o que implica

aparentemente em sua barganha de retorno. Porém, sua barganha de retorno opera como

uma armadilha para si mesma, pois a torna vulnerável a condições precárias de trabalho

e de abusos relacionados a assédio moral e sexual, e algumas vezes à condição de

trabalho escravo, como informa uma militante pelo trabalho digno no setor. No caso, o

maior risco é de se submeter a condições precárias, quando na condição de trabalhadora

interna para uma família, tendo como algoz seu próprio empregador, restando-lhe a

“dependência refém” por alojamento e alimentação, associada à desinformação,

inadaptação cultural, ausência de reservas em dinheiro e rede social presencial ainda

não estabelecida no país estrangeiro. Este quadro não é raro e representa um passo às

piores condições de trabalho precário, sem a ele chegar pelo agenciamento da rede de

tráfico humano, mas, sim, por uma rede social de conhecidos que mais informam sobre

a possibilidade de início ilegal do que sobre os riscos potenciais e concretos da

clandestinidade. O fato de algumas delas procurarem apoio nas entidades de assistência

ao imigrante depois de meses sinaliza não só o desejo de permanecer como trabalhadora

estrangeira, como também representa o tempo limite de viver sob tais condições em

virtude dos riscos assumidos. É sabido que não é exclusividade dos estrangeiros a

precariedade de trabalho no setor doméstico. A histórica condição da trabalhadora

doméstica na sociedade portuguesa demonstra como a cultura da “criadagem” no Estado

Novo é marcada por traços de desiguais relações de poder e Direitos entre ricos e

pobres, camponeses e citadinos, inclusive, entre adultos ricos e crianças pobres, já que

muitas destas trabalhadoras foram recrutadas entre os dez e doze anos de idade.39

38 Sobre o movimento sindical e de ONGs ligados ao setor doméstico, na luta por Direitos e contra o

trabalho precário, ver Gomes (2010). 39 Brasão, 2012.

21

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mobilidade migratória aqui tratada tem alto custo afetivo e financeiro. A

chegada e permanência no país estrangeiro envolve um projeto de trabalho delineado a

partir de um forte desejo de mudança de vida. O desejo que mobiliza a partida não é o

mesmo que influência a decisão de permanência. Sendo que a decisão de retorno

envolve outros custos nem sempre previstos.40 Outro ponto ligado a esta mobilidade é a

própria representação de cidade promissora como são anunciadas e vendidas as grandes

capitais, como se fossem cartões postais de um mundo economicamente desenvolvido

que todos têm sua vez, sua chance. A suposição é de que viver numa destas cidades

representa participar da prosperidade prometida, já que o dinheiro circula, os postos de

trabalho existem e o poder aquisitivo propicia a acumulação que se transforma em

remessas para o país de origem, mesmo que se passe, na força da expressão, “a pão e

água”, ou se coma “o pão que o diabo amassou”, como ouvi. Afinal... É a Europa.

Segundo a opinião de militante da associação de apoio profissional, corre-se o

risco do trabalho doméstico “esconder” cifras alarmantes com relação ao trabalho

escravo na sociedade moderno contemporânea, podendo superar a ocorrência do

fenômeno no setor agrícola. Com o receio de serem descobertas pelos organismos de

polícia e controle do Estado, e consequentemente de serem deportadas, muitas delas se

submetem à condições de trabalho em situação extrema de exploração e de

precariedade, condição de vulnerabilidade reconhecida em forte evidência pela OIT e

pela União Europeia. Este reconhecimento vai ao encontro das evidências de “dados

invisíveis” considerados por alguns investigadores do tema, que avaliam os aspectos

desta invisibilidade nas estatísticas. Os dados estatísticos oficiais do setor doméstico

estão aquém de retratar fidedignamente a realidade em função da prevalência do

“contrato informal”, de trabalho não declarado junto aos órgão de seguridade social,

levando à imprecisão em número de trabalhadores e patrões, e de informações sobre as

condições laborais.41

A fragilidade das trabalhadoras ocorre justamente em função das condições

apontadas, principalmente com relação a imediata dependência psicológica e material

40 Muitas desembarcam em Lisboa, em Madri ou Paris (neste dois últimos para conexão) sem a passagem

de retorno e sem reservas suficientes para as primeiras semanas de permanência até encontrar o esperado

trabalho. 41 Abrantes, 2012; Baptista, 2011.

22

provocada pela condição ilegal, clandestina. Em muitos casos o serviço doméstico ainda

tem sido palco de trabalho forçado, trabalho infantil, de más condições de trabalho, de

abuso sexual, mesmo, com toda ironia, que a “... casa do patrão [possa] ser um refúgio

seguro da condição de ‘sem papéis’”.42 No caso de domicílios, ocorre no locus do

mundo privado, envolvendo outras práticas de relações profissionais que se pautam pela

cultura da “criadagem”, reproduzindo relações desiguais em formas cotidianas de

tratamento interpessoal, postura e etiquetas típicas que permanecem como legítimas

para uma classe média que herda uma memória social aristocrática. Relações que

também se perpetuam em formas de paternalismo, seja de autoridade moral ou pela

caridade (por exemplo, na doação de objetos e roupas, como presentes de favor).43 Ser

empregada doméstica é viver à sombra de um estigma histórico de subalternidade de

classe e profissão.44

42 Gomes, 2009, p. 09. 43 Gomes, ibid., p. 12. 44 Brasão, ibid.

23

4. BIBLIOGRAFIA

ABRANTES, Manuel. A Densidade da Sombra: trabalho doméstico, género e

imigração. Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 70, 2012.

ABREU, A; PEIXOTO, J. Demografia, mercado de trabalho e imigração de

substituição: tendências, políticas e prospectiva no caso português. Análise Social, vol.

XLIV (193), 2009.

ASSIS, G. de O. Mulheres migrantes no passado e no presente: gênero, redes sociais e

migração internacional. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 3, dez.

2007.

BALSA, Emanuel F. dos S. L. Atitudes de Trabalhadores do Serviço Doméstico face

à Segurança Social. Lisboa, 2012. Dissertação de Mestrado. Departamento de

Sociologia. ISCTE-IUL.

BAPTISTA, Patrícia Gonçalves. Imigração e Trabalho Doméstico: o caso Português

- (Teses; 34). 1ª ed. Lisboa: ACIDI, 2011.

BLÉTIÈRE, Vanessa. Reconhecer o Trabalho Doméstico: desafios de uma análise

sociológica. Dinâmia. ISCTE-IUL. Working Paper n. 2008/71

BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

2005[1998].

BOYER, M. C. The City of Colletive Memory: its historical and architectural

entertainment, The MIT Press, 1996.

BRASÃO, Inês. O Tempo das Criadas: a condição servil em Portugal (1940-1970).

Lisboa: Tinta da China, 2012.

24

BRITES, J. Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas domésticas

e seus empregadores. Cadernos Pagu, Campinas, n. 29, Dec. 2007.

CACHÓN RODRÍGUEZ, L., En la ‘España inmigrante’: entre la fragilidad de los

inmigrantes y las políticas de integración, en Papeles del CEIC, vol. 2009/1, nº 45,

CEIC (Centro de Estudios sobre la Identidad Colectiva), Universidad del País Vasco,

http://www.identidadcolectiva.es/pdf/45.pdf (acessado em 04/02/2010)

DIAS, Nuno. Género, Mobilidade e Serviço Doméstico: números e tendências da

imigração feminina em Portugal. Dinâmia. ISCTE-IUL. Working Paper n. 2010/06

DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976 [1966].

EGREJA, Catarina; PEIXOTO, João. Caminhos Limitados ou Mobilidade Bloqueada?

A mobilidade socioprofissional dos imigrantes brasileiros em Portugal. Sociologia,

Problemas e Práticas, n.º 67, 2011.

FERNANDES, Gleiciane M. de O. Viver Além-Mar: Estrutura e experiência de

brasileiras imigrantes na Região Metropolitana de Lisboa. Dissertação de Mestrado.

Lisboa, 2009. Instituto de Ciências Sociais. Universidade de Lisboa.

GOMES, Mariana S. Imaginário Social “Mulher Brasileira” em Portugal: uma

análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de

subjetivação. Tese de doutorado. Lisboa, 2013. Escola de Sociologia e Políticas

Públicas. ISCTE-IUL.

GOMES, Mariana S. Mulheres brasileiras em Portugal e imaginários sociais: uma

revisão crítica da literatura. CIES (ISCTE) e-Working Paper N.º 106/2011.

GOMES, Pedro. O trabalho doméstico e as organizações de apoio - estudo comparativo

sobre os sindicatos e associações de apoio ao trabalho doméstico e à luta pela sua

visibilidade e reconhecimento social. DINÂMIA-CET/ISCTE, Lisboa, Portugal, 2009.

25

GRILO, Marta E. dos S. de O. Situações, Trajectos e Percepções de Imigrantes

Brasileiros e Cabo-Verdianos no Mercado de Trabalho em Portugal. Dissertação de

Mestrado. Lisboa, 2011. Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas. ISCTE-

IUL.

GROSSI, M. P. Masculinidades: uma revisão teórica. Antropologia em primeira mão

/ Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa

Catarina. —, n.1 (1995) Florianópolis: UFSC, 2004.

LINARES, Rosilene. O Envolvimento Religioso e a Sintomatologia Depressiva em

Emigrantes Brasileiros. Tese de Doutorado. Lisboa, 2012. Faculdade de Psicologia.

Universidade de Lisboa.

MACHADO, Fernando L.; ABRANCHES, Maria. Caminhos Limitados de Integração

Social: trajectórias socioprofissionais de cabo-verdianos e hindus em Portugal.

Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 48, 2005.

MACHADO, Igor José de Reno. Valadares em família: experiências etnográficas e

deslocamentos. Brasília: ABA, 2014.

MONTEIRO, Renata N. T. A construção da imagem do brasileiro em Portugal e as

estratégias de afirmação identitária. Dissertação de Mestrado. Lisboa, 2010.

Faculdade de letras. Universidade de Lisboa.

OLIVEIRA, M. J. ENTRE AMIGOS: antropologia da homossociabilidade

masculina em camadas populares na periferia metropolitana da Grande

Florianópolis. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,

Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2008.

OLIVEIRA, M. J. Maria: migração internacional de empregadas domésticas brasileiras.

In: II Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, 2011, Salvador. Anais II

Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, 2011. (Anais).

26

. Maria. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 9: Diáspora,

diversidades, deslocamento, 2010, Florianópolis. Anais Fazendo Gênero 9:

diásporas, diversidades, deslocamentos, 2010.

ORTIZ, R. Mundialização e Cultura. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.

PADILHA, Maria; et. al. Novas e Velhas Configurações da Emigração Brasileira na

Europa. (Atas do 2º Seminário de estudos sobre a Imigração Brasileira na Europa).

Lisboa: ISCET-IUL, 2012.

PAIS, José M. Mães de Bragança e Feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da

sexualidade. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 41, nº 2, jul/dez, 2010.

PEIXOTO, João. Dinâmicas e Regimes Migratórios : o caso das migrações

internacionais em Portugal. Análise social, vol XLII (183), Lisboa, 2007.

. Tráfico, Contrabando e Imigração Irregular: os novos contornos da

imigração brasileira em Portugal. Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 53, 2007.

PEREIRA, Juliana dos S. As Meninas do Pequi fora do Sertão: goianas imigrantes

em Lisboa. Dissertação de Mestrado. Lisboa, 2009. Instituto de Ciências Sociais.

Universidade de Lisboa.

PÉREZ, V. G et al. España, encrucijada de la migración internacional. La aportación de

las mujeres. In: ROCA, J. G.; LOCOMBA, J. (eds.). La inmigración en la sociedad

española: una radiografía multidisciplinar. Barcelona: edicións bellaterra, 2008.

PERISTIANY, J. G. (org.). Honra e Vergonha: valores das sociedades

mediterrânicas. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1971[1965].

PINHO, Ana Filipa A. Transformações na Emigração Brasileira para Portugal: de

profissionais a trabalhadores. Tese de Doutorado. Lisboa, 2012. Departamento de

Sociologia. ISCTE-IUL

27

PISCITELLI, A. Tránsitos: circulación de brasileñas en el ámbito de la

transnacionalización de los mercados sexual y matrimonial. Horizontes

Antropológicos, Porto Alegre, v. 15, n. 31, June 2009.

. Corporalidade em confronto: brasileiras na indústria do sexo na

Espanha. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 22, n. 64, June 2007.

REIS OLIVEIRA, Catarina; GOMES, Natália (coord.). Monitorizar a integração de

imigrantes em Portugal: relatório estatístico decenal. (Imigração em Números; 1.

Observatório das Migrações), 2014. Lisboa: Alto Comissariado para as Migrações

(ACM, IP): 2014.

ROCA, J. G.; LOCOMBA, J. (eds.). La inmigración en la sociedad española: una

radiografía multidisciplinar. Barcelona: edicions bellaterra, 2008.

SILVA, Patrícia A. Para Lá do Prejuízo: análise das narrativas de identidade e

reconstrução de subjectividades em mulheres brasileiras na área metropolitana de

Lisboa. Dissertação de Mestrado. Lisboa, 2008. Departamento de Antropologia.

ISCTE-IUL.

TURNER, V. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974

[1969].

VELHO, G. O Patrão e as Empregadas Domésticas. Sociologia, Problemas e Práticas,

n.º 69, 2012.