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ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS OBRAS DE MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

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Page 1: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

OBRAS DE

MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIANIMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Page 2: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Co-Edição

Fundação Calouste GulbenkianE-mail: [email protected]

Imprensa da Universidade de CoimbraE-mail: [email protected]

URL: http//www.uc.pt/imprensa_ucVendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt

CoordEnação Editorial

Imprensa da Univers idade de Coimbra

ConCEção gráfiCa

Imprensa da Univers idade de Coimbra

infografia da Capa

Carlos Costa

infografia

Margarida Albino

pré-formatação

Catarina Arqueiro

rEvisão dos artigos

Carlos A. Martins de Jesus

print by

KDP

isbn

978-989-26-1878-4

isbn digital

978-989-26-1879-1

doi

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1879-1

dEpósito lEgal

470099/20

© maio 2020, imprEnsa da UnivErsidadE dE Coimbra

PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1925-2017

Estudos sobre língua e literatura portuguesas.

– (Obras completas de Maria Helena da Rocha

Pereira ; 9)

ISBN 978-989-26-1878-4 (ed. impressa)

ISBN 978-989-26-1879-1 (ed. eletrónica)

CDU 821.134.3A/Z”15/20”.09(042)

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ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

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NOTA AO PRESENTE VOLUME

Neste volume se reúnem vinte e oito estudos da autora, entre os muitos que publicou sobre a temática geral da língua e literatura portuguesas. Porque não foi possível localizá-la, ficou de fora a oração Os caminhos da harmonia de uma lín-gua única, apresentada a convite da Academia Brasileira de Letras, que a autora tinha planeado incluir entre os estudos que agora se publicam (vd. “Nota Prévia” ao vol. I, pp. V-VI).

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SUMÁRIO

I. LÍNGUA PORTUGUESA ...................................................................................... 91. Elogios da Língua Portuguesa ......................................................................... 112. Breve história da ortografia da língua portuguesa ...................................... 273. Para quê um acordo ortográfico? ................................................................... 334. Acordo ortográfico: uma questão premente ................................................. 37

II. LITERATURA PORTUGUESA ............................................................................. 411. Uma descrição poética da cidade de Lisboa................................................... 432. Um elogio setecentista da cidade do Porto .................................................... 513. Relendo o poeta Elpino Duriense .................................................................... 574. Vtile dulci nas Recreações Botânicas da Marquesa de Alorna .......................... 795. As Recreações Botânicas da Marquesa de Alorna – Entre a Ciência e o Mito 996. Notas sobre três sonetos de Bocage ................................................................ 1117. Ecos da Reforma Pombalina na poesia de setecentos ................................... 1178. O Porto na obra de Ramalho Ortigão .............................................................. 1339. As imagens e os sons na lírica de Guerra Junqueiro ..................................... 15110. Entrevista ........................................................................................................... 17111. A estátua do Infante D. Pedro: de Rui de Pina a Manuel Alegre .................. 18112. «Sonetos do Obscuro Quê» ............................................................................... 191

III. CAMONIANA VARIA .......................................................................................... 1971. Presenças femininas na época dos Descobrimentos .................................... 1992. O «honesto estudo» de Camões ....................................................................... 2113. Sobre o texto da Ode ao Conde do Redondo ................................................... 2154. A elegia III de Camões ....................................................................................... 2355. Nomes de Ninfas em Camões ........................................................................... 2436. Musas e Tágides n’ Os Lusíadas ......................................................................... 2557. O mito de Orfeu e Eurídice em Camões .......................................................... 2698. O tema da metamorfose na poesia camoniana .............................................. 2819. A tempestade marítima de Os Lusíadas. Estudo comparativo ...................... 29910. Presenças da Antiguidade Clássica em Os Lusíadas ....................................... 31111. A transmissão manuscrita de Os Lusíadas. Alguns aspectos ........................ 32912. Um soneto a Camões ......................................................................................... 345

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I. LÍNGUA PORTUGUESA

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1. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA*

É em António Ferreira, todos o sabem, que principiam os elogios da Língua Portuguesa. Numa época, portanto, em que o bilinguismo literário era não só cor-rente, como praticado pela generalidade dos poetas, desde Gil Vicente a Camões, destaca-se cedo o protesto deste doutor conimbricense (nascido, aliás, na capital), que escreve uma longa carta em verso ao seu amigo Pedro de Andrade Caminha, em que, depois de o situar entre os paladinos do Renascimento (“em ti quiseram / as Musas renovar a Antiguidade”), o adverte solenemente da obrigação em que todo o escritor se encontra de cultivar, acima de tudo a própria língua1:

Do que antigamente mais pregaramtodos os que escreveram foi honrara própria língua, e nisso trabalharam.

Cada um andava pola mais ornarcom cópia, com sentenças, e com arte,com que pudesse d’outras triunfar.

A exortação vai prosseguir com o apelo ao paradigma grego e latino, como era de regra entre os quinhentistas, mas logo diversificado pelos grandes cultores de Espanha, França, Itália. Curiosamente, nos tercetos seguintes a equação amor à pátria – amor à língua vai alargar-se a povos bárbaros, de modo que “getas, ará-bios, persas e caldeus” surgem ao lado de “gregos e romãos e toda a outra gente”.

Perpassa em seguida a noção, já tantas vezes apontada pelos estudiosos, da urgência em exaltar os feitos lusitanos no Oriente, aqui sugerida através do

* Publicado em Máthesis 15 (2006), 257-273. 1 Cartas I, 13-18. Nas citações dos Poemas Lusitanos seguimos a edição de T. F. Earle (Lisboa, Fun-

dação Calouste Gulbenkian, 2000).

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12 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

adynaton que resultaria de um capitão dar ordens de comando aos seus homens em língua estrangeira2.

De novo a obrigação para com a terra-mãe vai afirmar-se nas suas duas ver-tentes (v. 66):

ou seja com bom braço ou bom saber,

até se encaminhar para a famosa dicotomia que já vinha, também ela, da Anti-guidade (lembre-se a insistência com que Cícero opunha arma e toga) e que atinge o seu ponto mais alto nos versos 91-92:

ó quantos quanta mor fama ganharamco’ a pena que outros com a espada!

A exortação adquire um tom mais veemente a partir do verso 104, até que atinge a sua mais alta expressão no mais célebre dos tercetos do autor:

Floreça, fale, cante, ouça-se e vivaa portuguesa língua, e já, onde for,senhora vá de si, soberba e altiva.

Os tercetos cometem a Andrade Caminha a missão de demonstrar a capacidade do idioma nacional. Atente-se sobretudo neste passo (versos 130-132):

Mas tu farás que os que mal julgarame inda as estranhas línguas mais desejam,confessem cedo ant’ela quanto erraram.

A mesma expressão de amor à língua pátria, agora transposta para a primeira pessoa, encerra outro dos mais famosos poemas de António Ferreira, possivel-mente composto pela mesma época3, a Ode I do livro I. É aí que uma nova censura aos que a não cultivam (“língua aos teus esquecida”) se conjuga com a modesta renúncia a exceder os limites da lírica e, ao mesmo tempo, com a reafirmação do seu empenho em ilustrar a língua materna (vv. 25-30)4:

2 A. Roïg, “António Ferreira et l’aventure lusitanienne d’outremer”, Arquivos do Centro Cultural Português (1980) 577-607, faz a lista dos poetas a quem Ferreira sugeriu a celebração desses temas, mostrando expressamente a insistência (cinco exemplos) para com Andrade Caminha (p. 602).

3 T. F. Earle, nos comentários à sua edição, propõe 1554 para terminus ante quem da composição da carta, e 1557 para a da Ode.

4 Dois séculos mais tarde, Filinto Elísio far-se-á eco deste verso na sua “Carta a Brito”, v. 804: Bom Ferreira, de nossa língua amigo!

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131. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

A mim pequena partecabe inda do alto lumeigual ao canto: o brando Amor só sigo,levado do costume.Mas inda em algũa parte– Ah, Ferreira – dirão –, da língua amigo.

Seja-nos permitido chamar a atenção para a tonalidade mais subjectiva que V. M. Aguiar e Silva encontrou no Soneto 31 do Livro II, também esse endereçado a um poeta que não escrevia na língua nacional, e que, talvez por esse motivo, não encontrava eco junto da sua amada (v. 11):

não é tua voz com tanto efeito ouvida.

Está aqui subjacente, como agudamente escreveu aquele Professor, “uma refle-xão mais profunda, surpreendentemente moderna, acerca das relações expres-sivas, comunicativas, cognitivas, podemos mesmo dizer ontológicas existentes entre a língua materna e o mundo interior, subjectivo, vivencial, representado no poema”5.

Este valor do uso do idioma pátrio como meio privilegiado da comunicação de sentimentos profundos vai-nos aparecer, efectivamente, na contemporaneidade, como veremos adiante.

Voltando ao nosso quinhentista, não podemos deixar de referir aquele, aliás bem conhecido, terceto final da elegia em que Diogo Bernardes pranteia o seu desaparecimento:

Verei com secos olhos seca a veiaque dando à pátria tantos versos raros,um só nunca lhe deu em língua alheia?

Entretanto, vários indícios apontam para o que Maria Leonor Carvalhão Buescu chamou “a polémica mais ou menos latente durante os séculos XVI e XVII entre os decididos apologistas da língua nacional e os que reconheciam a superioridade da castelhana como língua de maior circulação, expressividade e riqueza”6. A questão está bem clara no Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem, de João de Barros,

5 A citação é do estudo introdutório à edição fac-simile de 1598 dos Poemas Lusitanos (Braga, Universidade do Minho, 2000), p. XI.

6 A citação é da p. XXXI da Introdução à sua edição de João de Barros, Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Faculdade de Letras, 1971), onde, por sua vez, remete para o prólogo de Eugénio Asensio, A Comédia Eufrosina de Jorge Ferreira de Vasconcelos (Madrid, 1954), pp. XL-LII.

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14 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

que, depois de comparar as qualidades das línguas italiana, francesa e espanhola entre si, começa a enumerar os atributos da materna, a partir desta pergunta retórica7:

Que se pode desejar na língua portuguesa que ela não tenha?

Qualidades semelhantes lhe aponta também Duarte Nunes de Leão, no seu tratado Origem da Língua Portuguesa.

Proximidade do Latim, majestade, gravidade, “força para declarar, mover, deleitar, exortar” são as principais características, que não andam longe das que, no século seguinte, lhe assinalará como próprias aquele que é certamente o mais famoso dos encómios da língua portuguesa: o que Rodrigues Lobo com-pôs no Diálogo I de A Corte na Aldeia. Precisamente porque é muito conhecido (e mais ainda a censura final ao desleixo com que a língua é tratada – “a tra-zem mais remendada do que capa de pedinte”), não nos deteremos nela senão para sublinhar os motivos da primazia que também aqui lhe é dada sobre as outras:

Tem de todas as línguas a melhor: a pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana.

Um estudioso das Línguas Clássicas dificilmente aceitaria comprovar a exactidão do confronto com qualquer delas, mas não pode deixar de admirar o exercício de estilo que brilha em todo este trecho. As observações à doçura da pronúncia e à simplicidade da ortografia (“escreve-se da maneira que se lê e assim se fala”) é que não condizem por completo com as de uma autora sua contemporânea, Bernarda Ferreira de Lacerda, que, no começo do seu poema Hespaña Libertada, depois de pedir desculpa a “mi patrio reyno Lusitano”, por escrever em castelhano, para assim a sua musa “ser mais vulgar y conhecida”, prossegue com uma observação, para nós preciosa sobre as dificuldades da pronúncia do português8:

Confieso de tu lengua que mereceMejor lugar despues de la Latina,Con que en muchas palabras se parece,Y es como ella de toda historia dina.

7 P. 399 da edição citada na nota anterior.8 Parte primeira, canto primeiro, est. 6. A citação tomamo-la de J. A. Segurado e Campos, ed.,

Gabriel Pereira de Castro, Ulisseia ou Lisboa Edificada (Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 2004), vol. II (Estudos Histórico-Literários), p. 311.

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151. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

Empero el ser tan buena la escurece;Y asi la estraña gente nunca atinaCon tu pronunciación y dulces modos.Y la Hespañola es facil para todos.

Porém, na centúria seguinte, surgirá, como se sabe, e por muito tempo, uma nova ameaça à pureza da língua, porquanto, à miragem castelhana se substituirá aquilo a que Garrett9 chamou a “galomania” e outros o “francesismo”.

A moda do francesismo está ridicularizada, como é do conhecimento geral, num episódio do Hissope, mas é de Filinto Elísio que lhe vem o grande ataque, principalmente na “Carta a Brito”, no “Arrazoado” e no “Debique”. Aí, as invecti-vas contra os que adulteram a língua materna e os louvores aos que a cultivaram sucedem-se revelando ao mesmo tempo a criatividade linguística e estilística do autor. A “Carta a Brito”, a mais marcadamente didáctica, imagina, a certa altura, um diálogo com Correia Garção, e noutro momento, põe em cena o Padre António Vieira a falar com um peralta e com Ribeiro. Por sua vez, o “Debique” encena um encontro com Quevedo e um Francelho-Mor, opondo “latiniparlas” a “galiciparlas”. O “Arrazoado” forja, mediante um sufixo verbal frequentativo, uma caricatura da situação presente (59-67):

Muitos que hoje escrevem franceseam.Francesear agora é tão absurdoQuanto o fora nos séculos latinosVandalear, falar suevo ou godo.Francesear em língua portuguesaSe atrevem quatro tolos vangloriososde uns laivos que puseram mal assentesna face maternal que se envergonha.

Contudo, escreve o poeta mais adiante, não lhe seria difícil exprimir-se nessa língua, ele que há tantos anos vive exilado e isolado em Paris (221-228):

Cuidam esses pataus que, se eu quisessecomo eles escrever afrancesado,me faltariam posses? Eu, que vivohá vinte anos e mais, entre franceses,

9 Bosquejo da História da Poesia e da Literatura Portuguesa, p. 496 do vol. I da edição de Lello e Irmão (Porto 1966). Retomando expressões de Filinto, Garrett escreve ainda que “nos enxovalharam a língua e a fama os tarelos, francelhos, galiciparlas e toda a caterva dos galómanos”. Da preponderância do francês no século XIX, dá testemunho, entre outros, Eça de Queirós no seu artigo “O Francesismo”, reimpresso na colectânea Últimas Páginas.

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16 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

falando muito raro e ouvindo menosportuguês puro, falto de bons livros,que a castigada frase me renovem,que me acudam com termos esquecidos.

O remédio é apontado na conclusão da “Carta a Brito”, em palavras que os reformadores da educação de hoje bem podiam meditar (1555-1558):

Aprendei, estudai; e os bons autoressabereis ter em crédito e valia.Eles a língua em seu primor criarameles no-la poliram…

Os poemas de Filinto, de que acabamos de ver exemplos, insistem mais na defesa da língua e na exaltação dos autores paradigmáticos do Renascimento e da Arcádia do que propriamente nos seus louvores. Esta última atitude vamos encontrá-la num seu contemporâneo muito menos famoso como poeta, mas muito mais influente na sociedade em que viveu10. Trata-se de António Ribeiro dos Santos, de seu nome arcádico Elpino Duriense.

É principalmente em seis das suas epístolas que se exprimem as preocupações com estes valores. Também este autor refere o francesismo, como, por exemplo, na carta a Francisco José da Serra, “Sobre o desprezo em que muitos têm a Língua Portuguesa preferindo-lhe as estranhas”, como se lê no subtítulo. Atente-se em especial neste passo (7-17):

………………… Não falamjá nossos moços Português, só parlamou um dialecto informe nunca ouvido,de Português e de Francês meado.Assim se educam no Colégio os moços,assim nos vêm de fora, parolandomancebos viajantes que aprenderamquatro termos da moda, vinte frasesdo estrangeiro Romance mal trazidas.

Prolonguei um pouco a citação, porque também aqui a sua actualidade é flagrante na medida em que o protesto visa os inconvenientes da prática, hoje

10  Sobre esta figura e a sua acção, veja-se em especial José Esteves Pereira, O Pensamento Político em Portugal no Século XVIII. António Ribeiro dos Santos (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983).

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171. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

tão apregoada, de começar a aprender uma segunda língua quando ainda não se adquiriu um domínio razoável da própria.

Note-se porém, desde já, que Elpino Duriense tem uma noção clara da evolução da língua (“ao tempo estão sujeitas as palavras, / umas se fazem velhas, outras nascem”, como escrevera Correia Garção em clave horaciana)11, ao dedicar a Aléxis uma epístola “Sobre a afectação dos que escrevem por linguagem velha”.

Mas mais importante é o relevo que Elpino confere ao paradigma (e aqui novamente os nossos pedagogos actuais encontrarão matéria para reflectir). Duas extensas Epístolas, ambas dirigidas a António Ferreira de Sampaio, e subordi-nadas a uma epígrafe alógrafa tirada de António Ferreira a que de começo nos referimos (“Floreça, fale, cante-se, ouça-se e viva / a Portuguesa Língua”) versam “Sobre o estudo da Língua Portuguesa”, uma “pelo que respeita aos Prosadores” e outra “pelo que respeita aos Poetas”. Ambas mencionam larga cópia de autores, caracterizando-os muitas vezes com grande agudeza (é o caso de Fernão Mendes Pinto – “As Viagens de Pinto / encantadoras / Heródoto de Lísia” I, 53-54 – e de Frei Luís de Sousa – “O fácil Sousa, que a dicção volteia / e qual a mole cera, a move e abranda, / e a faz flexível, onde quer que a leva”, I, 100-103). Mas não é menos curioso observar o afloramento do jurista que era, acima de tudo, António Ribeiro dos Santos, ao encetar os seus modelos de prosa pelas Ordenações Afonsinas. Não faltam, de permeio, os elogios à riqueza, beleza, gravidade, melodia da Língua, nem o topos, que já encontrámos noutros autores, da comparação com os idiomas de outros povos (e atente-se em que já não são apenas referidos os românicos, mas também os “Bretões” e os “Góticos Tudescos”)12; o tópico recorre na segunda epístola, mas agora de forma mais limitada, porque se trata de comparar a sua melodia “à língua Argiva” e “à Itálica”13. Aliás, nesta composição há todo um proémio a exaltar as virtualidades da língua portuguesa, que culminam numa quase divinização (II, 38-40):

Idioma sagrado d’altas Musas,sobe longe da terra aos astros puros,campeia pelo Olimpo, e fala aos Deuses.

Este movimento ascensional observa-se igualmente no epílogo da Epístola anterior, mas desta vez com a vantagem de ligar, numa clara alusão, o passado histórico da era dos navegadores ao maravilhoso pagão “do poema imortal que as Musas amam” (I, 115-117):

11 Respectivamente, Sátiras II. 52-56 e Arte Poética 60-62.12 “A António Ferreira de Sampaio”, I. 1-13.13 “A António Ferreira de Sampaio”, II.20-21.

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18 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

………………… ………………quantocabedal de expressões não volve a Língua,costumada a falar ao mar, e aos ventos,a falar c’os Tritões e co’ as Nereides,co’os deuses todos no cerúlio império!

Especial interesse para o nosso ponto de vista tem a Epístola A Monsenhor Ferreira, essa claramente definida como sendo “Em louvor da nossa Língua”. Não porque os topoi usados sejam novos, mas porque encara o francesismo por um ângulo diferente e decisivo, considerando “a tão valida / Francesa Língua que ora voga tanto” como inferior à nossa. Mais ainda: tirando-lhe os termos eruditos, provenientes do Grego e do Latim (23-28):

Em tudo o mais, se tu a bem comparasco’a nossa natural, é frouxa e estreita.Não tem força de termos majestosos,não tem vozes esdrúxulas dactílicas,não tem ricos vocábulos compostos,que épica trompa belicosa entoe.

A novidade aqui, em relação aos textos anteriores, reside em ter acrescentado ao inventário uma diferença inquestionável de ordem fónica: a ausência de pro-paroxítonas.

Este alargamento ao campo da fonética, se bem que não inédito, será precisa-mente um dos factores de maior interesse do poema que nos falta considerar: a Carta a Agostinho José da Costa Macedo, “Sobre a harmonia mecânica da Língua Portuguesa”.

Embora não muito mais extensa (52 versos) e retomando, mais uma vez, o motivo da comparação com outros idiomas, ela contém dados importantes sobre a pronúncia coeva, que vêm juntar-se aos fornecidos pelas gramáticas e ortogra-fias dos séculos XVI a XVIII, sem esquecer os que figuram na Carta I do Verdadeiro Método de Estudar.

Ora pela positiva, ora pela negativa, Elpino Duriense vai enumerando as quali-dades fónicas que exornam a Língua Portuguesa: proporcionalidade entre vogais e consoantes (ao contrário do “rude encontro / de muitas consoantes mal unidas” das Línguas Germânicas); ausência do “cigano cecear travado” e dos “ríspidos sonidos na garganta / do Andaluz e Arábico mourisco” (que serão certamente as sibilantes) e ainda “as vozes sibilando com os hórridos silvos insulares / dos cerúleos Britanos, que te espantam”, os quais devem corresponder à sibilante interdental característica do Inglês.

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191. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

Outros dados se contêm neste Louvor, mas limitar-nos-emos a realçar aquele que nos parece de maior interesse, o dos vv. 16-18:

Sem muitos sons nasais, que desagradam,sem tantos mudos és que a França aumenta,sem tantos us sonidos que ensurdecem.

Trata-se da discutida questão do cerramento do e e do o átonos, fenómeno “dos mais importantes, mas também dos mais obscuros do Português”, como escreveu Paul Teyssier na sua História da Língua Portuguesa14. Diversas teorias foram já formu-ladas para tentar datar a ocorrência desta característica alteração. Cingimo-nos à de J. G. Herculano de Carvalho15, que, depois de ter examinado os numerosos gramáticos e ortógrafos dos séculos XVI-XVIII – embora sem esquecer que eles partiam da representação ortográfica para a realidade –, adverte que só os de Fernão de Oliveira (1530) e, no século XVIII, os de D. Luís Caetano de Lima e de Verney podem contribuir para nos esclarecer. A conclusão seria que os grafemas átonos <e> e <o> representavam, nos meados do século XVIII [i] e [u] em sílaba final, ao passo que, em posição pretónica, correspondiam a [e] e [o] fechados e ainda a [ə] e [u] – evolução que diverge da brasileira.

Pela nossa parte, apenas podemos recordar que os dados biográficos de Elpino Duriense apontam para o seu contacto com grande diversidade de pronúncias. Nascido no Porto em 1745, aí passa a sua infância até aos doze anos, idade em que acompanha os pais para o Brasil, onde faz os preparatórios (Latim, Grego, Retórica, Filosofia), até aos dezassete anos; segue então para Coimbra, em cuja Universidade obtém os graus académicos até ascender a lente em Direito Canónico e se mantém, salvo num período de afastamento para o Porto, até que se fixa na corte em 1790, para outras funções; e em Lisboa permanece até ao seu falecimento em 1818. O volume de Poesias onde figura a epístola que nos ocupa, o terceiro, fora publicado no ano anterior, completando assim a série de três, iniciada em 1812. Por outro lado, nenhum poema seu traz data, embora se possa notar que alguns são localizáveis no tempo, devido aos acontecimentos que os motivaram16, e que, por outro lado, já no primeiro tomo as epístolas às Musas pressupunham uma idade avançada17.

14 Citamos pela versão portuguesa de Celso Cunha (Lisboa, Sá da Costa Editora, 1982), p. 56. Na nota 41 (pp. 105-106) encontra-se a bibliografia fundamental deste assunto.

15 “Nota sobre o vocalismo antigo português: valor dos grafemas e e o em sílabas átonas”, Revista Portuguesa de Filologia 12 (1962) 12-73 = Estudos Linguísticos (Coimbra, Atlântida Editora, 1969), vol. II, pp. 75-103. Agradecemos também à Doutora Maria José de Moura Santos alguns esclarecimentos sobre esta matéria.

16 Como o poema “A D. Francisco Rafael de Castro nomeado Reformador Reitor da Universidade (Poesias I, pp. 3-7), que o reporta a 1786.

17 “O Autor às suas Musas” (Poesias I, pp. 247-249, 265, 269).

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20 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Uma vez que nenhum destes dados se pode considerar decisivo (compare-se com o caso de Verney, que, nascido em Lisboa de pais franceses e habitando em Roma desde os vinte e seis anos, durante a maior parte da sua vida, não perdeu a capacidade de observar que os nacionais “pronunciam mal muitas letras no meio, mas principalmente no fim das dicções”, nem de distinguir pronúncias dialec-tais e de colocar a norma ortoépica na pronúncia da Estremadura)18; voltando ao testemunho da epístola de Elpino Duriense, apenas poderemos, por conseguinte, observar que ele torna possível supor que a redução de e e o pretónicas tenha ocorrido só nos começos do século XIX.

É ocasião de perguntarmos qual o sentir dos poetas portugueses da contem-poraneidade perante a sua própria língua. Propomos quatro exemplos para aná-lise: Fernando Pessoa, Alberto de Lacerda, Jorge de Sena e Rui Knopfli, todos eles marcados pelo factor comum do bilinguismo, ou porque fossem educados num país de língua e tradição cultural anglo-saxónica (caso do primeiro e, em parte, do último19) ou porque nele se estabeleceram por um longo período da sua vida (caso dos três outros). Veremos que a língua materna se vai agora tornar sobretudo num factor de identidade espiritual, cultural, e não político nem social.

É assim que o semi-heterónimo Bernardo Soares – aquele que proclamava ter como livros de cabeceira a Retórica do P.e Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa de Cândido Lusitano – é assim, dizíamos, que ele afirmava, em frase muitas vezes repetida, que citamos sem a retirar do contexto:

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, um sentido, um alto sentido patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, nem quem não sabe sintaxe, nem quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bate, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja inde-pendentemente de quem o cuspisse.

O Livro do Desassossego, a que pertence o paradoxal fragmento, só veio a ser publicado em 1982, por Jacinto do Prado Coelho20, mas o texto em causa é um dos

18 Respectivamente, pp. 105-106, 71-72, 45, da edição de António Salgado Júnior na Colecção Clássicos Sá da Costa (Lisboa, vol. I, 1949).

19 É o próprio poeta que, em “Explicação Necessária”, que serve de prefácio a Memória Consentida (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982), p. 391, se refere a “um período em que fui vaga-mente estudante em Johannesburg”.

20 Lisboa, Ática, 2 vols. O fragmento encontra-se no vol. I, p. 17.

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211. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

raros que já haviam sido impressos, neste caso específico numa revista saída em 193121. Assim se compreende que muito antes daquela data a frase central tenha emigrado para outros poetas, como em breve veremos.

Antes disso, porém, vale a pena atentarmos nalgumas afirmações, estas con-tidas no livro do ortónimo, publicado por Luísa Medeiros sob o título genérico de A Língua Portuguesa22. É na segunda parte, intitulada “Defesa e Ilustração da Língua Portuguesa”, que se encontra esta curiosa história23:

Um amigo meu, inglês, perguntou-me uma vez porque não traduzia eu para inglês certo livro português. Pensei, na minha inocência, que, tendo vivido muitos anos em Portugal, e falando português fluentemente, ele o tivesse lido e pensado que esse livro interessasse aos leitores ingleses. Para surpresa minha (hoje já não a teria) ele respondeu que achava que o livro devia ser interessante e que gostaria de o ler. Contudo, ele podia lê-lo tão facilmente quanto lê um jornal português, pois o livro não está escrito em português antigo e não contém dialectos (nem podia conter, porque em Portugal não existem dialectos). Porquê tudo isto? Porque Portugal é o seu escritório, não é a sua pátria, embora aí viva, e tão depressa pensaria ler um livro português por prazer, como mergulhar, por deleite, na leitura do livro da razão.

Na mesma linha de pensamento, dirá, mais adiante24:

O conflito dos idiomas estabelece-se, hoje, quanto à universalidade possível, somente entre duas línguas – o inglês e o francês. Nenhuma outra pode aspirar a uma primazia de segunda língua nos bilingues. As vantagens estão todas do lado da Inglaterra...

Estes textos não estão datados, mas a sua incidência em torno da Reforma Ortográfica de 1911 e do Acordo Ortográfico de 1931 permite atribuir-lhes um terminus post quem.

O célebre dito de Bernardo Soares vai ecoar em dois poetas da segunda metade do século: Jorge de Sena (“Em Creta com o Minotauro”) e o moçambicano Rui Knopfli (“Pátria”).

21 Descobrimento. Revista de Cultura 3 (1931), 409-410.22 Lisboa, Assírio e Alvim, 1997.23 A Língua Portuguesa, p. 109 (texto bilingue, de que citamos a versão portuguesa).24 Ibidem, p. 145. Mais adiante, p. 151, em texto também bilingue, pode ler-se: “Para o que quere-

mos aprender leremos inglês; para o que queremos sentir, português. Para o que queremos ensinar, falaremos inglês; português para o que queremos dizer”.

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22 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

“Em Creta com o Minotauro” é precisamente um dos poemas mais difundidos de Jorge de Sena e, em especial, o começo da primeira estrofe25:

Nascido em Portugal, de pais portugueses,e pai de brasileiros no Brasil,serei talvez norte-americano quando lá estiver.Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,se usam e se deitam fora, com todo o respeitonecessário à roupa que se veste e que prestou serviço:eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátriade que escrevo é a língua em que por acaso de geraçõesnasci.

Em A Poesia de Jorge de Sena: Testemunho, Metamorfose, Peregrinação26, Jorge Fazenda Lourenço, depois de precisar que só os três primeiros versos são autobiográfi-cos, observa, com extrema agudeza: “Com efeito, o que é notável no movimento semântico deste poema é a subtil transição do plano autobiográfico para o plano simbólico, passagem esta simbolizada pelo despojamento representado nos versos 4-6”. Reconhecendo a evidência do modelo pessoano, o ensaísta prossegue identi-ficando “esta pátria do v. 9 com a pátria da poesia”, “ou, num sentido mais amplo”, a literatura portuguesa, hipótese que apoia num passo de uma carta a Mécia de Sena de 13-15 de Setembro de 1971: “Portugal definitivamente não me interessa (a minha pátria é a literatura portuguesa)”. Apenas poderemos objectar que, cinco anos depois, em poema ironicamente intitulado “Noções de Linguística”27, o autor parece exprimir uma certa decepção, quando, partindo de uma cena doméstica, nega furiosamente a tradicional concepção de perenidade de uma língua:

Ouço os meus filhos a falar inglêsentre eles. Não os mais pequenos sómas os maiores também e conversandocom os mais pequenos. Não nasceram cá,todos cresceram tendo nos ouvidoso português. Mas em inglês conversam,

25 Pertencente a Peregrinatio ad Loca Infecta (Lisboa, 1969) figura actualmente em Poesia – III (Lis-boa, Edições 70, 1989), pp. 74-75.

26 Paris, Centro Cultural Calouste Gulbenkian, 1998. As citações que se seguem provêm de pp. 112-113. Para outra interpretação, vd. Helder Macedo, “De amor e de poesia e de ter pátria” in Gilda Santos (org.), Jorge de Sena em Rotas Estrangeiradas (Lisboa, Edições Cosmos, 1999), pp. 136-137.

27 Proveniente de Exorcismos e também incluído em Poesia – III, p. 145.

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231. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

não apenas serão americanos: dissolveram-se,dissolveram-se num país que não é deles.Venham falar-me dos mistérios da poesia,das tradições de uma linguagem, de uma raça,daquilo que se não diz com menos que a experiênciade um povo e de uma língua. Bestas!

Também Hélder Macedo aproxima estes dois poemas28, concluindo, em relação a este último, que, embora seja também “um poema de diáspora (…) adquire uma mais ampla significação nacional que aliás é tanto mais alarmante quanto resulta da experiência individual de quem sabia que não há outra pátria além da língua em que por acaso de gerações nascemos”.

A célebre afirmação de Fernando Pessoa-Bernardo Soares, vai reaparecer nou-tro grande contemporâneo, desta vez, Rui Knopfli, discípulo confessado, aliás, do poeta dos heterónimos, que de si mesmo diz29:

Sigo da margemo rio dos teus versosAlguma vez todos os poetasse encontram contigo.

Tal presença avista-se no que é talvez o mais impressionante livro do autor, O Escriba Acocorado, aquele em que avulta a iminência de uma catástrofe dilacerante e de uma dolorosa opção existencial nos anos, cruciais para o seu país, de 1971 a 1977, sobre um fundo cultural que parte da Ilíada, conforme já procurámos evi-denciar noutro lugar30 e como, aliás, o próprio poeta revela nas “Notas ao texto” com que termina o volume31. É aí, efectivamente, que ele adverte, a propósito do verso final do poema “Pátria”32

……………………………………… legadode palavras, pátria, é só a língua em que me digo

28 No ensaio citado na nota 26, pp. 138-139.29 “Pessoa Revisited”, Memória Consentida (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982), p. 90.30 Portugal e a Herança Clássica e Outros Textos (Porto, Edições Asa, 2003), pp. 171-180. Também Luís

de Sousa Rebelo chama a atenção para estas intertextualidades, no prefácio a Memória Consentida, pp. 17-21.

31 Memória Consentida, p. 387.32 Memória Consentida, p. 364.

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24 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

de que “é menos, embora também, uma alusão ao conhecido aforismo de Pessoa do que ao Sena, tomando o seu café com o Minotauro em Creta”33.

É ocasião de lembrar como a interiorização do significado vivencial do uso de uma língua com um passado afeiçoado por séculos regressa nestes poetas num contexto bem diferente do do soneto de António Ferreira que mencionámos no princípio destas considerações.

Outro poeta moçambicano que, como este, optou por viver em Inglaterra, Alberto de Lacerda, parece divergir dele, quando, no poema “Londres reencon-trada – 1963”, transfere para esse país o seu sentimento de pertença, e o faz, de mais a mais, em termos camonianos, ao terminar34:

Esta terraparaíso da humana dignidadeé a ditosa pátria minha amadaenquanto a outradisser à luz ao amor à liberdadeque não

Dependente de um contexto político bem concreto, necessário se torna reco-nhecer que ele não se enquadra no âmbito que nos propusemos delimitar. Esse lugar pertence a uma outra composição sua com o título “A Língua Portuguesa”, em que reaparecem, com belas metáforas vindas de todos os quadrantes, oxímoros resplandecentes e um ritmo trepidante, quase todos os topoi que temos encontrado até agora35. Permitam-me que a recorde na íntegra:

Esta língua que eu amocom seu bárbaro lanhoseu melseu helénico sale azeitonaesta limpidezque se nimbade surdaquanta vezesta maravilha

33 Memória Consentida, p. 387.34 Oferenda I (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984), p. 413.35 Oferenda I, pp. 316-317. O poema faz parte de Exílio, mas, contrariamente ao que sucede com

a maioria dos que pertencem a essa colectânea, não está datado. É, no entanto, provável que, como outros, tenha sido composto entre 1961 e 1962.

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251. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

assassinadíssimapor quase todos que a falameste requebroesta ânforacantanteesta máscula espadagraciosíssimacapaz de brandir os caminhos todosde todos os asesde todas as dançasesta vozesta línguasoberbacapaz de todas as corestodos os riscosde expressão(e ganha sempre a partida)esta língua portuguesacapaz de tudocomo uma mulher realmenteapaixonadaesta línguaé minha Índia constanteminha núpcia ininterruptameu amor para sempreminha libertinagemminha eternavirgindade

Encerramos assim esta avaliação de quatro séculos a poetas portugueses de formação e sensibilidades bem diferenciadas. Não foi uma análise exaustiva36. Esperamos, no entanto, que tenha sido suficiente para demonstrar como, no circunstancialismo ondulante da História e na vastidão da diáspora por quatro continentes, o valor aglutinante da comunidade de uma expressão verbal rica e variada pode manter-se e perpetuar-se.

36 Podem ver-se mais exemplos (que incluem também escritores brasileiros) na antologia orga-nizada por Agostinho de Campos, Paladinos da Linguagem (Lisboa, Bertrand, 1920-1926), 3 volumes.

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(Página deixada propositadamente em branco)

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2. BREVE HISTÓRIA DA ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA*

Somente no século XVI se publicaram os primeiros livros de gramática e de ortografia da língua portuguesa, nos quais se procuraram definir regras e uni-formizar a escrita. E assim surgiram, respetivamente, os tratados de Fernão de Oliveira (1536) e de João de Barros (1540); e os de Pêro de Magalhães de Gândavo (1574) e de Duarte Nunes de Leão (1576). Os dois primeiros discutem já questões fundamentais, como a noção de que a quantidade vocálica, própria do Latim, foi substituída pela da qualidade, o que teve como consequência a necessidade de representar os respetivos graus de abertura. Outras novidades foram a abolição do k (embora com a manutenção do j) e a distinção entre i e u semivogais e consoantes.

Para além da referida necessidade de distinguir as vogais a, e e o com grafemas a que chamavam «grande» e «pequeno», uma proposta surge pela primeira vez em João de Barros, que, embora com outra designação, será retomada até ao presente: a de abolir as «consoantes oçiosas», porquanto, escreve ele, «a primeira e prin-cipal regra da nossa ortografia e escrever todalas dições com tantas leteras com quantas a[s] pronũçiamos, sem põer consoantes oçiosas, como vemos na escritura italiana e françesa».1 Note-se que apenas o último capítulo da sua Grammatica da Língua Portuguesa é dedicado à ortografia.

Também vale a pena salientar que Duarte Nunes Leão, que diverge em muito dos seus antecessores, defende a manutenção do k, «que os latinos trouxeram ao seu alfabeto sem necessidade, porque tem o seu c, que responde a ele». É que, diz mais adiante, «porque não façamos diferença do nosso alfabeto ao latino, a dei-xamos na posse e lugar que tinha, e para que os nossos a não estranhem, quando vierem a aprender as letras latinas». Ora, no Acordo Ortográfico de 1990, não só

* Introdução histórica e lexicológica ao Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa. Lisboa, Academia das Ciências (1992), XXI-XXVI.

1 Também vale a pena lembrar a atualidade da frase com que Fernão de Oliveira termina o capí-tulo XI da sua Gramática: «Sigamos uma certa regra de escrever, e a mais fácil.»

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ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS28

estas letras, como w e y, tomaram lugar no alfabeto por uma razão semelhante: a necessidade de saber localizá-las no dicionário em antropónimos, topónimos, siglas e unidades de medida de curso internacional, necessidade essa que, aliás, se estende ao aprendizado de outras línguas modernas.

Seguem-se, no século XVII, Álvaro Ferreira de Vera (1631), Bento Pereira (1666) e João Franco Barreto (1671). Este último, que é um grande crítico das regras de Duarte Nunes Leão, ainda «é dos teóricos que, em seu século, mais aproxima a relação grafema-fonema em sua própria escrita» e «vai procedendo à simplificação dos grupos consonantais imperfeitos que os eruditos teimariam em recuperar, as dilações vocálicas, as dissimilações e as assimilações usuais, muitas das quais retornariam à escrita pelas mãos dos humanistas conservadores»2.

No decurso do século XVIII, outros tratados procuram novas soluções, criti-cando frequentemente os dos seus antecessores, como o de D. Luís Caetano de Lima (1736), precedido em dois anos pelo de Madureira Feijó. Este último, apoiado nos vocabulários latino-portugueses de Bento Pereira e de Rafael Bluteau, conhece uma grande divulgação, ao ponto de ser editado pela sexta vez em 1802.

É, porém, nos meados do século XVIII (1745) que se publica o Verdadeiro Método de Estudar, de Luís António Verney. Na parte relativa à ortografia, tem a vantagem de proclamar a necessidade de simplificação do método de escrita mas, por outro lado, propõe, como observou Martins Araújo, «uma desastrada regra generali-zadora de ligação dos vocábulos clíticos e vocábulos principais, tão inexequível que ele próprio se deu conta disso, e ao fim daquela, a invalida». Ainda no mesmo século, outras tentativas se sucedem, como a de Frei Luís do Monte Carmelo (1767), que procuram, sem grande êxito, a simplificação da ortografia. As que atravessam o século XIX estão consignadas sobretudo no importante estudo, de Ivo de Castro e Isabel Leiria, «As reformas ortográficas: do romantismo à actuali- dade»3.

É a partir do último quartel desse século que se acentua cada vez mais a ten-dência para regularizar e simplificar a escrita. Herculano de Carvalho, de quem tomamos as citações que se seguem, enumera os precedentes que irão conduzir à mais notável das reformas, a de 1911: a elaboração das bases de uma ortografia «em sentido sónico», por uma comissão de que José Barbosa é, a partir de 1985, o impulsionador e relator. O projeto é apresentado três anos depois à Academia

2  As citações são de A. Martins de Araújo, «Breve notícia da ortografia portuguesa», in Miscelâ-nea de Estudos Lingüísticos, Filológicos e Literários. ln Memoriam Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, 1995, pp. 431-448. Sobre todas estas questões, veja-se também o artigo de J. G. Herculano de Carvalho na Enciclopédia Verbo, s.v. «Ortografia», e ainda as introduções de Maria Leonor Carvalhão Buescu às suas edições de Fernão de Oliveira (1975), João de Barros (1971) e Duarte Nunes de Leão (1983).

3 ln Ivo de Castro, Inês Duarte e Isabel Letria, org., A Demanda Ortográfica Portuguesa. Edições João Sá da Costa, 1987, pp. 204-218.

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292. BREVE HISTÓRIA DA ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA

das Ciências «que lhe não deu seguimento»; depois, novas bases são traçadas por Gonçalves Viana, em colaboração com G. de Vasconcelos Abreu, «que procuram conciliar os princípios da simplificação e da unificação com respeito pelos hábitos tradicionais cientificamente fundamentados na história da linguística». Porém, só 15 anos depois têm acesso à Academia, onde são recebidas com «desinteresse quase geral».

Até que, em 1911, o ministro do Interior, António José de Almeida, decide nomear uma comissão encarregada de estudar a reforma proposta, para a qual designa o próprio Gonçalves Viana e outros notáveis especialistas, entre os quais Adolfo Coelho, Carolina Michaëlis, Leite de Vasconcelos, Cândido de Figueiredo. Em 1 de setembro desse mesmo ano, um decreto do governo da I República ofi-cializa aquela que ficou justamente conhecida por a reforma de Gonçalves Viana. A esse mesmo filólogo se devem o Vocabulário ortográfico e ortoépico da língua por-tuguesa (1909), seguido do Vocabulário ortográfico e remissivo da língua portuguesa (1912), com umas 90 000 palavras, número que em edições posteriores foi suces-sivamente sendo aumentado. Quanto ao período de adaptação, foi de apenas três anos.

Embora tenha encontrado alguma resistência, ela dissolveu-se no clima de entusiasmo criado pelo advento do nosso regime. O grande erro consistiu, porém, conforme já tem sido afirmado, em não se ter efetuado um acordo com o Brasil, precisamente o país que já então estipulava, no artigo 3.º da sua Cons-tituição, que «a Língua Portuguesa é idioma oficial da República Federativa do Brasil».

No entanto, desse lado do Atlântico, já em 1907 Medeiros e Albuquerque apre-sentava à Academia Brasileira de Letras uma proposta de reforma ortográfica que, aliás, conheceu forte oposição. Sem que nada ficasse consolidado, foi preciso aguardar até 1931 para as duas Academias, a lusitana e a brasileira, efetuarem um primeiro acordo, porém só ratificado em 1933, e mesmo assim sem consequências práticas.

Em 1943, os dois países assinaram uma convenção ortográfica que não pro-duziu, no entanto, o efeito desejado. O mesmo sucedeu quando, dois anos depois, se efetuou um novo encontro, também em Lisboa, entre as Academias dos dois países, em que tiveram papel fundamental, do lado português, Rebelo Gonçalves e, do brasileiro, Sá Nunes. Outras tentativas, de um e de outro lado, foram sendo feitas. Mas as pequenas alterações propostas em 1973 não foram aprovadas pelo Brasil e as tentativas de entendimento em 1975 tiveram contra si a turbulência política no nosso país.

Façamos aqui parênteses para lembrar a declaração conjunta de 14 professores brasileiros e portugueses, entre os quais se contavam muitos dos maiores filólo-gos de então, elaborada por ocasião do I Simpósio Luso-Brasileiro sobre Língua Portuguesa Contemporânea, realizado na Universidade de Coimbra, em 1967. Aí

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ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS30

se lê, no respetivo «Preâmbulo», a seguinte declaração, que em nada perdeu atua- lidade:

Os inconvenientes que resultam da diversidade ortográfica entre o Brasil e Portugal são demasiado evidentes para que seja necessário mencioná-los ou sequer acentuá-los de novo. Pode e deve pois considerar-se indispen-sável e urgente que se chegue a um verdadeiro e eficaz acordo sobre tal matéria, ainda que para isso haja que sacrificar preconceitos e hábitos há muito adquiridos, os quais poderão causar uma inicial e compreensível estranheza perante uma ou outra das medidas a adoptar. Além da extrema conveniência de ordem prática, deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e representação meramente con-vencional desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se renuncia a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma ortografia dita etimológica, a qual, além disso, para o ser efectiva e coerentemente, exigiria o regresso puro e simples a outros hábitos há muito abandonados.

Voltando à sequência cronológica dos acontecimentos, saliente-se que só em 1986 se reuniram pela primeira vez no Rio de Janeiro, não só delegação da Aca-demia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa, como também representantes dos cinco países africanos lusófonos que entretanto se haviam tornado independentes. A mesma composição se verificou quando, em 1990, se realizou nova reunião em Lisboa, na qual se efetuaram diversas alterações ao texto anterior. Esse documento foi ratificado pela Assembleia da República, em 4 de junho de 1991, e promulgado pelo Presidente da República Mário Soares através do Decreto n.º 43/91, de 23 de agosto.

Da oposição manifestada, por vezes em termos ofensivos, sobretudo por parte de não especialistas, bem como do apoio expresso por alguns grandes filólogos, não cumpre falar aqui. Deve, sim, acentuar-se a importância cada vez maior da uniformização ortográfica, mesmo sob o ponto de vista internacional, à medida que o acesso aos grandes organismos, como a ONU, requer o uso do mesmo sistema de escrita para uma só língua.

Entretanto, em 17 de julho de 1998, o Protocolo Modificativo ao Acordo Orto-gráfico da Língua Portuguesa determinou que ele entrará em vigor «após depo-sitados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do governo da República Portuguesa». Essa disposição será alterada por ocasião da V Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada em São Tomé, onde é assinado o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, o qual determina que «[o] Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor com o terceiro

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312. BREVE HISTÓRIA DA ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA

depósito do instrumento de ratificação junto da República Portuguesa», e ainda que «o presente Acordo estará aberto à adesão da República Democrática de Timor--Leste». Por último, pelo Decreto n.º 6583, de 29 de setembro de 2008, o Presidente da República Federativa do Brasil promulga, no seu país, o Acordo Ortográfico de 1990, de modo a produzir efeitos a partir de 1 de janeiro de 2009, com um período de transição de três anos.

No dia 14 de abril seguinte, realizou-se na Academia das Ciências de Lisboa uma sessão solene para entrega, por parte do presidente da Comissão de Lexicografia da Academia Brasileira de Letras, Eduardo Portela, e do relator, Evanildo Bechara, do novo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que acabavam de editar.

Ao publicar esta versão atualizada do Vocabulário Ortográfico Resumido da Língua Portuguesa, a Academia das Ciências de Lisboa dá cumprimento à parte que lhe cabe nesta missão unificadora, tanto quanto possível – apenas 1,5 % do vocabulá-rio usual no nosso país e 0,5 % no brasileiro é afetado –, do uso da escrita comum a um número total de falantes dos oito países lusófonos que é, como se sabe, de cerca de duzentos milhões.

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3. PARA QUÊ UM ACORDO ORTOGRÁFICO?*1

O uso da escrita é, como todos sabem, um facto suficientemente importante para marcar a linha de divisão entre pré-história e história, e continua a sê-lo, mesmo em tempos, como o nosso, em que os grandes meios de comunicação social tendem a privilegiar de novo a oralidade. A escrita pode ter mesmo um poder unificador, como é o caso dos caracteres chineses, em que as diversas línguas de um imenso e superpovoado país decifram um sentido comum.

Bem diferentemente dessa, a escrita alfabética, em uso na cultura ociden-tal desde que os Gregos adaptaram para uso próprio os caracteres fenícios (o que terá ocorrido provavelmente nos meados do século VIII a.C.), procura reproduzir fonemas, segundo um sistema de convenções que tende para – mas nunca o consegue inteiramente – registar a pronúncia exacta de cada um. Quer isto dizer que ortografia no sentido rigorosamente etimológico do termo não existe. Existe, sim, no sentido de um conjunto de regras adaptadas para permitir apenas uma pequena margem de erro na leitura correcta de um texto numa determinada língua (dos chamados alfabetos fonéticos, que ser-viriam para grafar qualquer idioma, nenhum é perfeito, como geralmente se reconhece).

Esse conjunto de regras está, por vezes, muito próximo de satisfazer o desiderato para que foi elaborado. É o caso de alguma das línguas românicas, designadamente o italiano, o espanhol e o português. Não é, por exemplo, o do francês, onde uma reforma ortográfica que tentasse aproximar a grafia da realidade fonética teria de ser tão radical que resultaria no aniquilamento de milhões de volumes. Cer-tamente por este motivo, essa necessidade preconiza-se há dezenas de anos, mas continua a ser adiada.

*1 Publicado em Diário de Notícias. Lisboa (16 de Abril de 1989), 21.

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34 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

O exemplo dos outros

De resto, a grande preocupação da França do após-guerra, no domínio da lín-gua, tem sido reforçar, ante a crescente expansão da anglofonia, a sua presença no mundo, e, de qualquer modo, apertar, por essa via, os elos de ligação com os países que também têm o francês como idioma oficial. É significativo que a entrada na língua do composto francophone venha datada nos dicionários de 1949 e que francophonie, tema de encontros celebrados nos últimos anos, seja ainda mais recente. Pela manutenção da unidade desse imenso domínio vela uma política cultural inegavelmente esclarecida e a existência de magníficos instrumentos de trabalho, em que a Academia Francesa tem papel preponderante.

Na área, não menos considerável, da hispanidad, um entendimento já antigo entre as Academias de vários países latino-americanos e a de Madrid tem permi-tido preservar a unidade da grafia nas tão extensas e diversificadas regiões onde se pode ouvir «clara a língua de Castela».

Diferente tem sido o procedimento nos países que têm por língua oficial o português, não obstante o consabido facto de um deles contar entre os maiores do mundo e de a totalidade dos falantes desse conjunto se encaminhar para os duzentos milhões. Não obstante também a gloriosa realidade de muitos dos melhores cultores, quer em prosa quer em verso, da «última flor do Lácio, inculta e bela», serem naturais de além-Atlântico, e de outro tanto se passar com alguns dos seus mais notáveis estudiosos (lembrem-se apenas, e para só falar dos mais antigos, Said Ali nos domínios da sintaxe e Morais nos da lexicografia). Mas foi preciso esperar até 1984 para que, da colaboração de dois eminentes linguistas, um de Portugal, Lindley Cintra, e outro do Brasil, Celso Cunha, saísse a Nova Gramática do Português Contemporâneo, que dá idênticos foros de cidadania às duas grandes variantes, a europeia e a americana, visando «mostrar a superior unidade da língua portuguesa dentro da sua natural diversidade».

Vem a recordação destes factos a propósito do desleixo com que a questão da unidade ortográfica entre os dois países foi tratada durante longo tempo. A primeira grande falta cometeu-se ao adoptar em Portugal a arrojada reforma de 1911, sem a colaboração do Brasil. Levou vinte anos a que a Academia Brasileira de Letras procurasse, em conjunto com a Academia das Ciências de Lisboa – ins-tituição à qual compete, por força de lei, ser consultora do Governo português em tais matérias – estabelecer o primeiro acordo ortográfico, o de 1931. A iniciativa não levou, porém, à desejada unificação, e outro tanto viria a suceder, por razões várias, em 1943, em 1945, nas tentativas unilaterais de 1971 e 1973, no projecto comum preparado, mas não aprovado, em 1975, e, finalmente, no de 1986, em que, pela primeira vez, se sentaram também à mesa das conversações representantes dos novos países africanos lusófonos. Era, portanto, um acto de política da língua de transcendente significado.

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3. PARA QUÊ UM ACORDO ORTOGRÁFICO? 35

Soluções mais moderadas

Quem tomou parte nessa reunião, efectuada no Rio de Janeiro, dificilmente poderá esquecer o espírito de fraternal entendimento em que decorreram os debates entre os delegados dos vários países, sempre serenos e objectivos, sem servilismo nem sobranceria. Com o texto saído desse acordo, conseguia-se, como depois veio a demonstrar uma série de estudos executados pela Academia das Ciências de Lisboa, uma unificação ortográfica de cerca de 99,5 por cento do vocabulário geral da língua. Tais resultados, altamente desejáveis, decorriam, em parte, de profundas alterações no sistema de acentuação gráfica, que ficava, aliás, muito simplificado. No nosso país, esta e outras inovações do projecto, se tiveram bom acolhimento junto de linguistas eminentes, como Herculano de Carvalho e Óscar Lopes, suscitaram, no entanto, uma viva reacção, que acabou por extravasar largamente do campo científico.

Uma vez que os sete países lusófonos se tinham comprometido a não efectuar alterações ortográficas sem se consultarem mutuamente, houve que retomar o processo, procurando soluções mais moderadas, na certeza de que era preciso aproveitar uma oportunidade histórica única, de fixar quanto possível uma só grafia para a língua portuguesa. Efectivamente, dada a interacção constante entre a expressão oral e a escrita, a fixação desta contribui para a regularização daquela (e não esqueçamos que, nos países africanos, o Português é, para muitas populações, não língua materna, mas língua segunda).

Por isso, a Academia das Ciências de Lisboa acaba de apresentar uma nova versão, a que chamou «Anteprojecto de Bases da Ortografia Unificada da Lín-gua Portuguesa». Esta versão não leva a unificação tão longe como a de 1986 – fica-se pelos 98 por cento do vocabulário geral da língua – mas será, ainda assim, susceptível de manter a desejada coesão na prática escrita dos seus falantes. Assegura-se, desse modo, a manutenção de uma vasta área geográ-fica e demográfica, que deverá ser consolidada pela elaboração de dicionários que registem as variantes de pronúncia (como há muito é prática corrente de ingleses e americanos – que, aliás, também têm entre si pequenas divergên-cias na grafia), pela permuta de publicações, pela intensificação das relações culturais.

As línguas, como organismos vivos que são, tendem naturalmente para a diver-sificação. Mas poderosos factores se opõem, nos nossos dias, a essa tendência: a facilidade e rapidez das deslocações, a difusão dos grandes meios de comunicação social.

Muitos séculos de convivência em regiões que hoje são países independentes de pleno direito determinaram a formação de verdadeiros blocos linguísticos, dispersos pelos quatro cantos do globo, mas ligados por um indesmentível vínculo espiritual. Dessa circunstância, aliada a muitas outras que seria ocioso expor,

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tiraram partido os países anglófonos de todos os continentes. Falámos já do caso francês, do caso espanhol. O futuro da lusofonia deverá seguir as mesmas linhas. Esse desiderato passa por muitos caminhos. Um deles, por modesto e insignificante que pareça a observadores desprevenidos, é a uniformização de normas de escrita.

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4. ACORDO ORTOGRÁFICO: UMA QUESTÃO PREMENTE*1

A maior e mais ousada reforma da ortografia portuguesa foi, como todos sabem, a de 1911, feita por Gonçalves Viana e um grupo de outros grandes especialistas, nomeado pelo então ministro do Interior, António José de Almeida, essa figura a quem a Educação em Portugal tanto deve, e precisamente aquele que, numa visita de Estado ao Brasil, já como Presidente da República, pronunciou a famosa frase: «Venho ao Brasil para lhe agradecer ter-se tornado independente».

Voltando à reforma de Gonçalves Viana, forçoso é lembrar que a resistência a tamanha inovação foi grande, mas o ambiente de entusiasmo e de expectativa criado pelo advento da I República superou todas as oposições. Um defeito, con-tudo, lhe tem sido apontado com toda a razão: é que a reforma não foi acordada com o Brasil, o país cuja Constituição declara, no seu artigo 3.º, que «a Língua Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil».

Por outro lado, muitos anos mais tarde, em 1943, o Acordo Ortográfico pro-posto pela Academia das Ciências de Lisboa (que é, como se sabe, a consultora do Governo em matéria de Língua Portuguesa) e ainda em uso entre nós, salvo pequenas alterações entradas em vigor em 1973, acabou por não ser aprovado por aquele que já há muito era considerado o país-irmão.

Em contrapartida, quando em 1967 se realizou na Universidade de Coimbra o I Simpósio Luso-Brasileiro sobre a Língua Portuguesa Contemporânea, elaborou--se uma «proposta para a unificação da ortografia portuguesa», que foi subscrita por 14 professores brasileiros e portugueses, entre os quais muitos dos maiores filólogos de então, quer de um quer do outro lado do Atlântico. Vale a pena transcrever, pela sua permanente actualidade, o parágrafo inicial do respectivo preâmbulo:

*1 Publicado em Jornal de Letras 30.1 (2008), 20.

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Os inconvenientes que resultam da diversidade ortográfica entre o Brasil e Portugal são demasiado evidentes para que seja necessário mencioná-los ou sequer acentuá-los de novo. Pode e deve pois considerar-se indispen-sável e urgente que se chegue a um verdadeiro e eficaz acordo sobre tal matéria, ainda que para isso haja que sacrificar preconceitos e hábitos há muito adquiridos, os quais poderão causar uma inicial e compreensível estranheza perante uma ou outra das medidas a adoptar. Além da extrema conveniência de ordem prática deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e representação sempre mera-mente convencional desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se renuncie a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma grafia dita etimológica, a qual, além disso, para o ser efectiva e coerentemente, exigiria o regresso puro e simples a outros hábitos há muito abandonados.

Considerava-se pois, há quase exactamente 40 anos, que o acordo entre os dois países era «indispensável e urgente» e que a sua aplicação poderia causar «uma inicial e compreensível estranheza».

Quanto ao primeiro ponto, é de justiça reconhecer que se foram fazendo ten-tativas para o remediar, como a de 1975, que a turbulência política que então se vivia não deixou levar a bom termo. No entanto, é em 1986 que pela primeira vez se reúnem no Rio de Janeiro, com o propósito de elaborar em comum um acordo ortográfico, delegações da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa e, também pela primeira vez, representantes dos cinco países africanos lusófonos, que haviam alcançado a independência. Em 1990 efectua-se nova reunião, desta vez em Lisboa, e com idêntica composição quanto aos países representados. Após alguns dias de trabalho que levaram a diversas alterações, formula-se o texto do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que a Assembleia da República ratificou em sessão de 4 de Junho de 1991.

Em relação ao segundo ponto, no qual se prevê, em termos objectivos e cor-teses, «uma inicial e compreensível estranheza», não é necessário lembrar que a reacção provocada em grande parte do público lusitano foi de feroz oposição, por vezes manifestada em termos ofensivos. Basta consultar o excelente e objectivo livro de Ivo de Castro, Inês Duarte e Isabel Leiria, org., A Demanda da Ortografia Portuguesa (Lisboa 1987), que recolhe grande número de declarações expressas por diversas pessoas e entidades, para se fazer uma ideia das atitudes assumidas, sobretudo por não-especialistas.

Note-se, por outro lado, que essa mesma obra consagra uma secção à parte à posição assumida por grande número de docentes do Departamento de Linguística da Faculdade de Letras de Lisboa, em atitude crítica construtiva e serena, que pro-põe uma renegociação do acordo de 1986 (como efectivamente veio a acontecer).

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394. ACORDO ORTOGRÁFICO: UMA QUESTÃO PREMENTE

Sublinhe-se ainda que, nesse mesmo volume, figuram também pareceres favoráveis subscritos por grandes especialistas, como Rui Vieira de Castro e Óscar Lopes. E lembra-se que um dos mais notáveis linguistas que até hoje tivemos, José Gonçalo Herculano de Carvalho, embora discordasse de alguns pontos, elogiou o trabalho no seu conjunto e até publicou um artigo na nova grafia, para demonstrar a faci-lidade da sua aplicação prática.

Em resumo, se uns se manifestaram com conhecimento de causa e isenção, muitos mais foram os que se excederam, falando de imperialismo e de cedência. Chegou a existir um «Movimento contra o Acordo Ortográfico» e, a nível oficial, mas sem apresentar propostas, a CNALP.

Entretanto, a questão da uniformização ortográfica foi-se tornando mais pre-mente, mesmo sobre o ponto de vista internacional, à medida em que o acesso aos grandes organismos, como a ONU, requeria o uso de um mesmo sistema de escrita para uma só língua. Da importância e urgência de uma solução se tem ocupado nos últimos tempos a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que, após a entrada de Timor Leste, reúne os oito Estados de língua oficial portuguesa. Surgiram já dois protocolos modificativos, o segundo dos quais de 2004, que prevê que a entrada em vigor do Acordo exija apenas que três desses países o ratifiquem, o que já sucedeu por parte do Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

Observe-se que, se pusermos os olhos noutros países de língua românica facilmente encontramos provas da importância política e cultural da existência da comunidade de um idioma. Tomemos como exemplo a entrada na língua fran-cesa dos vocábulos francophonie e francophone que, tendo surgido a primeira vez nos últimos decénios do séc. XIX (1880), se generalizaram a partir de 1960, tendo o primeiro deles ascendido, em 1990, a figurar no nome do Ministère de la Culture et de la Francophonie e passado, em 2002, a designar uma Secretaria de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com o título genérico de Coopération et Francophonie (dados obtidos junto Embaixada de França em Lisboa).

Exemplo vindo de um país que compreendeu a vantagem, e mesmo a neces-sidade, de apertar os laços históricos e culturais que mantinha com os Estados independentes, suas antigas colónias, e de procurar fazer frente, ao mesmo tempo, à vaga crescente da anglofonia. Recorde-se também, de passagem, que esse País dispõe de magníficos instrumentos de trabalho nessa área, graças, sobretudo, à actividade da Academia Francesa, reconhecida consultora do Governo francês em matéria linguística. Situação semelhante é a que se verifica nos vastos domínios da Hispanidad.

Se referimos estes exemplos, aliás bem conhecidos, é porque existe entre nós o arreigado hábito de invocar a todo o propósito «o que se faz lá fora». Tanto quanto sabemos, tal invocação só se fez ainda, a avaliar pelo que lemos e ouvi-mos em debates e não menos pela preciosa recolha de informações contida no já mencionado livro de Ivo de Castro et alii, e ainda no de Edite Estrela, A Questão

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Ortográfica (Lisboa 1993), em relação à suposta disparidade ortográfica em terras anglo-saxónicas (onde as diferenças apenas atingem certos finais, como em labor e labour, devidamente registados nos dicionários).

Ora, apesar das vozes discordantes que de novo se fazem ouvir, a verdade é que, como escreveu há pouco Vital Moreira, no Público, «é altura de Portugal assumir as responsabilidades e obrigações, em relação à língua, sem tergiversações nem duplicidades».

Acrescentaremos, pela nossa parte, que a reforma ortográfica de Gonçalves Viana, muito mais ampla que a actual, deve merecer cada vez mais a nossa admi-ração e que o período legal de adaptação então concedido foi apenas de três anos. A grande falta foi, como já atrás dissemos, a ausência de concertação com o Bra-sil. É altura de reflectir sobre a importância do número de países independentes que agora reconhecem como sua a Língua Portuguesa, totalizando cerca de 200 milhões de falantes, e de concordar que não são as diferenças de pronúncia ou mesmo vocabulares – que entre nós também se verificam – que devem impedir a uniformização da escrita.

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II. LITERATURA PORTUGUESA

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(Página deixada propositadamente em branco)

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1. UMA DESCRIÇÃO POÉTICA DA CIDADE DE LISBOA*

A Lisboa de Quinhentos, com as suas monumentais construções, as suas colinas e vertentes, as suas ruas maiores, cheias da agitação de um comércio intenso, as imensas riquezas amontoadas na Casa da Índia, as suas vinte e duas portas a abrir para o mar e dezasseis para o lado da terra, amuralhada com setenta e sete torres, banhada por um rio que «dá leis e normas através de todas as costas do Oceano, na África e na Ásia», ficou inolvidavelmente retratada na famosa descrição latina de Damião de Góis, dada à estampa em Évora, em 1554, por André de Burgos1.

Esta visão esplendorosa – embora não isenta de crítica social – da grande urbe está em consonância com a apóstrofe do Canto III de Os Lusíadas que todos temos nos ouvidos:

E tu, nobre Lisboa, que no mundo facilmente das outras és princesa, que edificada foste do facundo, por cujo engano foi Dardânia acesa: tu, a quem obedece o mar profundo, obedeceste à força portuguesa,ajudada também da forte armada,que das Boreais partes foi mandada.

* Publicado em Humanitas 35-36 (1988-89), 352-363; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 139-148.

1 Damiani Goes Equitis Lusitani Vrbis Olisiponis Descriptio. Reeditada em 1603 na Hispania Ilustrada, e em 1791, em Coimbra, só veio a ser traduzida para português por Raúl Machado, em 1937 (Lisboa de Quinhentos. Descrição de Lisboa. Texto latino de Damião de Góis. Lisboa, Livraria Avelar Machado). Na citação que fizemos, adoptámos a versão daquele latinista. O elogio de Lisboa aparece noutros humanistas, v.g. André de Resende, Oratio pro Rostris (ed. de Miguel Pinto de Meneses e A. Moreira de Sá [Lisboa, 1956], pp. 54-55).

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Diferente era, porém, o sentir de outros poetas quinhentistas, de pendor moralizante, que se agrupavam em volta de Sá de Miranda. O próprio corifeu do movimento dera o exemplo, como todos sabem, na palavra e na acção, e exprimindo repetidamente a apreensão que lhe causavam as riquezas que invadiam o reino:

Estes mimos indianos hei gram medo a Portugal que venham fazer-lhe os danos que Cápua fez a Aníbal, vencedor de tantos anos.

– escreve na Carta a Sá de Meneses, cerca de 15302. Nos anos seguintes, na Carta a António Pereira, reencarece os perigos «desta canela / que o reino nos despovoa», e acentua gravemente3:

Ao reino cumpre em todo ele ter a quem o seu mal doa, não passar tudo a Lisboa. .........................................Vereis barcos ir a vela uns que vão, outros que vêm como que se desavêm c’ũa viração singela.

Em troca disto, o «bom Sá» recorda a vida de convívio são e amor às letras que tinham na Quinta do Senhor de Basto, e, num entretecido de reminiscências clás-sicas, em que se perfilam o famoso e tantas veres glosado O fortunatos nimium, sua si bona norint / agricolae, das Geórgicas II.457-458, e uma sentença do De Agricultura de Catão (até aqui não identificada pelos comentadores), prossegue4:

Nossos maiores, se alguém louvavam, não de senhor, não de rico era o louvor, chamavam-lhe homem de bem, e ainda bom lavrador.

2 Estrofe 5.3 Estrofes 34 e 36.4 De agricultura, prefácio, 2: Et virum bonum quom laudabant, ita laudabant: bonum agricolam bonum-

que colonum.

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451. UMA DESCRIÇÃO POÉTICA DA CIDADE DE LISBOA

A oposição campo /cidade era um tema caro aos Antigos – particularmente aos grandes poetas do Século de Augusto – que tinha perfeita actualidade no Renascimento. Era, além disso, afim do da aurea mediocritas horaciana. Não admira que esses devotos de Virgílio e de Horácio lhe tenham assimilado os tópicos com renovado fervor.

Nesta linha de pensamento se situam trechos de António Ferreira, em que, reconhecendo embora a beleza e opulência da sua cidade, lamenta a decadência moral que a ameaça, trazida pelo espírito de ganância dominante. Estamos a referir-nos à Carta a Manuel Sampaio, onde, depois de recordar a doçura saudosa de Coimbra, escreve5:

Esta Cidade, em que nasci, fermosa, esta nobre, esta chea, esta Lisboa em Africa, Asia, Europa tão famosa, quão diferente a vejo, do que a vêesprito enganado, que no ar voa!....................................................Aquela grã rua nova conhecida por todo mundo, que outra cousa conta senão da nau ganhada, ou nau perdida? ..............................................................Quanto, Sampaio meu, quanto mais val, meu bom amigo, um ócio, livre, e honesto, que as Indias guerrear de Portugal!India, Guiné, Brasil, e todo resto do mundo, a que nos chama, a que convida em mundo, assi ambicioso, e deshonesto?

A carta prossegue no caminho do elogio da aurea mediocritas. É de Horácio também o modelo que está por trás da Carta a Diogo de Teive, em que se desenha o movimento incessante de uma grande cidade, quase nos precisos termos – mutatis mutandis – em que o Venusino, na celebrada Epístola a Floro, se queixava da Roma de mármore de Augusto, onde não encontrava tempo para escrever e meditar6:

Mas em tão chea, em tão grã Cidade, onde o esprito, e a vista leva a gente, quem pode ser senhor da sua vontade? Mora um lá fora além do grã Vicente,

5 Livro I, Carta X, a Manuel de Sampaio, em Coimbra, versos 28-33, 40-42 e 103-108.6 Epístola II.2. A Carta de António Ferreira é a IV do Livro II, e os versos citados vão de 13 a 24.

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outro cá na Esperança; e hei-de ver ambos, foge inda o dia e muito diligente. Pelas ruas mil cambos, mil recambos, cargas vêm, cargas vão, mil mós, mil traves, ũ arranca, outro foge, e encontro entrãbos. Vai ora então compondo versos graves, versos doces, e brandos, quais mereçam parecer ao meu Teive lá suaves?

Não surpreende, por isso, que o mesmo António Ferreira tenha louvado o «Mestre das Musas, mestre da virtude» pela sua retirada para longe da corte7:

Chamart’ei sempre bem-aventurado, que tanto há, que em bom porto com essas santas Musas te estás em santo ócio apartado. Não esperas, nem temes, nem te espantas, sempre em bom ócio, sempre em sãos cuidados a ti só vives, e a ti só cantas.

E, mais adiante, ecoando certamente os famosos dizeres do auto-retrato de Sá de Miranda na Carta a D. João III, reencarece a nobreza da sua atitude:

Trazes ũa alma sempre num só rosto,nem o ano te muda, nem o dia.

É a mesma situação, precisamente, a que motiva a Ode VII de Pedro de Andrade Caminha, dedicada a Francisco de Sá de Miranda, poema esquecido que hoje queremos aqui lembrar8.

Trata-se de uma composição em doze sextilhas, em rima cruzada e interpo-lada, com uma estrutura perfeitamente simétrica. Com efeito, as cinco primeiras estâncias são o elogio da grande cidade, com todos os tópicos que lhe convêm, e que se vão desdobrando estrofe a estrofe: a fama e poder; grandiosidade dos edifícios; variedade de ofícios, negócios e costumes; o movimento marítimo; a chegada de tributos de longes terras; a afluência de riquezas e produtos exó-ticos – tudo apoiado numa apologia, breve, mas firme, das conquistas portu- guesas.

7 Livro II, Carta IX, a Francisco Sá de Miranda. Os versos citados são 13-18 e 22-23.8  A única – e breve – alusão que a ela encontrámos é a de Luís Forjaz Trigueiros, no artigo «Lis-

boa», do Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho.

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471. UMA DESCRIÇÃO POÉTICA DA CIDADE DE LISBOA

Vale a pena ouvirmos a evocativa e bem cadenciada descrição9:

Louvarão muitos esta gram Cidade,esta nobre Lisboa, raro Francisco, esta que do Ocidente com grande nome em toda parte soa, e soará com grão nome em toda idade, que dá Leis ó Meio dia, e ó Oriente.

Seus espantos verão, suas grandezas,seus nobres edifícios d’obra antiga e moderna, as variedadesos estados, das obras, dos officios, dos negocios, dos tratos, das riquezas, dos costumes, das Leis, e das vontades.

Com alegre louvor verão partidasdaqui armadas nossas, prosperas as verão depois entradas cheas de mil despojos, presas grossas, com bandeiras triumphaes ó Ceo erguidas, com bandeiras d’immigos derribadas.

Tributos verão vir todos os annosd’Indos, Arabes, Persas, e d’outras mil regiões, d’outras mil gentes de varios nomes, e de Leis diversas, conquistadas per nós, nom com enganos, com justas armas, com razões prudentes.

Verão ricos retornos, grossos ganhosde ricas mercancias, qu’esta terra a outras dá, e d’outras acceita. Novidades verão todos os dias em que os sentidos e olhos s’achem estranhos, inda que o appetito nada engeita.

9 Seguimos o texto da edição das Poezias publicada pela Academia das Ciências de Lisboa em 1791.

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A sexta estrofe retoma a palavra-chave com que abrira a Ode – louvarão – para resumir o que foi dito e o transferir para um plano moral que lhe aniquila o valor, prenunciando uma axiologia diversa:

Tudo isto louvarão muitos, e a vidatoda aqui passariam neste inutil cuidado, e gosto vão, só d’estas vaidades penderiam, desprezada de todo e esquecida toda outra mais alta ocupação.

A adversativa e o pronome pessoal que iniciam a sextilha seguinte – mas tu – opõem aos muitos que assim pensam o destinatário da obra, aquele que se retirou da corte e escolheu «o que sempre deve amar-se». Também aqui se está a seguir o esquema clássico, de contrapor o gosto da generalidade àquele que se pretende exaltar. Feita esta transição, as restantes cinco estrofes convertem--se no elogio da vida campestre, dedicada às Musas, em termos que ecoam as apologias da «natureza mãe e amiga» que, em Sá de Miranda, enchem a Carta a Pêro de Carvalho, a Carta a Mem de Sá e, sobretudo, a Carta a António Pereira, e, em António Ferreira, os versos da epístola atrás citada, na qual se aponta como ideal ide vida o otium cum dignitate que descendia de Cícero e que Horácio exaltara. Lembraremos, apenas, as duas estrofes mais significativas, a oitava e a décima:

O santo ocio escolheste, as Musas quietas,muito castas e brandas, co’as divinas historias, co’as humanas temperas o prazer, o nojo abrandas teu ou de teus amigos, nom t’inquietas com nada, vives livre, e nom t’enganas................................................................

Ah, prudente Francisco, desprezastesempre as Cidades vans, cheas de maos enganos, vãos negocios, louvas teu doce Neiva, as agoas sans da tua fonte, as fruitas que plantaste, as aves que ouves, os teus santos ocios.

A composição termina com votos de uma longa vida assim passada na quietude, de «ânimo constante e peito puro».

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491. UMA DESCRIÇÃO POÉTICA DA CIDADE DE LISBOA

Uma ode que mantém o seu interesse, por conseguinte, quer por conter uma descrição coeva da Lisboa dos Descobrimentos10, quer pela importância histórico--literária do seu destinatário, quer ainda por testemunhar a reacção do seu círculo de amigos à retirada para o campo de Sá de Miranda.

Mas, com estas observações, não esgotámos a apreciação do pequeno poema. É que o motivo do louvor a cidades ou sítios famosos, postergado em favor do de um remanso campestre, provém, como tantos outros dos temas dos Quinhentistas, da fonte horaciana. É, aliás, a própria palavra-chave do começo, a que há pouco nos referimos, que remete leitor para a célebre Ode VII do Livro I, a que principia:

Laudabunt alii claram Rhodon aut Mytilenen

Outros louvarão a ilustre Rodes ou Mitilene

O discutido e algo enigmático carme latino situava-se, de resto, numa tra-dição helenística de encómios de cidades, hábito que tinha a sua contrapartida na representação escultórica das grandes metrópoles, que Eutíquides pusera em moda. «Louvam-se as cidades do mesmo modo que os homens» – havia de corro-borar Quintiliano em conhecido passo11. Na ode de Horácio, contrapunha-se ao gosto que outros sentiam em louvor os sítios famosos da Grécia, e designadamente Atenas, o desejo próprio de se comprazer em Tíbur, a terra de Planco, destinatá-rio do poema. Daí passa a uma parénese que quase imperceptivelmente desliza para o exemplo mitológico de Teucro, o que lhe permite concluir em clave de esperança.

O exemplum mítico não o utilizou Andrade Caminha. O amigo a quem se diri-gia não era, como o de Horácio, um político em evidência, mas o «homem de um só parecer». A segunda metade do poema lusitano exalta indirectamente esse predicado, decorrente de uma opção existencial baseada no amor da rectidão e da verdade.

Também aqui estamos dentro da temática clássica. E assim poderemos com-preender melhor como deste poeta, que os modernos historiadores da literatura geralmente menosprezam12, os seus contemporâneos puderem escrever que nele

10 Em nota manuscrita ao seu exemplar das Poezias, existente na Faculdade de Letras da Univer-sidade de Coimbra, propôs Carolina Michaëlis a data-limite: «vor 57». Como se sabe, o ano da retirada da corte do Poeta do Neiva tem sido fixado em 1530 e o do seu falecimento em 1558.

11 III.7.26. Citado por R. G. M. Nisbet and Margaret Hubbard, A Commentary on Horace: Odes. Book I (Oxford, 1970), p. 92. A discussão do sentido desta ode pode ver-se ibidem, pp. 90-94.

12 E. g. Aubrey Bell, A Literatura Portuguesa (Coimbra, 1931), pp. 191-192; António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa (Porto, 81975), pp. 380-381. O historial do apreço pelo Poeta foi feito por Adrien Roïg, no estudo citado infra, nota 15, de pp. 105 a 110.

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quiseram as «Musas renovar a Antiguidade» (António Ferreira13) ou que «as Lusi-tanas Musas nos mostraram / em ti novo sol resplandecente» (Diogo Bernardes14). A sentença de Ferreira foi, no entanto, ratificada por Carolina Michaëlis de Vas-concelos em 1898, aquando do aparecimento da edição de Priebsch, ao esclarecer que o conteúdo do volume já publicado pela Academia «justificava o título de um sólido clássico e atento renovador da Antiguidade Clássica». Muito recentemente, outro grande estudioso da nossa literatura quinhentista, Adrien Roïg, considera o seu estudo indispensável «à compreensão da História e da poesia lírica da Penín-sula Ibérica numa época essencial da sua vida política, religiosa e literária»15. Uma pequena prova de que assim é foi o que tentámos apresentar nesta breve análise de uma ode em que se espelha em nitidos contornos o esplendor da Lisboa de Quinhentos, bem como a problemática de ordem moral que ela suscitava aos mais altos espíritos da época.

13 Livro I, Carta III.14 Soneto 96. Cf. também, do mesmo, a Carta XI.15 No estudo complementar da tradução portuguesa da obra de Carolina Michaëlis, acabada de

citar, vertida por Olívio Caeiro com o título de Pedro de Andrade Caminha. Subsídios para o Estudo da Sua Vida e Obra (Lisboa, 1982), p. 164.

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2. UM ELOGIO SETECENTISTA DA CIDADE DO PORTO*

Nos seus Portuenses Ilustres, consagra Sampaio Bruno escassas três páginas1 a uma das mais notáveis figuras nascidas nesta Cidade: o erudito Doutor Antó-nio Ribeiro dos Santos, um dos grandes lustres do nosso renovamento cultural da segunda metade do séc. XVIII, lente de Direito Canónico na Universidade de Coimbra, primeiro director da sua Biblioteca – e mais tarde da Nacional de Lisboa – detentor de inúmeras honrarias, o sábio autor de ensaios e memórias sobre a língua, a literatura e a história portuguesa, e o poeta que, sob o nome arcádico de Elpino Duriense, exprimiu, através das formas então em voga, ora o deslumbra-mento pelas conquistas da filosofia e da ciência, ora o gozo das coisas simples e dos sentimentos puros. Se os ensaios e memórias, cujo valor e novidade têm sido reconhecidos2, se encontram apesar disso em grande parte inéditos, aos três tomos de Poesias, publicados de 1812 a 1817, também se não tem prestado a devida aten-ção, não obstante o elogio que lhes fez Garrett no Bosquejo. Que saibamos, apenas o Prof. Hernâni Cidade deu o devido relevo ao significado histórico-cultural de muitos dos seus poemas3:

Através dos seus hendecassílabos, todos engomados da retórica sumptu-osa do tempo, vão-se insinuando pela primeira vez termos que não podiam deixar de arripiar de estranhos calafrios as Musas: a algébrica análise, a geométrica doutrina de Descartes;... a teoria das equações... os pontos logaritmos.

* Publicado em Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto (1967), 74-81; Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Verbo (11971, 22002), 149-153.

1 Tomo I. Porto, 1907, pp. 268-270.2 Leiam-se, por exemplo, as apreciações contidas no Dicionário Bibliográfico de Inocêncio, s.v. 3 «No 2.º Centenário de António Ribeiro dos Santos», O Tripeiro, V. Série, n.º 7, Novembro de 1945,

p. 150.

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Em outras composições, o autor fala-nos dos seus estudos, dos seus gostos e desilusões, num tom de confidência que o aproxima do grupo dos pré-românticos. Entre essas se situa uma epístola4 em tercetos rimados, endereçada ao seu colega, amigo e conterrâneo, Doutor Ricardo Raimundo Nogueira, estando este em férias na Foz do Douro, e Elpino nos arredores de Coimbra. É aí que, por entre as evoca-ções mitológicas que vêm animar a paisagem marinha, nós podemos subitamente avistar o mar embravecido da costa:

Ora verás o mar, como alteroso em grossos rolos d’água se arregaça, e vem medonho com semblante iroso:

Como as praias co’as ondas ameaça, como cahe nos cachopos levantados, e em borbotões d’espuma s’espedaça,

e divisar os navios a caminho da barra, defendida pela fortaleza já então cente-nária5:

Ora verás ao longe empavezados soberbos galeões, que vão rasgando com férrea proa os mares empolados;

e os navios ao perto demandando a estreita barra, e seu Castelo antigo co’ duro estrondo dos canhões salvando.

E logo os entretenimentos da sociedade, que afinal é ainda semelhante, quanto aos seus hábitos, à de Correia Garção, poeta cujo modelo se adivinha neste terceto:

Toma o fervente ponche, que te aquenta; bebe o chá, e o café, come as torradas, que a branca mão de Sílvia te apresenta.

4 Poesias, Tomo I, pp. 123-132.5 No Gabinete de História da Cidade existe uma gravura coeva, que representa a “Perspectiva da

entrada da Barra da Cidade do Porto e fortaleza que a defende”, e que se encontra reproduzida na p. 44 do vol. III da História da Cidade do Porto, dirigida por Damião Peres e António Cruz (Portucalense Editora, 1965).

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532. UM ELOGIO SETECENTISTA DA CIDADE DO PORTO

O jogo do whist, o vinho, o recitar de versos e novelas completam estes serões. E assim a Epístola nos oferece já a dupla face da Foz, que literariamente se desdo-brará nas evocações paisagísticas de António Nobre e Raul Brandão e nos quadros sociais de Ramalho Ortigão, de Camilo...

O poeta erudito, o da «retórica engomada» do séc. XVIII, tradutor de longas tiradas de Homero e Virgílio e de outros, autor ele mesmo de bem medidos Carmina Latina, também deixou a sua versão clássica do perfil da Cidade. Essa contém-se nas quatro cuidadas estrofes de uma ode «Em louvor da Cidade do Porto, pátria do Autor», onde, aliás, sob os atavios mitológicos convencionais, se desenha, vigo-roso, o vulto da capital do trabalho e da indústria, enriquecida por um comércio marítimo que se dilata do norte da Europa às Américas6:

Cantemos Cale, pois tu ousas tanto, Casta filha de Jove: mas que parte

Escolhes a teu cantoDos bens imensos, que lhe o Céu reparte?Ah! Louva os ricos dons, se tu puderes,

Que a mão da flava Ceres Da florescente taça de Amalteia Sobre seus campos liberal semeia.

Levanta aos astros em Canções divinas A sábia indústria, que mil artes cria,

De mil louvores dinas;Por quem o Céu formosos bens lhe envia. Os Dorios ama, a eles só reserva

A próvida Minerva Tirar das Artes largas veias d’oiro, Riqueza estável, sólido tesoiro.

Se tu mais queres, segue a larga esteira, Que vão abrindo seus baixeis nadantes

Na cerúlea carreira:As asas solta aos ventos inconstantes: Ousada voa a ver o rosto irado

Ao Báltico gelado:Ou rompendo através do mar profundo, Vai nas praias surgir do novo mundo.

6 Sobre o número e proveniência dos navios empregados no comércio de importação e exporta-ção, leia-se o artigo da Prof.ª Virgínia Rau, “O movimento da barra do Douro durante o século XVII”, Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, 21, 1-2 (1958).

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Se mais te agradam marciais fileiras Co’a luz imensa, em que até qui brilharam,

Das virtudes guerreiras,Que dos maiores ínclitos herdaram,Louva os claros Avós, que devastando

De Agar o torpe bando,Sobre o montão de loiros, que colheram, A Lísia novo Império, e Nome ergueram.

É a urbe em plena expansão, fomentada pelo tratado de Methwen e pelas medidas pombalinas de protecção ao vinho do Porto7, aquela cuja riqueza se traduzirá artisticamente no acumular de edifícios que farão dela a capital do barroco8. Mas também a cidade que ajudou a fazer a história de Portugal – aquela em cuja ribeira se prepararam as naus que foram tomar Ceuta. Talvez estas «virtudes guerreiras», a que se alude na última estrofe, combinadas com o austero e esforçado regime de vida portuense, se tivessem reunido para suge-rir ao poeta a propriedade da designação de Dórios, que na segunda estrofe aplica aos Portuenses, como habitantes das margens do Douro, que também são.

Elpino Duriense vai mais longe ainda: à semelhança das Tágides de André de Resende, a que a invocação dos Lusíadas conferira direito de cidade nas letras portuguesas, cria as Dórides, as ninfas do Douro. O paralelismo evidencia-se na Ode «A D. Catarina Michaela de Sousa, quando esteve na Cidade do Porto»9, no passo em que opõe às Tágides formosas as Dórides ufanas.

O singular do nome tinha, de resto, uma longa tradição a seu favor, porquanto Dóris era uma das Nereides, quer na Ilíada (XVIII. 45), quer em Hesíodo (Teogonia, 250), ou ainda, neste último autor, a mãe das Nereides, filha do Oceano e de Tétis e mulher de Nereu (ibidem, 241 e 350). Outro tanto sucede com os poetas latinos (e.g., Virgílio, Bucólicas, 10; Ovídio, Metamorfoses, 2.11.269 e 13.742). Para Camões, na Ode VII10, Dóris é uma das Nereides.

Quando escreveu a ode «Em Louvor das Dórides», Elpino pôde assim utilizar a tradição mitológica, generalizando o nome às «Filhas de Anfitrite» que habitam

7 Cf. o capítulo sobre “Comércio Externo”, da autoria de J. A. Pinto Ferreira, incluído na História da Cidade do Porto, cit., Vol. III, pp. 35-69, e bibliografia aí referida.

8  A ponto de ser possível definir um “barroco portuense”, como fez Robert Smith, A Talha em Portugal, Lisboa, 1962. Cf. também o capítulo de B. Xavier Coutinho sobre “Arte: Do Barroco ao Neo--Classicismo” na História da Cidade do Porto, cit., Vol. III, especialmente pp. 186-187.

9 Tomo II, pp. 101-102.10 A quem darão de Pindo as moradoras (numeração da edição das Rimas pelo Prof. A. J. da Costa

Pimpão, Coimbra, 1953).

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552. UM ELOGIO SETECENTISTA DA CIDADE DO PORTO

o rio Douro. Fê-lo numa das suas melhores composições11, em que perpassa, renovando-se, o velho tema dos rios personificados – desta vez, Douro e os seus afluentes:

Que claras Deusas sobre o Doiro vejo Brilhar, ó Musa, que com doce encanto

Excitam teu desejoA um mais nobre, e mais mimoso canto!Da minha ilustre Cale as Ninfas belas,

Mais lindas, que as Estrelas,Pois que delas mil honras recebemos,Na Lyra de marfim aos Céus levemos.

Pelas vir ver do lago onde dormia, Desperta o Padre Doiro, e apressurado

Desde alta serrania Da soberba Orbion desce c’roado De grinalda de junco, e de espadana,

Brandindo a verde cana,Buscando vem as praias do Ocidente, Onde ergue Cale a torreada frente.

Consigo traz um bando numeroso O forte Carrion, o fresco Arlanso,

O Tâmega ruidoso,O Távora arrojado, e o Coa manso:Suas grutas deixando cristalinas

As Náiades divinasCom ele vem em rápida coreia,Ledas saltando pela branca areia.

De Numância, e Zamora as filhas belas Soltando aos ares suas tranças d’oiro,

Vestindo brancas telas,Em vão lhe oferecem todo o seu tesoiro:Em vão lhe rogam, que a seus braços venha,

Com elas se detenha,E em suas margens o seu trono assente Co’a rica urna de cristal luzente.

11 Tomo II, pp. 94-96.

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56 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Nem promessas, nem dádivas, nem rogo Nada o pode deter, que à Cale o chama,

Aceso em nobre fogo,Doutras gentis Donzelas clara fama:Eis chega, e quando as vê, de espanto cheio

Se prende em doce enleio;E ufano mais, que o Tejo caudaloso,Se julga com tais Ninfas venturoso.

Por vós, ó lindas Filhas d’Anfitrite, Põe nas praias de Cale o pátrio Doiro

A seu curso limite,E a urna pousa co’as areias d’oiro:Por vós enjeita, quantas Ninfas gera

A formosa Citera:E eterno amor, eterna companhia A Cale jura, que tais Deusas cria.

É bem claro, num e noutro passo da Ode, o propósito de exaltar, sob esta roupa-gem mítica, as próprias filhas da Cidade. Na Ode seguinte, «Ao mesmo assunto»12, onde «as belas Ninfas do paterno Doiro» se individualizam com nomes que ora são de Nereides (Eurínome, Alcipe, Dinamene) ora anagramas de sabor neo-clássico (Isbela, Arima), torna-se evidente a sua aplicação a figuras reais.

As Dórides do erudito autor setecentista não tiveram a fortuna literária das Tágides do não menos erudito humanista eborense, porque não entraram nos ritmos de um poeta de génio que as universalizasse. E, no entanto, ficaram como uma curiosa tentativa de renovamento mitopoiético, numa época de exaustão de formas e temas clássicos. É nesse mesmo contexto histórico-literário que se insere a Ode «Em Louvor da Cidade do Porto», onde aliás, através de uma gasta adjectivação e de uma cansada metonímia, irrompe, a vivificá-la, a sugestão da actividade estuante da urbe em plena carreira ascensional.

12 Tomo II, pp. 97-100.

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3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE*1

Se alinharmos algumas datas mais representativas nos anais da nossa época setecentista, como sejam a publicação do Verdadeiro Método de Estudar, em 1746, a fundação da Arcádia Lusitana, dez anos depois, a reforma pombalina da Universi-dade, em 1772, a publicação do Plano de Estudos de Fr. Manuel do Cenáculo, em 1769, e a criação da Academia Real das Ciências, dez anos mais tarde, teremos traçado as coordenadas espirituais em que se desenvolveu uma das mais altas figuras da cultura portuguesa: o Doutor António Ribeiro dos Santos, nascido no Porto em 1745, educado pelos jesuítas do Seminário de Nossa Senhora da Lapa, no Rio de Janeiro, e depois escolar de Direito Canónico na Universidade de Coimbra, onde mais tarde viria a ser lente de Cânones e o primeiro director da sua biblioteca; que havia de ocupar idêntico lugar em Lisboa, logo que se criou a Biblioteca Nacional; detentor de inúmeras honrarias, como a de desembargador da Casa da Suplicação, censor régio, deputado da Junta da Casa de Bragança, da Junta para a Organiza-ção do Código Penal Militar, da Junta da Bula da Cruzada. Ao seu vasto saber e profunda erudição, que brilharam numa época em que se distinguiram figuras da projecção do já referido Fr. Manuel do Cenáculo, reorganizador dos estudos do clero, António Caetano do Amaral, o investigador das antiguidades lusitanas, João Pedro Ribeiro, o criador dos estudos diplomáticos, paleográficos e esfragísticos entre nós, o Cardeal Saraiva, Fr. Fortunato de São Boaventura, Viterbo, Pascoal de Melo Freire e Brotero, ao seu vasto saber, dizíamos, já se tem rendido merecida homenagem, embora grande parte da sua obra continue inédita, nos volumes de manuscritos pelo próprio legados à Biblioteca Nacional, que organizou e que dotou do seu primeiro sistema de classificação. Os manuais e histórias da literatura refe-rem com especial louvor o seu estudo Da literatura sagrada dos judeus portugueses e o Ensaio duma Biblioteca Lusitana anti-rabínica, que, com as anteriores séries de Memórias sobre a Literatura Sagrada dos Judeus Portugueses (desde os primeiros tempos

*1 Publicado em Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Verbo (11971, 22002), 171-182.

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da Monarquia até aos fins do século XV; no século XVI; no século XVII; no século XVIII), bem mereceram as palavras de Ferreira Gordo1, quando afirmou que nelas «se disse pela primeira vez entre nós algum bem dos judeus, depois de se haver dito tanto mal deles, extremando-se aqui o merecimento real da sua literatura das preocupações da sua crença». Hernâni Cidade pôs em relevo o significado do seu ensaio Sobre a antiguidade da observação dos astros, da bússola e de outros instrumentos ao uso da navegação, em que, antes do Visconde de Santarém e mais de um século antes de Joaquim Bensaúde, chegou «a formular a verdade hoje assente sobre o modo como foram realizadas»2. Mais recentemente, G. Braga da Cruz demons-trou a sua importância na nossa história do Direito, considerando-o «o primeiro abolicionista, plenamente convicto, do pensamento criminalístico português»3. Mas a sua obra literária, recolhida em três tomos de Poesias, editados de 1812 a 1817, não tem recebido a demorada atenção que lhe é devida, não tanto pelo seu valor artístico, que, aliás, não é inferior ao de outros autores contemporâneos, não eliminados das antologias, como pelo seu valor documental, que nos permite reconstituir uma nobre figura de erudito, a um tempo sujeito e objecto da reno-vação da mentalidade portuguesa que se processa na época. E contudo, depois de ter sido muito admirado pelo círculo dos seus amigos, recebeu ainda de Garrett, no Bosquejo, uma homenagem que vale a pena registar:

António Ribeiro dos Santos foi imitador e émulo de Ferreira; poucos engenhos, poucos caracteres, poucos estilos há tão parecidos; senão que o autor dos coros da Castro era muito maior poeta, e o cantor do Infante D. Henrique muito melhor metrificador. Esta ode ao infante sábio, algumas outras a vários heróis portugueses, algumas das epístolas, e especialmente os versos que lhe ditava a amizade para o seu Almeno, são de uma elegância e pureza de linguagem raríssima em nossos dias.

Também Castilho, ao declarar quanto lhe devia a sua iniciação poética, reco-nheceu nele o homem

...................... que abrangeu duas idades, benfazendo-lhes mutuamente a uma pela outra; antecipando em meio do século passado o gosto, o apuro, a filosofia deste nosso; transplantando para o presente o estudo, a boa fé,

1 Apud Inocêncio, Dicionário Bibliográfico, art. «António Ribeiro dos Santos».2 «No 2.º Centenário de António Ribeiro dos Santos», O Tripeiro, V Série, n.º 6, Outubro de 1945,

p. 132.3 «O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte em Portugal (Resenha histórica)»,

Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Letras, X, 1967, p. 98.

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593. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

o saber do passado; e legando ao futuro tesoiros que andou desencantando das antiguidades remotíssimas,

e se referiu, mais adiante, aos

nobres e portugueses pensamentos de suas poesias, as quais, se raras vezes voam sublimes, nunca, nem por sombras, desmentem da boa moral e sã filosofia4.

Modernamente, apenas Hernâni Cidade, em artigo intitulado «No 2.º Cente-nário de António Ribeiro dos Santos»5, pôs em relevo a importância da sua obra poética, onde vibra o entusiasmo pela nova cultura:

Confia à sua lira, de timbre solenemente arcádico, a expressão da nova emoção (...). Mas cultura mais do que erudição. Porque tudo isto parece vivido pela inteligência, mais do que armazenado pela memória.

Ao primeiro editor de parte da obra de José Anastácio da Cunha, outro poeta setecentista durante muito tempo esquecido, que exalta Locke e toda a ciência nova, não admira que não tivesse escapado a importância desta personalidade menos arrebatada e original, mas não menos significativa do que aquela.

Percorrendo os três grossos volumes das suas Poesias, a paisagem que se nos depara pouco ou nada difere, sob ponto de vista formal, da de outros autores coevos: uma longa série de epístolas, a maioria das quais em verso branco; odes dos tipos chamados alcaico, pindárico e anacreôntico; sonetos; epigramas; éclogas; traduções em verso. Além disso, algumas «prosas», espécie de esboços de éclogas, e um grupo de poemas elegantemente vazados em latim (Carmina Latina).

Deixaremos de parte os sonetos, que não se distinguem em geral, pela sua musicalidade, e onde abundam os lugares-comuns. O próprio autor, aliás, tinha consciência da sua dificuldade em produzi-los, quando repetidamente se desculpa, dirigindo-se ao Principal Castro, com a severidade das célebres afirmações de Boileau sobre essa forma poética6.

4 A Primavera, Obras Completas de A. F. de Castilho, vol. 7, Lisboa, 21903, pp. 146-150. As citações são, respectivamente, de pp. 147 e 148.

5 O Tripeiro, V Série, n.º 6, Outubro de 1945, pp. 131-132, e n.º 7, Novembro de 1945, p. 150. A cita-ção é da segunda parte do artigo. Pode ver-se também uma curta apreciação («Poeta, e emérito, foi também aquele eminente erudito») nas páginas que lhe consagrou Sampaio Bruno em Portuenses Ilustres, t. I, Porto, 1907, pp. 268-270.

6 Sonetos É difícil, Senhor; mas não é raro (vol. II, p. 315); Não é, Senhor, tão raro um bom Soneto (II, 316); Os Poetas, ó Castro, consentiram (II, 319); Eu prometi, Senhor, que já neste ano (II, 320). (Em todas as

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A parte da obra de Elpino Duriense que nos parece mais válida é a constituída pelas odes e epístolas, em que, sob uma expressão elegante, polidamente arcádica, se vão reflectindo os novos anseios culturais, os defeitos da sociedade contempo-rânea e, não raro, a atraente personalidade do autor, seus estudos, seus gostos, suas desilusões, num tom de confidência que o aproxima do grupo dos chamados pré-românticos, que já então se distinguia em meio da anódina literatura sete- centista.

A importância da primeira temática referida foi já devidamente salientada por Hernâni Cidade, em termos tão ajustados e expressivos que vale a pena transcrevê-los7:

Através dos seus hendecassílabos, todos engomados da retórica sumptu-osa do tempo, vão-se insinuando pela primeira vez termos que não podiam deixar de arrepiar de estranhos calafrios as Musas: a algébrica análise, a geométrica doutrina de Descartes; (...) a teoria das equações (...) os pontos logaritmos.

O facto ocorre principalmente nas muitas epístolas em que elogia os novos «filósofos», como então se dizia:

Se heróis queres cantar, té às estrelasalça em teu canto os nomes sublimadosdesses mortais, que ao homem bem fizeram.

escreve ao seu amigo Almeno (P.e Fr. José do Coração de Jesus), exortando-o «a cantar objectos dignos da sua lira»8. E o tema repete-se na epístola seguinte9, endereçada ao mesmo, cujo princípio é típico:

Desejas de cantar de Varões famososmaiores que os Filósofos sublimes,maiores inda do que Locke e Newton?

citações de Elpino Duriense feitas neste artigo, o número romano indicará o tomo das Poesias, e o árabe as páginas).

7 «No 2.º Centenário de António Ribeiro dos Santos», cit., O Tripeiro, V Série,· n.º 7, Novembro de 1945, p. 150.

8 Epístola Enquanto cem Poetas, caro Amigo (I, 38-40).9 I, 41-44a.

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613. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

Repete-se também na que começa Que delírio, Nogueira, que mania10, quando aponta ao seu colega e amigo quais os objectos dignos da poesia; nas que escreve a Francisco de Borja Garção Stockler, sobre o Génio das Matemáticas e sobre os Estudos da Natureza11; ou nas que endereça ao médico José da Silva Xavier, exor-tando-o sucessivamente a cantar em versos os grandes filósofos do século XVII12 e os do século XVIII13, ou novamente a Garção Stockler, quanto aos matemáticos modernos das duas últimas centúrias14, ou mesmo os do século XVI15.

Em todas se revela o entusiasmo pelos progressos da ciência e pela capacidade do ser humano em geral, sentimento esse que igualmente transparece em José Agostinho de Macedo, em José Anastácio da Cunha, na Marquesa de Alorna, e até mesmo em Bocage.

É ainda dentro do mesmo espírito que exalta a figura do Infante D. Henrique e a sua acção nos Descobrimentos, quer em epístolas16, quer em odes17. Embora revestidas da roupagem mitológica indispensável ao gosto da época, estas e outras composições denunciam claramente o saber do erudito, que lhes serve de suporte, e até o emprego dessa terminologia reminiscente da Antiguidade concorre para pôr em relevo a importância da actuação do Príncipe de Avis, quando chama à sua escola de Sagres o «Liceu Turdetano»18. De mistura com estes sentimentos, o da admiração pelo passado glorioso da sua pátria, quer nesta última ode, dedicada a Bartolomeu Dias, quer nas que consagra a Martim de Freitas19, a Nuno Gonçalves, alcaide do Castelo de Faria20, a D. João de Castro21, a Vasco da Gama22. O seu entu-siasmo pelos feitos nacionais não exclui, porém, a celebração de um navegador

10 I, 58-62.11 Respectivamente, S’eu pudesse cantar, ó sábio Stockler (I, 75-77) e Qu’alto conceito não farás, Amigo

(I, 167-169).12 Demos louvor, ó Silva, aos Varões sábios (I, 270-275).13 Amigo, pois que minha carta pôde (I, 276-279).14 Os teus severos, ínclitos estudos (I, 289-297).15 Porque nós, ó meu Stockler, não daremos (III, 10-12).16 Demos louvor aos nossos: tu, ó Soisa (I, 35-37). Deixa os estranhos: dêmos, caro amigo (III, 15-17).17 Fervia ao longe com fragor medonho (II, 27-31); Pois que grande Cantor do excelso Gama (III, 38-41).18 Ode Aos Lusos Soberanos não bastaram (II, 35). Cf. III, 41 (Assim do alto Liceu da ilustre Sagres).19 Qual génio, ó Musas, inspirou sublime (II, 22-24).20 No recontro fatal vencido e preso (II, 25-26).21 Entra, que a Musa soberana, ó Castro (II, 39). Cf. também o soneto Eu não te louvo, ó Castro valoroso

(II, 299).22 O mar Oriental, tão encoberto (III, 44-46); Sobre sólidas bases às estrelas (III, 47-51); e cf. também

os sonetos Os encantos do mar té li cerrado (III, 101) e Deixado, ó Gama invicto, o pátrio Ninho (III, 102).

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62 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

como Cristóvão Colombo23, nem reconhecimento do estado de decadência das conquistas da Ásia, descrito na ode a Lisboa24, que começa:

ó tu nos sete montes sublimada,

em perfeita concordância, de resto, com o quadro contido nos sonetos de Bocage sobre Goa.

O amor pela tradição cultural portuguesa não o limita, aliás, ao domínio científico, que tão desveladamente estudara como erudito, e que condensara poeticamente na sua epístola «Em louvor dos nossos grandes Filósofos»25, onde sucessivamente exalta

O excelso Infante, Deus da Lusa Gente,que a marinha criou e as gentis Artes,que as lindas filhas da Cerúlea Tétisum dia lhe ensinaram ......................

e, mais adiante, Pedro Nunes, que

Da celeste Urânia doutrinadoos Astros mede, e as suas leis sujeita;

Garcia de Orta

que primeiro ensinou à rude Europadas espécies, das plantas, dos aromas,que Aurora cria no país do Ganges,as virtudes benéficas prestantes,não sabidas de Gregos nem Romanos.

e o médico António Luís, precursor de Newton na descoberta da lei da atracção universal.

O seu entusiasmo não é menor pelas letras pátrias, que repetidamente elogia, quer quando exorta o seu amigo António Ferreira de Sampaio a dar preferência à leitura dos prosadores26 e poetas27 portugueses, quer quando dá conselho a

23 Era segredo eterno um novo Mundo (III, 41-43).24 II, 40-42.25 III, 15-17.26 Tens lido de Franceses, de Toscanos (I, 255-259).27 Perguntas-me, se nossa Língua, sendo (I, 260-264).

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633. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

Fileno «sobre quais Poetas devia ler»28, quer passando em revista, para benefício do mesmo amigo, os épicos portugueses29.

A penúltima das composições citadas termina com o elogio, quase a apoteose, de Sá de Miranda e António Ferreira, que eram os grandes mestres do autor30. Desde a sua juventude que Elpino Duriense consagrara a Ferreira um dos seus melhores sonetos31, e a admiração pelo magistrado, que fora lente, como ele, da Universidade de Coimbra e com quem tinha tão numerosas afinidades intelectuais e artísticas, não cessa de se afirmar ao longo de toda a sua obra: ele é o cantor da «sã doutrina»32, o «ínclito Ferreira»33, «Ferreira grave e nobre»34, o «imortal Ferreira»35,

........................... meu grão-mestre,de bom saber, de siso, de são gosto,de proveito geral a todos36.

Elpino Duriense rende a merecida homenagem aos coros da Castro37, mas vai sem dúvida longe de mais em muitos outros passos laudatórios, nomeadamente quando se refere a

as Éclogas gentis do meu Ferreira,que nos assopros da silvestre avenao Siracúsio e o Mantuano excede38

28 Tu me pedes conselhos, quais Poetas (I, 280-284).29 Porque tu, meu Fileno, tanto exalças (I, 136-141).30 Os dois nomes aparecem associados com frequência: epístolas Tu dizes que estou só, e vivo triste

(I, 45 e 49), Que má ventura, meu Aléxis, corre (I, 65), Tu me pedes conselhos, quais Poetas (I, 282); odes Neste lugar solitário (II, 256); Ó Grosfo, jás estou cansado (II, 265 e 267). De Sá de Miranda afirma (Is, 248): 

que inda mais me ensinou, que a douta Atenas

e de Ferreira, (ibidem):

que eu amo ternamente, e sempre leio, e quanto mais o leio, mais o estimo.

Esta admiração era partilhada, aliás, por outros poeta coevos, entre eles Filinto Elísio, que o associa, na pureza do idioma, a Camões: a língua de Camões nem de Ferreira (Obras Completas, Paris, 1817, vol. I, p. 312); Camões sublime, altíloquo Ferreira (ibidem, vol. I, p. 342).

31 Quis dar o Céu a Lusitana Gente (II, 301). Sobre a época da composição deste poema, cf. I, 114 (Parto informe de meus primeiros anos).

32 Soneto cit. na nota anterior, v. 13.33 Epístolas Tu dizes que estou só, e vivo triste ( I, 49); Pois tens lido de Gregos, de Romanos (I, 69).34 Epístola Quanto, Fileno Amigo, com a idade (I, 92).35 Ode Jura o sagrado Teio, que os teus versos (II, 111).36 I, 286.37 Epístolas Pois tens lido de Gregos, de Romanos (I, 69), Eu vos mando, Senhora, esse Soneto (I, 120), Tu

me pedes conselhos, quais Poetas (I, 282-283); ode Jura o sagrado Tejo, que os teus versos (II, 111 ).38 Epístola Vinde, Senhora, pois que já me destes (I, 201).

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64 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

ou quando compara favoravelmente o epitalâmio em honra do Príncipe de Parma e Maria com o carme 64 de Catulo39. O exagero não é certamente menor, quando afirma:

Maior do qu’ele não tem outro Lísia: pelo númen de Febo Apolo o juro40.

Toda esta epístola, aliás, é um resumo da obra de Ferreira, sem esquecer as éclogas, as elegias (incluindo as suas versões do «Amor Fugido», de Mosco, e da Anacreontea do «Amor Molhado»), das comédias, da Castro e das cartas, até rematar com uma citação do poeta quinhentista.

A admiração que lhe votava traduziu-se ainda na escolha de versos seus para lemas de diversas composições, e deu fruto na imitação de duas éclogas: a dos Segadores41 e a dos Lavradores42.

Já tivemos oportunidade de chamar a atenção, no nosso estudo sobre António Ferreira43, para a singularidade, adentro da temática bucólica, do ambiente e per-sonagens da sua écloga X, e para estabelecer as possíveis relações de dependência para com o idílio X de Teócrito. Concluímos então que o poeta português deve ter tido presente o modelo grego, para dele aproveitar o cenário e um pouco do realismo característico do Siracusano, mas, talvez porque já não eram esses os

39 Tu costumado a ler o teu Catulo (I, 188-190). A influência do epitalâmio de Tétis e de Peleu é mais nítida na écloga I, Archigamia, onde figura também um cortejo dos deuses a caminho dos esponsais e a glorificação do herdeiro, através do canto das Parcas.

40 Epístola Eu vos mando, Senhora, esse Soneto (I, 116).41 II, 275-277.42 II, 278-280.43 «Alguns aspectos do classicismo de António Ferreira», in Temas Clássicos na Poesia Portuguesa,

Lisboa, Verbo (1972), pp. 37-76. A écloga X é estudada de pp. 72 a 75. O idílio XXI de Cruz e Silva também se intitula Os Segadores, mas é bastante diverso, pois decorre todo na hora de descanso:

Nas ribeiras do Caia à sombra fria de um cerrado juncal ambos deitadosOrdalbo, e mais Trigoso, segadores,do trabalho da ceifa repousavam.

Acompanhados pela lira de um terceiro, Fárrio, cantam amoibeios de elogio às respectivas ama-das, até ao momento em que são advertidos do adiantado da hora:

................................... ceifar vamos,que o ócio não convém aos segadores.

e  todos três se  levantam. É este final o único passo em que o realismo à maneira de Teócrito se evidencia.

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653. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

moldes aceites a Virgílio, e muito menos aos renascentistas, a imitação se limitara a tão pouco.

É curioso que Elpino Duriense escolheu para modelo da sua écloga Os dois Segadores, Silvano e Lereno, apenas a parte final da X de Ferreira, ou seja, o diálogo entre Silvano e Falcino que principia no verso 201, precisamente aquele que mais se aproxima da abertura do idílio X de Teócrito.

Em vez dos decassílabos do poeta quinhentista, Elpino entreteceu o diálogo em quadras de quebrados de quatro sílabas, nas quais pôde por vezes, com ligei-ras alterações ou supressões, fazer entrar frases do seu modelo. O exemplo mais frisante é a transposição dos versos 215-216:

S’eu hoje Lília vira, eu só segara,sem descansar, outra maior seara.

para a seguinte quadra de Lereno:

S’eu Lília vira,eu só segarasem descansarmaior seara.

A écloga seguinte, Os dois Lavradores, Aónio e Agrário, apresenta igualmente o subtítulo de «Imitação de Ferreira». Embora menos evidente, a fonte parece ter sido a mesma. A fala inicial de Aónio transpõe para outra pessoa as tristes afir-mações de Falcino em 129-134:

Eu semeei, Silvano, em hora escuraem parte onde não chove, nem orvalha.Enganou-me da terra a fermosura,nem semente colhi, nem grão, nem palha.A Aristo nasce o trigo em pedra dura,que parece que ao vento o lança e espalha.

conservando a «hora escura», para a aplicar ao exemplo contrastante da boa sorte de Aristo:

Tu semeasteem hora escuraAristo trigoem pedra dura.

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66 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

A resposta de Agrário, porém, não deve procurar-se na sequência da écloga dos Segadores, mas sim umas dezenas de versos atrás. Efectivamente, o efeito do olhar de Lília sobre os campos estava esboçado na fala de Falcino que se estende de versos 97 a 104 na composição de Ferreira.

Deste modo, o nosso poeta setecentista compôs, com base numa só e, aliás, longa écloga de Ferreira, dois pequenos diálogos rústicos, em que o motivo da queixa amorosa, que se tornara característico das bucólicas, começa a tomar a forma e o ritmo da cançoneta anacreôntica.

O mesmo culto que António Ferreira votara à língua portuguesa, e que é sem dúvida um dos seus melhores títulos de glória, também Elpino Duriense o professa e lhe dá forma em diversas epístolas. Uma delas, a António Ferreira de Sampaio, «Sobre o estudo da Língua Portuguesa, pelo que respeita aos Prosadores»44, depois de tomar como lema os célebres versos da carta III do livro I de Ferreira, exalta a

Língua outra hora tão farta, tão refeitade belos termos, de escolhidas frases,d’Ático estilo, de gentis maneiras,

qualidades que exemplifica com a enumeração dos grandes prosadores lusitanos, por vezes – embora nem sempre – feita em termos que um crítico moderno não desdenharia, como quando classifica Fernão Mendes Pinto de «Heródoto de Lísia», ou quando refere

As belas Epanáforas de Melo,que novas voltas deu à Lusa prosa.

No final da mesma epístola, uma referência aos relatos de naufrágios da His-tória Trágico-Marítima traz consigo um sugestivo elogio do idioma, logo a seguir diluído nas galas mitológicas em que se compraziam os poetas da época, mas que, destacado desse contexto convencional, mantém ainda toda a força da experiência histórica que nele se cristaliza:

............................................ quantocabedal de expressões não volve a Língua,costumada a falar ao mar, e aos ventos.

44 I, 255-259.

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673. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

A epístola seguinte, «Sobre o estudo da Língua Portuguesa, pelo que respeita aos Poetas»45, consagra os primeiros quarenta versos a exaltar as propriedades desta

Música língua, igual à Língua Argiva

Novo elogio na epístola a Fileno, «que pedia conselho sobre quais Poetas devia ler»46, misturado de censura para com os que maculavam a sua pureza ori- ginal:

que inda hoje, a pesar dos disparates,com que a tem maltratado o tempo, o abuso,o desprezo dos netos desmandados,e a mistura de estranhos idiomas,é viva e rica, e é polida e bela:

A mesma indignação freme na epístola a Aléxis47, «No dia dos anos de D. Fran-cisco Rafael de Castro (...) tendo-se pouco antes falado, entre eles e o autor, acerca do desprezo em que estava o estudo da Língua e Poesia Porguesas»:

Que má ventura, meu Aléxis, corre a nossa língua, outra hora tão senhora de povos mil, de vastos continentes, desde as margens do Tejo ao Indo e ao Ganges! Uns a desdenham, outros a atassalham; este tacanha a faz, transida, e magra; aquele a taxa de ensoada, e fria; estoutro lhe dá costas, atrevido, como se fosse rústico Numída: qual a troca por outras estrangeiras,...................................................................

Outro tanto sucede na epístola a Francisco José da Serra, «Sobre o desprezo em que muitos têm a Língua Portuguesa, perferindo-lhe as estranhas»48.

45 I, 260-264.46 I, 280-284.47 I, 63-67.48 I, 78-79.

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68 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Noutro elogio, contido em carta «A Monsenhor Ferreira em louvor da nossa Língua»49, demonstra a sua superioridade sobre a

Francesa Língua, que ora voga tanto,

e o mesmo faz na carta a Agostinho José da Costa Macedo, «Sobre a Harmonia Mecânica da Língua Portuguesa»50, em vibrante defesa, por vezes exagerada, do idioma,

posto que ingratos filhos escarneçam de seu romance, e gótico lhe chamem.

A mesma carta nos fornece preciosas indicações sobre a manutenção das vogais átonas abertas na pronúncia setecentista, quando diz, por exemplo, que

........................................ corre livresem o cigano cecear travado;sem muitos sons nasais que desagradam,sem tantos mudos és, que a França aumenta,nem tantos us sorvidos, que ensurdecem.

A epístola a Aléxis51, por sua vez, critica asperamente os «que escrevem por linguagem velha» – o que, aliás, o não impede de, desprezando os conselhos de Correia Garção na sátira II, empregar com frequência imigo52, e até al53 e estê54.

Esta preocupação com a pureza e sublimação da língua nacional estava dentro da linha de pensamento dos grandes poetas da época (lembre-se a famosa objur-gatória de Cruz e Silva contra o francesismo, no Hissope, e as epístolas e sátiras de Correia Garção – dois autores que o Duriense tanto prezava, que não sabia a qual dar a preferência55 – e ainda a carta a Brito de Filinto Elísio).

49  III, 8-9. Sobre os francesismos no nosso século XVIII, veja-se Manuel de Paiva Boléo, O problema da importação de palavras e o estudo dos estrangeirismos ( em especial dos francesismos) em português, Coim-bra, 21965, especialmente pp. 29-33.

50 III, 13-15.51 I, 186-187.52 I, 137, 166; II, 19, 23, 25, 54, 59, 129, 304, 312.53 I, 124 e 133.54 I, 33.55 Epistola «A António Álvares, da Congregação do Oratório, havendo perguntado ao autor o

juízo que formava do merecimento dos dous Poetas Diniz e Garção, e a qual dava a preferência» (I, 183-185). Ao elogio de Garção dedicou também os sonetos Junto da Fonte Santa, antigos Lares (II, 311) e Garção, Senhor do plectro d’oiro fino (II, 313), endereçados ao sobrinho do poeta, Francisco de Borja Garção Stockler.

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693. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

Dentro das tendências postas em voga pelos árcades, estava também o uso de latinismos, em que Elpino é pródigo56, bem como de neologismos57, e a preferência pelo verso branco58.

O poeta que assim procedia era também, não o esqueçamos, aquele que ela-borara diversas e eruditas memórias, quer sobre a literatura antiga, quer sobre a língua portuguesa e suas origens. Citemos apenas alguns dos títulos alinhados por Inocêncio no seu Dicionário Bibliográfico: «Das Origens e Progressos da Poesia Portuguesa», «Memórias da Poesia em Portugal», «Da conservação da antiga lín-gua geral da Espanha em todo o tempo do senhorio dos Romanos», «Elegâncias da língua portuguesa, extraídas dos seus clássicos», e uma série de monografias sobre o que nós hoje chamaríamos fontes celtas, gregas, latinas, visigodas, árabes, orientais e indianas do léxico português.

A erudição de Elpino Duriense transparece, de resto, em muitos outros poe-mas, em que o indigitado tradutor e certo comentador da Poética de Aristóteles, estampada em Lisboa, em 1799, que verteu também a lírica de Horácio para versos portugueses59, mostra a sua familiaridade com autores gregos e latinos. Tal conhecimento demonstra-se por três formas: as apreciações que lhes faz, as reminiscências ou imitações e as traduções. Estão no primeiro caso as epístolas Enquanto cem Poetas, caro Amigo60, Tu me pedes conselho, quais Poetas61, Salve, ó meus

56 E. g.: alígero (I, 102); alipotente (I, 62, 184) astripotente (III, 10); aurícomo (I, 48, 191, 215); avito (II, 49, 131); caprípede (I, 48); diro (I, 46); flamívomo (I, 36); gemífera (I, 198; II, 65);horríssono (I, 35); ignífero (I, 168); melífero (I, 215); navígero (I, 36); pulcrícomo (II, 65); tirsígero (I, 173, 199); undívago (I, 174; II, 33); veloce (I, 163).

57  E. g.: crujar (II, 151); damejar (II, 79); ebrifestivo (II, 225); loirar (I, 117); rusticar (I, 227).58 Advogada por Correia Garção em passo muito citado da epístola I. Elpino Duriense, em ode ao

Principal Castro (II, 247), escreve:

O verso grande, apoiadosobre seu ritmo comprido,corre com garbo sostido,sem ser da rima ajudado.

59 Lisboa, Imprensa Régia, 1807, 2 vols. Sobre ela escreveu Inocêncio: «Desta tradução (na qual foram totalmente suprimidas não menos de 16 odes, além de consideráveis interpolações em algumas outras, por motivos de honestidade, como se vê do prólogo), diz o Sr. Conselheiro António Luís de Seabra: que peca por ser em demasia literal, a ponto de ficar por vezes mais escura que o próprio original. Abunda em hipérbatos, latinismos e helenismos, que chegam a tornar dificultosa a sua inteligência ao comum dos leitores. Apesar de que a considera inquestionavelmente superior à de José Agostinho.»

60 I, 38-40, onde, ao referir-se a Sócrates, o faz usando a famosa frase de Cícero (Tusculanas, V, 4, 10):

O claro Ateniense, que primeiro chamou dos Céus a sã verdade à Terra.

Veja-se, sobretudo, a primeira parte da epístola «Sobre o prazer da leitura dos poetas na solidão» ( I, 45-49).

61 I, 280-284.

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70 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Livros, Livros escolhidos62. No segundo, as reminiscências de Catulo, do final da ode a Mirtilo63, e do proémio de Lucrécio, fonte aparente das suas várias odes «À Pri-mavera ou Vénus Física»64; as paráfrases de inúmeros passos das odes de Horácio65, trechos de Virgílio66 e das Metamorfoses de Ovídio67.

62 I, 285-288.63 II, 227, que adapta à bebida o motivo do carme V.64 É curioso discernir reminiscências de um passo da descrição da criação do mundo nas Meta-

morfoses (I, 12-14) numa epístola «científica» (I, 8-10) nos versos:

Umas vezes meditas, como a terra no circunfuso ar está pendente em seus pesos direita: como os braços a marinha Anfitrite cristalinos ora alarga, ora encolhe sobre as praias.

Também na ode à Virtude (II, 5-6) traduz, por vezes quase literalmente, a descrição da Idade do Ouro. Para solicitar a leitura ou exaltar a qualidade da versão do poema feita pelo seu amigo Almeno, resume todo o livro I e os versos 1 a 400 do II na epístola de I, 99-102; e II, 401-875, na seguinte (I, 103-109). Outro resumo do livro ocupa a ode de II, 108-109.

65 A epístola a Nogueira de I, 29-31 glosa o tema da aurea mediocritas, rasando de perto Carmina II, 18, 17-19 e, sobretudo, I, 4, 15. A epístola de I, 170-176 acusa o modelo de Carm. I, 1, II, 18 e IV, 7, 19-20. A epístola de I, 228-229, desenvolve os lemas que adopta de I, 9 e III, 29. Na de I, 238-240, há recordações de I, 9 e epodo XIII. A de I, 241-243, é uma espirituosa adaptação do epodo V, com actos de magia, em que a vítima é o próprio autor, que acaba por acordar daquele pesadelo para cair num outro castigo ainda pior, profetizado pelas bruxas: os cáusticos que o aguardam. A ode de II, 11-14 lembra de perto o Carmen Saeculare, cujas segunda e terceira estrofes verte quase literalmente, substituindo Roma por Lísia. A quarta estrofe da ode de II, 17-18, aponta para a primeira de Carm. III, 3. A segunda estrofe de II, 72-74, é um eco de Carm. II, 10, 19-20, tal como II, 113-115 o é de I, 31. A ode «Em louvor da vida do Campo» (II, 131-132) é uma paráfrase do epodo II, e a «Sobre os diversos cuidados e prazeres do homem» (II, 135-136) tem uma entrada reminiscente de I, 1. A de II, 147 contém parte de III, 30. A de II, 156-157 observa em nota que foi feita sobre Carm. I, 24. O final da ode de II, 162, dá-nos o primeiro verso de Carm. III, 3. A estrofe final de II, 166-167, é uma adaptação dos dois últimos versos de Carm. I, 1. A fons Bandusiae de III, 13 inspirou-lhe duas odes (II, 205-206; II, 211-212). Na ode de II, 233-234, distinguem-se reminiscências de IV, 7, 21-24; II, 18, 31-32 e talvez de II, 10, 1-4. A ode a Castálio (II, 236-237) lembra III, 8 e III, 29. O princípio da de II, 239-240, é um eco de I, 9, a que não falta, como em Correia Garção (ode III) o acrescento do ponche. A epístola de III, 3-5, apresenta-se como derivada de Carm. I, 5. Finalmente, as odes de III, 32-34 e III, 35 -37 são dadas como paráfrases, respectivamente, de Carm. I, 3 e II, 14.

66 A epístola de I, 45-52, ao falar de Virgílio (p. 46), parafraseia a proposição da Eneida; a descrição do pomar do autor, em I, 191-202, enfeita-se com alusões à Bucólica I. O conhecido passo de Buc. III, 64-65 serve de lema à ode de II, 283-284.

67 É curioso discernir reminiscências de um passo da descrição da criação do mundo nas Meta-morfoses (I, 12-14) numa epístola «científica» (I, 8-10) nos versos:

Umas vezes meditas, como a terra no circunfuso ar está pendente em seus pesos direita: como os braços a marinha Anfitrite cristalinos ora alarga, ora encolhe sobre as praias.

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713. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

A terceira espécie está representada nos volumes das Poesias, quer por versões do grego quer do latim. Dois excertos da Ilíada (I, 1-120 e VI, 466-493), o idílio de Bíon à morte de Adónis, seis Anacreontea (das quais duas com dupla versão), a cha-mada «Ode de Safo a Fáon», e o Amor Fugitivo de Mosco compõem a parte helénica. Da latina, dois episódios de Lucrécio (o exórdio, I, 1-20, e o trecho sobre a origem da linguagem, V, 1028-1090); os primeiros trezentos versos da Eneida; o prefácio e a primeira fábula de Fedro.

Deixando ficar as versões do latim, geralmente fiéis e respeitadoras do espírito do texto, reparemos que Elpino Duriense se não limita a exercitar-se em poemetos tardios, inúmeras vezes traduzidos ou parafraseados, como o Ἔρως δραπέτης de Mosco, de que António Ferreira fez a sua elegia VII e Pedro de Andrade Caminha a elegia VIII, e que foi aproveitado por Gil Vicente para a sua Frágua de Amor68 e, mais tarde, vertido por Bocage; ou ainda como o lamento pela morte de Adónis, que Bocage também verteu «fielmente da tradução literal em latim», como refere a didascália. Num e noutro caso, a ciência e técnica do verso de Elpino não atin-gem, como é de esperar, a musicalidade e fluência de Elmano, embora haja de reconhecer-se que a versão de Bíon pelo primeiro mantém uma bela cadência. Também desde o tempo de António Ferreira que os vates lusitanos se ensaiavam a verter o que eles – e quase toda a gente, ao tempo – julgavam ser poemas de Anacreonte. Escolheu Elpino Duriense as Anacreontea 4, 7, 23, 24, 33, 5169 (a que dá os números, respectivamente, de 17, 11, 1, 2, 3, 33), observando com felicidade o movimento e a intenção dos poemetos. De sublinhar, o erudito cuidado com que anota e discute certas dificuldades de interpretação das três primeiras.

A sua tradução do frg. 31 Lobel-Page de Safo pode considerar-se notável pela aproximação do original, sem perder a elegância da linguagem e da métrica, e não nos surpreende que o autor se desvie um pouco da letra na mutilada estrofe quarta. Mas a versão de «o rosto amarelece», expressão tirada de António Ferreira, que Elpino declara em nota ter preferido ao literal «estou mais verde que a erva», a pretexto de que «esta imagem por muito vulgar não sairia bem em nossa Língua» esbate desnecessariamente muito do poder comunicativo da poetisa.

De especial interesse é a versão das primeiras 120 linhas e da despedida de Heitor e Andrómaca (VI, 466-493) da Ilíada. A passagem dos hexâmetros homéri-cos a hendecassílabos portugueses é sempre difícil, particularmente no que toca

Também na ode à Virtude (II, 5-6) traduz, por vezes quase literalmente, a descrição da Idade do Ouro. Para solicitar a leitura ou exaltar a qualidade da versão do poema feita pelo seu amigo Almeno, resume todo o livro I e os versos 1 a 400 do II na epístola de I, 99-102; e II, 401-875, na seguinte (I, 103-109). Outro resumo do livro ocupa a ode de II, 108-109.

68 Vide o nosso estudo publicado na colectânea citada na n. 43, p. 55, n. 1, e p. 151.69 Destas, a 23 foi traduzida também por Cruz e Silva e por Garrett (nas Flores sem Fruto); a 24, por

António Ferreira, José Anastácio da Cunha e Garrett; a 33, por António Ferreira.

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72 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

aos epítetos. A Marquesa de Alorna, que, pela mesma época70, não hesitara em empreender a difícil acrobacia métrica de trasladar em 123 estâncias de oitava rima os primeiros 516 versos do poema, resolve a dificuldade, eliminando-os quase todos. Apenas fica «a moça d’olhos pretos» para ἑλικώπιδα κούρην e «o deus do arco argênteo». Em nota ao primeiro (t. III, p. 292), explica o pouco que ao tempo se sabia sobre o assunto:

Estes e outros epítetos de que usa Homero, como, por exemplo, olhos bovinos, que emprega falando de Juno; pés argênteos, que atribui a Tétis, etc., são para dar uma ideia da beleza particular, ou da qualidade e ofício da personagem de quem fala.

Outro tanto havia de fazer, já no século XIX, um Félix Pereira, na sua descui-dada versão dos Poemas Homéricos.

Não assim o nosso erudito poeta. Porém, se foi hábil na sua equivalência de de fina greva para ἐϋκνήμιδες e de donzela de negros olhos para o já citado ἑλικώπιδα κούρην, se podemos ainda aceitar o latinismo de pulcrícoma para ἠΰκομος, não podemos deixar de censurar, como uma distorção ao espírito da língua, o longe--vibrador, largo-atirador, longe-frechador, trazedor d’arco fúlgido, para os epítetos de Apolo; o veloz-cursor, para o de Aquiles; o largo-ressonante, para o mar71.

Grande número das composições de Elpino Duriense não excede o âmbito do poema de circunstância, muito em voga na época. É o caso das que se destinam a louvar uma pessoa importante72, a festejar os seus anos73 ou a convidar um

70 A publicação do tomo I de Elpino Duriense data de 1812. Sabe-se que a Marquesa de Alorna se dedicou às traduções por volta de 1810 (Hernâni Cidade, A Marquesa de Alorna, Porto, 1930, p. 37) e que as suas obras só foram editadas postumamente, em 1844.

É natural que António Ribeiro dos Santos, que pouco tempo frequentara a tertúlia do locutório de Cheias (cf. Hernâni Cidade, op. cit., pp. 16-17) e, portanto, perdera o contacto com Alcipe, não tivesse conhecimento desta outra tentativa.

71 A ode Das Apolíneas vestes adornado (II, 62-64) é também uma paráfrase do episódio inicial da Ilíada: o do sacerdote Crises.

72 Odes Louvam-te, ó Rei, as Musas soberanas (II, 9-10), Deuses de Lísia, que no Olimpo eterno (II, 11-14), Sê doce Pai da Pátria, este só nome (II, 15-16), Quando Jove aos mortais benigno um dia (II, 48-49), Quanto, Barroso amigo, os mais dos homens (II, 60-61), Já o vento de Crisa sopra: aonde (II, 65-67), Humano coração, peito inocente (II, 68-69), Com férvidos suspiros desejando (II, 89-90), Jura o sagrado Tejo, que os teus versos (II, 110-112), Ó meu claro Barroso, eu pasmo, quando (II, 127-128), Se Heróis de peito d’aço, em punho a espada (II, 129-130), Ou tu pretendas nos Olímpicos Campos (II, 143-144), Eu toco, ó Lira; soa nela Castro (II, 162), Canta, ó Musa, um nome excelso (II, 258-260).

73 Epístolas Louvem-te, ó Castro, ao doce som da lira (I, 146- 147), Que quereis vós, Senhor, que lá vos mande (I, 148-150 – semelhante a III, 5-7), Eis já raiou, Lorino, o alvo dia (I, 222-223), Canta Sagrada Musa, e ao som Divino (III, 25-30), Ninfa gentil, a quem as brancas Ninfas (III, 77-79); odes Sangue dos Lusos Deuses, alto objecto ( II, 70-71), Eu te mando, Senhor, os áureos versos (II, 153-155), Passou teu claro dia, e meu, ó Castro (II, 163-164), Os justos Céus, Senhor, não consentiram (II, 165), Neste tempo, em que a virtude (II, 261-263).

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733. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

amigo74 para uma pequena celebração, naquela frugal simplicidade e despreocu-pado gozar do dia que passa, que Horácio sublimara e Correia Garção divulgara. Dentro dos gostos da época estava ainda – como o provam, entre nós, por exem-plo, as Recreações Botânicas da Marquesa de Alorna – as descrições mais ou menos científicas da Natureza. Emoldurando-as no tema do convite, Elpino Duriense dirige três extensas epístolas a D. Maria Luísa de Valleré, nas quais descreve o seu pomar75, a horta76 e o jardim77.

A primeira entrelaça na descrição reminiscências da I Bucólica virgiliana e temas mitológicos, que lhe conferem uma agradável variedade. Uma complacente ironia anima a quarta descrição do género, a dos animais da sua quinta, enviada a um amigo78, e feita com um sadio realismo, que faz lembrar o Correia Garção das epístolas ou das sátiras, ou mesmo Filinto Elísio.

Em tudo isto transparece já um pouco da vida do poeta, do seu gosto pelos «prazeres inocentes» que exalta, ao autobiografar-se, numa das epistolas ende-reçadas a D. Maria Luísa de Valleré79:

Chamam-me godo, solitário, e triste,e sem prazer na vida; e eu vivo alegrea mim e aos meus; e de mim só contente,e daqueles, que eu amo, estimo, e prezopor cima das estrelas: que mais quero?

O poemeto enumera a seguir, à boa maneira horaciana, diversos gostos em que se afadigam os homens, para depois descrever a simplicidade calma do seu viver

onde me assiste uma família antiga,que me ama e me estima, e me alivia em partepeso dos domésticos cuidados:onde há decentes móveis, não modernos,

74 Epístolas Honra ilustre de Febo, amor das Musas (I, 95-98), É tempo, Almeno, de deixar o Sado (I, 99-102), Que saudades não tenho, que desejos (I, 103-109), Sampaio, Amigo, eis o meu dia é este (I, 144-145), A um só alvo, Amigo, ambos tiremos (I, 228-229), Passou Amigo, o dia de hoje, e temos (I, 238-240); odes O dia está sereno, a mesa pronta (II, 216), Aléxis, fecha os Livros e as Pandectas (II, 219), Convido-te, que venhas neste dia (II, 220-223), De nós o dia se despede: dize (II, 224-225), Sacudamos da frente esta velhice (II, 226), Convido-te a jantar, Mirtilo, deixa (II, 227), Tu a quem Baco desde a tenra idade (II, 228-229), Co’a nota de dez anos assetada (II, 230), Este dia, Montano, vai fugindo (II, 235).

75 I, 191-202.76 I, 203-210.77 I, 211-221.78 I, 224-227.79  I, 170-176. Tal gosto reflecte-se na sua poesia, composta só de «graves versos», com exclusão 

dos temas amorosos, como declara ao defender-se das censuras que por tal motivo lhe foram feitas, na sua epístola Tu me acusas, Amigo, de mau gosto (I, 155-157).

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74 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

não splêndidos, mas limpos e arranjados;pouca alfaia, e baixela, mas que basta,e nada deve a quem a obrou do preço:onde há vinte painéis de mão de mestre,que quanto mais os vejo, mais me agrado.E em longa sala estantes enfiadasde bons livros da douta antiguidade80.

O seu vergel, a beleza da paisagem, com o Tejo em frente, o consolo de se sentir com saúde, animado de desejos puros e generosos, contam entre as suas bênçãos, e

ao pensar nestas coisas docementetodo m’encho de mim, e mais do Nume,que me deu ser, e que meu ser conserva.

A epístola seguinte81 revela-nos as suas ocupações favoritas: a leitura de filó-sofos, oradores, poetas, historiadores; a elaboração da sua obra de investigador:

Uma hora escrevo meus discursos vários,e umas certas memórias, talvez úteis,de assunto a meu padar mui saboroso;outra hora lido absorto em descobertas,que são os meus encantos, sobre a língua,

80 É interessante comparar esta descrição com a de Castilho, na nota apensa à Primavera (pp. 147-148), que citámos no começo deste ensaio:

A morada de Elpino, que em um dos mais desafrontados altos de Lisboa está formosa-mente situada, longe do bulício, como bem cabia à sua índole pacífica e génio estudioso, é um templo de Musas, religiosamente vedado aos olhos e vozes dos profanos, isto é, dos maus e ignorantes, únicos de todos os entes para quem sua porta e ânimo não eram hospedeiros.

Por aquelas salas, gravemente ataviadas à laia dos nossos antigos, de sedas e arrases, alcatifas, tremós, espaldares, e soberbos quadros dos mais peregrinos pintores, reina o silên-cio, e uma lembrança dos antigos e abundantes tempos de nossos avós...

Mais adiante (p. 149), descreve assim a biblioteca:

Era a biblioteca o íntimo retiro deste ermitão do Parnaso, fugida para longe das casas, posto que tão quietas, e frescamente assentada em meio de muitas sombras, verduras e aromas de seu jardim, hortas e pomares.

Grandíssima cópia de livros, longamente procurados e custosamente juntos, e entre os quais se estremavam no número e riqueza os Gregos, os Romanos, e os antigos Portugueses, ali estavam juntos, entre o sussurro estudioso das ramas e os cantares descuidosos dos pássaros.

Um Apolo de mármore com a sua lira em punho parecia estar-se mui bem cabido e contente no meio daquele seu alcáçar, cercado de tantos seus cultores, servido por tão vene-rando Sacerdote.

81 I, 177-180.

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753. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

ou antiga ou moderna, das diversasgentes de Espanha e Lísia; investigandopor gostosas análises, que encantam,seu natio e linhagem, seus solares,sua gentil carreira, seus progressos,a força e concisão; a melodia;coisas, que possam ser proveito aos nossos.

E, quando se sente inspirado, consagra-se à poesia:

Pois já que vos direi, se o claro Apoloalguma vez me raia, e brando inspiraversos a meu sabor: quamanho gosto!Sente-se, mas não se explica este deleite,que excita a fantasia, a mente inflama,e entorna dentro d’alma altas doçuras.

O cultivo das Musas é o seu deleite; na companhia delas deseja terminar os seus dias82. A outra fonte de prazer são os livros, aos quais endereça uma bela epístola83, reveladora das suas preferências literárias: autores gregos, latinos, portugueses e ainda outros, «de Nações várias, de diferentes Línguas», enchem as estantes. Sente-se ainda a devoção do bibliófilo naquela ode a um amigo84 em que o carpe diem horaciano se transmuda na saudade de uma despedida dos livros, visionada com a precisão do profissional e o requinte estético do amador de coisas belas:

Hás-de deixar um dia os caros livros,de papel fino, de gentil carácter,de longas margens, de vinhetas belas,de rica vestidura.

82 Epístolas Nestes últimos dias, que me restam (I, 247.-249) e Eu quero ser só vosso, ó Musas; quero (I, 265).83 Salve, ó meus Livros, Livros escolhidos (I, 285-288).84 O tempo escapa, ó Cordes, vão com ele (IIs, 175-176). O final da epístola citada na nota anterior 

deixa entrever os hábitos do bibliotecário:

Que ainda um dia o novo dono vosso,quando vos registar, possa lembrar-sedo antigo dono, que tivestes ..............

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76 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

O poeta vive «em plácido retiro», todo entregue ao estudo dos Celtas. É ele mesmo quem no-lo diz, numa epístola85 a um amigo, conterrâneo e colega de Direito, em que, depois de enumerar grande parte dos seus trabalhos, relembra a mocidade e a avidez de saber de ambos, num quadro desalentado, em que perpassa o esplendor das cerimónias universitárias coimbrãs:

......................................... S’ambos quiséssemos conter nossos desejos,........................................................do pátrio Doiro as Thyoneas ribasnão deixáramos ambos; nem nas margens,que as águas banham do ancião Mondegoiríamos fazer dura campanha;nem borla verde a mim, a ti vermelha,por fim de mil fadigas e cuidados,sobre a lassa cabeça pesaria,que nem nos faz melhores, nem mais sábios,nem mais sadios; mas o luxo altivoentrou em tudo; até entrou nas Letras.

A mesma desilusão aflorava já numa ode a Almeno86, composta quando ainda professava activamente em Coimbra, em passo revelador do aparato e severidade com que se processava o ensino superior. Contudo, deve ser dessa mesma época a epístola que abre as suas Poesias, endereçada a D. Francisco Rafael de Castro «quando foi nomeado Reformador Reitor da Universidade», em que fulgem estas sentenças de permanente actualidade, escritas por alguém que não punha em dúvida o valor da educação:

A mor obra, que importa a um Rei, a um Reino,de que pende da Pátria o bem e a glória,é educar os Cidadões futuros,qualquer que seja o seu destino e arte,no regaço das Leis, e sãos costumes;mas muito mais, os que hão-de vir um dia

85 Epístola Perguntas-me que faço: vivo agora (I, 151-154). Cf. Epístola Aléxis, tu querias, que eu cantasse (I, 133-135); odes Quão diversos não são, ilustre Cordes (II, 135-136), Tu, Senhor, de mim te queixas (II, 250- -255).

86 Que cuidas tu, que eu rogo aos altos Deuses (II, 113-115). Cf. a epístola De quantos modos, meu Barroso amigo (I, 93-94).

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773. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE

defender com prudência, zelo e sisoos bens, a liberdade, a vida, a honra,os direitos do homem, as regras santasda Moral, da Justiça, da Equidade.

Um lugar à parte ocupam as evocações da sua cidade natal, de que não nos ocuparemos aqui, porque o faremos noutro lugar87. Notemos somente que a ode «Em Louvor da Cidade do Porto, pátria do Autor» é um dos melhores exemplos de combinação de modelos e formas clássicas com motivos da actualidade. Passa nessas estrofes, apesar da sua severa contenção formal, o frémito de vida que animava as actividades ribeirinhas da cidade em plena expansão comercial, fomentada pelo Tratado de Methwen e pelas medidas de protecção ao vinho do Porto, tomadas pelo Marquês de Pombal. Na outra ode, «Em louvor das Dórides», a ficção classicista mantém-se todo o tempo, revelando, aliás, uma capacidade mitopoiética notável, sobretudo na estrofe em que se personificam os afluentes do Douro.

Estamos tão longe do pregoeiro entusiasta do «famoso Barão de Verulâmio» (Bacon), do «sábio Locke», do «douto Malebranche», do «excelso Newton»88, como do apreciador das «Quintilhas saborosas / do claro Tolentino», que colocava acima de todos os poetas do seu século89, do crítico severo dos cáusticos, que lhe tiravam o seu precioso tempo90, como do amigo que chora sentidamente a morte de Almeno91 ou convida os que estima a deleitarem-se com ele na leitura dos seus autores predilectos92. Dentro deste círculo de interesses, em que o passado clas-sicista e arcádico alterna com o deslumbramento perante as novas perspectivas culturais, é que se tornou possível a fusão de dois mundos, aliás não irreconciliá-veis, cuja mais nítida expressão é talvez este passo da epístola «Sobre os objectos dignos da Poesia» (I, 58-62), em que introduz o elogio de Locke e Clarke através de um símile mitológico:

Quais benignos Tindárides luzentesque no meio das trevas d’alta noite

87 Vide supra, «Um Elogio Setecentista da Cidade do Porto».88 Expressões tiradas da epístola Em quanto cem Poetas, caro Amigo (I, 38-40).89 Ode Sacudamos da frente esta velhice ( II, 226). A apreciação crítica de sábios e poetas contem-

porâneos pode ler-se na epístola Eu estendo, Nogueira, pelo mundo (III, 17-21).90 Epístolas Acusais-me, Senhor, que me encastelo (I, 232-233), Hei-de contar-te, Amigo, um caso triste

(I, 241-243 ), Amigo, s’eu pudesse ter sobejo (I, 244-246). Odes Tu, Senhor, de mim te queixas (II, 250-255), Ó Grosfo, já estou cansado (II, 264-268).

91 E.g.: Odes Devido à lei fatal da natureza (II, 147), Quando o prazo fatal, que os Céus marcaram (II, 149-150).

92 E.g.: Epístola Quanto, Fileno amigo, com a idade (I, 91-92).

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78 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

fulgem dos Céus aos pavorosos nautas,tais eu cantara o excelso Locke, e Clarke,novos astros, que sobre o mundo escuroda vasta Metafísica profundalançaram luzes, que inda agora brilham.

É aí que temos de procurar o encontro com o poeta Elpino Duriense. Encon-tro sem dúvida frutuoso, porque nos revela uma das mais atraentes e mais ricas personalidades do nosso Século das Luzes.

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4. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA*

O preceito horaciano do utile dulci era bem conhecido de Alcipe, que traduziu toda a Arte Poética durante o exílio em Inglaterra, no mesmo período da sua vida em que se dedicava também a verter poetas ingleses e alemães. É assim que ela exprime os passos mais relevantes sobre a dupla finalidade aí atribuída à poesia1:

Poetas querem ou dar gosto à gente, ou dar-nos instrução; e as mais das vezes instruir e agradar ao mesmo tempo. ........................................................Toca o ponto o que unir útil e doce,o leitor ensinando e divertindo.

É fora do nosso propósito renovar aqui a discussão sobre um tema que atraves-sou séculos, a despeito da conhecida advertência de Aristóteles, de que «nada há de comum entre Homero e Empédocles, a não ser o metro»2. O certo é que, entre muitos poemas que tinham tentado conciliar as duas finalidades, e que, na sua maioria, se situam no que hoje se chama paraliteratura, conta uma obra-prima,

* Publicado em Boletim da Faculdade de Direito (1983), 827-852 (Miscelânea Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz); Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 193-215.

1 Obras Poéticas (Lisboa, 1844), 6 vols. (de onde serão feitas todas as citações de escritos em verso, embora modernizando a ortografia). O texto referido é do tomo V, p. 45, e corresponde aos versos 333-334 e 343-344 do original latino. Sobre a origem helenística, provavelmente de Neoptólemo de Paros, desta doutrina, vide C. O. Brink, Horace on Poetry. The ‘Ars Poetica’ (Cambridge, 1971), pp. 352-353. Note-se que as versões setecentistas portuguesas da Arte Poética são em número considerável, como pode ver-se no artigo “Traduções”, de Luís de Sousa Rebelo, para o Dicionário da Literatura, dir. Jacinto do Prado Coelho (Porto, 31973).

2 Poética 1447b.

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80 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

não a mais admirável, mas a mais perfeita das que Virgílio compôs: as Geórgicas. E que o séc. XVIII, com a sua sede de saber e de desvendar os segredos da Natureza, tinha esse modelo especialmente em conta, quando se multiplicava em poemas didácticos. Mesmo assim, ainda era possível ouvir, em França, um desabafo destes, saído da pena de um tradutor de ambos os poemas maiores do Mantuano3:

Poucas pessoas, digo mais, até poucos literatos lêem as Geórgicas de Virgílio, e quase todos os que aprenderam latim sabem de cor o quarto canto da Eneida.

Quem assim falava, em 1780, tentou, vinte anos depois, ensinar e descrever o pitoresco da Natureza em L’Homme des champs ou les Géorgiques Françaises, e foi muito apreciado e influente na sua época, a ponto de ser possível pronunciar sobre ele hipérboles como esta:

De Virgílio o rival, Delille ameno.

Era assim que Bocage, no prólogo à sua versão de As Plantas de Ricardo de Castel classificava o autor de Os Jardins, também por ele traduzido «em verso, por ordem de Sua Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor». Aliás, o próprio Castel ousava, no corpo do poema, a mesma aproximação4:

Qual olmo, que a nível de si vê quase outro brilhar, subir, seu digno fruto, assi o grão Pastor da antiga Mântua a seu lado, haveria o seu Delille.

É neste contexto – a que muitas outras obras haveria a juntar, como as British Georgics de Grahame, o Botanical Garden de Erasmo Darwin (traduzido em portu-guês pelo Dr. Vicente Pedro Nolasco da Cunha), A Agricultura de Rosset (de que Bocage verteu os cinco primeiros cantos), o Consórcio das Flores de La Croix (tam-bém traduzido por Bocage) e tantas mais – que se situam as Recreações Botânicas da Marquesa de Alorna. Já Hernâni Cidade escreveu a este propósito que o poema «mostra-a tomada dos interesses mentais dominantes na Europa»5. Aliás, a autora

3 Jacques Delille (1738-1813), que aos trinta e um anos ganhou fama com a versão das Geórgicas, e em 1802 publicou a da Eneida, que foram êxitos literários na época. O trecho citado provém do prólogo ao seu poema Les Jardins, na tradução de Bocage (Opera Omnia, dir. Hernâni Cidade [Lisboa, 1973], tomo VI, p. 13; é nesta edição que se basearão todas as transcrições de Bocage). Sobre a moda das Geórgicas na segunda metade do séc. XVIII, veja-se R. Pichon, Virgile. Oeuvres Complètes (Paris, 31936), p. 684.

4 Tradução de Bocage, Opera Omnia, tomo VI, p. 164.5 Lições de Literatura e Cultura Portuguesas, vol. II (Coimbra, 51968), p. 413.

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814. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA

conhecera pessoalmente Delille, por ocasião das suas viagens pelo Sul da França6, e toma-o em parte como modelo7.

Alcipe desejava atrair as senhoras portuguesas, a quem dedica a obra (embora os três primeiros cantos tenham como destinatário imediato cada um uma filha) ao estudo da Natureza e das suas imensas riquezas. Pretende dar-lhes a conhecer o sistema de classificação das plantas por Lineu e levá-las a herborizar, como os dois grandes sábios nacionais, Brotero e Correa da Serra. A propósito do primeiro, alude à organização do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra8:

Se a Ciência buscais, consultai esse que o viveiro plantou dos Botanistas; e junto do Mondego explora as plantas.

Voltando a Lineu, a autora entusiasma-se com as potencialidades de um poema didáctico9:

Da Verdade nasceram ficções lindas, que, sem desfigurá-la, aos Vates servem para orná-la dos trajes mais modestos: e as Musas, cujos cofres, esgotados pela Grécia, já pobres se julgavam, incógnitos tesouros descobriram.

6 Obras Poéticas, «Noticia biográfica», tomo I, p. XXV. Cf. também Hernâni Cidade, A Marquesa de Alorna (Porto, s.a.), p. 31.

7 Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, vol. II, p. 413. Na edição das Obras Poéticas de Alcipe, tomo IV, Carlos Manuel Soyé aponta, na nota 9 da p. 148, um passo do Canto III (p. 58), a que dá por modelo o Abade Delille.

8 Obras Poéticas, IV, p. 8. À data da composição do poema (Abril de 1813), Brotero, jubilado havia dois anos, era, na realidade, director do Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda, segundo os dados de Abílio Fernandes no artigo respetivo da Enciclopédia Verbo. Sendo assim, põem-se duas hipóteses: ou que Alcipe, no seu exilio em Londres, não tivesse ainda conhecimento da mudança do cientista para Lisboa, ou que essa parte das Recreações tenha sido composta antes de 1811. A primeira solução afigura-se-nos mais provável. Note-se, de passagem, que a célebre Flora Lusitana foi publicada em 1804, e a Exposição sobre a decadência do ensino da Botânica é de 1816. Como é sabido, foi Vandelli, com outros italianos, o encarregado do traçado do Jardim Botânico pelo Marquês de Pombal (cf. Maximino Correa, «A Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra e os Italianos», Estudos Italia-nos em Portugal, 13 (1954), 3-25, especialmente pp. 12-15), mas o seu acabamento só se fez no segundo quartel do séc. XIX. É a partir de 1791 que se situa a grande actividade de Brotero, como encarregado da cadeira de Botânica e Agricultura. Cf. J. Ferreira Gomes, «A Reforma Pombalina da Universidade», Revista Portuguesa de Pedagogia, 6 (1972), 25-63, especialmente pp. 50-51 e nota 3.

9 Obras Poéticas, VI, p. 9.

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82 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

O exemplo logo a seguir invocado é do já referido Erasmo Darwin, que a anima a traçar, num largo quadro cheio de alusões mitológicas, o que então se chamava o consórcio das flores, e a aludir ao simbolismo das plantas. E, quase a concluir10:

Eis-aqui como as flores desafiam da escandecida fantasia os voos: como disfarça a fábula a verdade, e converte em recreio sério estudo.

O simbolismo a que nos referimos é uma das chaves do poema. Confirmam o facto as próprias filhas da Marquesa, na Notícia biográfica que antepõem à edição das obras da mãe11:

Nessa época é que a Condessa escreveu o poema das Recreações Botânicas, composição sua original, onde reluzem claramente os sentimentos da autora, como boa Portuguesa. Nele desafogou todas as suas mágoas, achando em várias plantas analogias com as propriedades de seus perseguidores, e com a inocência dos seus parentes processados. E por esta razão não consentiu que se imprimisse, durante a sua vida.

Por trás da descrição objectiva, revela-se, a cada passo, o paralelo humano. Assim, por exemplo12:

As Mascarinas, menos favoráveis, às vezes úteis são, e são nocivas; fazem bem por acaso, como aqueles que sem pura intenção os dons espalham. Não comparo estas plantas, bem que possa.

E mais adiante, a propósito do venenoso estramónio13:

Estas plantas ingratas lembram aves em cujo feroz peito ambição cria de ruina e vingança planos vastos.

10 Obras Poéticas, IV, p. 12.11 Obras Poéticas, I, pp. XXXIII-XXXIV.12 Obras Poéticas, IV, p. 63.13 Obras Poéticas, IV, p. 64.

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834. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA

Mas noutros passos a alusão é bem clara, sobretudo se fala do carvalho, nome por que os poetas setecentistas costumavam designar o Marquês de Pombal14. Eis uma amostra15:

Floresta de Dodónia! Vós que ouvistes as sentenças ambíguas desses troncos, justificai os Céus, e revelai-me como um Carvalho foi na Lísia horrível, e apagou da Virtude o santo lume!

Depois de descrever conscienciosamente as vinte e quatro classes de Lineu, chegou a vez de abandonar as algas e fungos, do extremo da escala vegetal, e de saudar uma planta especial, que não entrava no sistema16:

Vós, símbolo da glória, vós, Palmeiras!

Essas árvores, «do triunfo símbolo», levam-na a evocar os heróis gregos, como Teseu, Aquiles (com alusão ao Canto XXIV da Ilídia e a Mémnon), os Jogos Olímpicos (sem esquecer a estátua de Fídias, no templo de Zeus Olímpico). A mesma palavra--chave a transporta subitamente à actualidade, numa longa apóstrofe a Sir Arthur Wellesley e sua glória, ensombrada embora pela Convenção de Sintra, da qual, aliás, o não culpa. Este elogio do futuro Duque de Wellington e vencedor de Napoleão, a cuja glorificação há-de dedicar uma Ode17, traz consigo uma recordação pungente,

14 «Carvalho» é o título da Écloga IV de Reis Quita. É curioso notar a frequência com que os Árcades, e mesmo os Dissidentes, festejavam o estadista em verso. Assim, o mesmo Reis Quita consagrou-lhe também as Éclogas V e VI, a Ode IV e os Sonetos IV, V, VI, VII e VIII. Cruz e Silva escreveu, em honra do Marquês, o Idílio XVI, o Ditirambo VIII e as Odes IV, V, VI, VII e VIII. Correia Garção celebrou, na Ode XXXI, a elevação de Carvalho a Conde de Oeiras. Fora da Arcádia, temos um exemplo em José Anastácio da Cunha (p. 79 da edição de Hernâni Cidade, Coimbra, 1930), outro em Filinto Elísio («Ode ao Grande Marquês de Pombal», publicada em O Investigador Português em Inglaterra, vol. VIII, n.º 29, pp. 24-27).

15 Obras Poéticas, IV, p. 44. Mais adiante, p. 99, reencarece:

Os Carvalhos são árvores, têm flores tão úteis ao cultor, quanto nocivo na política faz seu nome estrondo.

Os dezoito anos de Chelas não esqueciam facilmente, mesmo quando os perseguidores tinham passado a ser Pina Manique e outros ...

16 Obras Poéticas, IV, p. 111.17 Obras Poéticas, II, pp. 89-91 (a propósito de uma Ode de José Agostinho de Macedo a Lord Welling-

ton).

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84 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

a da morte do seu irmão, o Marquês de Alorna, em Koenigsberg, em Janeiro de 1813, acontecimento sobre o qual escrevera, numa Ode a Filinto, no mesmo ano18:

Estranha terra cobre o Luso Turno, que esperdiçaram deslembrados Numes, e a Pátria, que em vaneios despedaçasantos, fidos Penates.

No final das Recreações Botânicas, não é o «Luso Turno», mas a visão do Frígio Eneias que lhe serve de comparação, quando a sombra de Heitor lhe aparece no momento em que Tróia se arrasava19. É esse sonho que a leva a reagir, e a terminar o poema com a jura, perante os deuses, de vingar o herói, pois não passarão dois anos antes que trema / ou caia do usurpado trono o monstro / que da miséria humana se alimenta. Caso raro, a História deu-lhe razão...

Das diligências e do êxito na reabilitação do 3.º Marquês de Alorna dão teste-munho as cartas de Alcipe ultimamente publicadas20.

Este exemplo já permite fazer uma ideia da agilidade com que a autora extra-vasa da aridez do sistema de classificação das plantas para os problemas, gerais ou pessoais, que a preocupam. Também o Canto V terminava com uma após-trofe (trazida pela referência à nogueira) a Ricardo Raimundo Nogueira, um dos membros da Regência, a quem exorta a governar com mais doçura e a escolher o caminho da verdade e da pacificação21. No Canto II, a referência ao alho levara-a ao Epodo III de Horácio e à túnica de Nessos, e daí à resistência ibérica às invasões francesas22. Numa tonalidade mais pessoal, o Canto I conclui com a descrição da sua residência no Gloucestershire23, em que se reflecte o gosto pela Natureza, que Thomson (de quem traduziu livremente a Primavera) pusera na moda. Essa descrição, porém, aviva-lhe as saudades de Lisboa, onde este calor vital que sinto / teve a cálida origem. Outros enquadramentos naturais adornam o poema: a vista

18 Obras Poéticas, II, pp. 92-94. Alcipe consagrou a este acontecimento uma Ode imitada da XXI do Livro I de Horácio (Obras Poéticas, II, pp. 122-123).

19 Obras Poéticas, IV, p. 115. Cf. Eneida II.268-297.20 Sobre as condições em que o Marquês foi obrigado a combater nas campanhas napoleónicas,

veja-se Aníbal Pinto de Castro, «Uma carta inédita da Marquesa de Alorna», Revista da História Lite-rária de Portugal, 4 (1975), 405-412, e bibliografia aí citada. A carta em questão, datada de 1822, é de grande interesse. Muito elucidativa também, porque escrita sob a pressão dos acontecimentos, é a carta ao Conde da Barca, publicada por A. Luís Vaz, A Marquesa de Alorna. Cartas do Exílio em Londres (1804-1814) (Braga, 1974), p. 114, que começa assim: «Finalmente conseguiu Bonaparte os desejos e desígnios malévolos com que arrancou de Portugal o mais fiel e honrado dos homens».

21 Obras Poéticas, IV, p. 101.22 Obras Poéticas, IV, pp. 39-40. Cf. também p. 141, nota 27.23 Obras Poéticas, IV, p. 26. A própria autora esclarece em nota (p. 132): «Na confluência da Vaga 

e do Saverno estava situada a casa de Wye-Cottage, onde eu compunha as Recreações Botânicas».

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do jardim de Brandebourg-house à tarde24, no Canto V, a descrição das aleas sump-tuosas de Schombrun e o acto de clemência de Maria Teresa para com a sentinela adormecida e últimos momentos da Imperatriz25. Lembranças da sua prolongada e feliz estadia na corte austríaca26... Outras lhe ocorrem logo à memória, como os dias juvenis em que sem susto do futuro / nos bosques d’Almeirim colhia as flores27.

Também é capaz de, num símile à maneira clássica, introduzir uma visão das eleições para o Parlamento inglês28, de emoldurar com a descrição do cometa de 1812 o mito de Calisto (haurido em Ovídio, Metamorfoses II.401-530)29 ou de associar o cacaueiro do México e da Nicarágua às porcelanas de Sevres e às imitações da cerâmica de Herculano e Pompeios30, em que se bebe o seu licor. Pelo seu interesse histórico (foi entre 1806-1832 que os trabalhos de escavação, principiados no séc. XVI e retomados em 1748, no reinado de Carlos de Bourbon, tiveram grande impulso31), vale a pena transcrevê-los aqui:

Explotando incansável as ruínas da estragada Herculâneo ou de Pompeia,O antiquário exume as formas belas que modelo hão-de ser da taça rica.Sai da fábrica augusta esse prodígio digno das mãos d’Hebea, então só digno de conter o licor americano.

Para compreender o sentido exacto desta alusão, temos de recorrer ao Jardim Botânico de Darwin, em cuja tradução por Vicente Pedro Nolasco da Cunha se lê32:

Etrúria! Bem depressa a leve roda tuas mágicas mãos soltam, e expandem plástico barro; e teus nervosos dedos de fino tacto (em quanto a roda gira)

24 Obras Poéticas, IV, p. 97.25 Obras Poéticas, IV, pp. 41-43.26 Que estas lembranças eram bem vivas, prova-o a introdução da referência à famosa fonte na

imitação da Primavera de Thomson (Obras Poéticas, III, p. 24).27 Obras Poéticas, IV, p. 43. Também no Canto V, p. 99, há uma alocução aos campinos de Almei-

rim, considerados exemplos daquela simplicidade de costumes que vosso valor mantém, e a glória Lusa.28 Obras Poéticas, IV, p. 89.29 Obras Poéticas, IV, pp. 86-87.30 Obras Poéticas, IV, p. 79.31  Para mais pormenores, veja-se A. Maiuri, Pompei (Roma, 1949), pp. 7-9.32 O Jardim Botânico de Darwin. Poema com notas filosóficas traduzido do inglês por Vicente Pedro 

Nolasco da Cunha (Lisboa, 1803). Canto II, vv. 396-403.

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86 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

marcam de vasos, de caneca, de urnas puros limites, e das lindas formas em linhas imortais em torno exprimem beleza sem modelo, e ideal Graça.

Logo adiante, nos versos 412 seqq., se passa à cerâmica, nesta inspirada, de Wedgewood:

E sobre Wedgewood alegre está raiando vosso riso parcial; Britannia adora nova Etrúria ..................................

Acerca destes textos, existe uma elucidativa nota, na p. 80: «Etrúria pode disputar à China a antiguidade das suas artes [...]. O carácter peculiar destes vasos de terra consistem [sic] na admirável beleza, simplicidade, e diversidade de formas que contêm os melhores modelos para os artistas de hoje, em uma espécie de pintura encáustica não vidrada, que no tempo mesmo de Plínio era contada entre as artes perdidas d’antiguidade, mas que foi restaurada ultimamente pelo engenho, e indústria de Mr. Wedgewood. Supõe-se que as manufacturas principais eram junto a Nola ao pé do Vesúvio, por quanto naquela vizinhança se acharam as maiores quantidades de vasos antigos, e diz-se que eles influem aparentemente sobre o gosto geral dos habitantes; de maneira que estrangeiros vêm a Nápoles, ficam surpresos de ver a diversidade, e elegância mesmo dos vasos mais ordinários do uso comum. Vede os discursos preliminares de Han-carville da colecção magnífica de vasos de Etrúria, publicada por Guilherme Hamilton».

Ora a Collection of Etruscan, Greek and Roman Antiquities from the Cabinet of the Honourable Hamilton, publicada por D’Hancarville em quatro volumes, em 1766 e 1767, foi a primeira grande obra sobre vasos gregos. A colecção de Hamilton veio a ser adquirida pelo Parlamento inglês, facto de onde resultou ter sido o British Museum a primeira galeria de arte a revelar ao público, em 1772, a beleza dos vasos gregos33.

Como é sabido, os vasos gregos foram durante muito tempo julgados, e, como tal, denominados etruscos34. Além disso, era frequente dizer-se que tinham sido comprados nas escavações de Herculano e Pompeios (assim sucedeu, por exemplo, com os da Colecção do Duque de Palmela, que foram trazidos por Dom Manuel

33 Cf. R. M. Cook, Greek Painted Pottery (London, 1960), p. 292, onde também figura a informação sobre as tentativas de criar um estilo baseado neste, por Wedgewood.

34 No nosso País, só por volta de 1905 se abandonou a terminologia errada, como mostrámos no nosso estudo Greek Vases in Portugal (Coimbra, 1962), p. 8.

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874. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA

de Sousa e seu filho Dom Alexandre de Souza Holstein, nossos embaixadores em Roma; este último era o pai do futuro 1.º Duque de Palmela, o mesmo que veio a ser embaixador em Londres, e a quem D. Leonor de Almeida dedicou a sua Écloga a Holstenio).

Se nos alongámos nestas informações, foi porque elas todas convergem para uma conclusão que nos parece muito significativa da cultura da Marquesa de Alorna: é que ela foi, tanto quanto sabemos, o primeiro escritor português a sentir a beleza dos vasos gregos.

O pretexto fora, afinal, o nome e o habitat de uma planta exótica. Outras plan-tas lhe suscitam referências também curiosas. Assim, a mangerona e o alecrim despertam na poetisa a compaixão pelo vate infeliz que celebrou essas guerras, e que o comentador Garlos Manuel Soyé tem o cuidado de identificar nestes termos35:

Alude a António José, autor das Comédias Portuguesas, vulgarmente cha-madas do Judeu, que se representaram no teatro do Bairro Alto, entre as quais há uma das Guerras do Alecrim com a Mangerona, que tem muita graça e originalidade. Seu infeliz autor acabou numa fogueira da Inquisição, ateada na praça do Rocio, pelo crime de judaizante.

O interesse desta referência de Alcipe e do seu comentador coloca-se no âmbito da recepção do teatro de António José da Silva nos fins do séc. XVIII e começos do séc. XIX. Mas voltemos à arqueologia, a que nos conduzira a alusão aos modelos da cerâmica e às escavações pompeianas. Um dos trechos mais curiosos, e talvez mesmo o mais belo do poema é o referente ao túmulo de Virgílio, no Canto II. A poetisa acaba de descrever o jasmineiro, a cândida flor, que exala aromas. Vai seguir-se-lhe a verbena, de funéreas associações, e símbolo da glória. É ela que motiva o episódio, adiante descrito como um sonho, e que vale a pena recordar na íntegra36:

Mas que sombrio objecto acolá vejo em fúnebre basalto levantado? Que verdejante círculo prescreve limite aos passos dos mortais profanos?...É de Virgílio o túmulo, que cercam de funérea Verbena as verdes folhas. Este pó, que animava um vasto engenho, dorme nos lares pátrios devastados,

35 Obras Poéticas, IV, respectivamente pp. 62 e 150.36 Obras Poéticas, IV, pp. 35-36.

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Parténope chorosa o mar assusta, reclamando os Penates que lhe roubam. A Ninfa do Sebeto os Céus atroa; do Pausilipo as rochas estremecem: e não responde o Vate?... Sim, responde. Já no templo Marónio acorda aos gritos a sombra de Virgílio angustiada: as cinzas soltas turbilhão revolve: e o grande Vate, em lúgubre epicédio se prepara a chorar nefandos casos. Itália, Itália! aflito outra vez brada: mas que Itália?... Do aspecto envergonhado no túmulo de novo se recolhe, Heróis, Poetas, tudo em pó se torna.

Fugiu-me o sonho, e volto aflita ao campo.

O fundo da história contemporânea é fácil de identificar, e vem, aliás, indicado em nota: as guerras de Itália, em cujo contexto Nápoles sofre especialmente37. Por outro lado, Virgílio, o grande cantor das laudes Italiae, no canto II das Geórgicas (136-176), estava naturalmente associado aos destinos da Península a cuja unifi-cação, sob a égide romana, assistira.

Outro aspecto a considerar, porém, é a descrição do seu túmulo, sobre o qual muito se tem discutido. Recordemos os factos principais:

No século I da nossa era, tanto Estácio como Sílio Itálico lhe chamam um templo e o colocam na região de Nápoles38, o que condiz com a notícia de um dos biógrafos antigos do poeta, que o situa na Via Puteolana, entre o primeiro e o segundo miliário39. Continuava a ser conhecido no Renascimento italiano: referem-se-lhe Petrarca e Boccaccio. Depois, segundo a Cronica di Partenope, teria sofrido alterações, a fim de evitar o perigo do saque. Afonso de Aragão mandou

37 São bem conhecidos os eventos principais: Atacado pelos exércitos napoleónicos, Fernando II refugia-se na Sicília, enquanto na cidade se instaura a República Partenopeia; em 1806, o monarca é substituído por José Bonaparte, e depois por Murat, em 1808. Só em 1816 virá a restauração da independência, sob o nome de Reino das Duas Sicílias.

38 Respectivamente, Estácio, Silvas IV.4.51-55 e Plínio-o-Moço II.7.8.39 Ossa eius Neapolim translata sunt, tumuloque condita, qui est Via Puteolana intra lapidem secundum

(«os seus ossos foram transladados para Nápoles, e colocados num túmulo, que fica na estrada de Pozzuoli, antes do segundo marco miliário») – escreve Donato, que ainda acrescenta o tão famoso como modesto dístico em que o poeta teria resumido a sua vida e obra:

Mantua me genuit, Calapri rapuere, tenet nuncParthenope; cecini pascua, rura, duces.

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executar obras de abaixamento e alargamento, que alteraram o aspecto do conjunto; e a partir daí começam as dúvidas sobre a real localização do sepul-cro40. «De todo este vasto trabalho de entalhamento e escavação, que tinha esburacado profundamente a frente da colina, restava ainda no alto, junto da antiga abertura da galeria romana, um mausoléu solitário e inacessível como um túmulo heróico» – escreve A. Maiuri, que, depois de discutir a questão da autenticidade, refere a acção do humanista Enrico Cocchia, que ficou associado aos trabalhos de restauro, efectuados em 1930, na ocasião do bimilenário do nas-cimento do poeta, altura em que se plantou no local um bosque de loureiros e de outras plantas da flora virgiliana41. Este é o aspecto actual do túmulo, mesmo ao pé do túnel do Pausilipo, na irreverente proximidade da via férrea de Nápoles a Roma.

Temos, porém, do período que nos interessa – o século XVIII – duas gravuras, uma com o interior, outra com o exterior do sepulcro. Naquela avistam-se, através de duas grandes aberturas laterais, ramos de trepadeiras que engrinaldam esses espaços vazios. Estas informações sobre a vegetação antiga do local completam--se com as do curioso livro de Henri Johanet, publicado em Paris em 1874, com o título Une Descente aux Enfers. Le Golfe de Naples. Virgile et le Tasse, onde se compilam os dados antigos existentes42. Um deles, de 1594, fala de um soberbo loureiro, que crescia naturalmente na cúpula da câmara, a qual, por sua vez, estava «coberta de mirtos e de heras cuja vista é muito pitoresca e faz muita impressão ao visi-tante». Noutra, de 1692, também se faz menção do loureiro, que existiu até 1665, e às «plantas que de novo se multiplicaram em volta do templo, particularmente heras e mirtos». Por sua vez, Johanet dá as impressões colhidas na visita que fez ao local: «O aspecto do lugar não mudou nada. Plantas trepadeiras e parasitas entrecruzam-se sobre as paredes exteriores da gruta, vinha-virgem, lentiscos e oliveiras ocupam o cimo. Chega-se lá por meio de algumas pedras que quase se tomariam por escadas».

40 Dados colhidos em A. Maiuri, I Campi Flegrei. Dal Sepolcro di Virgílio all’ Antro di Cuma (Roma, 1949), pp. 9-13.

41 Idem, ibidem, pp. 12-13. Maiuri esclarece que a forma do sepulcro é a de um columbário romano de família, de obra cimentícia; com revestimento reticulado, da época de Augusto, mas não há «nenhum vestígio sobre o pavimento ou à volta das paredes de outro lóculo que fosse destinado a conter a urna do poeta».

42 Cap. VIII, pp. 144-185.

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Vista exterior e interior do túmulo de Virgílio (gravuras do séc. XVIII)

Ora o texto de Alcipe fala, como vimos, de um sombrio objecto... / em fúnebre basalto levantado, e de um verdejante círculo, dentro do qual se situa o túmulo, que cercam / de funérea Verbena as verdes folhas, e da proximidade das rochas do Pausilipo. Estaria a autora a fazer uma descrição de visu, que como tal teria também um interesse histórico, a contrapor às informações algo distintas que acabámos de ver? Em vão procurámos nos seus biógrafos a referência, em meio das suas muitas viagens, a uma ida a Itália. Apenas a indicação de que, em 1803, o Regente lhe mandara passar cartas aos nossos representantes nas capitais aonde se dirigisse – Madrid, Paris, Berlim, Viena e Nápoles43. Nada confirma, porém, que este itinerário tenha sido cumprido. Pelo contrário, sabe-se que, estando em Madrid, se dirige, em 1804, para a Corunha, onde embarca para Inglaterra.

Nestas condições, e embora não seja de excluir a possibilidade de qual-quer informação oral44, parece poder-se concluir que o breve descritivo das

43 Vide Hernâni Cidade, Marquesa de Alorna. Inéditos. Cartas e Outros Escritos (Lisboa, 1941), pp. XXXV-XXXVI, que informa em nota que os originais desses documentos se encontram no Arquivo da Casa de S. Domingos de Benfica (hoje transferido para a Torre do Tombo, segundo informação do Doutor Aníbal de Castro).

44 Sendo as Recreações Botânicas datadas de Abril de 1813, uma fonte provável de informação poderia ser o então Conde de Palmela, que nascera em Turim, iniciara a carreira em Roma, e chegara a Inglaterra em Janeiro desse ano, e desde logo estabelecera com Alcipe as melhores relações. Outra hipótese a considerar, a de um modelo literário em Thomson, não se confirma, segundo informação que agradecemos à Doutora Maria Irene Sousa Santos. Tão-pouco a origem se pode procurar na Italienische Reise de Goethe, como teve a amabilidade de verificar, a nosso pedido, o Doutor Ludwig  Scheidl.

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Recreações Botânicas é formado por elementos convencionais, adaptados às neces-sidades didácticas do poema. O seu valor reside sobretudo no frémito de indig-nação que, ligando o passado com o presente, faz um apelo patético a uma paz impossível e termina num deminuendo sobre a precaridade da condição humana:

Heróis, Poetas, tudo em pó se torna.

Neste poema todo voltado para o entusiasmo pela ciência de Lineu, a Anti-guidade não deixa de estar presente a cada passo. Seria difícil, de resto, que um poeta setecentista, mesmo que rotulado de pré-romântico, se esquecesse das Metamorfoses de Ovídio ao falar de certas plantas. Efectivamente, ora em breves referências (Narciso, na p. 39, Píramo e Tisbe, Átis e Cipreste na p. 100), ora em desenvolvido episódio (Dafne, nas pp. 44-45; Leucótoe e Clície, nas pp. 92-93)45, os adornos mitológicos não faltam. Um outro mito, também narrado nas Metamorfoses (XIV.623-770), o de Pomona e Vertumno, aparece, no Canto I, ligado aos Jardins de Alcínoo, localizados, como era tradição antiga, na ilha de Corcira46:

Berços d’ervas, eternamente verdes, nos jardins de Corcira abrigo deram ao vagabundo, heróico e agudo Ulisses, que Nausicate encontra, reconhece, e com régia piedade ao pai dirige.

Em nota, Alcipe esclarece melhor o episódio, sem repetir o reconhece que não condiz com a narrativa grega (mas mantendo a forma errada no nome da princesa feace), o que leva a supor que a tradutora de um extenso trecho da Ilíada47 não conhecia tão bem a Odisseia...

Outro jardim famoso, o das Hespérides, é mencionado no Canto IV48:

A Fábula supôs que nesses sítios onde o forte Atelante acarretava os Céus aos ombros, um jardim lá tinha em que eram d’ouro os pomos; onde os troncos

45 Respectivamente, Metamorfoses III.339-510; IV.55-166; V.47-73; X.106-142; I.452-567; IV.190-270.46 Obras Poéticas, IV, p. 24. Também Rosset, em A Agricultura, alude aos Jardins de Alcínoo (cf. a

tradução de Bocage, Opera Omnia, VI, p. 256).47 Alcipe traduziu, em oitava rima, os primeiros 506 versos da Ilíada (Obras Poéticas, III, pp. 233-274).48 Obras Poéticas, IV, p. 80.

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de folhas d’esmeraldas se vestiam; e que as flores, de pérolas formadas, perpetuamente aromas exalavam. Tais aos olhos do ignaro se figuram em Portugal frondosas Laranjeiras.

Esta interpretação racionalista do velho mito, conhecido desde Hesíodo (Teogonia 215-216), datava da própria Antiguidade49 e tinha-se tornado corrente ao longo dos tempos. Figurava, por exemplo, em As Plantas de Castel e em A Agri-cultura de Rosset50. Alcipe vai mais longe, transformando toda a fábula numa espécie de símile para descrever as laranjeiras portuguesas, que logo toma como pretexto para (antes de Garrett...) invocar a Saudade, que a leve à Serra de Sintra, onde

em turbilhão, da flor das Laranjeiras virão saudar-me eflúvios deleitosos.

Daí, por associação do lugar, passa à memória de D. João de Castro – o plantador das árvores da Quinta de Penha-verde – como símbolo da honra / que reside nas almas portuguesas. Esta invocação leva-a à defesa dos seus próprios valores (a luz com que a Verdade me decora) expressa nos seus números cadentes. E, de súbito, achamo-nos outra vez em plena mitologia, com a voz de Orfeu a ser dilacerado pelas Bacantes e recolhido pelo Hebro (Metamorfoses XI.1-55) assimilada à da cantora, que o Tamisa receberá. Uma alusão ao final do grande poema ovidiano, misturado com remi-niscências da Ode XX do Livro II de Horácio51, fornecem novo paradigma clássico para o destino de Alcipe, por quem o Tejo bradará, mas já tarde. E, como se fosse pouco em matéria de intertextualidade, surge ainda uma lembrança camoniana, explicada em nota, dos seus antepassados52:

Almeidas, por quem sempre o Tejo chora.

Este final do Canto IV é o exemplo mais completo de utilização de motivos díspares da Antiguidade para enobrecer a sua missão e defender a sua inocência.

49 Pelo menos, do tempo de Antífanes (séc. IV a. C.). Sobre o assunto vide M. L. West, Hesiod: Theogony (Oxford, 1966), p. 228.

50 Respectivamente, p. 155 e 230 das traduções de Bocage, Opera Omnia, VI. Também O Jardim Botânico de Darwin se lhe refere (tradução de Nolasco da Cunha, Canto I, vv. 452-457).

51 De Horácio vem a metamorfose em cisne, o Bósforo, a Getúlia, e outros lugares distantes, o Hebro e o Reno (no original, o Ibero e o Ródano).

52 Lusíadas I.14. Segundo a genealogia estabelecida na Nota biográfica anteposta às Obras Poéticas, D. Leonor de Almeida descendia do primeiro Vice-Rei da Índia.

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Esta nota pessoal – mais ou menos alongada – é, aliás, uma constante no terminar dos diversos cantos53.

Muitas mais reminiscências clássicas poderiam apontar-se neste poema todo votado às novidades científicas do Século das Luzes. Ficaria, no entanto, muito incompleta a ideia que dele faríamos, se não mencionássemos dois episódios de proveniência diferente – precisamente aqueles dois que o Doutor Caetano Maria Ferreira da Silva Beirão, que, a pedido das filhas da Marquesa, comentou o saber botânico das Recreações, achou mais notáveis.

Pertence um deles ao Canto II, e começa assim54:

O Céu, que cede à voz omnipotente abre-se e solta sobre nuvens d’ouro um Génio alado que atravessa os ares. Sete listas de cores mui diversas ornam a estrada etérea onde caminha; cujos extremos, um no Céu se prende, outro, fixo, na terra se termina. Ali brotaram flores, ali berço de arbustos verdes recatava o Sábio do ardor do Sol, nas horas de descanso. Ali na forma de um ligeiro sonhoO botânico Génio lhe aparece.

O Doutor Silva Beirão observa, extasiado55:

O episódio [...] pela sua novidade é um dos mais belos tópicos desta Obra. Fazer do espectro solar, representado no arco-íris, a estrada que, baixando dos Céus à terra, é trilhada pelo Génio Botânico que inflamara Lineu; e isto numas Recreações Botânicas; é com efeito tirar das Ciências Naturais todo o partido poético que é possível.

Efectivamente, é a Lineu que o Génio Botânico se dirige, como se lê adiante:

Venho, ó Lineu, guiar-te: escuta, admira. (O Génio diz). O Ser que os Seres rege

53  Com excepção do Canto V, que acaba com uma breve parénese às filhas, a propósito da Sensitiva.54 Obras Poéticas, IV, p. 46.55 Obras Poéticas, IV, p. 143, nota 38.

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seus tesouros envia; abre estes cofres:verás a variedade das espécies, a riqueza da Classe, e seus primores.

O elogio de Lineu era um lugar comum da poesia didáctica da época. Assim, o Consórcio das Flores de La Croix, que Bocage traduziu, era dedicado «aos Manes do imortal Lineu»; o Canto II de As Plantas de Ricardo de Castel, também vertido por Bocage, termina com o encómio do sábio.

O mais curioso é que, muitos anos antes, em Epístola ao seu genro, o Conde da Ega, datada de Almeirim, 1800, Alcipe preludia já este motivo – embora utili-zando, para o efeito, a mitológica Flora – e dá-nos a conhecer, largo tempo antes da composição que nos ocupa, o seu gosto pela taxonomia56:

Flora, por deleitar-se, um dia claro desceu do Olimpo à terra, e destramente classificou as plantas variadas; e em prémio da razão indagadora revelou a Lineu grandes mistérios.

Flora mesma também me vai guiando, e sem séquito, mais que alguns perfumes, os ventos brincadores, e o sossego, me comunica as leis simples, sublimes, com que a família rege e desenvolve das lindas liliáceas que hoje apontam.

A predilecção pela matéria pode fazer-se ascender, de resto, à mocidade da autora, pois, como notou Hernâni Cidade, «o hortelão, a quem na cerca do Convento de Chelas surpreende com as suas noções de agricultura... lírica», representa um «vago ensaio das suas futuras Recreações Botânicas»57.

56 Obras Poéticas, II, pp. 29-33. O passo citado é da p. 30.57 Marquesa de Alorna. Inéditos. Cartas e Outros Escritos, p. XXI. A carta de Alcipe em que ela narra

o episódio figura no mesmo livro, pp. 51-53.

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O outro trecho que despertou o entusiasmo do Doutor Silva Beirão foi o episó-dio de Viriato e Armínia, contado a propósito do gerânio, a planta simbólica da simplicidade e justiça58, sobre o qual escreveu o seguinte59:

A habilidade e engenho com que a Autora lançou mão deste vegetal da Monadelphia, atenta a sua história, parte verdadeira, parte fabulosa, para enriquecer estas Recreações, já em si tão belas, com o magnífico episódio de Viriato, faz admirar, não sei se mais sua invenção, se o desenvolvimento poético do episódio em si. O que se pode coligir é que a Autora era vastís-sima em muitos ramos, um dos quais bastaria para conceituar qualquer escritor.

O trecho é um autêntico epyllion à maneira clássica, e estende-se por quase duas centenas de versos. Não é, evidentemente, o Viriato histórico60 (a que Estrabão chamou salteador), a não ser no modo traiçoeiro como é assassinado, mas o herói aureolado pela lenda que já estava em Os Lusíadas (VIII.6-7), em volta do qual, no séc. XVII, Brás Garcia de Mascarenhas, no seu longo poema épico Viriato Trágico, tecerá fantásticas façanhas, e que, em 1757, será protagonista de uma tragédia de Manuel de Figueiredo, Viriato, e que tentará ainda Bocage, em O Herói Lusitano ou Viriato, de que só restam trechos da Cena I do Acto I61.

58 Pelo menos, são os atributos que lhe supõe a mesma Epístola que citámos na nota 56, ao dizer:

Eu também, cá no campo, também vejoo Gerânio cheiroso, que sem fausto cento e tantas espécies me apresenta. Nunca um só indivíduo desta prole teve cargos nem postos que agitassem as pacíficas leis das outras plantas.

59 Obras Poéticas, IV, p. 154, nota 5. O episódio encontra-se nas pp. 71-76.60  Sobre as escassas fontes fidedignas para reconstituir a sua figura e acção, vide A. Schulten, 

Viriato (Porto, 1940).61 Pato Moniz assevera, no entanto, em nota da p. 358 (Bocage, Opera Omnia, III) que ela estava

«ordenada para cinco actos e que havia dois finalizados». O elenco de figuras, onde apenas contam duas mulheres – a filha de Viriato e a sua confidente – prova que o tratamento da lenda era diverso. Quanto a Manuel de Figueiredo, esse declara na alocução prévia à Arcádia (Teatro, Lisboa, 1840, tomo XIII, p. 184) que «por fazer este tão heróico português, como ele foi, não introduziu na fábula mulher alguma».

A pessoa de Armínia também não figura no Epitome de las Historias Portuguesas de Manuel de Faria e Sousa (Bruxelas, 1677), que, aliás, se compraz em narrar um feito heróico das mulheres lusitanas, situando-as na linha de Pentesileia, de Aspásia (!) e de Clélia, e em contar a história de Ormia, a Lucrécia lusitana, que Manuel de Figueiredo dramatizará com o nome de Osmia. Segundo informa-ções que agradecemos ao Doutor Aníbal Pinto de Castro, o acto das mulheres lusitanas já vinha no Viriato Trágico, mas não a história de Armínia, que tão pouco era conhecida de Frei Bernardo de Brito. Parece, portanto, que se trata efectivamente de uma invenção de Alcipe.

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96 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Ao contrário do que se passa nestas tentativas dramáticas, o herói dos Lusos imaginado por Alcipe

podia vencer Roma, e não podia em sua alma vencer de amor o incêndio.

Oferece a Armínia sua alma heróica e mão. Esta, porém, põe em primeiro lugar a devoção à causa lusitana, e só quando

... o teu valor derrote a seva Roma, ao mundo mostrarei, alegre e altiva, que era d’Armínia Viriato digno.

O Lusitano parte para a guerra. Armínia não fica a gemer saudosa, que amor heróico é mudo e firme. Planta um gerânio, consagrado aos Numes, para que por ele se exprima a protecção dos deuses. As flores, cuidadosamente tratadas, crescem e prosperam. Viriato triunfa... Mas eis que um dia os céus sobre o gerânio enviam densa névoa: / as flores morrem; toda a folha encrespa, / pela saraiva espessa mal-tratada. Apenas Armínia compreende o presságio. Viriato, sem temor, aceita a paz que os três embaixadores lhe propõem. Alta noite, é a traição. A pátria geme, os Deuses acu-sando... Mas os Céus não ouvem, e a dor de Armínia, que mil vezes morre / sem cessar de durar, excede os tormentos infernais. Então a história, até aqui desenvolvida em tons românticos, termina de súbito numa comparação mítica:

Qual Níobe, que a dor desfaz em pranto.

O leitor treinado em Ovídio fica à espera de uma metamorfose. E a verdade é que, embora ela não se dê no sentido próprio do termo, as palavras finais quase a subentendem:

Fatal Gerânio! Monumento infausto do caso acerbo! Clio lacrimosa aos subsequentes séculos o diga...

Estes diversos exemplos, que seleccionámos ao longo dos seis cantos do poema, demonstram que, embora ele seja fundamentalmente um extenso e rigoroso catá-logo de espécies botânicas – com toda a monotonia potencial em tal género – e, como escreveu Hernâni Cidade, aproveite «tesouros de valor bem pouco poético»62, conseguiu, no entanto, criar uma certa variedade, recorrendo à inserção de

62 A Marquesa de Alorna, p. 61.

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974. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA

episódios de diversas origens, como, aliás, era corrente na poesia «científica» da época. Maneira de satisfazer o preceito do utile dulci, mas que tanto se serve da tradição mitológica omnipresente, como da nota histórica, da confidência pessoal, do episódio romântico, do encantamento com as belezas naturais, que são próprios da escola literária que se anuncia. É nesta confluência de motivos, reveladora de uma riqueza de horizontes culturais pouco frequente entre nós, que reside, a nosso ver, o interesse maior da obra.

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5. AS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA

– ENTRE A CIÊNCIA E O MITO*

Na época das Luzes, todos o sabemos, as ciências e as artes não eram ainda antagónicas.

Prova disso é a verdadeira moda das Geórgicas de Virgílio, que surgiu na segunda metade do século XVIII com as Geórgicas inglesas de Graham, o Jardim Botânico do médico e naturalista Erasmus Darwin, A Agricultura de Rosset, o Consórcio das Flores de La Croix, As Plantas de Castel, Os Jardins de Delille – estes quatro últimos vertidos parcial ou totalmente por Bocage, o mesmo Bocage que ousou dizer, no prólogo da sua tradução de Castel, sobre este tão celebrado vate no seu tempo, que era

De Virgílio o rival, Delille ameno.

Por sua vez, o já referido poema de Erasmus Darwin foi traduzido por Vicente Pedro Nolasco da Cunha.

Estes exemplos mostram como tal gosto entrou cedo no nosso País. E não só em traduções como em obras nacionais. Já Hernâni Cidade (1945: 132) notou que o interesse pelos progressos da Ciência e pela capacidade do ser humano em geral aparecem também em José Agostinho de Macedo e José Anastácio da Cunha, e salientou o especial significado de um ensaio como o de António Ribeiro dos Santos “Sobre a antiguidade da observação dos astros, da bússola e de outros ins-trumentos ao uso da navegação”. Este mesmo erudito setecentista, na sua veste arcádica de Elpino Duriense, compôs longas epístolas em verso sobre temas como “O Génio da Matemática” e “Os estudos da Natureza” – ambas dirigidas a Francisco de Borgia Garção Stockler.1

* Publicado em A Arte da Cultura (Homenagem a Yvette Centeno). Lisboa, Edições Colibri (2011), 555-565.1 Mais exemplos podem ver-se em Rocha Pereira (2008: 127-148).

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100 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

O mesmo Bocage (1969, vol. III: 67-70) celebrou em oitavas a subida de Lunardi em balão aerostático. Algo de semelhante fez a Marquesa de Alorna (1844, vol. II: 180), ao compor um soneto “A Robertson, subindo em um balão e descendo no pára-quedas”. Dele entendemos salientar a quadra inicial, que formula uma comparação mitológica:2

Deu nome às águas, Ícaro, morrendo.Ícaro novo, os ares invadindo,placidamente aos astros vai subindo,e de lá sem soçobro vem descendo.

e o terceto final, que contém uma exortação aos seus jovens contemporâneos:

Ciência, aplicação, método, estudopõem os homens acima das esferas:pouco importa empr’ender, saber é tudo.

O gosto de Alcipe pela ciência, pelo estudo, pela filosofia – para já não falar da poesia – vinha de longe, como sabemos, porquanto está bem documentado pelas cartas ao pai nos seus tempos de clausura em Chelas, cartas essas publi-cadas por Hernâni Cidade em 1941. Lembrem-se, entre outros exemplos nelas contidos, a referência à sua discussão com os frades a propósito do aparecimento de dois cometas, que eles queriam interpretar através de Santo Agostinho, e a defesa do verso solto contra o rimado (Cidade: 1941b). Novos dados surgiram a este respeito o ano passado com a edição do volume, por Vanda Anastácio, da correspondência com Tirse (D. Teresa de Mello Breyner), quando a poetisa estava ainda em Chelas. Em várias dessas cartas, as duas jovens mostram-se por vezes em desacordo acerca da leitura de Rousseau, de Montesquieu, ou até simples-mente sobre os méritos de António Dinis da Cruz e Silva (Anastácio, 2007: 112-144 e 154).

Os anos passaram. Em 1800, Alcipe está melancólica na sua casa de Almeirim, e escreve uma longa epístola em verso, em resposta ao seu genro, o Conde da Ega, em que à sensibilidade pré-romântica a cada passo aflorada, se junta o interesse pela natureza. E afirma (27-30):

2  As citações desta edição serão feitas com a grafia actualizada. Ao contrário de outros sonetos do mesmo grupo, ou seja, compostos depois da saída de Chelas, este não está datado. Cidade (1941a: 137) reprodu-lo na sua antologia.

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1015. AS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA – ENTRE A CIÊNCIA E O MITO

Da Natureza estudo os três domíniose enquanto desenvolve a Primaveraa força vegetal que os campos vestefaço dormir a dor, calo a saudade.

A estrofe seguinte não é menos significativa, porquanto nela já aparece um plano que em tudo prenuncia a obra de que nos propomos tratar, datada, essa, de treze anos depois – Recreações Botânicas. Nela se cruzam, logo de início, um ente mitológico (Flora) e um vulto maior da Ciência, que lhe servirá de mestre (Lineu) para a classificação das plantas (31-46):

Flora, por deleitar-se, um dia clarodesceu do Olimpo à terra, e destramenteclassificou as plantas variadas.E, em prémio da razão indagadora,revelou a Lineu grandes mistérios.Flora mesma também me vai guiandoe sem séquito, mais que alguns perfumes,os ventos brincadores e o sossegome comunica as leis simples,sublimes, com que a família rege e desenvolvedas lindas liliáceas que hoje apontam.Cedo virão do Telaspe argênteo as flores,distinguiu nas crucíferas as raças:virão os goivos perfumar os ventos;de flóreas borboletas brevementese há-de a terra cobrir, há-de enfeitar-se.

Outro prenúncio do poema didáctico futuro se encontra logo na estrofe seguinte, onde se exalta outra espécie botânica “o Gerânio cheiroso”, apontado como símbolo de algo que não aparece na Corte, onde (53-55):

nunca um só indivíduo desta proleteve cargos nem postos que agitassemas pacíficas leis das outras plantas.

Hernâni Cidade (1941a: 141-142 nota), na sua já citada edição, interroga-se se a referência já se reportava à família real, e conclui que estes últimos versos, “mostrando o Gerânio isento de defeitos que são os dos cortesãos, não permitem outra interpretação”. De passagem, reparemos que o Gerânio há-de reaparecer no mito de Viriato e Armínia, no canto IV do poema didáctico.

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102 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Na mesma epístola de que estávamos a falar, logo o plano de ensinar às filhas a História Universal lhe sugere o passar dos séculos desde a fundação de Atenas3 à triste sorte presente da Itália “que hoje assusta mão terrível / de um guerrilheiro rebelde e temerário” (108-109), para terminar “com os mapas na mão” (110), a apontar o local de Tróia, na esperança de que Paris sofra igual derrota, e de olhos postos na ilha de Lesbos e seus poetas (110-122).4

Se nos demorámos nesta epístola foi, como já dissemos, por nela se prenunciar muito do que viriam a ser as Recreações Botânicas, compostas nos anos de exílio em Inglaterra, país gelado, do “bárbaro clima”, como diz no começo da sua cantiga “Ao clima de Inglaterra” – o que não a impede de descrever a bela paisagem que avistava na casa de Wye-Cottage, situada na confluência do Waga com o Saverno, no Gloucestershire,5 bem como o entardecer no jardim de Brandbourg-house.6 Tão-pouco deixa de manifestar a sua admiração pelo modo de eleger os membros do Parlamento de Inglaterra e seus resultados, num símile para descrever as flores capitatas, como a Perpétua (V.127-131):7

Qual cercando um palanque às vezes vemosa capitata plebe d’eleitoresbrotar Sólons, Licurgos; capitatastambém as flores em congresso vemos;porém seguem sem luta as leis eternas.

Mas voltemos à Botânica, sem descurar o seu entrelaçamento com as galas mitológicas. A própria “Epístola Dedicatória às minhas patrícias” exemplifica o processo. Tratando-as por “ninfas gentis”, descreve o despontar do Sol numa apo-teose de luzes que envolvem a Natureza, até chegar ao momento mais alto (28-29):

3 Note-se que Alcipe dá crédito à fábula segundo a qual Atenas teria sido fundada pelo rei egípcio Cécrops.

4 Não muito longe desta, quanto à mundividência de Alcipe, anda a sua “Epístola a Godefredo”, ou seja, ao Conde de Sabugal, D. Manuel de Mascarenhas, defensor da tradição escolástica, em oposição ao estudo das Ciências Naturais. Cidade (1941a: XXX-XXXII) mostrou a existência do plano numa carta à sobrinha Dona Laura da Câmara e noutra à filha Frederica. Ver também Esteves Pereira (2003: 373- -385).

5 Canto I. 272-284. A localização da paisagem é da autoria da própria Alcipe, pp. 131-132, que termina dizendo que era aí que “eu compunha as Recreações Botânicas”.

6  Canto V. 356-363. O gosto pelas belezas naturais aflora em muitos outros passos do poema, desde os homéricos Jardins de Alcínoo (também presentes nas Geórgicas), aos de Schönbrunn, numa cena em que brilha a magnanimidade da imperatriz Maria Teresa de Áustria (I.199-211 e II.302-342, respectivamente).

7  O esclarecimento quanto às eleições é dado pela própria Alcipe, p. 89; a exemplificação rela-tiva à Perpétua pertence ao comentário do Doutor Caetano Maria Ferreira da Silva Beirão, ibidem, p. 163.

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1035. AS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA – ENTRE A CIÊNCIA E O MITO

Que luxo! Que riqueza! Se de FloraTemplo Lineano se nos abre!

Começa então o esboço de História da Ciência, citando primeiro os botânicos portugueses Avelar Brotero e Correia da Serra – aquele, o primeiro que “junto do Mondego explora as plantas” (41-43) – alusão ao Jardim Botânico de Coimbra – e este no seu exílio americano (45-48):

Que se vê pela Pátria esperdiçado,e outro hemisfério ambicioso o acolhe.

Daí passa ao seu caso especial de exilada “sem desígnio” (49) e principia a exaltar Lineu, cuja classificação se expandirá nesta obra, até descrever todas as classes. E prossegue (64-65):

Atónitos os Sábios, longo tempocrêm que Lineu falou co’a Divindade.

Deles transita facilmente para os Vates; é a génese da nova poesia didáctica (71-73):

E as Musas, cujos cofres esgotadospela Grécia, já pobres se julgavam,incógnitos tesouros descobriram.

Passa na nossa frente Erasmus Darwin, em meio de uma efabulação mitológica, em que Cupido, como entidade criadora, exerce a sua acção tanto entre os deuses como nas forças da Natureza. À autora, entristecida pela vida, restam as saudades; mas termina dirigindo ao Sol uma invocação, a fim de que (168-169):

Possam aquelas que eu convido aos campossem susto herborizar, colher capelas.

A História da Ciência propriamente dita só principiará no Canto I. São invocadas as primeiras divindades tutelares, Baco e Ceres – tal como no poema de Virgí-lio –, sem faltar o centauro Quíron, patrono de Aquiles. Surge então o primeiro mestre com quem Numa Pompílio teria aprendido: Pitágoras. A lenda já estava nas Metamorfoses de Ovídio (XV.1-481), mas a própria Alcipe, ao referi-la, a põe em dúvida, por assentar numa cronologia errada. O que, porém, não põe em dúvida é a existência de (I.49-51):

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........................................ esses escritosque o tempo extraviou e que continham quanto os modernos talvez hoje indagam.

Aqui temos de reconhecer que a questão da existência ou não desses escritos continua em aberto nos nossos dias. Vêm depois Teofrasto e Dioscórides, que abrem passagem para “outro herói das Ciências, outro mártir” (I.58-74) – a figura austera de Plínio o Antigo, que morre ao tentar ver de perto a erupção do Vesúvio. A história vai prosseguir, muitos séculos depois, com Tournefort, Jussieu, Malpighi, Leuwenhoeck, Ray, Lineu. É este último o nome que nos aparecerá em todos os seis cantos em que se dividem as Recreações Botânicas; são as vinte e quatro classes de plantas por ele definidas que vão ser descritas e exemplificadas. E é à sua figura, quase divinizada, que no Canto II.447:

O botânico Génio lhe aparece.

Dezoito versos gasta a autora para descrever, em termos de movimento e de brilho, esse ser alado que a exorta a abrir os cofres da Natureza, principiando por declarar-lhe (II.474-478):

Venho, ó Lineu, guiar-te: escuta, admira(o Génio diz). O Ser que os Seres rege,seus tesouros te envia; abre estes cofres:verás a variedade das espécies,a riqueza da classe, e seus primores.

As plantas soltam-se em profusão. Já a noite tombou (II.511-512):

Mas Lineu, inda extático, sonhando,conferia co’o Génio sobre as flores.

Assim se harmonizam, com grande esplendor, nesta visão de Lineu, a ciência e a poesia. De resto, as diversas classes são descritas com profusão, sem faltarem as que têm fins terapêuticos,8 para as quais a autora faz o competente apelo a Higeia ou Higina, filha de Esculápio, no final desse mesmo livro. Mas os longos catálogos são dificilmente relacionáveis com a poesia. Por isso também, as intromissões de mitos etiológicos, como são os que atravessam de lés-a-lés os quinze livros das Metamorfoses de Ovídio, vêm frequentemente animar a enumeração. Exemplo do

8  Sobre a precisão da análise das diversas plantas e sobre o valor terapêutico de muitas, veja--se Pina (1953: 7-51).

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1055. AS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA – ENTRE A CIÊNCIA E O MITO

processo, entre muitos, é o trecho que precede a apresentação do Loureiro (II.384- -419) que, para maior relevo, é introduzido por uma evocação à mãe das Musas e começa e acaba com o nome da planta (II.384-389):

Junco florido, púdico Loureirovem enramar-me a lira, vem guiar-metu, Mnemósine, às praias desse rio que honrou de Dafne a púdica fugida.Da nova classe assim adorna os fastoscom prodígios de amor e de reserva.

O deus Apolo, apaixonado por Dafne, persegue “a altiva ninfa”, que tenta esquivar-se e pede ela mesma aos deuses que a transformem em rocha ou tronco. Operada a metamorfose em Loureiro, logo Apolo decide (II.416-417):

..................................... que só deleé que devem coroar-se os vencedores.

Para este mito etiológico havia, com muitos pormenores idênticos, o modelo das Metamorfoses de Ovídio (I.452-567), onde o Sulmonense vai ao ponto de acrescentar que os ramos dessas árvores serão usados na cerimónia do triunfo e ornamentam a porta da casa de Augusto.

Muitos outros mitos figuram apenas em breves alusões, bem conhecidos que eram dos leitores das Metamorfoses, como o de Jacinto (II.229-232), de Narciso (II.229-232), de Afrodite e Adónis (III.89-98), de Píramo e Tisbe (V.437-440), de Átis (V.441-444), de Ciparisso (V.445-448), de Perseu e Andrómeda (VI.22-29). Com maior ou menor brevidade, a eles se faz alusão a propósito das espécies vegetais em análise. Enumerá-los todos seria infindável, além de inútil.

Diferente, porém, é o caso da origem do Gerânio, para a qual a Marquesa de Alorna afeiçoa uma nova lenda de Viriato, em que cerca de duzentos versos são consagrados à paixão do chefe dos Lusitanos por Armínia (IV.41-222), que lhe põe como condição para corresponder ao seu amor (IV.81-83),

Que o teu valor derrote a seva Roma,ao mundo mostrarei, alegre e altiva,que era d’Armínia Viriato digno.

A jovem consagra aos Numes um Gerânio, que vai prosperando enquanto as vitórias lusitanas se acumulam, mas acaba por perder as suas flores, quando se opera a traição dos falsos amigos de Viriato, encarregados de negociar com Serví-lio Cipião. A metamorfose de Armínia em Gerânio é então sugerida, não descrita.

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É ocasião de lembrarmos o simbolismo de pureza e rectidão atribuído pela autora a essa planta na epístola “Em resposta ao Conde da Ega”, de que falámos atrás, e que então considerámos como uma espécie de prelúdio ao poema didác-tico que nos ocupa.

Outras plantas acordam reminiscências da vida presente, não devido à tradição literária, mas à semelhança do nome. É o que sucede, no plano político, com a Nogueira (V.453-478), que desencadeia uma longa apóstrofe a Ricardo Raimundo Nogueira, um dos membros da Regência, a quem aponta modelos que o desviem das crueldades do Marquês de Pombal, e que principia deste modo:

Tu, Nogueira, que tens luzes sobejasdesdenha a competência c’o Carvalho,adoça esse rigor, essa aspereza que o seu sistema estragador plantava............................................................. É sempre vil Poder, quando se funda na inveja, na vingança e na cabala. Alonga a vista aos séculos futuros.

Desnecessário será dizer que, ao nomear o Carvalho, umas dezenas de versos atrás, a poetisa não se eximira a relacioná-lo com o político omnipotente, que causara a infelicidade da própria e de toda a sua família (V.415-417):

Os Carvalhos são árvores, têm florestão úteis ao cultor quanto nocivona política fez seu nome estrondo.

Ao deparar-se com este e outros passos, designadamente II.365-371, o leitor actual compreende sem dificuldade que Alcipe tenha dado ordens severas para que este poema didáctico não fosse publicado em vida sua.9

Não menos interessante, em registo bem diferente, todavia, é o episódio do túmulo de Virgílio (II.127-148). Embora já em tempos o tivéssemos estudado (Rocha Pereira, 1988: 203-205), valerá a pena encará-lo aqui de novo sob outro aspecto. A transição é operada através da “funérea Verbena”, a planta que cerca o sombrio

9  Conforme se lê na Notícia Biográfica a Alorna (1844: vol I, XXXIII-XXXIV): “Nessa época é que a Condessa escreveu o poema das Recreações Botânicas, composição sua original, onde reluzem claramente os sentimentos da autora, como boa Portuguesa. Nele se desafogam todas as suas mágoas, achando em várias plantas raras analogias com as propriedades dos seus perseguidores e com a inocência dos seus parentes processados. E por esta razão não consentiu que se imprimisse, durante a sua vida”.

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1075. AS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA – ENTRE A CIÊNCIA E O MITO

objecto que de súbito Alcipe avista em imaginação: o túmulo de Virgílio, nos arredores de Nápoles.10

Principia por uma cena aparentemente tranquila e inerte (II.131-134):

É de Virgílio o túmulo que cercamde funérea Verbena as verdes folhas.Este pó, que animava um vasto engenho, dorme nos lares pátrios devastados.

Mas em breve se agita com o choro de Parténope, o estremecer das rochas do Pausilipo, até ao acordar de “a sombra de Virgílio angustiada”, logo tornada sím-bolo de toda a Península, que já não é a que merecera as laudes Italiae que tanto embelezam o célebre trecho das Geórgicas (11.135-175), mas o desesperado cenário resultante das campanhas napoleónicas (II.140-148):

Já no templo Marónio acorda aos gritosa sombra de Virgílio angustiada:as cinzas soltas turbilhão revolve;e o grande Vate, em lúgubre epicédiose prepara a chorar nefandos casos.Itália, Itália! Aflito outra vez brada.Mas que Itália? Do aspecto envergonhadono túmulo de novo se recolhe. Heróis, Poetas, tudo em pó se torna.

De resto, as alusões à história contemporânea não faltam no poema. Recor-demos agora um episódio nosso, o da Guerra Peninsular, no canto II (243-246), e, mais ainda, a alocução a Arthur Wellesley, no final do Canto VI (244-276), em que, comparando as vitórias deste com as de Teseu e com as de Aquiles, introduz uma velada referência à Convenção de Sintra e exorta o famoso general britânico a prosseguir até à vitória final. Segue-se um sonho terrível, em que perpassa a lembrança da perda do irmão, ao serviço do exército francês “de nefanda cabala alto triunfo”, em cena matizada pela evocação de um episódio da Eneida, aquele em que o herói da epopeia sonha que a sombra de Heitor o aconselha a fugir de Tróia.11 A situação transfere-se para o presente, com a promessa de que ela mesma há-de restaurar a honra do herói desaparecido e a jura de que tudo há-de renascer, com as plantas que a seu tempo semeou (VI.329-340):

10 Tanto quanto pudemos saber, Alcipe não terá conhecido de visu o monumento em causa, conforme referimos no nosso estudo citado anteriormente.

11 Eneida II.268-297.

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Não há-de a terra em torno o Sol lustrosoduas vezes girar antes que tremaou caia do usurpado trono o monstroque da miséria humana se alimenta.Antes que o Sol segunda vez renoveo cortejo gentil da Primavera,os Lírios que plantei, reguei com pranto,brotarão para nunca mais murchar-se;e os bulbos, produtores da ventura,farei plantar onde melhor floresçam.Vítima pura desta nobre empresa!Assim prometo ao Céu; assim to juro.

Logo a seguir, figura a data em que terminou o poema: Abril de 1813.Se tal data é exacta ou não, será difícil de determinar, e talvez só uma aná-

lise paleográfica do manuscrito o possa revelar com alguma probabilidade. São conhecidas as múltiplas e sem dúvida ingénuas diligências diplomáticas que a Marquesa de Alorna empreendeu junto do governo português e mesmo do de outros países para deter a ameaça napoleónica. Tais diligências foram analisadas por Hernâni Cidade (1941b), com base sobretudo nas cartas e noutros inéditos por ele publicados. Mais dados ainda poderão certamente ser obtidos pela eventual publicação de outros manuscritos. Uma coisa, para já, é segura: é que, se a data em ex ergo das Recreações Botânicas está certa, o juramento cumpriu-se. Em Junho de 1815, deu-se a batalha de Waterloo.

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6. NOTAS SOBRE TRÊS SONETOS DE BOCAGE*1

Que a acidentada vida de Bocage se reflecte na extensa colecção de Sonetos que nos legou, sabem-no todos os especialistas, embora possam divergir na seriação a atribuir-lhe. Assim, da primitiva ordenação das duas edições das Rimas e dos improvisos publicados em vida do autor, à edição de Inocêncio (1853), passa-se, como é do conhecimento geral, para a separação em «Sonetos eróticos», «Sonetos morais e devotos», «Sonetos heróicos, gratulatórios, etc.» e «Sonetos joviais e satíricos». Teófilo Braga (1875) adscreve-os aos diversos períodos em que divide a vida do autor. A estas controversas sequências, Hernâni Cidade deu outro arranjo, nas suas edições dos Sonetos, quer na que fez para a Livraria Bertrand (Lisboa, s.a.), quer para a que preparou para os Opera Omnia (Lisboa, 1969), comemorativa do segundo centenário do poeta.

Nestas duas últimas, embora haja divergências de pormenor, sobretudo na parte final, o quadro geral é o mesmo: «Como o poeta se retrata e julga a sua obra», «Vida sentimental», «A aventura do Oriente», «Elmano no Monte Ménalo. Convívio e luta», «O Poeta perante o mundo», «No cárcere», «Na doença». Destas sete partes, a segunda edição destaca a «Colecção de novos improvisos de Bocage na sua moléstia», concedendo-lhe assim o lugar distinto que verdadeiramente lhe compete.

Esta organização, em parte por ciclos biográficos, em parte por ciclos temáticos, tem indiscutíveis vantagens para o estudioso, embora por vezes possa pôr-se em causa a intersecção de uns com outros.

Os Sonetos que nos propomos analisar estão neste caso. Trata-se dos que começam Tenho assàs conservado o rosto enxuto, Não sou vil delator, vil assassino, Aceso no almo ardor, que a mente inflama, que figuravam todos seguidos, por esta ordem, na segunda edição das Rimas (Lisboa, 1802, Tomo II), com os números XXII, XXIII

*1 Publicado em Boletim de Filologia 28 (1983) 253-258 (Miscelânea Rodrigues Lapa); Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 217-223.

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112 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

e XXIV. A proximidade foi desfeita por Inocêncio, que colocou o terceiro, talvez devido ao teor do seu começo, entre os «Sonetos eróticos»1, e o primeiro e o segundo entre os «morais e devotos»2.

Nas edições de Hernâni Cidade, a primeira composição está enquadrada na série «O poeta perante o mundo»3, e as outras duas em «No cárcere»4.

Em todas elas, o texto procede, sem alterações, das edições revistas pelo Poeta. Qualquer uma está dentro da temática e da perfeição formal características de Bocage, e encontra paralelos fáceis na sua própria obra. Todas se relacionam com o perigo que o espreita e com a consequente profissão de inocência.

O primeiro Soneto é um momento de fraqueza, em que a constância estóica, defendida no que principia Em sórdida masmorra aferrolhado5, cede o lugar à débil natureza ameaçada.

O segundo é uma autêntica profissão de fé, em que, para além da ausência de crimes graves (delação, assassínio, sacrilégio), se afirmam como virtudes principais a sabedoria, a compaixão, a beneficência, a amizade, o amor da Pátria, a observância das leis. Antes de enumerar estas qualidades, insistira-se na crença religiosa, no temor da Eternidade, em termos que remetiam o ouvinte mais desprevenido para a Pavorosa ilusão da Eternidade, de que é manifestamente uma palinódia (outra está no famoso Já Bocage não sou..., que por isso mesmo cremos autêntico)6. Tal como no Soneto anterior, a inocência é palavra-chave de toda esta defesa7. Outra palavra--chave é virtude, que aparece no começo da segunda quadra.

É essa palavra que vai terminar o terceiro Soneto, em que, depois de dar como pólos da sua vida o Amor e a Poesia, faz nova profissão de fé na moral e vincula a maquinação de que está a ser vítima à fama de que goza. Esta, inseparável da glória, permanecerá com ele, tal como a virtude, ainda que a liberdade o abandone.

Sonetos, como se vê, muito ligados à fase final da vida do Poeta, nada mais teríamos a acrescentar, se não se desse caso de se nos ter deparado, na Biblioteca Pública de Évora, no códice CXIV d./1-34 entre curiosos epigramas em latim à estátua equestre de D. José e outras composições, uma cópia, também em letra

1 Livro I, CXVII, p. 119.2 Respectivamente, Livro II, n.º XXVII, p. 195, e n.º XXVIII, p. 196.3 Na p. 175 de Sonetos e 140 de Opera Omnia, vol. I.4 Nas pp. 156 e 191 de Sonetos e 156 e 154 de Opera Omnia, vol. I.5 P. 137 do vol. I de Opera Omnia (edição a que doravante nos reportaremos, citando apenas o

número da página). Note-se que Bocage se mostra desiludido do Estoicismo nos Sonetos Às rígidas lições do férreo Zeno (p. 180) e Dura filosofia audaz forceja (p. 108).

6  1 Cf. ainda o final do Soneto Néscia, vil ignorância, injuriada (p. 158):

das pátrias, justas leis me é doce o peso, amo a religião e aspiro à fama.

7 Cf. o Soneto Miseranda Inocência, és nome abstracto (p. 150).

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1136. NOTAS SOBRE TRÊS SONETOS DE BOCAGE

do séc. XVIII, de «Sonettos feitos por Manoel Maria Bocage em sua justificação». São precisamente as três composições a que temos vindo a referir-nos, mas com a diferença de estarem numeradas e isoladas, sendo Não sou vil delator, nem assassino a primeira, Tenho assás conservado o rosto enxuto a segunda, e Aceso no almo ardor, que a mente inflama a terceira.

Reside o seu interesse no facto de apresentarem variantes. Para efeitos de comparação, transcreveremos sucessivamente os três Sonetos na ordem em que surgem, observando a ortografia própria (excepto a ligação entre o artigo e o substantivo, a copulativa e o verbo), e comparando-os com o texto das Rimas.

SONETTO PRIMEIRO

Não sou vil delator, vil assassino, Impio, cruel, sacrilego, blasfemo. Hum Deos, á eternidade adoro, e temo,Conheço, que ha vontade, e não destino.

Ao saber, e à verdade a fronte inclino;Se chora, e geme o triste, eu choro, e gemo; Chamo á beneficencia hum dom supremo Julgo a doce amizade hum bem Divino.

Amo a Patria, amo as Leys, precizos laços, Que mantem dos mortaes a consystencia;E de infames grilhoens ouço ameaços.

Vejo me exposto à rígida violênciaMas canto; folgo, e durmo nos teus braços, Amiga da razão pura innocencia.

Algumas diferenças são insignificantes, como, no verso 6, «e gemo» por «eu gemo», e, no verso 13, «mas canto; folgo», em vez de «mas folgo, e canto». Mais importante será a substituição de «virtude» por «verdade», no verso 5, e de «con-vivência» por «consistência», no 10. Finalmente, merecedora de maior atenção é a variante do verso 2, onde, em vez da precisão de

um Deus adoro, a Eternidade temo

está uma afirmação generalizante e, portanto, mais susceptível de gerar equívocos:

Hum Deos, á eternidade adoro, e temo,

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A importância dos conceitos de «Virtude» e de «Eternidade» nesta composição foi já sublinhada atrás, e é isso que nos leva a supor que a lição do Soneto acima transcrita representa uma forma mais antiga do mesmo.

As variantes da segunda peça são maiores, como vamos ver.

SONETTO SEGUNDO

Tenho assas conservado o rosto enxuto Contra as iras do Fado Omnipotente Assas (com tigo oh Socretes na mente) A dor neguei dar queixas, ou tributo:

Sinto engelhar-se da constancia o fruto Caé no meu coração nova semente; Ja me não valle hum animo innocente; Gritos da natureza eu vos escuto.

Ja ser mudo entre as garras da amargura He desesperação, não he grandeza,Que nunca foi grandeza huma Alma dura.

No espírito maior sempre ha fraqueza, E abafada no horror da desventura Cede a Filozophia à natureza.

Se podemos considerar que, no verso 9, «Já ser» por «Jazer» é um simples erro de copista, também não é improvável que se trate de uma lição diferente, uma vez que a construção com «já» vem da quadra anterior, e, além disso, todo o terceto é diverso do correspondente das Rimas:

Jazer mudo entre as garras da Amargura, de alma estóica aspirar à vã grandeza, quando orgulho não for, será loucura.

Houve uma alteração no sentido de uma maior clareza (alusão directa ao Estoicismo e sua abrogação). Esta atitude está de acordo com o que vimos atrás sobre o ataque a essa doutrina8, e ainda com a preocupação, certamente, de melhor preparar o segundo terceto. A «alma estóica» tem a função de anunciar

8 Supra, nota 5.

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1156. NOTAS SOBRE TRÊS SONETOS DE BOCAGE

a «Filosofia» do verso final. Quer dizer que, tal como no caso anterior, temos nas Rimas uma versão melhorada do texto.

O terceiro exemplo é menos significativo do que qualquer dos outros, como veremos em seguida, e confirma, logo de início, a hipótese que formulámos rela-tivamente ao verso 9 do anterior, de não estarmos perante um copista pouco entendedor. Efectivamente, um escriba ignorante teria certamente transformado «Aceso no almo ardor» do verso 1 no mais fácil e corrente «Aceso na alma ardor». Mas vejamos a transcrição completa:

SONETTO TERCEIRO

Acezo no almo ardor, que a mente inflama Vivo de Amor, de Amor suspiro, e canto, Na face agora o rizo, agora o pranto Da Arvore tua, oh Febo, eu cinjo a rama:

Prezo a doce Moral; na voz da FamaMeu nome pouco à pouco aos Ceos levanto: Mas Turba vil, que abato, anceio, espanto, Urde em meu damno abominavel trama.

Reo me delata de horrida maldade, Projeta aniquilar me o bando rudeEnvolto na Letea obscuridade.

Falsa esperança oh Zoilos vos illude;Furtay me a paz, furtaes me a liberdade; Fica me a gloria, fica me a virtude.

Apenas há a registar uma alteração, desprovida de significado, no verso 7 (acrescento da copulativa «e» nas Rimas) e outra, um pouco maior, no verso 12, onde, em vez da afirmação de inocuidade da acção dos seus detractores, temos a apóstrofe que preludia as duas do verso seguinte:

Que falsa ideia, oh zoilos, avos ilude?

O final da composição ganha assim em vivacidade, e o contraste com o último verso torna-se mais acentuado9.

9  Sobre este terceto, veja-se o breve comentário de Hernâni Cidade, Bocage (Lisboa, 21955), p. 91.

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Com variantes mais ou menos expressivas, podemos concluir que todas elas convergem no sentido de a cópia eborense representar uma versão menos per-feita do que aquela que o texto impresso nos oferece. Que o repentista Bocage era ao mesmo tempo um torturado da forma, como geralmente o são os grandes poetas, prova-o um autógrafo existente na mesma Biblioteca, e reproduzido por Hernâni Cidade10.

Pelas razões aduzidas supomos que o apógrafo que temos estado a analisar é cópia de uma versão primitiva, que chegou a circular, destes mesmos Sonetos, e que não é por acaso que eles estão juntos, tal como na edição das Rimas, revista pelo Autor. Permitimo-nos mesmo avançar uma outra hipótese. Conforme se depreende da declaração «Ao Leitor», anteposta ao Tomo II, todo o conteúdo deste volume foi furtado a Bocage e reconstituído por ele de memória. Avisado pelos amigos do que lhe acontecera, e «temendo a perda do que, para mim ao menos, era precioso, examinei o livro interior, que me não podem roubar, e com efeito copiei dele tudo o que dou à luz». E, mais adiante: «A maior parte das Poesias que publico, foi recobrada com a memória.»

Seria o manuscrito eborense cópia da forma primeira dos três Sonetos? Parece--nos assaz provável. Se a alteração, a partir do tal «livro interior», foi consciente ou não, é que não temos elementos para dizer. A espantosa retentiva de Bocage, por um lado, e o perfeccionismo que lembrámos atrás, por outro, parecem apontar para a resposta positiva.

10 Na obra citada na nota anterior, p. 108, e no prefácio aos Opera Omnia, vol. I, p. XXXVII, com a observação: «Os esmerados cuidados da forma estão patentes nas correcções feitas».

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7. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS*

A entrega dos Estatutos Novos à Universidade de Coimbra, pelo Marquês de Pombal, a 29 de Setembro de 1772, em cerimónia realizada na Sala Grande dos Actos e revestida do maior aparato1, é, como se sabe, o culminar de um longo processo, cujas peças, discutidas e avaliadas desde logo2, têm sido sucessivamente anali-sadas, desde Teófilo Braga3 até à mais recente actualidade4. Ligado intimamente com o fenómeno que o Prof. Hernâni Cidade chamou a «Crise Mental do Século XVIII»5, os seus antecedentes próximos e remotos constituem um dos capítulos mais complexos da nossa cultura, e a respectiva apreciação crítica um desafio à objectividade dos que a ela se dedicam.

* Publicado em Bracara Augusta 28 (1974), 313-329; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Por-tuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 171-191.

1 A descrição da cerimónia pode ler-se no curioso documento «Diário da Visita do Marquês de Pombal a Coimbra na Reforma da Universidade», publicado por António de Vasconcelos, Escritos Vários, Coimbra, vol. I, 1938, pp. 337-388.

2 Recordem-se as críticas contidas na correspondência de António Ribeiro dos Santos (MSS da Biblioteca Nacional, vol. 130, fol. 203 e 205), publicadas por Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, Lisboa, 1898, tomo III, pp. 569 e 571; e ainda a Dissertação Crítica sobre os Estatutos da Universidade de Coimbra, manuscrito setecentista da Biblioteca Municipal de Elvas, dado à estampa por Adelino de Almeida Calado, Coimbra, 1954.

3  O estudo de Teófilo Braga, incluído no tomo III da História da Universidade de Coimbra, é de 1898. Note-se que, na celebração do 1º Centenário da Reforma Pombalina, em 1872, portanto, se fez uma Memória Histórica de cada Faculdade.

4 Encontram-se em curso publicações comemorativas do 2º Centenário da Reforma Pombalina, cuja celebração ficou determinada pelo Senado Universitário de Coimbra, da presidência do Reitor Gouveia Monteiro, em sessão de 21 de Abril de 1970.

5 Ensaio sobre A Crise Mental do Século XVIII se chamava o livro, publicado em Coimbra, em 1929, e sucessivamente revisto e reimpresso, sob o nome de Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, 2º volume, até atingir, em 1968, a 5ª edição — como sabem as sucessivas gerações de estudantes que por ele têm aprendido.

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118 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Todo esse conjunto de documentos, que tanto inclui o Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra e os próprios Estatutos, como as obras que mais os teriam influenciado, ou seja, o Verdadeiro Método de Estudar, de Verney, ou as Cartas sobre a Educação da Mocidade e o Método para Aprender a Estudar Medicina, de Ribeiro Sanches, constitui um enorme corpus de prosa doutrinal, cuja importância histórica (em toda a dimensão do termo, desde o de informação sobre o passado à de base de reflexão para o presente) não é demasiado encarecer.

Nenhuma dessas obras forma, porém, o objecto do presente trabalho, que pre-tende apenas abranger um aspecto parcelar, ainda que significativo, da questão: os seus ecos na poesia.

Conhecido o pendor cientista de muitos dos nossos poetas de Setecentos, por um lado, e, por outro, a função panegírica que as Musas se prestavam com defe-rência a assumir, não surpreende que a Reforma Pombalina tenha sido celebrada em verso. Os cantos em honra de D. José, e, ocasionalmente, de outras pessoas da família real, e do Marquês, multiplicavam-se. Acontecimentos de vulto, como as melhoras do monarca após o atentado, deram à Arcádia Lusitana motivo para uma sessão pública, realizada na biblioteca do Real Hospício de Nossa Senhora das Necessidades, a 14 de Março de 1759. Aí proferiu Correia Garção a Oração Terceira6; António Dinis da Cruz e Silva, a II das Odes Pindáricas e os Idílios XI e XII (este nas falas referentes ao pastor Elpino, sendo as de Tirse da autoria de Teotónio Gomes de Carvalho e as de Siveno de Silvestre Gonçalves de Aguiar); Reis Quita, a Écloga II e a Ode III. A elevação a Conde de Oeiras de Sebastião José Carvalho e Melo foi consagrada noutra conferência pública, em 29 de Outubro do mesmo ano de 1759. Nessa altura apresentou Correia Garção uma das suas poucas odes pindáricas, a XXXI; Reis Quita, a Ode IV e a Écloga IV, «Carvalho». A contribuição de António Dinis foi ainda mais ampla, pois abrangeu a Ode IV, a V das Odes Pindáricas e o Idí-lio XVI (em que fez a parte de Elpino, cabendo a de Thelgon a Teotónio Gomes de Carvalho, a de Palemo a Feliciano Alves da Costa, e a de Siveno a Silvestre Gomes de Aguiar). Outra sessão académica celebrou-se em casa do Morgado de Oliveira, em 20 de Janeiro de 1774, «em aplauso do Ilustríssimo, e Excelentíssimo Marquês de Pombal». Aí se escutou a VII das Odes Pindáricas de Cruz e Silva e uma curiosa composição, logo impressa avulsa nesse ano, pela Oficina Régia, que depois figu-rou nas Poesias de Elpino com o título de Ditirambo VIII. A respectiva didascália

6 Sobre as alterações que teria sofrido o texto deste panegírico, em que a informação clássica e o apreço pela ciência contemporânea se dão as mãos, veja-se a nota de António José Saraiva na sua edição das Obras Completas de Correia Garção, Lisboa, 1958, tomo II, p. 157. Em todas as citações que se seguirem, servimo-nos dessa edição para Corydon Erimantheo; para Elpino Nonacriense, das Poesias, de António Dinis da Cruz e Silva, Lisboa, 6 tomos, 1807-1817; para Alcino Micénio, das Obras Poéticas de Domingos dos Reis Quita, Lisboa, 1766; para António Ribeiro dos Santos, das Poesias de Elpino Duriense, Lisboa, 3 tomos, 1812-1817, citando, para este último, o número do volume em romano e o da página em árabe.

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1197. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS

informa que foi cantado a três vozes e composto por António Dinis da Cruz e Silva, como tenor, e Teotónio Gomes de Carvalho, sendo os versos do primeiro notados com um asterisco. O coro entoa vivas, ora ao Marquês («o Grande Carvalho»), ora à «Grande Marquesa».

Nestes encómios — quer do rei, quer do seu ministro — não costumam faltar as referências concretas às principais medidas governativas tomadas pelo Marquês, designadamente a da criação das Companhias do Grão-Pará e do Alto Douro e da reconstrução de Lisboa7.

A glória da reedificação da capital, enobrecida com uma série de paralelos da epopeia antiga, ocupa mais de uma tríade na já citada Ode XXXI de Correia Garção. A VII das Odes Pindáricas de Dinis retoma o motivo, quinze anos mais tarde. Mas, nessa altura (1774) já pôde acrescentar-lhe um outro, na antístrofe 5ª:

Mas novo assombro aos olhos meus se oferece!Já sobre ti da Olímpica morada,

Claro Mondego, desceMinerva de seus Génios rodeada:

Rasgando a densa treva,Que alçou em teu regaço

Torpe ambição de falso zelo armada,À sombra ilustre do possante braço, Às castas Musas áureo templo eleva; Templo imortal, que tanta luz derrama, Que de Atenas eclipsa a grande fama.

Não era a primeira vez que António Dinis erguia os seus louvores à Reforma da Universidade, em ligação com os outros grandes empreendimentos pombalinos. Também a ela se alude nestes versos que o Deão profere no Hissope8:

7 Exemplos de Cruz e Silva são a Ode IV e a I, V e VII das Odes Pindáricas; de Correia Garção, a Ode XXXI. Na sua Écloga V, «Dalmido», Reis Quita celebra a restauração do comércio; no Soneto V, a partida dos primeiros navios da Companhia do Maranhão. Sobre as poesias consagradas à estátua equestre de D. José, vide infra, nota 27.

Também existe um breve elogio ao Marquês, de carácter alegórico, feito por José Anastácio da Cunha (a p. 79 da edição de Hernâni Cidade, A Obra Poética do Dr. José Anastácio da Cunha, Coimbra, 1930). Sobre a supressão de grande parte da poesia laudatória, depois da queda do Marquês, vide Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, Lisboa, 1898, tomo III, p. 572.

8  O facto foi notado por Teófilo Braga, op. cit., III, pp. 571-572. Mesmo que admitamos que a res-tauração das ciências e das artes se encontrava in fieri, pelo menos desde a nomeação da Junta da Providência Literária, em 1770, teríamos de baixar um pouco a data da composição do poema herói--cómico, que geralmente se supõe teria sido principiado cerca de 1768.

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120 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Por certo, que não pode duvidar-seDo aumento, senhor, que em nossos dias Tem tido Portugal, por alto influxoDo grande, o forte, o nunca assaz louvado Rei, primeiro no nome e nas virtudes, E do sábio Ministro que lhe assiste. Não fallo nas Ciências e nas ArtesQue eu delas nada sei; pois meu emprego Às letras aplicar-me não me deixa, Como o meu gosto e génio me requerem.

Mas o tema mereceu a Elpino Nonacriense uma das suas composições de maior fôlego, a VI das Odes Pindáricas, em sete tríades, endereçada «Ao Marquês de Pom-bal, Sobre a Reforma da Universidade de Coimbra».

Principia com o tópico, que há pouco vimos retomado na VII das Odes Pin-dáricas (e que estava consagrado desde a famosa estância de Os Lusíadas sobre a fundação dionisiana9 da comparação de Coimbra com Atenas, a qual ocupa toda a primeira tríade, extravasando ainda, à maneira do Poeta Tebano — que na fase de maior esplendor tende a dissociar as unidades métricas das sintácticas — , para a estrofe 2ª:

Estrofe 1ªBella Ninfa do Ilisso, alta princezaDa populosa Grecia, insigne Athenas,

Da passada grandezaEm vão batendo as orgulhosas pennas

Às nuvens te remontas,Inda que os Numes entre si se armassem, E rivaes dar-te o nome disputassem.

Antístrofe 1ªSei de quanto fulgor a fronte augusta De Minerva te ornou o ilustre braço:

Sei que Némesis justa

9 Canto III, estância 97, sobretudo os versos:

Quanto pode de Atenas desejar-se,Tudo o soberbo Apolo reserva.

Confronte-se também António Ferreira, Écloga I, vv. 55-72.

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1217. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS

O seu trono firmou em teu regaço;Que nelle da justiça

As primeiras faíscas scintillárão, Que no Lado depois tanto brihárão:

Epodo 1ºSei que no eterno alcaçar da Memoria Indelevel gravárãoSocrates e Zenon a tua gloria;E Solon, que prudente as leis modera, Que de sangue mão avida escrevera:

Estrofe 2ªSei que teu nome á eternidade vôa: Mas nem por isso esperas arrogante,

Roubar a immortal croa,Que na frente hoje cinge triunfante

A famosa Coimbra;Pois de Pombal a coruscante estrella Com seus ralos a cobre, e faz mais bella.

Depois deste pórtico, que teve como ponto de partida a apóstrofe a Atenas — processo literário inspirado, como o próprio Dinis adverte em nota, no modelo grego10 — principia a enumeração dos benefícios outorgados aos diversos ramos do saber.

Invertendo a ordem tradicionalmente aceite11 e até a dos próprios Estatutos, o antigo escolar de Leis principia por exaltar a reforma dos estudos de Direito (antístrofe 2ª) e só depois passa à Teologia (epodo 2º). A «suspirada Astreia» já estava, aliás, preludiada, como o principal título de glória da cidade de Palas, na antístrofe 1ª e epodo lº, sem olvidar que foi na Hélade que se estabeleceram as bases do futuro edifício do Direito Romano. Agora o poeta insiste em que se rasgou «o denso véu com que a cobria/ a ignorância feia». Uma longa nota ao primeiro destes versos, com não poucas abonações, precisa quem são os visados: «Accursio e sobre todos Bartholo, e Baldo, e os sequazes, nascidos em um século falto de

10  A nota 1 (tomo V, pp. 118-119), depois de justificar cuidadosamente a invocação de «Bela ninfa do Ilisso», dada a Atenas (abonando-se, até, em Pausânias in Atticis — que corresponde a I.22.3), esclarece que «com semelhantes Prosopopeias principia Píndaro muitas de suas Odes: veja-se particularmente a 1ª das Neméas, a 7ª das Isthmiacas, a 2ª e 12ª das Pythias, e a 5ª das Olympias» A estes paralelos, todos exactos, falta acrescentar um dos mais conhecidos, a abertura da 1ª Ístmica.

11  A ordem definida, por exemplo, nos Estatutos de 1559, era: Teologia, Cânones, Leis e Medicina (cap. 80, p. 237 da edição de Serafim Leite, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1863).

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122 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

luzes, e ignorantes da Historia, e pureza da língua Latina, e criados entre as sub-tilezas dos Arabes, com seus longos commentarios, contínuas e meudas divisões, limitações, e sublimitações, e conjecturas...»12. As acusações estão na linha das da Lei da Boa Razão, de 18 de Agosto de 1769, e em consonância com o que o Prof. Mário Júlio de Almeida Costa chamou o «estilo prolixo da chancelaria de D. José», com seus «estribilhos tão ao gosto da moda»13, e bem assim com as objurgatórias do Compêndio Histórico e dos próprios Estatutos14.

A reforma da Teologia ocupa, como dissemos, o epodo 2º, a cujos poucos versos o autor não perde a oportunidade de juntar uma nota em que invectiva «as falsas Decretaes» e a Teologia do Probabilismo, e as «muitas, inúteis, ridiculas, e pueris questões, que a Logica e a Metafísica de Aristoteles, depravadas por Averróes, e outros Commentadores Arabes, nela tinhão introduzido», e outra em que se ver-bera «a ambição dos denominados Jesuítas»15.

Esperar-se-ia a seguir o louvor da reforma do Curso Médico, objecto, junta-mente com o Curso Matemático e o Curso Filosófico, do Livro III dos Estatutos. Tal não sucede, porém, nem se vislumbra em toda a Ode qualquer alusão àquela ciência. A omissão é surpreendente, embora possa encontrar alguma explicação no pouco êxito que conhecera ainda, uma vez que, anos depois, na Relação Geral do Estado da Universidade, D. Francisco de Lemos teve de escrever, a propósito das Faculdades de Cânones e Leis: «As aulas de ambas estas Faculdades são as únicas que actualmente são frequentadas na Universidade por um suficiente número de estudantes». E mais adiante, a propósito da de Medicina, confessa que os inscritos nas novas cadeiras tinham falta «dos princípios filosóficos e matemáticos que são a base da Teoria médica»16.

Se a razão era essa, não prevaleceu, no entanto, para as duas Faculdades novas criadas pela Reforma Pombalina, que ocupam lugar de honra na composição. O elogio do actual estado da «sã Filosofia» (que a nota 17 especifica cuidadosamente ser a ecléctica, «que teve o berço em Alexandria») estende-se por toda a 3ª e a 4º

12 Poesias, tomo V, p. 123.13 «Romanismo e Bartolismo no Direito Português», Boletim da Faculdade de Direito XXXVI (1960),

p. 31 da separata. O mesmo historiador do Direito observa (ibidem, p. 30 e n. 43) que Verney não foi tão incisivo contra o jurista italiano, pois não deixou de lhe reconhecer sabedoria. Efectiva-mente, o Verdadeiro Método de Estudar afirma (edição de António Salgado Júnior, Lisboa, 1952, vol. IV, pp. 158-159): «Tendo assim começado as explicações, aumentaram-se sensivelmente no seguinte século XIV, no qual apareceu uma turba imensa de Jurisconsultos: Bártolo, Baldo, Tartagna, Sali-ceti, Paulo de Castro, Jasone, etc. Estes homens naquele tempo eram venerados; mas, para dizer a verdade, eram, ainda que doutos, ignorantes das antiguidades; de sorte que abriram a porta a mil subtilezas, o que deu matéria de engrossar tanto os volumes legais, que hoje não se podem  suportar».

14 Vide Mário Júlio de Almeida Costa, op. cit. p. 32 e n. 49 (da separata).15 Poesias, tomo V, pp. 124-125 (notas 16 e 17).16 Relação Geral do Estado da Universidade, pp. 34 e 41, respectivamente.

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1237. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS

tríade, repartindo os seus louvores pela Física, Lógica, Teologia Natural, Ética e Direito Natural (as «innatas leis»). De caminho, não perde o poeta a oportunidade de encarecer as vantagens do abandono da Filosofia Peripatética, em benefício do experimentalismo:

Já do Lyceu o jugo vergonhosoIntrepida quebrando,

Entrega de seus Reinos a opulência Nas destras mãos da sólida Exp’riência.

A nota a este passo evidencia, contudo, que António Dinis pertencia ao número dos que sabiam que quem devia responsabilizar-se como «tyrana da razão»17 não era tanto a obra do Filósofo, como «as traduções e commentos dos Arabes»18.

Com a estrofe 5ª principia o elogio da Matemática, posto sob a égide da «bella Urania»19. Em vez, porém, de se referir ao estudo a que a nova Reforma concedera lugar proeminente20, passa à exaltação dos grandes valores que a Musa da Ciên-cia dera ao País: o Infante D. Henrique, Pedro Nunes, Vasco da Gama. A menção do grande navegador traz consigo uma evocação do descobrimento do caminho marítimo para a Índia, bem como de algumas consequências científicas, que, aliás, já vinham a acumular-se desde as primeiras grandes empresas, e que o próprio Pedro Nunes pusera em relevo21:

17 A expressão é da nota 20, à palavra «Liceu» (vol. V, pp. 126-127).18 Idem, ibidem. Sobre o desprezo pela Escolástica, confronte-se o passo do Hissope em que se diz

que no Génio das Bagatelas:

Aqui seu berço teve a espinhosa Escolástica, vã Filosofia...

e ainda, do mesmo Cruz e Silva, a primeira quadra do Soneto 47 da IIª Centúria.Sobre a renovação filosófica a que procederam os próprios Jesuítas, veja-se António Alberto de 

Andrade, Vernei e a Cultura do Seu Tempo, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1966, pp. 234-238, e J. S. da Silva Dias, «Portugal e a Cultura Europeia (Sécs. XVI a XVIII)», Biblos XXVIII (1952), 203-498.

19  Tradicionalmente considerada (embora tal atribuição não seja anterior à época romana) a patrona da Astronomia. Na nota 30 (Vol. V, p. 130), Cruz e Silva explica que ela «preside às Matemá-ticas; aqui se deve tomar pelas mesmas Sciencias».

20  Os alunos do curso  teológico-jurídico  tinham de  frequentar um ano de Geometria; os de Filosofia, dois; e os de Medicina, três. Cf. Hernâni Cidade, op. cit., vol. II, p. 210.

21  «Os portugueses ousaram cometer o grande mar oceano. Entraram por elle sem nenhũ receo. Descobriram novas ylhas, novas terras, novos mares, novos povos: e o que mays he: novo ceo: e novas estrellas» (Tratado... em defensam da carta de marear, cõ o regimento da altura in Obras, vol. I, Lisboa, 1940, p. 175).

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124 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Com seu favor soltando as brancas velas,O varão grande ao bravo mar se entrega;

Novo hemisfério, e estrellas,Novas gentes vai vendo, até que chega

Da Aurora às roxas portas,Sem temer no caminho dilatadoO rosto horrendo de Neptuno irado.

O louvor derrama-se ainda pelo epodo 5º, onde transparece o tópico antigo da surpresa causada pelo aparecimento de navios desconhecidos22. A estrofe 6º sumaria, novamente em termos míticos, o período da expansão portuguesa em todos os mares.

A advertência dirigida pelo poeta à sua própria lira, na antístrofe 6ª, convi-dando-a a voltar-se de preferência para o «novo herói», é uma maneira hábil de sugerir que os feitos de Pombal se situam à altura dos do descobridor das Índias. Uma breve alusão ao modelo pindárico, reminiscente, ela mesma, do final da VI Ístmica23, tempera o exagero com as graças poéticas:

De Thetis deixa o liquido regaço;E as luminosas asas

Da patria ao novo heróe rapida volta, E do Ismeno sobre ele o orvalho solta.

O elogio que segue, constituindo o epodo 6º, retoma um motivo muitas vezes explorado pelos panegiristas de D. José e do Marquês: a superioridade da «pax Augusta», de que se goza, sobre os grandes feitos bélicos24.

22 Cf. Virgílio, Eneida VIII, 90-93. A XVII das Odes Pindáricas, consagrada a Vasco da Gama, con-trasta o glorioso feito lusitano com a expedição dos Argonautas.

23 Vv. 74-76. Na Ode IV, recitada na Arcádia a 29 de Outubro de 1757, António Dinis fora muito mais longe, pois colocara o futuro Marquês de Pombal não só acima das grandes figuras do passado português, como de Colbert, Mazarino e outros.

24 Na V das Odes Pindáricas, apresentada em 1759, na sessão pública da Arcádia em que se celebrou a elevação de Carvalho a Conde de Oeiras, já se lia na estrofe 4ª:

Mas que aspecto difrenteBrilha na Lusa gente.Contra o bravo furor de acesa guerra Com as asas a cobre a Paz dourada.

Cf. a Ode XXXI de Correia Garção, e, do mesmo autor, as Orações Primeira e Terceira; e também o poema latino de Elpino Duriense Ad Josephum I Lusitanorum Regem De Pace Eius Auspiciis Reddita (III, 209-210).

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1257. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS

A estrofe 7ª vem trazer, à boa maneira clássica, um exemplo, que vai preparar a conclusão. Tal exemplum provém do plano mítico: é o caso do antigo Egipto, tirado do «cahos da ignorância» por Ceres, a quem o povo, reconhecido, ergue estátuas e altares. Uma nota esclarece e tenta justificar, aliás com inegável habilidade, esta estranha escolha, explicável pelas limitações da época no conhecimento da Antiguidade: «Não só por nascer nelle a Filosofia, mas porque muitos tempos depois foi Alexandria o asilo de todas as sciendas e artes»25. A seguir, louva-se em Plínio e Diodoro Sículo, para a equivalência de Ceres a Isis, com a consequente aceitação do que, em termos da ciência actual, chamaríamos a teoria da origem egípcia dos Mistérios de Elêusis26.

Estava preludiado o tema da glorificação de Pombal por Elisia «em duro bronze, em marmore de Paros», que constitui o motivo da antístrofe 7ª, e, de certo modo, justifica antecipadamente a famosa estátua por Machado de Castro, cujo projecto tinha principiado em 177027. Mas uma promessa de imortalidade pode já ser feita — a daquela que é conferida pela poesia— , e com essa afirmação, novamente na esteira do Poeta Tebano, encerra a Ode28:

O genio que me inspira o sacro alento,Com que triunfante domo

A vil inveja, o torpe esquecimento,De meu hymno entre a pompa e magestade, Teu nome levará à Eternidade.

25 Nota 36, pp. 131-132 do tomo V.26  O passo de Plínio (VII.56-57) apenas afirma que Ceres descobriu o trigo e ensinou a Ática a 

moer e amassar; o resto dos preparativos coube à Sicília. Em Diodoro Sículo (1.13.4) lê-se que Saturno teve como filhos Osíris e Ísis, ou Jove e Juno, e que deles nasceram cinco filhos. Logo a seguir, porém (1.13.5), estabelece a identidade entre Osíris e Baco, e Ísis e Ceres (note-se que tal equivalência vinha já de Heródoto, II. 59, 156 e 171).

A tese da origem egípcia da religião de Elêusis ainda teve defensores no nosso século, como P. Foucart (Les Mystères d’Eleusis, 1914), mas ficou fortemente abalada pela argumentação de Ch. Picard («Sur la patrie et les pérégrinations de Déméter», Revue des Études Grecques 40 (1927), 321-330) e ainda mais pelos resultados finais das escavações no santuário, que não revelaram um único objecto daquela proveniência (cf. G. E. Mylonas, Eleusis and the Eleusinian Mysteries, Princeton University Press, 1961, pp. 15-26).

27 O próprio poeta havia de celebrar a inauguração da estátua equestre, na III das suas Odes Pindáricas (datável, portanto, de 1775). Por sua vez, Reis Quita glorificou separadamente o busto de Carvalho, no Soneto IV. Elpino Duriense alude à obra-prima de Machado de Castro numa Ode (II, 9-10) e dedica-lhe quatro epigramas latinos (III, 210-211). Quanto a Correia Garção, sabe-se que a família do poeta contava que a sua bela composição Fala do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, aos Portugueses, querendo-lhe levantar uma estátua pelo seu bom governo, o que ele não consentiu se destinava a condenar o projecto em curso; mas, por outro lado, o manuscrito do Cónego Figueiredo tem escrito à margem «Para a Academia dos Ocultos, 1754» — o que invalida a hipótese. Sobre o assunto, veja-se a citada edição de António José Saraiva, vol. I, pp. XXV-XXVI e 283.

28 E.g. Píticas III.114-115, e Ístmicas IV.41-42.

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126 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Em 1777, o mesmo Cruz e Silva reconhecia, num Soneto (o 29 da II Centúria) que toda aquela prosperidade terminara com a morte de D. José. Não vamos repe-tir aqui o que é de todos conhecido sobre o perigo de soçobrar em que esteve a Reforma Pombalina e a acção enérgica de D. Francisco de Lemos para o impedir, elaborando a Relação Geral do Estado da Universidade. Mas o grande Reitor é exo-nerado em 1779, e sucede-lhe o Principal Mendonça, de 1780 a 1785. Desse período toma conta o espírito da sátira, com o poema herói-cómico em quatro cantos, O Reino da Estupidez. Assinado com o pseudónimo de Fabrício Cláudio Lucrécio e caricaturando impiedosamente a decadência a que regressara a Universidade, só poupa o colaborador que restava da Reforma, o grande matemático Monteiro da Rocha, pondo na sua boca a recusa de acolher a Estupidez, a quem todos querem abrir os braços. A atribuição da autoria da obra chegou a andar por mestres ilus-tres, como António Ribeiro dos Santos e Ricardo Raimundo Nogueira, o primeiro dos quais se defendeu energicamente «de que tivesse a loucura de publicar versos tão miseráveis»29.

O poemeto, que era, na verdade, do estudante brasileiro de Medicina, Fran-cisco de Melo Franco, provocou grande reacção, expressa também em verso, em O zelo, oferecido aos admiradores da Estupidez por Patrício Prudente Calado, e na Ode a Fileno.

Destes negativos da Reforma, que foram analisados e em parte publicados por Teófilo Braga30, não nos ocuparemos aqui. Tão-pouco discutiremos até que ponto o Principal Mendonça teria sido a causa do obscurantismo em que caíra a vida universitária31. O certo é que a nomeação do Principal Castro, em 1786, vem dissipar muitas apreensões e suscitar as maiores esperanças nalguns homens mais doutos da época.

Entre estes contava-se o já referido António Ribeiro dos Santos, o canonista insigne e primeiro director da Biblioteca da Universidade, autor, aliás, de severas críticas à obra educativa do Marquês, que qualificava de «edifício ruinoso», pois, entre outras faltas graves, «o amor das Letras e génio literário não presidiram à sua reformação»32.

29 Na História da Universidade de Coimbra, tomo III, pp. 681-684, Teófilo Braga transcreve excertos de duas cartas em que António Ribeiro dos Santos se defende da acusação (MSS., vol. 130, fol. 93 e fol. 27-31; a frase citada vem na p. 683). O Reino da Estupidez, que primeiro circulou manuscrito, foi editado repetidamente (vide a relação em Teófilo Braga, ibidem, nota da p. 697).

30 Algumas estrofes de O Zelo encontram-se transcritas no mesmo volume, nas pp. 685-689; da Ode a Fileno, nas pp. 689 a 696. A discussão da totalidade da questão principia na p. 675.

31 Sobre o assunto, vide Mário Brandão e M. Lopes de Almeida, A Universidade de Coimbra. Esboço da sua História, Coimbra, 1937, pp. 114-115.

32 MSS. vol. 130, fol. 205, apud Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, tomo III, p. 571. Pode ver-se um sereno e equilibrado juízo de conjunto sobre as medidas educativas de Pombal em Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, vol. II, pp. 211-216.

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1277. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS

Outros, porém, foram os sentimentos do douto investigador, quando soube da escolha do Principal da Santa Igreja Patriarcal para Reformador Reitor da Universidade. D. Francisco Rafael de Castro era, para aquele austero professor da Faculdade de Cânones, que cultivava as Musas com o nome de Elpino Duriense, um amigo pessoal que lhe merecia a maior admiração. Muitos dos poemas de Elpino lhe são endereçados: nada menos de quatro epístolas em verso (uma das quais repetida), sete odes, seis poemetos em quadras de «verso pequeno» (ou seja, em redondilha maior) e sete sonetos. Muitas dessas composições eram simplesmente gratulatórias, por motivo do aniversário natalício33. Mas uma delas merece um lugar à parte pela sua importância e, certamente por isso, foi seleccionada para encabeçar os três tomos da edição das Poesias: é precisamente aquela que celebra a nomeação do Principal Castro34.

Nesta longa epístola em verso, Elpino começa por recordar as gloriosas tradições familiares do amigo. Enumera, em seguida, os descobridores e capitães da Índia e do Brasil que executaram grandes empresas. Mas maior ainda, continua, é a que Jove lhe destina — maior do que o próprio «nobre feito/ dos claros Argonautas». Como se estivesse a construir um priamel à maneira de Píndaro, só agora atinge o ponto mais alto desta escala de valores:

A mor obra, que importa a um Rei, a um Reino, De que pende da Pátria o bem e a glória,É educar os Cidadões futuros,Qualquer que seja o seu destino e arte,No regaço das Leis, e sãos costumes;Mas muito mais, os que hão-de vir um dia Defender com prudência, zelo e sisoOs bens, a liberdade, a vida, a honra,Os direitos do homem, as regras santas,Da Moral, da Justiça, da Equidade.

Do valor da educação em geral, o mestre universitário passa ao encarecimento dos estudos superiores: o Direito, a Filosofia, a Teologia, cujas finalidades são exaltadas em longas perífrases. Mas nada terá valor, se não for alicerçado nos bons costumes:

33 E.g.: I, 146-147 (Louvem-te, ó Castro, ao doce som da lira); I, 148-150 = III, 5-7 (Que quereis vós, Senhor, que lá vos mande); II, 70-71 (Sangue dos Lusos Deuses, alto objecto); II, 153-155 (Eu te mando Senhor, os áureos versos); II, 163-164 (Passou teu claro dia, e meu, ó Castro); II, 165 (Os justos Céus, Senhor, não consentiram); II, 250-255 (Tu, Senhor, de mim te queixas); II, 261-263 (Neste tempo, em que a virtude); II, 34 (Lá te mando, Senhor, meu parabém).

34 Tomo I, pp. 3-7.

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128 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Cumpre nos campos juvenis florentes Semear a Moral, primeiro móbilDos severos costumes, das virtudes,Das máximas prudentes, dos ditames.

Das dificuldades da tarefa que aguarda o seu amigo, tem plena consciência Elpino Duriense, que não hesita em compará-la, com exata e mitológica proprie-dade, ao esforço de Atlas:

Quanto não pesa, ó Castro, este alto empenho?Quais atlânticos ombros d’aço puroNão pede a empresa sublimada? Quanta Soma de siso, de destreza e de arte,Quanto saber, quanta energia e zelo?

Este pequeno «Manual do Perfeito Reitor», como poderíamos chamar-lhe, termina, muito arcadicamente, com um concílio dos deuses, que vêm cumular de virtudes o Principal eleito.

Entre a nomeação, em 3 de Dezembro de 1785, e a posse, em 8 de Maio do ano seguinte35, deve situar-se uma Ode consagrada ao mesmo assunto36, pois nela alude às conversações com os que vieram «pedir amparo» ao seu ilustre amigo e o exorta a não tardar em socorrê-los. A esse propósito se insere no poema a descrição do estado a que chegara a Universidade. Se o autor pretende, a coberto dos símbolos usados, visar a Reforma Pombalina, ou apenas o reitorado do Prin-cipal Mendonça, aquele para o qual Teófilo Braga transferiu o título do poema herói-cómico, etiquetando-o de «Reino da Estupidez», não é fácil determinar. O conhecimento das cartas já mencionadas, de crítica às lacunas da Reforma, per-mite a dúvida. Não foram elas, e aceitaríamos sem reserva a segunda hipótese, pois o cantor entusiasta das novas descobertas da ciência, que não encontrava varões «maiores inda do que é Locke e Newton»37, que incitava os amigos a can-tar em verso o génio das Matemáticas e os Estudos da Natureza38, ou os grandes

35 A cronologia encontra-se em António de Vasconcelos, «Relação dos Reitores da Universidade desde a reforma e instalação definitiva em Coimbra por el-rei D. João III em 1537», incluída em Escritos Vários, Coimbra, vol. II, 1948, pp. 7-29.

36 Tomo II, pp. 52-55.37 Epístola a Almeno, I, 41-44 (o verso é o 3 da p. 41).38  Epístolas a Francisco de Borja Garção Stockler, respectivamente em I, 75-77 (S’eu pudesse cantar,

ó sábio Stockler) e I, 167-169 (Qu’alto conceito não farás, Amigo).

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1297. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS

filósofos do século XVII e do século XVIII39, ou os matemáticos modernos40, parece ter assimilado como poucos o espírito científico que animava os Estatutos Novos. É sabido, além disso, que o novo Reitor levava a incumbência de restaurar a Uni-versidade segundo o modelo anterior, facto que se traduz na recomendação do Marquês de Ponte de Lima, ao entregar-lhe a Relação Geral de D. Francisco de Lemos: «Leve V. Ex.ª para a Universidade este livro, que foi quem a salvou da sua ruína»41.

De qualquer modo, o presente desenha-se sombrio nesta Ode, apesar de vestido com todas as galas formais e mitológicas próprias do género:

De bárbaros Alanos feroz bando Qual já viera do Aquilão gelado,Caiu sobre o Mondego, e os férteis campos

Talou co’ ferro:

Ao Padre Rio, que nas frescas ribas Jazia à sombra da oliveira, quebramA rica urna, e à sábia Filha pisam

O colar doiro.

Tú, mísera Princesa, do áureo Ceptro, Que o grão Dinis te dera, despojada, Rotas as régias vestes, arrastravas

Hórridos ferros.

Tuas Ninfas c’os filhos lagrimosas Pelas margens do rio andam carpindo Os cruéis dias, que te lá levaram

Tamanho estrago.

A missão do novo Reitor é de novo comparada à dos heróis do Oriente. Ele tem de acudir «à Mãe das Musas»:

39 Epístolas a José da Silva Xavier, respectivamente, em I, 270-275 (Demos louvor, ó Silva, aos Varões sábios), e I, 276-279 (Amigo, pois que minha carta pôde).

40 Epístola a Garção Stockler, I, 289-297 (Os teus severos ínclitos estudos).41 Da Oração Fúnebre nas exéquias de D. Francisco de Lemos, pelo Dr. Fr. António da Rocha (apud

Teófilo Braga, op. cit., tomo III, p. 599).

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130 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Seus inimigos lhe abate, ergue seu trono E nos ombros armados de diamante Sostém-lhe longo tempo em paz doirada

O seu império.

Para cantar a obra magnífica que antevê, gostaria o poeta de ter a inspiração de Píndaro, como exclama numa estrofe em que se sente passar a recordação do final do Livro II das Odes de Horácio42:

Oh! Se eu então pudesse trasmudado No branco cisne da soberba Tebas,As asas despregar, e erguer-te nelas

Até aos astros.

A composição de odes pindáricas — ao contrário de outros vates da época, como Carreia Garção43, José Anastácio da Cunha44 e Filinto Elísio45 (para já não falar de Cruz e Silva) — não se atreveu, porém, Elpino Duriense. É no mesmo metro da ode que acabámos de citar que, em 1795 ou não muito depois (uma vez que se situa pouco após a morte de Almeno46), o poeta louva a obra já então realizada, afiançando que aquele seu amigo, se vivo fora ainda,

Cantara como o divo Tejo ufanoÀ filha do Mondego predissera,Que honrar irias de Minerva o templo,

De Febo as santas aras;

Como aceso em desejos d’alta gloriaÀ virtude, às ciências dando preço,Na Lusitana Atenas criarias

As Letras, e os Costumes.

42 Odes II.20.43 Odes I, XXXI e XXXIV. Sobre o valor das odes pindáricas de Corydon Erimantheo, vide Hernâni

Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, vol. II, p. 265.44 Apenas uma, que pode ler-se na pp. 33-38 da edição de Hernâni Cidade, A Obra Poética do Dr.

José Anastácio da Cunha, Coimbra, 1930, e que, embora assim classificada pelo autor, não obedece aos cânones consagrados.

45 No vol. I das Obras Completas, Paris, 21817, de pp. 174 a 212, uma longuíssima ode em vinte e quatro tríades, para a qual se assinala, no começo, uma imitação da VI Pítica. O vol. III inclui, na pp. 437-446, outra ode do mesmo tipo, em oito tríades, A Vénus Física.

46 Frei José do Coração de Jesus, o tradutor de Ovídio, poeta muito estimado por Elpino, que havia de o preitear, num só epitáfio, com o Principal Castro (III, 156). Ambos ficaram sepultados na Igreja de S. Francisco de Enxobregas. A ode citada, que se encontra no tomo II das Poesias de Elpino, pp. 153-155, era acompanhada de versos de Almeno.

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Noutra Ode ainda, escrita em data indeterminada, mas certamente posterior ao reitorado de Castro, seu confrade, tanto no cultivo das Musas como no do Direito Canónico, torna a exaltar a sua acção renovadora47:

Da Ambrósia boca solta os favos de Hibla; E conta, quanto tu, ó Castro ilustre,Nas sacras ribas do ancião Mondego

Obraste grande, eterno,

Digno de ti, e de teu nome excelso, Digno de teus Avós, de Lísia digno: Desde então as Piérides te cantam

No dia de hoje um Hino.

Os elogios prodigalizados por Ribeiro dos Santos ao Reformador têm largo fundamento, comprovado pelos melhores historiadores da Universidade48, que deram o devido relevo às medidas por ele tomadas, as quais não nos cumpre pormenorizar aqui. Depois dele, recorde-se todavia, toma novamente posse do lugar D. Francisco de Lemos. A linha de continuidade, um tempo ameaçada, estava salva.

Julgamos ter mostrado que a implantação e vicissitudes da Reforma Pom-balina deixaram na poesia setecentista ecos que merecem a nossa atenção. Primeiramente, o facto de António Dinis da Cruz e Silva ter entendido que ela era tema para uma das Odes Pindáricas e o ardor prosélito com que exalta, sobretudo, a «sã Filosofia» e a «sólida Experiência»49. Depois, o período de deca-dência obscurantista, alvo de uma sátira mordaz, a que não faltaram réplicas. Na lira de Elpino Duriense, sentem-se pulsar as preocupações educativas do

47 II, 70-71. Não só em verso, mas também em prosa, António Ribeiro dos Santos defendeu a acção do seu amigo, como se pode verificar pela carta do MS. 130,  fol. 106, publicada por Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, vol. III, p. 700. O Reitor, por sua vez, recorria ao muito saber e ponderação de Elpino Duriense. Foi a ele que pediu que lhe comunicasse o seu parecer sobre o Plano de Educação Nacional que fora apresentado à Academia das Ciências (Teófilo Braga, ibidem, p. 749).

48  Sobre a acção do Principal Castro, veja-se Teófilo Braga, op. cit., vol. III, pp. 698-751, e Mário Brandão e M. Lopes de Almeida, A Universidade de Coimbra, pp. 115-118. Outros elementos ainda podem ver-se em J. Ferreira Gomes, «A Reforma Pombalina da Universidade (Nótula Comemorativa)», Revista Portuguesa de Pedagogia VI (1972), 25-63, especialmente, pp. 58-59.

49 Como escreveu Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, vol. II, p. 277, as Odas Pindáricas eram «a poesia lírica dignificada, assim, em órgão de glorificação patriótica e pedagogia colectiva». Na p. 278 da mesma obra, põe-se em relevo a curiosidade científica demonstrada no Idílio XV, «Proteu». Todo este capítulo, aliás, se intitula com muita propriedade «A realidade histórica, científica e exótica no lirismo de António Dinis da Cruz e Silva (Elpino Nonacriense)» (pp. 275- -284).

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132 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

mestre digno desse nome, principalmente na Epístola I. As suas odes laudató-rias voltam, como em António Dinis, a conciliar as graças arcádicas com uma atitude de espírito esclarecida pelo iluminismo e atenta aos problemas nacio-nais. No conjunto, portanto, uma das lições que o Século XVIII ainda tem para nos dar.

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8. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO*

À Sra. Dra. Maria Emília Duarte Costa

Escrevendo sobre o Porto na obra de Ramalho Ortigão, dois são os aspectos sob que podemos encarar o assunto. O primeiro que naturalmente surge ao nosso espírito é que se trata de estudar a influência que teria tido o ambiente social e cultural portuense na formação artística do escritor. Estudo esse que certamente nos levaria a tirar a mesma conclusão que Eça de Queirós, na famosa biografia de Ramalho Ortigão que escreveu para a revista «Renascença»1:

nasceu no Porto (intelectualmente em Lisboa)...

Com efeito, o escritor que admiramos como um dos mais egrégios prosadores do séc. XIX nasceu em Lisboa. Não, certamente, formado pelo convívio dos «inte-lectuais do Grémio e da porta da Havanesa», mas talvez um pouco modelado pela cultura do Cenáculo de Antero de Quental e, muito principalmente, preparado pelo Mistério da Estrada de Sintra, produzido pelas Farpas. «As Farpas, autoras de Ramalho Ortigão», como sintetizou Eça, num dos paradoxos mais sugestivos e mais exactos que saltaram da sua pena.

Considerando os factos desta maneira, poderíamos ser levados a supor, como tem sido o caso de alguns críticos, que Ramalho foi um escritor de formação tardia. A asserção é inexacta. Encontramos prosa sua estampada no «Jornal do Porto» a partir da fundação deste, em 1859, ou seja, dos vinte e três anos do autor. Mas ele

* Publicado em Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto 13.1-2 (1950), 122-147. 1  Carta a Joaquim de Araújo, in Renascença, Porto, Fevereiro de 1878, mais tarde incluída nas Notas

Contemporâneas. Todas as citações das obras de Ramalho Ortigão, quando não levam expressamente declarada a edição de que foram extraídas, são referidas à edição das Obras Completas, que a Livraria Clássica Editora de Lisboa começou a publicar em 1942.

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mesmo afirmou ter começado muito antes, uma vez que declarara na autobiografia escrita, em 1891, no álbum do filho2:

Tenho hoje 54 anos, dos quais 35 consagrados à profissão das letras.

que faz recuar para 1856 a sua estreia literária3. Por outro lado, lemos na bela carta a Alberto de Oliveira4:

... não lhe falo como escritor, não lhe direi que o primeiro artigo que escrevi o escrevi no dia em que morreu Garrett, para agradecer à sua memó-ria a impressão que na convalescença de uma febre escarlatina me deixou a leitura das Viagens na Minha Terra, gerando a psicose da minha puberdade e decidindo do destino artístico de toda a minha vida.

Tendo em conta que Garrett morreu a 9 de Dezembro de 1854, teríamos de recuar a primeira tentativa literária de Ramalho para os seus dezoito anos.

Qual é então o motivo que nos leva a afirmar que o escritor nasceu em Lisboa? É, muito simplesmente, a alteração radical que se verifica na sua maneira artística, quase uma verdadeira quebra na linha de continuidade da expressão literária de Ramalho. Tudo isto quer dizer, no fundo, que só então criou o seu estilo. Ele mesmo descreve, na deliciosa resposta, esfusiante de graça, que deu nas Farpas5 a Maria Amália Vaz de Carvalho, que o acusara de empregar galicismos, o que fora e o que era agora o seu estilo, «uma simples película fina, ténue, informe, vazia e elástica, na qual entra a expressão do nosso pensamento como entra a mão numa luva». Que fora então Ramalho Ortigão antes disso? É o próprio Eça de Queirós quem, na carta a Joaquim de Araújo acima citada, o define com estas palavras cintilantes de imagens:

As suas primeiras revelações tinham sido no «Jornal do Porto»; havia já então nos seus folhetins saídas, boutades, repentes, jactos de veia, que mostravam um espírito original, mais sarcástico que irónico, petulante, amando a luta. Mas a sua bela veia natural era inteiramente inutilizada pela sua pesada prosa vernácula; era como um ágil jogador de cricket metido dentro de uma armadura do tempo de D. Sancho II...

2 Publicada postumamente em «O Primeiro de Janeiro» de 1 de Outubro de 1915 e incluída no volume Costumes e Perfis, da edição das Obras Completas.

3 Cf. ainda As Farpas, III, pág. 55: «Foi no «Jornal do Porto... que eu comecei a escrever aos 20 anos de Idade».

4 Publicada in «Lusitânia», vol. II, págs. 28-29.5 As Farpas, XIV, págs. 185-192.

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1358. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO

Este peso da prosa vernácula sobre o estilo de Ramalho nos seus tempos de professor de francês no Colégio da Lapa e de folhetinista do «Jornal do Porto» nem sempre se abatera nesses primeiros trabalhos. Cumpre-nos ressalvar, pelo menos, duas excepções brilhantes: uma é o debate sustentado em três artigos no «Jornal do Porto», respectivamente, em 21 de Agosto, 3 e 11 de Novembro de 1862, contra o D. Jaime de Tomás Ribeiro e os críticos que o defenderam (Castilho, Leonel de Sampaio e Pinheiro Chagas); outra é o opúsculo Literatura de Hoje, que em 1866 deflagrou no meio da Questão do Bom Senso e Bom Gosto como uma das suas granadas mais poderosas.

A famosa intervenção de Ramalho na Questão Coimbrã já estava em gérmen, como se pode ver, na disputa de 1862. Somente aí havia apenas um contendor. Em 1866, o ataque tinha de dirigir-se em dois sentidos opostos. O esforço era maior e pedia uma independência de pensamento e uma agilidade verbal enormes. Esta última, que se manifestara com desigualdade no primeiro folheto, surge agora do princípio ao fim do artigo com uma unidade que não se esperava ainda. A polémica começara já a aguçar o estilo de Ramalho Ortigão. Apenas era preciso dar-lhe continuidade nos seus objectivos.

Entretanto chega o ano de 1868. Ramalho Ortigão fora nomeado primeiro ofi-cial da Secretaria da Academia das Ciências6. A 3 de Agosto já está em Lisboa, de posse do novo cargo. Quando Eça regressa da sua viagem ao Egipto e à Palestina,

6 Sobre a data exacta da partida de Ramalho para Lisboa, poucos biógrafos concordam. De tal maneira, que foi necessário recorrer ao «Livro 50 B – de registo das actas das Sessões do Conselho e das Assembleias Gerais da Academia Real das Ciências de Lisboa – de 22 de Outubro de 1851 a 9 de Fevereiro de 1911, pertencente ao Arquivo da Secretaria da Academia das Ciências de Lisboa», FI. 137 sqq., para esclarecer o assunto. Pelo interesse que tem a acta da sessão extraodinária de 1 de Agosto de 1868, em que o caso se tratou, se transcrevem a seguir alguns passos:

«Ao meio-dia foi aberta a sessão pelo Senhor Presidente, Conde d’Ávila, estando presentes os Senhores... O Senhor Presidente disse que, logo que chegasse o Senhor Secretário Geral se tomaria resolução e que entretanto se trataria de substituir o oficial da Secretaria que a tinha abandonado. Que o Sr. Dr. Tomás de Carvalho lhe tinha indicado para este lugar um cavalheiro conhecido de alguns académicos presentes – o Sr. J. Duarte Ramalho Ortigão, o qual tinha habilitações muito superiores às que se exigiam para o lugar vago. O Sr. Augusto Soromenho se lhes propusera para ocupar o lugar de bibliotecário. Que ainda que estes provimentos tinham de ser feitos pela Assembleia Geral, o Conselho os podia preencher interinamente. O Sr. Beirão propôs que o lugar de Oficial da Secretaria seja dado por concurso. O Sr. Silva Túlio apontou os inconvenientes do concurso para este lugar, atendendo a que deve ser pessoa da confiança do tesoureiro, visto que lhe faz a escrituração e os recebimentos. Entrou o Sr. Tomás de Carvalho e, confirmando as abonações do mérito do Sr. J. Duarte Ramalho Ortigão, disse que ele próprio o afiançava, além da fiança pecuniária que o Conselho arbitrasse para provimento do lugar. Entrou o Sr. Secretário Geral. O Sr. Felner propôs que, em lugar de se fazer uma nomeação interina, se requisitasse um empregado do Ministério do Reino para desempenhar as funções de Oficial da Secretaria enquanto se não provesse definitivamente.

Depois de ser ouvido neste ponto o Secretário Geral, resolveu-se que fosse nomeado interina-mente para o lugar de Oficial da Secretaria o proposto J. Duarte Ramalho Ortigão, prestando fiança ao tesoureiro até à soma de 900.000 rs. e com a cláusula de lhe não dar esta nomeação direito de preferência, se o lugar fosse a concurso. (...)

a) J. Maria Latino Coelho.

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encontra o seu antigo professor e amigo na capital. E uma noite, à mesa de um café, resolvem-se os dois a «acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa, das alturas do «Diário de Notícias»7. Tinha nascido O Mistério da Estrada de Sintra, que, sob a aparência de uma simples paródia aos romances policiais, escrita alternadamente por «um em Lisboa, outro em Leiria», viria a ser um marco miliário na história da Literatura Portuguesa. Porque, como notou Camilo, com uma penetração crítica admirável, «a evolução do estilo data daí». Passava-se isto em 1870. No ano seguinte, os dois escritores que iam de facto operar uma revolução total na prosa portuguesa, lançam o primeiro caderno das Farpas, datado de Junho, mas referente a Maio de 1871. Que eu saiba, ninguém estudou ainda com alguma profundidade o estilo de Eça, embora se tenham escrito milhares de páginas sobre a sua vida e sobre a qualidade da sua dependência dos realistas franceses. Apenas o Prof. Dr. Paiva Boléo, no seu opúsculo sobre «O Realismo de Eça de Queirós e a sua expressão artística»8 e num artigo das «Novidades»9 chamou a atenção para o problema do estilo, o problema capital de toda a obra queirosiana. Mais recentemente, o Prof. Harri Meier estuda também alguns aspectos num capítulo dos seus «Ensaios de Filologia Românica»10.

O Sr. Ramalho Ortigão começou, interinamente, como primeiro oficial da Secretaria em 5 de Agosto de 1868».

Do Livro 32 B – Assembleia Geral, Fl. 86 verso e segs.:«Em sessão de 8 de Outubro de 1868 – Assembleia Geral – presidida pelo Sr. Conde d’Ávila, estando

presentes os Srs.... O Sr. Tomás de Carvalho disse que... o conselho administrativo tinha nomeado interinamente o oficial da Secretaria, pedia portanto à Assembleia Geral que tomasse sobre este provimento uma resolução definitiva (...).

O Sr. Presidente disse que esta nomeação seria por votação por esferas... Procedendo-se ao escru-tínio, foi unanimemente confirmada a nomeação do Sr. Ramalho Ortigão». 

Como é sabido, Ramalho pediu a demissão dos seus cargos oficiais (deste e do de bibliotecário da Ajuda), a quando da implantação da República. Na mesma sessão em que foi apresentado esse pedido (20 de Outubro de 1910) se propôs logo a sua nomeação para sócio efectivo, nomeação essa que foi ratificada na sessão de 4 de Novembro de 1910. A 17 de Novembro foi lida a carta de Ramalho em que este agradecia a honra com que fora distinguido. O parecer, redigido por Teixeira de Queirós, e a carta de agradecimento encontram-se no Boletim da Segunda Classe, 1910, pág. 41 sqq.

NOTA: Os dados extraídos do Livro das Actas das Assembleias Gerais da Academia das Ciências foram fornecidos pelo actual Secretário da Academia, Sr. Joaquim Leitão, por intermédio do Sr. Fulgêncio Lopes da Silva, Primeiro Bibliotecário da Biblioteca Pública Municipal do Porto, pelo que deixo aqui a expressão dos meus agradecimentos.

7 Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, O Mistério da Estrada de Sintra, carta ao Editor, 14 de Dezem-bro de 1884.

8 Coimbra, 1942 (2ª edição).9 «Alguns processos estilísticos de Eça de Queirós», in Suplemento Literário das «Novidades»

de 31-III-1940.10 Ed. da «Revista de Portugal», Lisboa, s.d.

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1378. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO

Dir-se-ia que os críticos receiam que se lhes deparem as mesmas dificuldades que Ramalho aponta ironicamente na carta que sobre Eça de Queirós escreveu a D. Guiomar Torrezão para o Almanaque das Senhoras de 189311:

Decompomos essa partícula sagrada, em que tão intensamente palpita o sangue, a alma e a divindade daquele que a consagrou, e o que se acha no fundo da retorta é um corriqueiro verbo, um lagalhé dum substantivo, um adjectivo de má fama!

A verdade é que o que se diz de Eça se verifica também com Ramalho, cujos raros estudiosos se têm ocupado quase exclusivamente, salvo poucas excepções12, com estudar a evolução das suas ideias políticas, a despeito da pouca importância literária que tal problema possa assumir. Sobre a evolução do estilo de Ramalho, ninguém se exprimiu até hoje com mais objectividade e exactidão do que o seu maior amigo. Eis o que ele nos diz do resultado das Farpas:

Apenas nas Farpas, Ramalho Ortigão bem depressa achou a sua forma: desembaraçou-se da velha armadura quinhentista – e saltou de dentro, rápido, vivo, brilhante, vergando e sacudindo a sua frase como uma lâmina de florete... O folhetinista dilettante acabara; começava o panfletário ilustre13.

Mas não é este o tema que agora nos propomos estudar. Um estudo estilístico das obras de Ramalho Ortigão, feito em moldes científicos, como os que seguiram no estrangeiro um Marcel Cressot, um Leo Spitzer, e entre nós, Gomes Ferreira, na sua monografia sobre o Eurico14, só poderia ser fruto do trabalho de muitos anos. Esse estudo teria de dividir-se em duas partes: antes e depois das Farpas, como já notou Eça. E temos a certeza de que projectaria a mais intensa luz sobre o primeiro aspecto sob que se pode considerar o Porto na Obra de Ramalho Ortigão.

O outro aspecto sob que podemos encarar o assunto constitui o tema deste nosso breve estudo. Surpreender imagens da cidade na vasta galeria de quadros de Ramalho – reflexos dos seus monumentos, das suas ruas, dos costumes, dos tipos mais característicos, do seu meio social – eis o nosso objectivo. Tudo junto dá-nos um quadro bastante completo do velho burgo durante a segunda metade do séc. XIX.

11 Incluída no volume II de Figuras e Questões Literárias, págs. 7-19.12 Ocupa um lugar à parte o opúsculo de Ricardo Jorge intitulado «Ramalho Ortigão», Lisboa, 1915.13  Na citada carta a Joaquim de Araújo.14 A. Magina Gomes Ferreira, «O Estilo de Eurico o Presbítero», Suplementos de Biblos, Coimbra,

Faculdade de Letras, 1945.

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138 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

É claro que, aqui também, se impõe uma divisão: a cidade vista pelo crítico portuense, e constituindo o tema quase obrigatório dos seus artigos, por um lado, e, por outro lado, a cidade que aparece com frequência nas obras escritas em Lisboa, como recordação, como evocação, ou como objecto de crítica.

Nas obras de Ramalho escritas na «cidade das camélias», como lhe chama algures15, há dois contos das Histórias Cor de Rosa16 que decorrem no ambiente por-tuense: a primeira parte de Gastão, Memórias da Mocidade e a famosa Visita de Pêsames (Página da Vida Burguesa), que se passa no bairro da Sé. Se no primeiro a notação do ambiente é vaga e indefinida, a do segundo é bem característica. Lá estão as velhas lojas do bairro da Sé, as procissões das confrarias, as festas de igreja, as figuras típicas do sirgueiro, do merceeiro, da criada, dos caixeiros; e, por último, a cena magistral da visita de pêsames, às escuras e num silêncio a custo mantido.

É aos folhetins do «Jornal do Porto», hoje enfeixados sob os títulos de Primei-ras Prosas e Crónicas Portuenses, especialmente a estes últimos, que cabe, como é natural, a primazia nos quadros citadinos. E, a despeito de ir desabafando que «nesta abençoada terra revistar é pescar à cana, na bacia do lavatório, intentar o folhetim é querer fisgar salmões em poça de água chilra»17, os sucessos da cidade vão-lhe dando margem a exercitar a sua crítica.

É assim que vai desfilando diante de nós a vida da cidade naquela época. Os quadros giram sobre dois gonzos basilares: o meio intelectual e artístico e a vida em sociedade, com descrição dos tipos citadinos, dos divertimentos, dos costumes, e até dos meios de transporte. No meio intelectual e artístico tomam grande relevo as crónicas teatrais e, em especial as óperas no S. João, os dramas no Baquet não passam despercebidos à pena do crítico. É o tempo em que se sucedem as com-panhias líricas italianas, em que Emília das Neves, Santoni e Ristori enchem os palcos portugueses com o seu vigoroso talento dramático. E os próprios edifícios vão sendo acompanhados nas suas transformações, nos seus melhoramentos, como verdadeiros focos de cultura que eram na cidade.

As Belas-Artes dão ao futuro autor do Culto da Arte em Portugal motivo a uma extensa crónica, em que analisa com grande penetração crítica as peças apre-sentadas a concurso pelos candidatos a professores de escultura na Academia.

De onde a onde, a notícia de um concerto, a criação de uma escola popular de música, e a apresentação em público de alguns meninos-prodígios da época, em festa do Natal realizada no Palácio de Cristal. Um desses meninos-prodígios era

15 Histórias Cor de Rosa, Ele e Ela, pág. 104 da colectânea de Contos e Páginas Dispersas.16 As Histórias Cor de Rosa, se bem que dadas à estampa em Lisboa, em 1870, haviam sido já escritas 

e impressas parcialmente, segundo se deduz da carta a Manuel Fernandes Reis, publicada por Júlio de Oliveira na sua obra «Ramalho Ortigão e Eça de Queirós», Porto, 1945, pág. 69.

17 Crónicas Portuenses, «Revista do Porto», pág. 41.

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1398. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO

nem mais nem menos do que Moreira de Sá, que já então despertara o entusiasmo da crítica.

A literatura ocupa um lugar de grande relevo. É aí que começa a expandir-se a veia cómica de Ramalho, em observações mordazes e certeiras que prenun-ciam a evolução do seu espírito. A análise às ridículas coplas que circularam no Teatro de S. João, na despedida da cantora Deroissi18, a crítica ao livro de versos de Eugénia Câmara19, às peças de teatro que então se representavam, são outros tantos artigos em que já se afirma a independência e sagacidade do futuro autor da Literatura de Hoje.

A vida em sociedade entrevê-se aqui e ali, em leves traços, com que alude ao regresso dos banhistas, aos passeios dominicais ao Jardim de S. Lázaro, «aos ele-gantes do Club, da porta do Moré e da superior do Teatro de S. João»20, às recep-ções da Sociedade Filarmónica, que oferece vinho às senhoras nos seus bailes, ante a indignação ilimitada do folhetinista, às cerimónias da Semana Santa, aos julgamentos sensacionais, aos casamentos de aparato, que atraem uma multidão de curiosos. Lá se fala também das distribuições de prémios da Real Sociedade Humanitária. E, acerca dos transportes da cidade, elucida-nos a primeira parte do artigo «Do Porto a Aveiro»21, em que o autor descreve jocosamente os solavancos que sofreu no trajecto da Praça Nova à estação das Devesas. Este «char-à-bancs», antepassado literário da incrível diligência, que um dia entrará no friso de cari-caturas das Farpas, leva dentro alguns tipos citadinos característicos, como o comerciante trabalhador e económico, a burguesa anafada, que viaja com o marido e a filha, o inglês frio e altivo.

Oiçamos agora, para terminar esta rápida enumeração dos motivos portuenses na primeira fase da obra de Ramalho, o resumo da história caricatural da vida na cidade, que figura nas Crónicas Portuenses22:

A história do Porto é uma história sensaborona e chocha como uma chalaça de José Agostinho de Macedo, como uma comédia de Manuel de Figueiredo, como o mais salobro romance dos que Francisco Manuel teve a soporífera ideia de trasladar em linguagem vernácula.

É um livro muito esfrangalhado e muito surrado pelo manuseamento diurno e nocturno de vários comentadores sebentos que o seu mau fado lhe carreou.

18 Crónicas Portuenses, pág. 50 sqq.19 Ibidem, págs. 115-127.20 Ibidem, pág. 280.21 Primeiras Prosas, págs. 254-245.22 Crónicas Portuenses, págs. 92-95, passim.

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A história do Porto é uma coisa já hoje muito velha e exuberantemente definida, a qual consta de três capítulos, a saber: a Praça Nova, primeiro capítulo; o Jardim de S. Lázaro, segundo; os divertimentos públicos, ter-ceiro e último.

Vejam como tudo isto é velho!A Praça Nova é uma tradução livre, mas incorrecta, deficiente, e masca-

vadíssima do antigo «Forum» da cidade dos Césares. É aí que se congregam em sessões diárias, o senatus et populus, (estou com uma queda furiosíssima para a latinidade)!

O Jardim de S. Lázaro é o pátio de exposições hebdomadárias e da exibi-ção domingueira do grande número de mulheres que não podem exibir-se durante o discurso da semana (...). É aí que se taxa um preço à elegância e se presta um culto à beleza. É o nosso templo de Vénus, onde cada sacri-ficador tem seu ídolo; – ídolo de carne e osso, em altar de pinho da terra pintado de verde-gaio (...).

Os divertimentos públicos são: o Teatro-Circo, o Teatro de S. João, o das Variedades e o Hipódromo. Parece muita coisa, mas não é tanto como parece.

A estagnação da cidade, a escassez de assunto que consegue a custo obter para as suas crónicas, vai deixar de o afligir com a mudança de ambiente. Ramalho abandona a redacção do «Jornal do Porto» quando vai para Lisboa, e fá-lo, ao que parece, em relações pouco amistosas com o seu proprietário. A verdade é que, apesar das suas diligências nesse sentido, não consegue que Cruz Coutinho o encarregue de ser seu correspondente na Capital. Entretanto, Ramalho obtém lugar idêntico em «O Progresso do Porto», para o qual passa a escrever, sem assinar nunca, durante dois anos, a secção intitulada «Correio de Hoje»23.

É claro que a índole desta correspondência dava a primazia aos temas lisboetas e só acidentalmente perpassam referências à cidade a que as crónicas se destinam, num rápido confronto entre o entrudo da Capital e o da Invicta24, numa alusão à indiferença dos jornais portuenses pelo aparecimento de O Mistério da Estrada de Sintra25, ou referindo-se, a propósito da morte do Padre Mendes, a «uma simpática pléiade de escritores portuenses, para os quais ser homem de imprensa não era

23 Tais são as conclusões apresentadas por Júlio de Oliveira no citado trabalho «Ramalho Ortigão e Eça de Queirós», conclusões essas que fundamenta em factos e cartas bastante convincentes. Nesta ordem de ideias é que os editores das Obras Completas reuniram essa colaboração anónima, em dois volumes, com o título geral de Correio de Hoje.

24 Correio de Hoje, II, págs. 106-107.25 Ibidem, II, pág. 155.

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1418. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO

obstáculo para que fossem ao mesmo tempo homens do mundo, passando nos salões com tanta distinção e com tanto aplauso como nos jornais»26.

As Farpas, que são uma revista geral do país inteiro, como é sabido, consagram muito particularmente a sua atenção às duas cidades, à volta das quais gira a vida nacional. Assim, «A Capital» é o título de conjunto do sétimo volume das Farpas. Mas o Porto aparece também com abundância, ora contemplado através da recor-dação do escritor, ora escalpelizado pela sua crítica. Não passam despercebidas a Ramalho as manifestações intelectuais e artísticas da cidade. O programa de concurso na Academia de Belas-Artes27, dá-lhe margem a uma série de observações da mais requintada ironia sobre a natureza dos temas propostos. A fundação de um jornal intitulado «O Jogo»28, as apreciações feitas às Farpas por outro periódico portuense, «A Luta»29, são acontecimentos que caem também na alçada da sua ironia. Mas ao falar de Cruz Coutinho30, a sua evocação do antigo meio jornalístico da Invicta toma um tom de saudade comovida. Lá se refere a fundação do austero «Comércio do Porto» e a do «Jornal do Porto», com pretensões a literário; lá se fala das reuniões de escritores na livraria de Cruz Coutinho, aos Caldeireiros, do tempo agitado de Camilo, Custódio José Vieira, Conçalves Basto, Evaristo Basto, que muitas vezes iam completar com o manuseamento do casse-tête as sátiras mordazes dos seus folhetins; e de passagem entrevemos o ambiente citadino: «a pacatice orgânica do chá com biscoitos de Avintes», os bailes, os passeios nos omnibus da Foz.

Quando correm boatos sobre a possível dissolução do Club Portuense, «esses salões que deram à cidade eterna a sua carta de dandismo»31, Ramalho protesta e afoga em torrentes de ironia as causas da ridícula desavença. A Sociedade de Instrução do Porto merece-lhe, pelo contrário, os mais rasgados elogios em diver-sas ocasiões, e especialmente quando da exposição de trabalhos mecânicos e das indústrias caseiras, que promoveu, em Abril de 1882, no Palácio de Cristal32. Não nos deve surpreender este entusiasmo de Ramalho, porque o programa da dita Sociedade era a realização das suas mais caras aspirações de dignificar o trabalho caseiro e rural, de tornar o povo consciente da sua própria arte.

26 Ibidem, I, págs. 100-101.27 As Farpas, IX, págs. 99-105.28 Ibidem, XIV, págs. 149-154.29 Ibidem, XV, págs. 101-102.30 As Farpas, III, págs. 58-64. Cf. o que se disse acima acerca da estadia de Ramalho na redacção

do «Jornal do Porto» e da sua saída desse periódico. Como se vê, a desavença não deixou vestígios na maneira calma e objectiva como retrata Cruz Coutinho e como define o seu próprio papel dentro do jornal. É mais uma prova da completa lealdade e inteireza de ânimo que caracterizam o pensamento do autor de As Farpas.

31 Ibidem, XIV, págs. 193-195.32 Ibidem, IX, págs. 65-74.

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Também a criação de uma Associação Católica no Porto, que julga desnecessária, numa terra com uma única religião, lhe sugere alguns comentários carregados de ironia e de bom senso. Para exemplificar os motivos que o levam a pensar assim, descreve em duas pinceladas rápidas e sugestivas as festas do S. João, a que recentemente assistira: as igrejas cheias de fiéis que escutavam a missa logo pela manhã cedo, os arcos triunfais nas ruas, os habitantes da Rua de S. João de camisa lavada e barba feita, a espetar no chão os mastros embandeirados ou a transportar bandejas cheias de lanternas para as luminárias – e esta era a cidade onde no mesmo dia devia celebrar-se um meeting liberal33.

A propósito de uma incursão da polícia pelas casas de jogo do Norte, Ramalho narra um episódio ocorrido em tempos numa casa da Foz, onde então estava reu-nida a melhor sociedade do Porto, na época balnear34. Aí esteve a perder o dinheiro de meio ano de trabalho até pela manhã, à hora a que as banheiras armavam as barracas, a cantar, e os primeiros pregões matutinos ecoavam pelas ruas. Não é esta a única descrição dos costumes da época de banhos. O capítulo especial que lhe é consagrado nas Farpas35, com a descrição da hora do banho – com os curio-sos trajes da época – da madrugada até às dez ou onze da manhã, após o qual as pessoas correm logo para casa almoçar, é um dos quadros mais característicos da sociedade da época. Lá se fala dos passeios ao fim da tarde, «aos encontrões, no Passeio Alegre», das barracas de lona branca «de forma cúbica, deselegantes, aba-fadas», das novas edificações, da bela estrada da Foz a Leça, onde rodam, «listradas com longas fachas de cores vivas, as carruagens americanas». E, mais adiante36, o trâmuei de Massarelos, que traz para a cidade os frequentadores típicos da Foz: os ricos comerciantes, os caixeiros de escritório, os altos funcionários aduaneiros.

Os outros transportes da cidade não são esquecidos; lá vêm mencionados, a propósito da greve dos carreiros portuenses, os típicos carros de bois, que durante tantos anos acarretaram géneros dos arredores37.

O janota portuense, que a seu ver imita servilmente o tipo britânico da Rua dos Ingleses38, só lhe merece desdém. Mas, em compensação, observa com divertida benevolência a maneira como a cidade se veste de galas para receber a Família Real39, a despeito de se encontrar no seu seio, «postado à porta do Moré», aquele a quem As Farpas denominam «o áspide da Monarquia», reconhecendo-lhe embora elevado talento artístico – o poeta Gomes Leal. «Uma larga ressonância

33 Ibidem, II, pág. 76.34 Ibidem, I, págs. 84-92. 35 Ibidem, I, págs. 223-240.36 Ibidem, I, pág 260.37 Ibidem, I, págs. 47 e 68-69.38 Ibidem, I, pág. 233.39 Ibidem, XI, págs. 123-129.

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de quermesse envolveu a Torre dos Clérigos. A cidade inteira, como um só janota, mandou fazer casaca... A Rua das Flores em peso, o Largo da Feira e as duas Fer-rarias, a de Cima e a de Baixo, vestiram-se de corte, armaram-se à pressa para a galantaria palaciana e deitaram opoponax nos lenços...» As pessoas a custo reconheciam a velha loja do António das Alminhas, na Calçada dos Clérigos, ao verem «as primeiras firmas da praça subir de luvas brancas ao tramway para irem a palácio assistir ao petit-lever do monarca». Os moradores emprestam as suas baixelas para servirem no banquete do Palácio de Cristal. E «do fundo lôbrego dos armazéns do Largo do Souto» à Praça Nova e à porta do Grémio Portuense o entusiasmo cresce vertiginosamente.

Até a cozinha portuense é lembrada – a propósito do editor Chardron, grande apreciador da boa mesa – pela escassez do seu repertório: o arroz doce, o arroz de forno, o peixe frito do Reimão, as famosas tripas, «espécie de dobrada de estilo compósito, que se serve dentro de uma terrina, em que entra tudo quanto constitui um jantar, desde a sopa até o queijo e a pera»40.

Uma das mais interessantes descrições portuenses das Farpas é a da inaugura-ção da Ponte de D. Maria Pia, cerimónia a que Ramalho atribuiu logo o significado transcendente que deveras teve na vida da Nação. E a carta «à Câmara Municipal do Porto ou a quem suas vezes fizer», que o autor se desprezou de incluir da edição de Corazzi, agora reimpressa no tomo XV das Farpas41 é, ao mesmo tempo, uma obra-prima de humorismo, de fé na ciência e de poder descritivo. Dela consta uma das mais formosas aguarelas a que a cidade deu motivo. Eis como Ramalho pinta o esplendor da cidade vista da outra margem do rio:

Um delicioso dia de outono, de um largo tom lácteo e cerúleo como o de uma pérola azul, abraçava amorosamente a natureza e banhava a paisa-gem numa luz vaporosa impregnada da frescura dos orvalhos e do aroma das violetas. A cidade fronteira desdobrava aos nossos olhos todos os seus encantos topográficos, desde a Foz, envolta, na sua atmosfera marítima, salgada e húmida, até os montes longínquos do lado oposto, levemente esfumados no horizonte sob as douradas pulverizações do sol. Víamos a ridente colina de Vilar, coberta de verdura e coroada pelo Palácio de Cris-tal, os copados bosques do Candal e de Vale de Amores; o cais da Ribeira com a sua arcaria denegrida e o seu pitoresco mercado de velhas barracas alpendradas brunidas pelo sol; a íngreme ladeira da Corticeira; o parque das Fontainhas; a casaria emassada das freguesias da Sé e do Bonfim, com os seus prédios esguios, terminando quase em pignon como na Holanda; uns bem aprumados, tesos, vidrosos, reluzentes, forrados de faiança, outros

40 Ibidem, III, pág. 140.41 Ibidem, XV, págs. 167-174.

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barrigudos, sombrios, enodoados, fazendo finca-pé, para não cambalearem como ébrios taciturnos; outros, ainda, pintados de branco, pintados de azul, pintados de cor de rosa, com chaminés bordadas e clarabóias fanta-sistas rematadas por trabalhosas ventoinhas, jucundos, satisfeitos de si, rindo pelas sacadas abertas ornadas de craveiros e de alecrins; depois, de vale em vale, os lindos subúrbios de Riba-Douro, o choupal do Areinho, as espessas e murmurosas frescuras das quintas de Quebrantões, da Oliveira, da freguesia de Avintes; a baía do Freixo, onde o rio tem configuração de um pequeno lago circular, dominado por um elegante palácio Luís XV, de torreões e eirados senhoriais, cuja elegante escadaria exterior mergulha venezianamente na água.

Todas as eminências que viam o ponto onde parámos para a celebração da cerimónia inaugural estavam literalmente cobertas de gente. Os montes próximos achavam-se completamente submergidos sob uma espessa vege-tação humana. Em frente, todos os degraus da penedia, todos os socalcos, todos os jardins, todos os quintais, todas as janelas, todos os muros, todos os telhados, todas as superfícies, todos os contornos, todas as arestas, tinham um debrum de gente».

Até aqui temos visto apenas notas esparsas, pequenos momentos isolados da vida da cidade, considerada através das Farpas. Guardei propositadamente para o fim o grande quadro de conjunto do volume I42. É aí que Ramalho, «turista em viagem na sua própria terra», conforme ele mesmo declara, pinta, ora a largos traços de impressionista, ora em enumerações minuciosas de cronista, o aspecto geral e os melhoramentos da cidade. Toda a vida e o ambiente portuense de então, comparado com o da mocidade do escritor, se vai desenrolando aos nossos olhos. E desde as carruagens americanas que, a abarrotar de gente, cestos de fruta, canastras, trouxas de roupa branca e caixotes, trazem os viajantes da estação de Campanhã para o centro, à notação minuciosa das novas ruas (como a de Mousi-nho da Silveira e de Passos Manuel) e bairros (como os do Palácio e da Duquesa de Bragança) e das velhas ruas demolidas (como a dos Mercadores, da Bainharia e da Reboleira), tudo é vivo de pitoresco, de graça, de cor. Lá vem a descrição do aspecto do casario:

A estrutura geral dos prédios apresenta, porém, um aspecto consistente, não desagradável à vista: os telhados de lousa, as fachadas revestidas de azulejo, as padieiras de granito tão nitidamente esquadriadas, dão ao todo um ar rijo, saudável, alegre, harmonizando bem com os tons frescos da paisagem, com a verdura das colinas, com as árvores das praças, com os

42 Ibidem, I, págs. 141-169.

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parreirais dos jardins, com as nebrinas do Douro esbatendo no vapor aquá-tico, polvilhado de sol, o risonho contorno da casaria e das montanhas»43.

Depois, a propósito da florescente imprensa portuense, Ramalho evoca a alegre camaradagem da geração literária do Guichard, da porta do Moré e do Águia de Ouro, na qual avultaram nomes como Camilo, Coelho Lousada, Augusto Sorome-nho, Arnaldo Gama; para esses, continua o autor, o único inimigo comum «era a estupidez humana, representada pelo honesto burguês da Rua das Flores e da Rua dos Ingleses, e era o espírito imobilizante da rotina, simbolizado no carroção veículo de família puxado a bois e inventado pelo segeiro Manuel José de Oliveira».

Depois, os janotas extravagantes, as terríveis pateadas do Teatro de S. João, que desafiavam a própria intervenção da guarda municipal.

A multiplicidade de associações existentes, algumas de nomes bem extrava-gantes e ridículos, é nomeada no meio das mais irónicas observações e dos mais bem humorados comentários. O que não o impede de mais uma vez prestar culto à acção altamente educativa da Sociedade de Instrução do Porto.

Para terminar, vem a complacente evocação dos hábitos tradicionais, da cidade que lamenta tenha perdido «esse bom e saudável cheiro provincial que tão espe-cialmente embebe como de um aroma antigo a prosa dos seus grandes escritores – o Arco de Santana de Garrett e alguns dos romances burgueses de Camilo Castelo Branco e de Júlio Dinis». De todos os costumes a pouco e pouco perdidos, há um que encanta em particular a vigorosa imaginação plástica de Ramalho, sempre ávida de espectáculos de cor e de som: são os jantares pelo rio acima, quando

aos domingos de verão, o picheleiro do Souto, o guarda-soleiro da Bainharia, o ourives ou o mercador de panos da Rua das Flores ia com o romper do dia à missa das almas a S. Francisco ou aos Congregados; comprava depois o melão, a melancia e as laranjas na feira do Anjo, e, às seis horas da manhã, na frescura aquática do cais da Ribeira, embarcava com a família em barco de toldo para a Oliveira, para Avintes ou para Quebrantões.

O desenho nítido de cada uma das pessoas da família do comerciante, desde a mulher, passando pelas filhas e pela moça, até ao marçano portador do açafate com a merenda, o deslizar das barcaças pelo rio abaixo, quando regressavam à noite fechada, ao som cadenciado dos remos, constituem mais um daqueles qua-dros cheios de beleza pictórica, de colorido, de vivacidade, que são ainda hoje um dos grandes atractivos da leitura das Farpas.

A lembrança das antigas «súcias», ou reuniões à noitinha, depois do jantar, em que se jogava a feijões e se tomava leite com açúcar, doces e pão com manteiga, até

43 Ibidem, I, pág. 143.

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à hora em que o criado vinha com um lampião, um saco de chailes e os guarda--chuvas, para levar as senhoras para casa, dos velhos fidalgos de seges desbotadas e lacaios mal vestidos e das visitas da Família Real, recebida com arcos triunfais e grandes chaves de cartão dourado, simbolizando as chaves da cidade, são os toques finais deste quadro colorido e movimentado, que nos faz entrever por alguns momentos a tranquila vida portuense de há oitenta anos.

A colaboração de Ramalho no «António Maria» de Rafael Bordalo Pinheiro, hoje reunida em dois volumes com o sugestivo título de Farpas Esquecidas, e con-temporânea das Farpas, embora de menor duração, não traz grandes achegas para o tema de que nos estamos a ocupar. E «a terra clássica das lindas camélias, das lindas mulheres louras e das lindas valsas»44, como aí lhe chama, apenas lhe fornece assunto de sátira com a criação de uma nova instituição de arrevesado e ridículo nome45, com a concessão de condecorações da Sociedade Humanitária no Palácio de Cristal46 e com a deputação enviada à Capital, protestando contra o modo do recenseamento político47.

Mas toda a restante obra escrita em Lisboa está cheia de alusões, mais ou menos demoradas, à cidade que o viu nascer. Elas surgem aqui e ali, por vezes simples lembrança de momento, que acode à memória do escritor preocupado com outros problemas. É o caso de uma comparação rápida das casas do Porto com as holandesas48. Ao fazer o elogio da cantora Borghi-Mamo, volta a recordar os tempos saudosos das grandes pateadas no S. João, preparadas no Café Águia de Ouro, e de uma tal violência que nos dias seguintes o teatro tinha de encerrar para reparações49. Falando dos pintores Silva Porto e Artur Loureiro, cujo talento profundamente admira, não deixa de consagrar umas linhas enternecidas às bele-zas naturais da terra comum a ambos50. Mas nos Banhos de Caldas e Águas Minerais, tratando das indústrias progressivas de Guimarães, não pode deixar de notar a inferioridade das artes menores portuenses, limitadas à ourivesaria, filigranas e obras de malha de prata51.

A destruição do património artístico portuense causa-lhe a maior indignação como crítico e como cidadão. A ela se refere mais de uma vez, verberando a demo-lição dos Arcos de Vandoma, do Postigo de Santo António do Penedo, do Postigo do Sol, de Santana e da Porta Nobre, da Porta do Olival e da famosa Viela das

44 Farpas Esquecidas, I, pág. 133.45 Ibidem, II, págs. 59-60.46 Ibidem, II, págs. 78-81 e 88-92.47 Ibidem, II, págs. 148-149.48 A Holanda, II, págs. 96-97.49 Borghi-Mamo, incluído nos Costumes e Perfis, págs. 243-259.50 Arte Portuguesa, II, artigo intitulado A Pintura de Malhoa, pág. 223.51 Banhos de Caldas e Águas Minerais, pág. 109.

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Tripas «onde assistiam as fressureiras que deram aos do Porto nome de tripeiros, vendendo-lhes os miúdos das reses, cuja carne elas haviam espontaneamente cedido à armada de D. João I para a expedição de Ceuta»52, lamentando ao mesmo tempo a falta de estética dos prédios do seu tempo, a incúria dos seus conterrâneos em recordar por meio de estátuas e pela toponímia das ruas os filhos mais egrégios da sua terra. No meio deste desinteresse geral, apenas a já citada Sociedade de Instrução do Porto e o Museu Industrial tinham conservado por algum tempo uma documentação digna dos vindouros. Mas nem esses subsistiam já à data da publicação do discurso – 190453.

A cidade antiga, tal como a descreve Garrett no Arco de Santana, atrai a sua pena ávida de novos panoramas e de novas formas. É com traços palpitantes de realismo que nos descreve o castro portucalense, construído «em torno da velha Catedral do séc. XIII, nos antigos bairros da Sé e da Bainharia, ao longo das íngre-mes congostas, que do paço acastelado dos seus bispos serpenteiam pelos declives da Pena Ventosa, angustiadas e escuras, rumorosas de vida e de trabalho, através das muralhas desmoronadas de Afonso IV e de Pedro-o-Cru, pela Chã das Eiras e por Cimo-de-Vila, desembocando pelos Arcos da Senhora Santana e da Virgem da Vandoma, pela Porta do Olival e pela Porta Nobre, e alargando-se sucessiva-mente até se espraiarem nas almoinhas suburbanas de S. Cosme, de Paranhos, de Cedofeita e de Miragaia»54.

O Porto da sua mocidade também lhe acode com frequência à memória. É o caso da evocação dos antigos bailes dados pelas famílias nobres de Gaia, que atraíam as lindas jovens da outra banda, que, com as suas rendas e as suas sedas claras, eram levadas de cadeirinha até ao cais e depois passavam o rio em barcos toldados55. É o caso da descrição pitoresca da feira na Rua das Hortas, que aos sábados se enchia de burros dos ferreiros dos arrabaldes, que vinham carregados de pregos, e depois subiam em longas filas a Rua do Almada, batendo com as ferraduras no lagedo56. É ainda o caso da descrição movimentada e colorida dos antigos carroções, que transportavam famílias inteiras da Foz para a cidade, puxados por bois, e levando apenas, a fazer o trajecto da ida e da volta, com o tempo para banho, um dia! Depois, os omnibus que vieram substituir aquele demorado meio de transporte, e por fim, os chars-à-bancs, que, partindo do Carmo e da Porta Nobre, levavam dezenas de banhistas por dia. Todo o quadro da vida que então se fazia na Foz perpassa por estas páginas que Ramalho escreveu em As Praias de Portugal57: as suas

52 O Culto da Arte em Portugal, in Arte Portuguesa, I, pág. 70.53 Soares dos Reis, in Arte Portuguesa, III, págs. 208-211.54 Garrett, in Figuras e Questões Literárias, I, pág. 238.55 Soares dos Reis, in Arte Portuguesa, III, pág. 204.56 O Último Prego, Narrativa Minhota, in Contos e Páginas Dispersas, págs. 197-198.57 Págs. 45-68.

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hospedarias, os seus cafés, os passeios favoritos, as feiras, a hora da chegada do peixe à Cantareira, as noites passadas a jogar ou a conversar, os dias repartidos por três únicas ocupações – almoçar, jantar, enxugar os cabelos – e o aumento progressivo da povoação, que dos antigos bairros do Monte, da Praia e da Canta-reira, começava a espraiar-se por Carreiros, na estrada de Leça. Algumas notas sobre a época de praia na infância do autor, breves comentários à elegância das mulheres portuenses, levemente salpicados de ironia, e dos homens, com os seus hábitos patriarcais e os seus modos à inglesa, uma rápida evocação das aventuras arrojadas dos jovens de então, a geração romântica por excelência, completam o brilhante capítulo sobre a Foz.

Há ainda mais duas figuras a juntar à galeria de tipos citadinos que acaba de deparar-se-nos: é a banheira58, que o autor crê ser uma especialidade das praias do Norte, e em particular de S. João da Foz, mulher vigorosa e activa; que passa oito a nove horas por dia metida no mar, exercendo o seu mister de dar e vigiar os banhos, e o inglês da Rua Nova dos Ingleses, com os seus trajes extravagantes, os seus modos autoritários, baseados na confiança ilimitada que nele deposita o comerciante portuense59. Esta análise da antiga sociedade portuense completa-se com o famoso ensaio sobre Camilo Castelo Branco, prefácio da edição monumental do Amor de Perdição60, em cuja primeira parte se encontra a mais viva e mais completa descrição do Porto em meados do séc. XIX. As palavras com que a enceta têm tal poder sugestivo e tal brilho que não resisto à tentação de as transcrever aqui:

Em 1850, o Porto parecia-se mais com o estreito e cavo burgo medieval que Garrett descreve no Arco de Santana, do que com a cidade comercial, civilizadamente cosmopolita, incaracterística e banal, que hoje é.

Algumas ruas tinham o aspecto mais interessantemente arqueológico ou mais vivamente pitoresco. A antiga Bainharia era ainda a esse tempo quase exclusivamente habitada por latoeiros. Tinha toda ela um tom dourado produzido pela refracção da luz nas bacias, nos tachos, nos candeeiros de três bicos, em cobre polido, pendurados às portas; o permanente martelar dos arames aviventava-a com o mesmo ruído laborioso e alegre do tempo em que a Aninhas morava ali perto, ao bendito Arco da Senhora Santana. A angustiada e tortuosa Reboleira, calçada de enormes lagedos de granito, com os prédios em ressalto na altura do primeiro andar, como nas velhas ruas da Flandres, deixando apenas ver do céu, por entre os beirais dos telhados, uma estreita fita azul e serpenteante, era fechada à borda do mar pelo gótico Arco da Porta Nobre; e às três horas da tarde, no verão, envolvia-a já uma

58 A Banheira, in Costumes e Perfis, págs. 15-19.59 John Bull, págs. 7-12.60 Reproduzido no I volume das Figuras e Questões Literárias, págs. 243-297.

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sombra do crepúsculo, e o cheiro picante e aperitivo das aduelas batidas pelos tanoeiros à porta de cada loja dava-lhe uma refrigerante sensação de adega. A Rua das Hortas lembrava um trecho de bairro antigo de Tânger ou de Marrocos, coberta com os seus largos toldos de linhagem branca, cheia de cães de caça, semi-selvagens, podengos e galgos, que dormiam estiraçados a toda a largura e a toda a extensão da rua, por entre os feixes de verga de ferro e os balotes de linho em rama.

Depois da notação do ambiente, aparecem-nos «os bons mercadores dos Clé-rigos, da Rua Nova dos Ingleses e da Rua das Flores» que tinham combatido no cerco do Porto, e disso se orgulhavam.

A vida política da cidade, vagamente mexida por um ou outro agitador crónico, como o Passos José, que levava os ordeiros e pacíficos comerciantes, irmãos de confrarias, devotos das procissões e das festas do S. João, a deitar figuradamente por terra, em gestos temerosos, toda a ordem estabelecida. Depois, as três grandes classes da cidade: os comerciantes vestidos de negro, cerimoniosos e austeros; os ingleses, com o seu chapéu branco e as suas calças de xadrez; os brasileiros, que eram os poucos minhotos que regressavam ricos da sua aventurosa ida para terras de Santa Cruz. Os divertimentos eram raros, tirando os grandes festejos do S. João, na Lapa, no Bonfim e em Cedofeita, e as romarias dos arredores. Como distracções de inverno, os concertos mensais da Sociedade Filarmónica, à Rua da Fábrica, o jogo da Assembleia Portuense, à Rua do Almada, os bailes selectos da Feitoria Inglesa e os serões nas casas particulares, as célebres «súcias». Raros eram os que se aventuravam a ir de viagem até Lisboa, de caleça ou a bordo do «Vesúvio» ou do «Porto», num trajecto que levava oito dias. No verão, havia outras distracções, entre as quais as famosas merendas e jantares pelo rio acima, já descritas seis anos antes no volume I de As Farpas. Para tudo isto, para o Teatro de S. João, para os bailes, para as romarias, havia um único meio de transporte, o carroção puxado a bois, de que já falámos. As livrarias da cidade eram apenas duas, o Moré, à Praça Nova, e o Cruz Coutinho, aos Caldeireiros; para se susten-tarem, porém, tinham de se ocupar subsidiariamente de outros negócios. Mas o retrato da vida portuense ainda não estava completo. É que «do fundo da espessa população comercial, abastada, rotineira, carola, consideràvelmente snóbica, destacava-se em violento contraste com ela, uma mocidade inquieta, nevrálgica, atrevidissimamente explosiva». É esta a geração dos dandies, dos últimos grandes escritores românticos, como Arnaldo Gama, Coelho Lousada, Alexandre Braga, Soromenho, Soares de Passos, Camilo Castelo Branco. Era esta a geração para quem era de rigor trazer, suspenso do pulso por uma asa de couro, o casse-tête destinado a atalhar discussões e a reparar ofensas, a das pateadas memoráveis no S. João, a das aventuras galantes e romanescas, a dos folhetins agressivos e contun- dentes.

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Tal é, a largos traços, o enorme painel que Ramalho pinta do burgo portuense de há cem anos, com as suas ruas características, os seus transportes antiquados, a sua classe de comerciantes tão pacífica quanto rotineira, que abalavam e sacudiam as proezas dos estouvados e talentosos dandies dos últimos tempos do romantismo.

Depois desta demorada viagem através da obra de Ramalho Ortigão, uma con-clusão se impõe principalmente: é que as descrições da sua cidade vão ganhando em vulto e em beleza à medida que se forma o seu estilo, mas também à medida que o tempo e a distância vão dando perspectiva à sua visão. Os folhetins do «Jor-nal do Porto» parecem desbotados e artificiais, comparados com aquelas páginas dificilmente ultrapassáveis, como são, por exemplo, para só citar as melhores, o capítulo do vol. I de As Farpas, ou o prefácio da edição monumental do Amor de Per-dição. Aí o autor atinge aquela elegância formal, aquele rigor do pormenor, aliado a uma compreensão harmónica do conjunto, aquela expressão colorida, sonora, cintilante, que é um dos toques mais sugestivos do seu inconfundível estilo.

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9. AS IMAGENS E OS SONS NA LÍRICA DE GUERRA JUNQUEIRO*1

À Sr.ª Dr.ª Maria Emília Duarte Costa, que me ensinou Literatura Portuguesa

Entre os grandes poetas que brilharam na secunda metade do nosso século XIX, nenhum provocou mais desencontradas críticas à volta da sua obra do que Guerra Junqueiro. Erguem-no uns às culminâncias do Parnaso, precipitam-no outros nos abismos sombrios dos versejadores sem poesia. Contudo, quem ler atentamente esses trabalhos consagrados a Junqueiro encontra não raro apreciações mais ou menos apaixonadas à sua acção política e religiosa; encontrará dados mais ou menos exactos sobre a sua biografia e o seu carácter; mas só excepcionalmente avistará a imagem do Poeta. (Tudo o que acabo de dizer aplica-se, é claro, ao caso geral; as poucas excepções existentes confirmam a regra). Quais serão os motivos desta atitude? Um deles é sem dúvida a falta de perspectiva no tempo, que não permite ainda uma visão serena e objectiva de uma obra tão presa à sua época, qual é a de Junqueiro. É que, dentre todos os géneros literários, a sátira é o mais marcado pelos anos, o de interesse mais efémero. Uma vez passadas ou alteradas as condições em que se originou, difícil se torna a sua exacta compreensão. E só o decorrer do tempo, nivelando as paixões antigas e fazendo sobressair o que há de permanente na substância da sátira — as constantes ridículas da natureza humana — é capaz de revalorizar essas centelhas extintas da criação poética.

Parece-me cedo, por esse motivo, para tentarmos analisar esse aspecto da obra de Junqueiro, que tendo sido, no seu tempo, aquele que lhe trouxe a glória, não é hoje o que nos interessa mais. Ocupar-nos-emos da lírica, o que não quer dizer, evidentemente, que possamos cindir a obra do Poeta em duas partes determinadas;

*1 Porto, Livraria Portugália, 1950. Conferência lida, em 24-5-1950, no Museu Nacional de Soares dos Reis, nas festas do “Maio Florido”.

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bem ao contrário, há passos do mais enternecido e inspirado lirismo nos poemas mais ardorosamente combativos, como A Velhice do Padre Eterno e A Morte de D. João; e há uma alternativa constante dos dois géneros em colectâneas híbridas como a de «A Musa em Férias». E numa obra como a «Pátria», a que gostaríamos de cha-mar drama misto de epopeia, há passos das falas do «Doido» e de «Astrologus» que não podemos classificar senão de líricos. Quando falamos de poesia lírica de Junqueiro, damos, portanto, ao termo o seu sentido mais amplo.

Entre os vários aspectos sob que podemos considerar essa parte da obra do nosso Poeta, há dois que me parecem especialmente dignos de atenção, porque encerram em si toda a beleza do verso: as imagens e os sons.

Começaremos por estudar a natureza das imagens, que surgem a cada passo na poesia de Junqueiro, como ornamento ou sugestão, que ora precisam uma ideia, ora esbatem em cambiantes de luz um sentimento indefinido, marcas verdadeiras do génio do seu autor.

As imagens de Junqueiro enchem os seus versos daquele esplendor carac-terístico do seu estilo. E não são só as metáforas introduzidas pelo tradicional como, ou aquelas que se apresentam numa súbita transição do pensamento, num desenvolvimento em aposto, como quem muda de repente um cenário velho. Há aquelas que resultam da justaposição pura e simples de um vocábulo abstracto e de um concreto. E há as que provêm do emprego inesperado de um termo, que assim alcança uma capacidade de sugestão insuspeitada até aí.

A poderosa imaginação visual de Junqueiro alarga-se a todos os campos e não esquece sequer a notação das cores, quando essa notação, é claro, traz um signi-ficado complementar à descrição. É em Os Simples que ela se faz mais cuidadosa-mente. Como um livro de horas antigo, está esmaltado de belas iluminuras em que predominam as cores características dos códices medievais. «A Moleirinha» é toda «branca, branca de luar», e só a giesta em flor com que tange o burrico é verde. O oiro rútilo, o rosa e o vermelho cercam a boieirinha do «Préstito Fúnebre»; oiro, branco, verde, rosa, são as cores do segundo quadro, o «In Pulvis». As «Eiras ao Luar» são uma aleluia de oiro e de prata. Nas «Ermidas» há alvura e azuis, oiro e púrpura, e só as penedias são negras e malditas... O «Pastor», «branqueadinho a neve e doiradinho a sol» destaca-se no «azul d’Agosto», na serrania «cor de fogo e pó». «Os Pobrezinhos» têm no paraíso «gomil d’ouro, d’ouro a bacia» e «túni-cas brancas, como em noivados». E o mesmo céu doirado, com «leite de jasmins», «pomos cor de aurora», «fusos de esmeraldas, rocas de diamantes», que cobre o «Campo Santo». Apenas a macerada «Canção Perdida», na sua expressão diáfana do indefinível, é roxa e diluída:

Hálitos de lilás, de violeta e d’opala.Roxas macerações de dor e d’agonia,O campo anoitecendo e adormecendo, exala...

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1539. AS IMAGENS E OS SONS NA LÍRICA DE GUERRA JUNQUEIRO

E mais adiante, a sugestão do vago esfumar das linhas da paisagem:

Latescente a neblina opálica flutua, Diluindo, evaporando os montes de granito Em colossos de sonho, extasiados de lua...

No «Cavador», a escala cromática desce ainda mais, e só há treva, negrume, uma estrela de alvorada roxa, e a neve «fria d’arminhos».

Há assim no livro de Os Simples uma espécie de decrescendo cromático, que vem de «A Moleirinha» até à «Canção Perdida», tem alternativas de claro e escuro no «Pastor», enegrece no «Cavador» e sobe depois, num crescendo harmonioso, até ao paraíso todo azul e oiro que recebe os «Pobrezinhos», que paira como uma esperança radiosa sobre o «Campo Santo».

Mas até aqui há aspectos de imaginação visual, não aquilo a que propriamente chamamos imagem.

Algumas vezes é uma ideia abstracta que toma corpo numa imagem animal, como nestes versos do episódio «Ao Cair das Folhas», de A Morte de D. João:

Virgens formosas, que volveis cansadasPela calma do sol e das fadigasSoltai as vossas límpidas cantigasComo um bando de arvéolas doiradas.

A imagem final do prefácio Aos Simples, de A Velhice do Padre Eterno, sendo essencialmente trivial — comparação da alma boa com uma pomba — adquire uma beleza especial, graças à adjectivação que lhe é dada e à queda suavíssima do último verso:

Como se acaso fosse uma pomba divina Que viesse cair-lhe exânime na mão!

Outras vezes a metáfora é reduzida ao mínimo nos seus meios de expressão, mas atinge, talvez por isso mesmo, um poder de sugestão incisivo, como neste passo de «As Ermidas»:

Almas d’assassinos dos montados ermos, Com o seu remorso como um javali.

Numa composição como «Os Pobrezinhos», em que os dísticos emparelhados parecem querer sugerir a toada do romance popular, as imagens tornam-se sim-ples como neste passo:

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154 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Pobres de pobres são pobrezinhos, Almas sem lares, ares sem ninhos...

Em um verso de «A Moleirinha», uma só expressão, transposta do reino animal, cria todo o movimento do anoitecer:

Nascem as estrelas, vivas, em cardume...

Esta mesma capacidade de pintar por meio da transposição de termos é a que nos aparece também no «Idílio» de A Musa em Férias:

Enroscam-se aos troncos nus As verdes cobras da hera. Radiosos vinhos de luz Cintilam pela atmosfera.

Notemos à passagem o processo impressionista empregado nos dois últimos versos da quadra e aquela expressão admirável «radiosos vinhos de luz».

Também num passo de «O Pastor» se contém num verbo toda a força descritiva da metáfora, que depois se espraia num desenvolvimento mais concreto:

E na fronte augusta de ermitão, de crente,Lhe geavam anos luminosamente,Como as pombas brancas sobre os campanários.

Do reino vegetal tira Junqueiro algumas das suas mais formosas metáforas. Basta citar aquela em que nos dá a sugestão da frescura, como por exemplo, em «A Moleirinha»:

... Fresca como o branco linho De manhã nas relvas a corar ao sol.

Ou ainda aqueles versos do «Préstito Fúnebre» em que pinta a graça e leveza da boieirinha:

Fresca como os cravos pelo amanhecer.

A transposição do vegetal para o humano dá imagens de uma beleza rara de conteúdo emocional, como esta da Introdução de A Morte de D. João:

Fechavam-se tremendo as pétalas da alma.

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Também os olhos ingénuos do «Pastor» de Os Simples se convertem em:

Dois miosótis virgens de candura e fé.

A evocação comovida da sua juventude, que perfuma de saudade muitos passos da obra de Junqueiro, acorda no Poeta toda a espécie de imagens, num turbilhão de cores e de sentimentos, em que predominam os elementos da natureza:

............................................ a flor de lotusque em cem anos floresce apenas uma vez.

como diz na dedicatória de A Musa em Férias.Num passo de «O Melro», é, pelo contrário, a natureza que se reduz a uma

silhueta imobilizada:

As árvores, de luz inda doiradas, Sobre os montes longínquos, solitários, Tinham tomado as formas rendilhadas

Das plantas dos herbários.

O processo inverso, ou seja, a humanização da natureza, é dos mais frequentes e dos mais atraentes da lírica de Junqueiro. Aqui transplantam-se movimentos e reacções Humanas para a descrição dos quadros.

O céu, as estrelas, as árvores, as flores, as pedras, tomam parte na vida dos Homens e acompanham-nos com a sua dor ou a sua alegria. São, em «A Moleiri-nha», os astros que

................................. abrem diamantinos,Como estremunhados querubins divinos, Os olhitos meigos para a ver passar.

Os mesmos que no «In Pulvis» lançam «olhos d’oiro» à «miséria Humana». São ainda os bois do «Préstito Fúnebre» que

Vão como bondosos monstros enigmáticos,Almas porventura d’ermitões extáticos,Ruminando bíblias pelos campos fora!...

E, mais adiante, as Heras que amortalham o castanheiro no seu verde manto... E ele o «gigante, rude centenário», que outrora «seus trezentos braços de colosso ergueu».

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156 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

As cerejeiras em flor, vistas «Ao Luar» nas Poesias Dispersas, lembram-lhe

... noivas todas já vestidas De linho branco ou de alva lã, Para casar às escondidas À luz da estrela da manhã.

No episódio «Ao Cair das Folhas» de A Morte de D. João, as árvores estão «ungidas de harmonia austera e mansa» e são

Como uns apóstolos dormentes Envolvidos em túnicas de esperança.

O isolamento dos montes abruptos e ermos faz deles

................................................. cenobitasque em burel de estevas amortalha Deus!

como se canta nas «Ermidas» e ecoa, mais desenvolvido, no «Pastor».A natureza ubérrima, cuja seiva corre pelos versos de «Astrologus», quando

descreve a Pátria, também tem

Campos claros de milho moço e trigo loiro, Hortas a rir, vergeis noivando em frutos d’oiro.

Mas é sobretudo em «O Melro», durante a cena nocturna em que a natureza assiste indiferente à tragédia que se está a desenrolar, que a sua humanização atinge o máximo:

Nasceu a lua. As folhas dos arbustos Tinham o brilho meigo, aveludado Do sorriso dos mártires, dos justos...........................................................E a natureza fresca, omnipotente

Sorria castamenteCom o sorriso alegre dos heróis.

Finalmente, esta personificação da noite e dos seus atributos, na Introdução a A Morte de D. João:

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1579. AS IMAGENS E OS SONS NA LÍRICA DE GUERRA JUNQUEIRO

A abóbada celeste, ameaçadora e bruta Tinha o ar concentrado, o ar de quem escuta. A treva, espião de Deus, imensa, indefinida, Vinha apagar a luz para espreitar a vida.

Podemos notar desde já que a maioria dos exemplos citados — e ainda outros que omiti por brevidade — são extraídos de Os Simples. Nem admira que assim seja, porque os protagonistas desse poema não são somente a moleirinha, o pastor, o cavador, os pobrezinhos, mas também o castanheiro, as ermidas, os montes escalvados, as eiras ao luar. Eis porque abundam as humanizações de todas essas figuras, que têm o seu papel ao lado das outras, como elementos constitutivos da vida dos simples, que na verdade são.

O começo da composição «Manhã», que abre as Poesias Dispersas, dá-nos ainda um exemplo compósito dos recursos pictóricos do nosso Poeta.

Um grande número das imagens de Junqueiro é tirado da simplicidade da vida diária. Mas encastoadas no ritmo do verso adquirem uma beleza nova e um valor emotivo de puro quilate, como é o caso daquele conhecido passo do prefácio «Aos Simples» de A Velhice do Padre Eterno:

Ó velhos aldeões, exaustos de fadiga,Que andais de sol a sol, na terra a mourejar, Roubar-vos de voss’alma a vossa crença antiga Seria como quem roubasse a uma mendiga, As três achas que leva à noite para o lar!

Também os pobrezinhos que atravessam em bando as aldeias são descritos

Como farrapos, coisas sombrias, Trapos levados nas ventanias...

Os bois que puxam o castanheiro, no «Préstito Fúnebre»,

Levam as serenas frontes majestosas Enramalhetadas como dois altares.

A igrejazinha onde está a virgem das «Ermidas» é como um pombal; o casta-nheiro a arder no «In Pulvis» é

Lâmpada de pobres a fazer serão.

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158 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Algumas vezes as imagens são mais raras, de mais requintado gosto, como nestes versos do episódio «Ao Cair das Folhas», de A Morte de D. João:

Tarde de outono. O sol morre ao longecom pompa gloriosanuma explosão de luz.

E a noite cai na terra silenciosa Como na face lívida dum mongeA sombra dum capuz.

No prefácio «Aos Simples» de A Velhice do Padre Eterno, o perfume das almas singelas chega-lhe

Como uma harpa eólia a cantar à distância.Como um véu branco ao longe inda a acenar por mim.

Véus brancos, linhos de fiandeira, rendas de ondas do mar, são as imagens cuja sucessão evoca a visão das «Eiras ao Luar».

Outras vezes ainda é o reino das pedras preciosas que dá os símiles, como na poesia árabe, nestas quadras do «Idílio» de A Musa em Férias:

Os insectos deslumbrantes,Inflamados como brasas,São ametistas, diamantes,São carbúnculos com asas.

E ainda nestes versos de «A Cena do Balcão» de A Morte de D. João:

E a branca estrela d’alva desmaiada Rebrilha, como pérola encantada, Sobre o fundo dos lagos silenciosos.

Ocupam grande lugar as imagens tiradas do céu e dos astros, como aquela em que se implora, no «Préstito Fúnebre»:

E nos olhos garços duma boieirinha ter duas estrelas virgens da manhã!

Também o «Pastor» era alegre na primavera, «como o sol nascente». E quando morre, os milhões de astros tornam-se as suas ovelhas novas.

Nas «Ermidas» o sorriso da Virgem é

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1599. AS IMAGENS E OS SONS NA LÍRICA DE GUERRA JUNQUEIRO

............................... precursor divinoda estrelinha d’alva quando vai raiar.

Nas almas dos Simples do prefácio de A Velhice do Padre Eterno resplandece a candura e a bondade

Como num céu d’Abril o arco da aliança, Como num lago azul a estrela da manhã.

As sugestões luminosas são dadas de maneira que faria a inveja de um sim-bolista — nos tempos remotos de A Velhice do Padre Eterno — nestes versos de «A Sesta do Senhor Abade»:

... a abóbada do céu, concha de zinco em brasa, Onde não passa a nódoa aérea duma asa.

Já no episódio de «O Melro» a figura do padre cura

Destacava na frouxa claridade como uma nódoa escura.

A metáfora da concha já aparecera na «Noite de Amores» de A Morte de D. João:

A noite era d’Abril; o céu era profundo, Como concha de luz soltada sobre o mundo.

No mesmo poema, na Introdução, a descrição do amanhecer na aldeia é enri-quecida pelo verbo da frase e pela materialização dos raios de luz, através das metáforas empregadas:

.................................... o sol vibra nos montesRaios de ouro e de luz que saltam pelo espaço Como frechas batendo em armaduras d’aço............................................................................................................. e a esplêndida alvoradaCom sua luz hostil, mais viva que uma espada.

Na composição «Ao Luar», pertencente às Poesias Dispersas, a luz dos pirilampos transforma-se numa queda de gotas de luar:

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Andam milhões de pirilamposA relva fresca a iluminar,Como se houvera sobre os campos Caído em gotas o luar.

E finalmente uma imagem belíssima, de sabor acentuadamente camoniano, enquadrada muito a propósito nos tercetos de Nunálvares na Pátria:

E a carne exultará transfigurada,Qual a nuvem escura em céu ligeiro,Em lhe batendo a luz da madrugada.

Outro dos processos adoptados por Guerra Junqueiro é a justaposição do abs-tracto e do concreto, para dar uma imagem mais sugestiva. São assim os «látegos de auroras»1, as «bátegas de brasas, turbilhões de sois»2, o «luar dos hinos» e as «romarias d’almas»3 e ainda estes formosos versos da Introdução de A Morte de D. João:

A vida para vós, espíritos suaves,É fresca como o linho e pura como as aves. Como um beijo ideal feito de coisas mansas: Cintilações de luz e risos de crianças.

Por vezes as metáforas são unicamente abstractas, como é o caso nestes versos da Introdução de A Morte de D. João:

... em breve a fresca luz do dia,casta como os heróis, loura como a alegria,.......................................................................E enfim a natureza — o grande paraíso,doce como um perdão, casta como um sorriso.

Resta-nos falar de um outro processo, que é o das palavras que só por si criam uma imagem, pela riqueza do seu conteúdo semântico. A metáfora reside quase no verbo que se emprega, como por exemplo na «Sesta do Senhor Abade» de A Velhice do Padre Eterno:

1 Introdução a A Morte de D. João.2 «ln Pulvis».3 «As Ermidas».

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A aldeia é silenciosa e triste. O sol flameja. Entre um surdo murmúrio abrasador da luz, Como um grande forno, os grandes montes nus Recozem-se, espirrando as urzes dentre as fragas.

O emprego do particípio espirrando transitivamente, com um complemento que na linguagem corrente lhe não conviria, constitui a força sugestiva da imagem, que seduz pela novidade.

Nestes versos do «Préstito Fúnebre»:

Nos olmeiros brancos, cujas folhas tremem,Refulgente e novo passarinha o sol!

o frequentativo passarinha só por si evoca as manchas de luz que oscilam na folha-gem das árvores, ao sabor do vento.

A luz e a frescura casam-se nestes versos do «Renascimento», incluídos em A Musa em Férias:

Na relva virginal, fresca, primaveril, Ensopada na luz duma manhã d’Abril!

A expressão «desfazer-me em luz» do «Préstito Fúnebre», e a das mãos «escor-rendo luz», das «Eiras ao Luar», são outros exemplos da condensação do sentido metafórico num verbo, empregado com um complemento diverso daquele que lhe destina a linguagem comum.

Noutros passos é a adjectivação que dá valor metafórico à expressão. É o caso das «alegrias virgens, campesinas», da «graça aérea d’ave ribeirinha», do «Préstito Fúnebre». Ou ainda o emprego de um substantivo com um determinativo inespe-rado, como sucede com os «cataclismos de flores» do «Idílio» de A Musa, em Férias e a «ogiva d’astros» do «Pastor».

Ainda não nos referimos nenhuma vez às Orações, que ocupam um lugar à parte na lírica do nosso Poeta. Especialmente na Oração à Luz as imagens sucedem-se, numa alternância constante entre o abstracto e o concreto, para melhor dar o indefinível do que se pretende mais sugerir do que descrever. As metáforas vêm quase todas da própria liturgia — «claro mistério», «eucaristia santa», «virgem ígnea», «fiat», «verbo», «calvários»... As transposições de termos do seu sentido próprio dão imagens desta beleza:

A ave cantaSonorizando aurora na garganta...Verdilhão, toutinegra, rouxinolDeclamam luz, gorgejam sol.

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E há a «canção alada», «voz da natureza», «bebendo oceanos de alvorada»... O sentimento panteísta e a filosofia evolucionista que animam a Oração fazem girar em turbilhão todas as imagens, todas as transposições que se possam conceber. Mas é preferível não desfolharmos mais a Oração à Luz; melhor do que todas as análises, fala o sortilégio estranho dos seus versos.

Guardámos para o fim uma série de imagens cuja análise nos permite recordar tudo o que dissemos sobre a natureza da metáfora junqueiriana e ao mesmo tempo serve para demonstrar a capacidade de adaptação do símile ao clima especial de cada composição. Trata-se de um elemento constante e tradicional da poesia lírica — a lua e a sua luz.

No começo da Introdução de A Morte de D. João, pairando sobre a cidade do vício e do crime, num ambiente sinistro e mortífero

... a lua, a lua triste, envolta num sudário,Aparece a tremer silenciosamenteBranca como Jesus na noite do Calvário.

A humanização da presença da lua ergue-se até ao divino, emprestando-lhe a tristeza cósmica do Mártir do Gólgota.

Ao terminar o diálogo com a Musa, o Poeta só vê crimes e perdição em sua volta. É por isso que então os vagalhões do mar lhe parecem lágrimas e

................................. A lua ensanguentadaÉ como uma cabeça enorme e decepadaRolando pelo azul. ..................................

Com a chegada da Justiça, o ambiente muda. E depois de terminado o seu longo monólogo sobre a sua acção na história e na vida e de exortar o Poeta a fazer também justiça com os seus versos, retira-se, quando já «o mar cantava tranquilo um hino bom duma alegria enorme». A pacificação da natureza alia-se à da alma e assim a lua transforma-se num sonho errante:

No azul religioso, esbranquiçado, informe, Andava como um sonho errante a lua cheia.

Esta imagem é aparentada com a que aparece no mesmo poema, no episódio de «A Cena do Balcão»:

Era uma noite límpida de Agosto; Ia o azul do céu já desmaiando; Da lua cheia o merencório rosto Esbatia-se pálido, alvacento.

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Na «Melancolia», a lua toma a figura humana e com ela se anima todo o céu:

A lua, pastor bendito,Com seu rebanho de estrelas, Vai vendo se alguma delas Se perde pelo infinito.

No episódio romântico «Ao Cair das Folhas» o Poeta faz incarnar a lua numa figura de Shakespeare:

Lá vem a lua, a Ofélia desmaiadaPela amplidão da abóbada azuladaA grinalda de estrelas desfolhando...

Sonâmbula d’amor com mãos piedosas Entorna as longas tranças luminosasPor sobre os corações que estão chorando.

A última imagem renova, com o arrojo da sua metáfora, cuja força reside essencialmente no verbo, o tema romântico da lua e do amor triste. Na oração inicial «Aos Simples», de A Velhice do Padre Eterno, a lua aparece revestida de um símile que completa a delicada religiosidade do quadro:

E a lua branca, além, por entre oliveiras,Como a alma d’um justo, ia em triunfo ao céu!

Mais adiante, em «A Caridade e a Justiça», a noite tormentosa do Calvário é descrita deste modo:

... A lua ensanguentada e fria,Triste como um soluço imenso de Maria, Lançava sobre a paz das coisas naturais A merencória luz feita de brancos ais.

A humanização atinge o seu auge, na identificação com o sofrimento de uma das figuras da tragédia do Calvário.

Mas na «Semana Santa» a própria lua tem «a palidez devassa/ duma infeliz mulher».

A lua que brilha nas páginas de «O Melro» é uma condensação da atitude da natureza durante o drama: ela é calma e serena, como uma lição de sabedoria que não perece; por isso as metáforas finais são abstractas:

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A lua triste, a lua merencória,Desdémona marmórea,

Rolava pelo azul da imensidade. Imersa numa luz serena e fria,

Branca como a harmonia,Pura como a verdade.

Na descrição inicial de «A Sesta do Senhor Abade», na angústia da epidemia, na terra calcinada e seca, apenas se vê que:

Por detrás da montanha, aspérrima, escalvada, A lua cheia, rubra, opaca, ensanguentada, Num silêncio soturno, esmagador, que oprime, Rompe sinistra — como a aparição dum crime.

A descrição carregada de adjectivos parte subitamente no último verso, para surgir aquela comparação incisiva e brutal, de grande efeito dramático.

A lua aparece-nos mais vezes humanizada e até adaptada à mentalidade de quem a observa. É o caso dos versos finais de «A Moleirinba», talvez algo influen-ciados pelos de «Booz Endormi» de Victor Hugo:

...............................e vendo sideral tesoiro,Entre milhões d’astros o luar sem véu,O burrico pensa: Quanto milho loiro! Quem será que mói estas farinhas d’oiro Com a mó de jaspe que anda além no céu!

As estrofes esculturais do «Campo Santo» definem o luar dorido, o luar mago-ado, o luar divino, o luar de prata, através de uma chuva de imagens de origem litúrgica («litanias fluidas», «misereres brancos», «bálsamos», «piedades», «orações dolentes», «místicas nevadas», «linho de candura», «ângelus da ermida», «êxta-sis boiando», «sagrações ondeando», «ressonâncias d’órgão», «extrema-unções profundas») e de metáforas vaporosas, como «esfolhados lírios», «musselina argêntea», «hálitos de leite», «pérolas, opalas, beijos e diamantes». O impode-rável do luar aparece também na «Canção Perdida», sublinhado por imagens abstractas:

A lua enorme, a lua argêntea, a lua calma,Imponderalizou a natureza inteira,Descondensou-a em fluido e embebeceu-a em alma.

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É a mesma de que já antes traduzira assim pálido fulgor:

Com o beijo do sol na face cadavérica, Beijo que a morte esvai em palidez algente, Eis a lua a boiar sonâmbula e quimérica...

No «Pastor» aparece-nos a imagem mais formosa de todas, onde o valor semân-tico especial do imperfeito desabrochava, o efeito auditivo do particípio soluçante, a metáfora que encerra o verso, numa palavra a que a deslocação do acento deu melhor cadência, e fica como que a ecoar nos nossos ouvidos, constituem um todo de uma harmonia formosa e nostálgica:

Sua rude frauta de pastor ouvindoNa misteriosa luz crepuscular,Iam-se as estrelas uma a uma abrindo,E desabrochava pelo azul infindo Soluçante a lua como um nenufar!

As «Eiras ao Luar» são todas uma sugestão branda da luz da lua. As imagens fluidas e brancas deixam-se arrastar por um ritmo suave em que a alternância das rimas — quase todas em ei ou i, contrastando com a, uma vez só com o — se casa harmoniosamente com a suavidade do quadro que se quer sugerir. Dentro de cada estrofe, os quatro primeiros versos, descritivos, espraiam-se na onda sonora do dístico que a termina; as rimas mudam no último verso de cada parte, como para descansar o ouvido em tons novos. E esse contraste acentua-se no dístico da primeira e da última estrofe da composição, que pouco diferem, em que o primeiro verso é quase todo em i ou ei, e o segundo em a:

Oh, bailai, ceifeiras, lindas feiticeiras, Na aleluia argêntea do clarão do luar!

Estamos perante uma composição predominantemente musical, em que se evidencia, portanto, o outro aspecto sob que hoje consideraremos a lírica de Jun- queiro.

O processo empregado baseia-se acima de tudo na sinestesia, que reclamava o simbolismo. A poesia toca directamente na música. Já num passo do «Prometeu Libertado», também evocação do luar, Junqueiro procura, segundo nos informa Luís de Magalhães, traduzir em verso a impressão que lhe provocou a audição da «Sonata ao Luar» de Beethoven, chegando até a adoptar um ritmo semelhante. Mas o «Prometeu Libertado», como «O Caminho do Céu», são obras apenas esboçadas, que de modo nenhum podemos analisar com o mesmo critério que aplicamos

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àquelas poesias que o autor publicou na sua forma definitiva, e por isso não deve-mos usá-las nos exemplos que apontamos.

As peças de «Os Simples» merecem quase todas uma análise especial sob o ponto de vista da musicalidade. «A Moleirinha», que todos temos bem presente, tem aquele ritmo peculiar que lhe comunica a onomatopeia toc, toc, toc, que aparece em todas as estrofes, de preferência no princípio, às vezes no meio, para cortar a monotonia, marcando a continuidade do movimento, sem se quebrar nunca, enquanto o Poeta fala.

O «Préstito Fúnebre» é das composições mais ricas sob o ponto de vista do significado dos sons. Nota-se que as estrofes que se referem à gentil boieirinha têm todas as rimas em i, o i que é na nossa língua a vogal por excelência da lin-guagem em que as mães falam às crianças, a dos diminutivos de matiz afectivo4.

E, pelo contrário, as estrofes em que se descreve o andar dos bois acabam nas vogais abertas, como a, nas escuras, como o, nos ditongos nasais mais pesados, como ões. Algumas vezes, chegam a cruzar-se os dois tipos de rima na mesma estrofe, conforme o verso se refere aos bois ou ao castanheiro e aos passarinhos ou à boieirinha. O contraste nota-se bem nestas duas estrofes que vou recordar a seguir:

Oh, que donairosa, linda boeirinha!Grandes olhos garços, sorrisinho arisco...D’aguilhada em punho lépida caminha,Com a graça aérea d’ave ribeirinha, Verdilhão, arvéola, toutinegra ou pisco.

E os dois bois enormes, colossais, fleugmáticos, Na aleluia imensa, triunfal, da aurora,Vão como bondosos monstros enigmáticos, Almas porventura d’ermitões extáticos,Ruminando bíblias pelos campos fora!

Evidentemente, quando fazemos estas observações, não queremos dizer que o autor alinhou sistematicamente as rimas em i a um lado e as em o ou a a outro. Se assim fosse, estaríamos talvez em presença de um hábil metrificador, mas não de um poeta. Justamente admiramos neste caso a intuição do génio, que faz sempre arte nos mais ínfimos pormenores.

À crítica compete chamar a atenção para esses factos, no desejo de contribuir para a mais completa apreciação da obra.

4 Cf. Castilho, Tratado de Metrificação Portuguesa, I, apud João da Silva Correia, A Linguagem da Mulher, Lisboa, 1935.

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A «Canção Perdida» é toda ela uma peça musical. Aquele contraste entre os longos tercetos em alexandrinos que evocam o ambiente, o verso solto que anuncia o seguinte numa arrastada onda sonora, como esta:

Doce, canta uma voz melancòlicamente,

e a quadra de sabor popular, cujo final se repete como um eco, faz deste «dueto no infinito» de duas almas, como lhe chamou Leonardo Coimbra, uma obra-prima de emoção.

O «Cavador» é todo ritmado por aquele verso cavo e soturno:

Ó dor, ó dor!

que entrecorta continuamente a estrofe, para acabar naquela evocação:

Fantasma, negro, o cavador.

Nas vogais predominam o a e o o, o claro e o escuro em que decorre todo o drama. Os verbos só por si descrevem tudo («cavou, cavou» — «bateu meio-dia» — «reza em silêncio») acompanhados aqui e ali de um epíteto — «torvo, inclinado sobre a enxada», «triste, na encosta erma e bravia»,— e tudo se dramatiza na brevidade da evocação, que se faz mais pela repetição de frases que ficam a ecoar lugubremente no nosso espírito, do que pela pormenorização descritiva, até à concisão dos versos finais:

Que a paz de Deus seja comigo!Que a paz de Deus seja comigo!Disse, expirando, o cavador!

É sobretudo da música sombria dos versos e da sua constante repetição que decorre a emoção transbordante do poema.

No «Campo Santo», de que já falámos, a combinação estrófica estranha pre-tende sugerir a queda do luar, já humanizado, sobre a terra adormecida. Longos dísticos de catorze sílabas fazem o acompanhamento, como um harpejo demorado a sublinhar a fina melodia do canto.

O «Regresso ao Lar» é cheio do ritmo dolente e saudoso dos seus alexandri-nos, com pausa na sexta sílaba. Aquela rima em ando ou anso, a alternar com ar, que aparece na primeira e na última quintilha, a passagem regular do acento da penúltima para a última sílaba em todas as estrofes, a manutenção constante da rima em ar, que termina todas as estâncias, dão ao conjunto uma unidade de tom que transmite bem a sensação de saudade infinita que se desprende desta formosa canção de embalar.

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168 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Em todas as obras de Junqueiro se concede uma larga parte à sonoridade, como é sabido. Basta citar a conhecida Introdução de A Morte de D. João para se sentir a amplidão do desenrolar dos sons, tão grande e tão vasta que mais a aproxima do tom épico do que do lírico.

Na maioria das composições de Os Simples, os efeitos sonoros não são mera preocupação musical: assumem um significado psicológico que os torna parte integrante da poesia. E assim o seu conteúdo emocional trasborda dos moldes do formalismo externo para atingir a própria essência da expressão poética.

Muitos dos versos de Junqueiro alcançam grande efeito onomatopaico. O pre-domínio dos rr e uu dão aos versos do «In Pulvis», que evocam uma tempestade, a estridência de sons que a caracteriza.

Alguns versos de «O Pastor» usam o mesmo processo onomatopaico, pela acumulação de rr.

A combinação do som r, dos uu, aa e ditongos nasais concorre para o poder descritivo deste verso da Introdução de A Morte de D. João:

Arranca mil trovões das rábidas entranhas.

É o mesmo processo adoptado para descrever o mar num passo das «Confis-sões» das Poesias Dispersas.

A sensação de hostilidade da montanha abrupta ao «Pastor» é dada nestes dois versos:

E zambulhos, zimbros, tojos, cornalheiras, Acres como pragas duma boca má!

pela acumulação de sibilantes sonoras, de grupos consonânticos difíceis de pro-nunciar e de aa nas sílabas acentuadas da segunda linha.

Ainda nos falta falar de um outro aspecto da imaginação auditiva de Guerra Junqueiro: é aquela sinestesia que o leva a declarar em «O Melro»:

Todas as forças vivas da matéria Murmuraram diálogos gigantes,

Pela amplidão etérea. São precisos silêncios virginais,Disposições simpáticas, nervosas,Para ouvir estas talas silenciosas

Dos mudos vegetais.As orvalhadas, frescas espessuras Pressentiam-se quase a germinar.

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É esta mesma qualidade que o faz ouvir, na «Sesta do Senhor Abade» de A Velhice do Padre Eterno,

... o surdo murmúrio abrasador da luz.

A mesma ainda que na «Visita à Floresta» de A Musa em Férias transforma a alegria da natureza primaveril nesta imagem auditiva:

Como o sol entra aqui a rir às gargalhadas.

Também na descrição da «Manhã» das Poesias Dispersas, há os vagalhões de verdura

Que rolam da montanha em doidas gargalhadas.

Na cabana humilde em que arde o castanheiro do «In Pulvis» existe

... uma alma d’oiro dentro dela a rir!

E os melros, essas figuras características da lírica de Junqueiro, todos nos lembramos de os ouvir

... a soltar dentre o arvoredo Verdadeiras risadas de cristal.

Outro processo da imaginação auditiva do nosso Poeta consiste em atribuir a determinado objecto as qualidades que lhe advêm de circunstâncias que lhe são externas, como sucede neste verso de «O Pastor»:

Ala para a aldeia, por manhãs sonoras.

Muitos outros exemplos havia a dar, mas é já ocasião de nos despedirmos do Poeta a quem viemos prestar culto. Encantados pela beleza fascinante dos seus versos, estivemos a desfolhá-los novamente, num esforço consciente para apreen-der melhor a sua estética. Diligenciámos descobrir, na floresta das imagens e sons que vivem nos seus versos, os caminhos da criação poética. E encontramos que as imagens são tiradas com a mesma abundância de qualquer reino da natureza, dos sentimentos, das abstracções. E que seguem um caminho ascensional desde as primeiras grandes obras até Os Simples, para se espiritualizarem, livres já de todo o contacto com a matéria, nos versos aéreos da «Oração à Luz». E observamos que os sons seguem uma evolução paralela. Nos vagalhões potentes que rolam nas primeiras páginas de A Morte de D. João a sonoridade parece dominar o seu criador,

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em ímpetos de ressonâncias, nas páginas imortais de Os Simples, o som apenas sublinha e amplifica a ideia, cantando em uníssono com ela, como um diapasão perfeito. Quer dizer que se estabeleceu entre a ideia e a forma aquele equilíbrio ideal, aquela correspondência exacta que assegura a Os Simples um lugar de eleição entre as obras-primas da lírica nacional.

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10. ENTREVISTA*1

Tem memória da primeira vez que teve contacto com a poesia de Guerra Junqueiro?

É difícil, até porque toda a gente sabia de cor poemas dele. Mesmo a minha mãe e o meu pai, que ainda foram seus contemporâneos, recitavam versos dele. Os versos de Guerra Junqueiro são muito cadenciados, entram facilmente no ouvido. Por outro lado, os meus pais também me falavam da extrema consideração que havia por ele em todo o lado.

De facto, a popularidade e a recepção da obra de Guerra Junqueiro constituem um caso singular na história literária portuguesa.

Sim, é verdade. Entre os poetas portugueses do séc. XIX e começos do séc. XX, poucos se podem comparar em popularidade com Guerra Junqueiro. Havia, como disse, quem soubesse de cor trechos seus (lembre-se em especial a abertura e o episódio do “Melro” em A Velhice do Padre Eterno) e pode dizer-se que todas as pes-soas com alguma cultura absorviam o ritmo vibrante dos seus versos. No Porto, a sua popularidade era tal que o alfaiate não lhe levava dinheiro pelos fatos e o laboratório médico não lhe cobrava as análises (o que ele agradecia referindo-se em especial ao “grátis que vem no fim”). Ele às vezes respondia com uns versos a agradecer.

Para essa avassaladora popularidade terá também concorrido a veemência da sátira política e anticlerical de Guerra Junqueiro, bem como...

o seu envolvimento nas grandes questões que então agitaram o País. Lembre-se apenas que no primeiro ano da República o povo do Porto fez uma romaria de homenagem à casa do Poeta.

*1 Publicada em Pereira, Henrique Manuel, À Volta de Junqueiro. Vida, obra e pensamento. Universidade Católica, Porto (2010), 150-162.

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Mais precisamente em 8 de Janeiro de 1911, no contexto da nomeação do poeta para ministro plenipotenciário de Portugal em Berna, Suíça.

E porque os acontecimentos políticos (em especial o Ultimatum) que originaram muitas das suas obras maiores, como Finis Patriae e Pátria, estavam intrinsecamente ligados à época, compreende-se que as mudanças de perspectiva que o tempo traz consigo tenham esbatido o interesse por essas obras e reconhecido a injustiça de muitas das suas acusações.

Estará a referir-se aos mais de quatrocentos versos que Guerra Junqueiro eliminou da Pátria?

Sim, e dos quais João Grave e Luís de Magalhães deram testemunho, não é?

Sobretudo Luís de Magalhães que acompanhou o processo de muito perto. Todavia, feita, em 1925, segundo a vontade de Junqueiro, uma edição especial com esses cortes, as edições posteriores não só os ignoraram como omitem aquela implacável revisão. Enfim, talvez algum dia venha a ser feita uma edição crítica da Pátria. Pierre Hourcade, escreveu que “Nenhum gozou em vida duma reputação tão espectacular como Guerra Junqueiro [...] e, todavia, nenhum dos escritores daquela geração passou de moda tão depressa e tão brutalmente”. Concorda com esta afirmação?

Os estudiosos portugueses em breve se dividiram quanto à apreciação da sua obra, e frequentemente o fizeram extremando posições. Porém, desde os ataques de António Sérgio (em 1920) e Vieira de Almeida à defesa de Amorim de Carvalho, ninguém terá formulado um juízo de valor tão objectivo como Jacinto do Prado Coelho que nele reconheceu, ao lado do “grande satírico”, o “lírico desigual” [...] capaz, algumas vezes, de surtos admiráveis ou achados muito felizes”. Também é interessante notar que um historiador da literatura como Óscar Lopes, se, por um lado, em matéria filosófica o qualificou de “vago pensador”, não deixou de desta-car a sonoridade do “alexandrino grandiloquente e imprecatório de Junqueiro”.

Em maré de juízos de valor, poderíamos também evocar José Régio...

Sim, quando escreveu que o Poeta era um “talento formal extraordinário, discípulo e, por vezes, imitador de Vítor Hugo, que mais se impôs [...] pelos arre-batamentos verbais do que pela profundeza de inspiração”. Bom, nessa época, estavam longe as imprecações de Correia Garção contra o “contínuo zum zum da consoante” e também ainda faltavam anos para que um poeta português contem-porâneo se insurgisse contra a “charanga junqueiriana”.

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Refere-se a Eugénio de Andrade. Com efeito, escreveu ele, em 1973: “Eu creio que Jun-queiro está lá ao fundo do século dezanove muito contente por lhe estarmos a festejar mais um aniversário. Deve estar convencido que ainda damos por ele, e assim parece. Mas não é verdade – os últimos ecos da sua charanga levou-os José Régio para a cova. Esperamos que para sempre”. Eugénio de Andrade, como crítico, parece-me bem inferior ao extraordinário Poeta que é.

Não podemos dissociar os textos do poeta do contexto, dos modelos estéticos e seus objectivos. Teremos de situar Guerra Junqueiro no seu tempo, entre os movimentos literários finisseculares, como o fez admiravelmente José Carlos Seabra Pereira.

Sem menosprezo por ninguém, preferia que se citasse mais a si mesma, caso subscreva ainda (ou não) o que escreveu há cinquenta e nove anos. Em 24 de Maio de 1950, proferiu, no Museu Soares dos Reis, uma conferência subordinada ao tema As imagens e os sons na lírica de Guerra Junqueiro. Teria então, se não erro, 24 anos de idade, o que é notável, atendendo à qualidade do texto.

Sim, tinha essa idade, é verdade, e tinha por trás de mim o Desterrado, veja que honra.

Celebrava-se naquele ano o centenário do nascimento de Guerra Junqueiro, um pouco por todo o país e Brasil.

E, claro, também no Porto. A Comissão Organizadora promoveu, entre outras manifestações, a publicação de uma edição fac-símile do manuscrito original de Os Simples, a cargo de Lello & Irmão, que haviam sido os editores do poeta (como, aliás, de quase todos os maiores escritores portugueses do séc. XIX), bem como a realização de conferências em sua honra, que se realizaram na sala principal do Museu Nacional Soares dos Reis. Fui convidada a falar na sessão inaugural, à qual compareceram, além de um vasto auditório, a viúva e a filha do poeta. A segunda parte dessa tarde foi preenchida pela recitação de ver-sos de Junqueiro pela conhecida declamadora e poetisa Maria Manuela Couto Viana.

Volvidos que estão quase sessenta anos sobre essa data, recorda-se do repertório desse recitativo.

Não. Apenas que depois houve outra conferência, passado algum tempo, mas devo dizer que não me lembro de mais.

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A imprensa da época registou também a presença de Maria Isabel Guerra Junqueiro, a filha mais velha do poeta, bem como da viúva, D. Filomena. Já as conhecia, guarda impressões desse dia?

Não, não as conhecia. Mas recordo-me que a viúva teve um comentário muito curioso, talvez não muito lisonjeiro, que me está agora a lembrar: “Agora as Senho-ras também fazem conferências...”. E repare que eu não era a primeira senhora a fazer conferências, já tinha havido mais.

Como interpretou esse comentário?

Não sei se não apreciou, não sei, não sei dizer.

A sua conferência foi muito aplaudida. Por parte de D. Maria Isabel recebeu alguma manifestação?

Não me recordo de ela dizer nada, penso que me terá felicitado, mas não me recordo em pormenor. Era naquela sala enorme, onde estão as obras principais de Soares dos Reis, a tal onde está o Desterrado. Lembro-me de que estava a sala cheia, houve pessoas que gostaram, outras não sei.

Certo é que teve eco na imprensa da época. Aliás, o texto foi publicado nesse mesmo ano, pela Livraria Portugália do Porto.

É verdade, sim, e encontra-se há muito esgotado.

Reeditá-lo seria (mais) um excelente serviço à cultura portuguesa e, em especial, aos estudiosos e admiradores de Guerra Junqueiro. Entretanto, propunha que recuperássemos as suas linhas essenciais. Ocupou-se, então, particularmente das imagens e dos sons...

Procurando pôr em relevo as sinestesias tão características da obra lírica de Guerra Junqueiro. Reconheço que há passos do mais enternecido e inspirado lirismo nos poemas mais ardorosamente combativos, como A Morte de D. João e A Velhice do Padre Eterno, e que numa obra como Pátria, esse drama misto de epopeia, há trechos das falas de “Doido” e de “Astrologus” que não posso classificar senão como líricos. Mas voltei-me de preferência, ainda que não exclusivamente, para Os Simples, tendo em especial atenção esses dois aspectos que encerram em si uma grande parte da beleza do verso: as imagens e os sons.

Junqueiro considerou Os Simples a melhor das suas obras. Sabemos, porém, que os critérios de avaliação estão condicionados pela perspectiva e pela subjectividade. Porquê essa sua abordagem especial a Os Simples?

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Porque as peças dessa obra merecem quase todas uma análise especial sob o ponto de vista da musicalidade. Veja a tão conhecida “A Moleirinha”: tem aquele ritmo peculiar que lhe comunica a onomatopeia toc, toc, toc, que aparece em todas as estrofes, de preferência no princípio, às vezes no meio, para cortar a monotonia, marcando a continuidade do movimento, sem se quebrar nunca, até ao final do poema. E o “Préstito Fúnebre”, por exemplo, é das composições mais ricas sob o ponto de vista do significado dos sons. Note-se que as estrofes que se referem à gentil boieirinha têm todas as rimas em i. O i, curiosamente, é na nossa língua a vogal por excelência da linguagem em que as mães falam às crianças, a dos diminutivos de matiz afectivo. A “Canção Perdida” é toda ela uma peça musical. Aquele contraste entre os longos tercetos em alexandrinos que evocam o ambiente, o verso solto que anuncia o seguinte numa arrastada onda sonora...

Não é por acaso que também Os Simples mereceu particular apreço por parte dos nossos compositores musicais. Prova-o, aliás, o trabalho A Música de Junqueiro, onde, de resto, se gravaram quatro temas sobre a “Canção Perdida”.

Depois, na maioria das composições de Os Simples, os efeitos sonoros não são mera preocupação musical: assumem um significado psicológico que os torna parte integrante da poesia. E assim o seu conteúdo emocional transborda dos moldes do formalismo externo para atingir a própria essência da expressão poética. O som apenas sublinha e amplifica a ideia.

Por isso, como escreveu, estabelecendo um equilíbrio ideal entre a ideia e a forma, Guerra Junqueiro “assegurou a Os Simples um lugar de eleição entre as obras-primas da lírica nacional”.

Exactamente. Mas em todas as obras de Junqueiro se concede uma larga parte à sonoridade. Basta citar a conhecida Introdução de A Morte de D. João para se sentir a amplidão do desenrolar dos sons, tão grande e tão vasta.

Uma autêntica sinfonia. Talvez por isso, depois de a ler, Luís de Freitas Branco compôs um esboço sinfónico que intitulou “Fantasia para Orquestra”.

É que ela aproxima-se, de facto, mais do tom épico do que do lírico. De todas essas sonoridades procurei dar exemplos no trabalho que referiu.

É verdade, e de forma geral, abrangendo praticamente toda a obra junqueiriana, desde A Morte de D. João (1874), A Velhice do Padre Eterno (1885), Pátria (1896), Poesias Dispersas (1920). Faz até uma breve alusão a Prometeu Libertado (1926). Ainda assim, diz que “por brevidade”, omitiu muitos outros exemplos. Porém, não concede grande desen-volvimento às Orações ao Pão e Oração à Luz.

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Não podia ocupar-me de toda a obra. Fiz-lhes uma rápida alusão, sim. Essas obras ocupam um lugar à parte na lírica do nosso Poeta. Especialmente na Oração à Luz, as imagens sucedem-se, alternando constantemente entre o abstracto e o concreto, para melhor dar o indefinível do que se pretende mais sugerir do que descrever. As metáforas vêm quase todas da liturgia – “claro mistério”, “eucaristia santa”, “virgem ígnea”, “fiat”, “verbo”, “calvários”... As transposições de termos do seu sentido próprio dão imagens de grande beleza. Relativamente à Oração à Luz, melhor do que qualquer análise, fala o sortilégio estranho dos seus versos.

Relativamente às “imagens”...

Surgem a cada passo na poesia de Guerra Junqueiro, seja como ornamento ou sugestão. E ora precisam uma ideia, ora esbatem em cambiantes de luz um senti-mento indefinido. São marcas verdadeiras do génio do seu autor. E não são só as metáforas introduzidas pelo tradicional como, há também aquelas que resultam da justaposição pura e simples de um vocábulo abstracto e de um concreto. A poderosa imaginação visual de Junqueiro alarga-se a todos os campos e não esquece sequer a notação das cores. Curiosamente, é também em Os Simples que isso se faz mais cuidadosamente. Nesse livro nota-se uma espécie de decrescendo cromático, que vai desde “A Moleirinha” até à “Canção Perdida”. Com alternativas de claro e escuro no “Pastor”, enegrece no “Cavador” e sobe depois, num crescendo harmonioso, até ao paraíso todo azul e oiro que recebe os “Pobrezinhos”, e paira como uma esperança radiosa sobre o “Campo Santo”. Do reino animal e vegetal Junqueiro retira também algumas das suas mais formosas metáforas: “Fresca como o branco linho/ De manhã nas relvas a corar ao sol”. Outro grande número de imagens vai ele buscá-las à simplicidade da vida diária. Mas encastoadas no ritmo do verso adquirem uma beleza nova e um valor emotivo de puro quilate, como é o caso daquele conhecido passo do prefácio “Aos Simples” de A Velhice do Padre Eterno: “Ó velhos aldeões, exaustos de fadiga,/ Que andais de sol a sol, na terra a mourejar,/ Roubar-vos de voss’alma a vossa crença antiga/ Seria como quem roubasse a uma mendiga,/ As três achas que leva à noite para o lar!”

Como vê, seria oportuno pensar-se numa reedição de As imagens e os sons na lírica de Guerra Junqueiro... A saudade é também uma marca na obra de Junqueiro.

É verdade, sim. Da evocação comovida da sua juventude, que lança um perfume de saudade em muitos passos da sua obra, Junqueiro retira também toda a espécie de imagens, num turbilhão de cores e de sentimentos, em que predominam os elementos da natureza: “... a flor de Lotus / que em cem anos floresce apenas uma vez”, como diz na célebre dedicatória de A Musa em Férias.

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Uma das ideias daquele seu trabalho é esta: “As imagens são tiradas com a mesma abundância de qualquer reino da natureza, dos sentimentos, das abstracções. E que seguem um caminho ascensional desde as primeiras grandes obras até a Os Simples, para se espiri-tualizarem, livres já de todo o contacto com a matéria, nos versos aéreos da Oração à Luz. E observamos que os sons seguem uma evolução paralela”. Subscreve ainda hoje este texto?

Completamente, sem qualquer alteração.

Para além do uso da língua latina – desde logo em títulos como Mysticae Nuptiae (1886), Finis Patriae (1891), etc., – é sensível a cultura da Antiguidade Clássica na obra de Guerra Junqueiro?

Sim, mas não creio que, nessa área, os seus conhecimentos se elevassem acima da média. Repare, no tempo de Junqueiro aprendia-se latim ao longo de todo o liceu. No entanto, há um deslize, um erro sintáctico, que podemos apontar em um dos primeiros poemas de Os Simples: “In Pulvis”.

É um facto. Tanto que João Grave, no prefácio a O Caminho do Céu (1925) não perdeu a oportunidade de o emendar para “In Pulverem”.

Pois, mas se pegarmos na edição fac-simile de Os Simples encontramos lá a confirmação.

Na décima edição do seu volume Estudos de História da Cultura Clássica: I Cultura Grega (2006), ocupando-se de Prometeu, diz ter sido ele um símbolo que fascinou os poetas de várias épocas.

A começar logo pelos dois poemas didácticos de Hesíodo: Teogonia e Trabalhos e Dias. Depois, outros escritores gregos retomaram o tema, por exemplo, Ésquilo, no Prometeu Agrilhoado, e Platão, no mito do Protágoras. Também serviu de tema a numerosos poetas modernos, Goethe e Shelley, para citar apenas dois dos maiores.

Naquele seu livro, exemplificando os casos portugueses, cita o Prometeu Libertado (1926), obra que segundo vontade expressa seria o fecho de uma trilogia que teve início em A Morte de D. João e continuação em A Velhice do Padre Eterno. Embora a ideia da obra remonte, pelo menos, a 1879, a verdade é que Junqueiro acabou por deixá-la em esboço, num plano que compreendia cinco cantos. Que avaliação faz deste poema?

Os processos literários não divergem dos das outras obras. Do projecto que conhecemos, pode dizer-se que oscila entre o histórico e o simbólico. A partir de um diálogo entre Prometeu no Cáucaso e Cristo no Calvário, cada um defende um

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destino diferente para o Homem. Termina na desilusão de Prometeu, que falha o seu plano de libertar a humanidade, pelo que o abutre lhe rói, não o fígado, mas a alma, até que Cristo aparece para o libertar. Entre os dois extremos situam-se, no Canto II, o sermão de S. Paulo (certamente o do Areópago) e a cristianização; no III, a Ressurreição Pagã do Renascimento, na qual Prometeu desagrilhoado liberta o homem; no IV reinava o desvario e tudo cairia numa anarquia sangrenta, resultante da queda em novas formas de despotismo.

Para o estudioso actual, talvez seja difícil entender esta periodização da história da humanidade.

Sim, até porque, no Canto II, começa na fase “desde Alexandre até Heliogábalo” até à “bacanal naturalista”. Ora, se é certo que o último dos Severos e toda essa dinastia em geral cometeu toda a espécie de crimes, não pode englobar-se nesse rol a brilhante cultura helenística nem a Pax Augusta, para já não falar nos cha-mados “bons imperadores” antoninos. De passagem, o poeta deixa entrever, no entanto, certos conhecimentos da crónica imperial, quando enumera atrocidades e extravagâncias de alguns Césares.

Para além dos esquemas, Luís de Magalhães publicou ainda um trecho chamado “O Infinito”, uma poderosa sequência de alexandrinos composta em 1879, e outra “A Ressur-reição Pagã”, além de uma quadra, talvez do Canto II, que devia concluir a cristianização posterior ao sermão de S. Paulo...

Exactamente, com o emblemático surgir de cruzes por todo o mundo. O grande interesse de “O Infinito” reside na adaptação do motivo do “primeiro inventor”, que vinha da tragédia de Ésquilo, aos progressos científicos e tecnológicos da era moderna: a abertura de túneis nas montanhas, a navegação aérea, o telégrafo, a bússola. Porém, ao valor de estas e de outras descobertas, o poeta opõe o gosto pela natureza, o seu panteísmo, para depois definir a noção de vacuidade de todo o esforço humano. Essa exemplificação toma como ponto de partida no tempo, não as genealogias dos deuses, à maneira de Hesíodo, mas as do Génesis. Em “A Renascença Pagã”, a sequência de notações de brilho, de cor, de personificações da natureza, com a dominante da luz do luar, assemelha-se à das outras obras. Por outro lado, desde o ritmo ternário com que abre o texto...

Inspirado, segundo Luís de Magalhães, pela Sonata ao Luar de Beethoven: “O luar silente, o luar fulgente, o luar dormente, / Vaporosa, maviosa, harmoniosamente”.

Sucedem-se as ousadias no uso de neologismos (“borboleteamento”) ou de lon-gos advérbios, que podem ocupar um verso quase inteiro (“deslumbradoramente

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espiritualizada”). Nem todas estas inovações são felizes e, para quem conhece a dispersão do poeta por actividades políticas, agrícolas e até de antiquariado, torna-se compreensível que ele tenha deixado arrastar-se durante anos a com-posição desta obra.

Segundo o próprio poeta, de todas essas atividades dispersivas, teria pesado mais “a infernal política”. Se não fosse ela, estava convicto, teria feito do seu Prometeu “um dos maiores poemas contemporâneos”.

Como quer que seja, dir-se-ia que no percurso combativo, cheio de ilusões, de Prometeu, até alcançar a verdadeira felicidade, a felicidade proveniente da harmo-nia espiritual, se prefigurava um itinerário autobiográfico que só no entardecer da vida se aproximara da realização plena.

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(Página deixada propositadamente em branco)

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11. A ESTÁTUA DO INFANTE D. PEDRO: DE RUI DE PINA A MANUEL ALEGRE*

A cena passa-se na cidade de Lisboa, depois das cortes de 1439, em que, «antre as outras graças e liberdades, que o Infante Dom Pedro em nome d’El Rey outorgou ao povo, foy que nom ouvesse apousentadorya em Lixboa, fazendo estaos e casas, em que se El Rey e sua Corte podessem alojar». Estas palavras lêem-se hoje no final do cap. XLIX da Crónica do Senhor Rey D. Affonso V, pouco antes da fala de João Gonçalves, procurador da Cidade do Porto, que vai reclamar a entrega da educa-ção do pequeno monarca e de seu irmão ao Regente. Se este texto e os capítulos que se lhe seguem são de Rui de Pina, não será aqui o momento para o discutir. Pensamos, com Rodrigues Lapa e Lopes de Almeida1, que uma análise estilística cuidada desse autor em confronto com Fernão Lopes seria um dos meios mais seguros de comprovar a veracidade da afirmação de Damião de Góis, segundo a qual o primeiro dos nossos historiadores teria levado as suas Crónicas até Alfar-robeira2, e observamos desde já que uma primeira abordagem do processo, quer quanto à ordenação frásica, quer quanto ao curso rítmico, quer ainda quanto à

* Publicado em Biblos 69 (1993), 417-428. 1 M. Rodrigues Lapa , Lições de Literatura Portuguesa. Época Medieval (Coimbra 101981), p. 380; M.

Lopes de Almeida , Introdução às Crónicas de Rui de Pina (Porto 1977), p. XXII. Num contexto diferente, J. Veríssimo Serrão, Cronistas do Século XV Posteriores a Fernão Lopes (Lisboa 1977), p. 66, acentua o valor artístico dos capítulos dedicados à batalha de Alfarrobeira e à exclamação à morte do Infante. Por sua vez, António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa (Porto 161992), p. 141, apontam no que chamam com razão a primeira parte da Crónica de D. Afonso V, ou seja, a da Regência, uma «perspectiva muito semelhante à de Fernão Lopes, embora em estilo discreto, quase oficioso».

2 Referimo-nos principalmente ao passo do cap. VI da Crónica do Príncipe D. João em que se lê: «Ha qual historia geral, Fernão Lopes continuou atte ha morte do Infante dom Pedro, quomo ho mais largamente tratto na quarta parte da chronica delrei dom Emanuel cap. xxxvii, que compus alguns annos depois desta» (ed. Graça Almeida Rodrigues, Lisboa 1977). São menos claras, embora mais extensas, as críticas da Crónica de D. Manuel, e talvez demasiado confiantes nos dons do autor para distinguir «antre stylo e stylo», como notou Hemâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, I (Coimbra 51968), pp. 74-75.

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disposição dos episódios, de molde a convergir para o grande quadro final, aponta, em nosso entender, nesse sentido3.

Aceitamos no entanto, embora com reservas, que o texto é de Rui de Pina. Dois capítulos adiante, vem a parte que nos interessa directamente. É aquela onde se lê que os cidadãos de Lisboa, para comemorar o enorme benefício, «lhe quyseram com seu consentimento ordenar hũa estatua de pedra sobre a porta dos Estados, que o Infante novamente mandou fazer, e preguntando-lhe em que forma a averia por melhor que estevesse, o Infante com o rostro carregado de tristeza e pensamento, o desviou e defendeu, dizendo-lhes, como verdadeira profecia de sua fim; ‘Se a mynha ymagem ally estevesse esculpida, ayuda virám dias, que em gallardam dessa mercêe, que vos fyz e doutras muitas, que com a graça de Deos espero de vos fazer, vossos Fylhos a derrybaryam, e com as pedras lhe quebrariam os olhos. E por tanto Deos por ysso me dê bom gallardam, cá de vós em fym nam espero outro se nam este que digo, e por ventura outro pior.’ Das quaaes pallavras foram entam os Cidadaaõs tam maravylhados, como foram despois certifycados, que dizia verdade, quando assy o viram comprir.»4

O cronista observa que era de presumir «que o Infante alguma revelaçam tynha de sua morte», o que comprova com o diálogo havido mais tarde em Coim-bra, quando o Regente, a caminho da Porta de S. Bento, na companhia do Infante D. Henrique, avista as armas da Cidade, que estavam sobre a ponte, e, rejeitando a interpretação alegórica favorável que delas faz o irmão, as explica de outro modo: o cálice significa sangue, «em que mais claro parece, que de meus trabalhos, ser-viços e beneficios, esse ha de ser meu gallardam».

O motivo do pressentimento ouvir-se-á de novo, mais próximo do desenlace, quando o Duque de Coimbra passar pela Batalha (cap. CXVII), onde «esteve olhando com muita tristeza a sepultura ainda vazia, que em sua Capella lhe fora ordenada sobre que dysse muytas cousas, que pareciam ja revellaçooes d’alma, e sentymento da carne que a cedo avia de povoar».5

Um e outro episódio estão ausentes de outros escritos da época que falam desta figura, a Tragedia de la insigne Reyna Dona Isabel, do Condestável D. Pedro, e

3  Veja-se, a propósito de Fernão Lopes, o estudo pioneiro de A. E. Beau, «A preocupação literária de Fernão Lopes», Boletim de Filologia 14 (1954) = Estudos I (Coimbra 1959), pp. 1-39. Quanto à ordenação dos episódios no mesmo cronista, «em torno de pontos de convergência», leia-se António José Saraiva, Fernão Lopes (Lisboa 1955), pp. 64-71.

4 As citações de Rui de Pina são feitas pela edição de M. Lopes de Almeida referida na nota 1.5 Os presságios, astrologicamente fundamentados ou não, são frequentes nesta Crónica: eclipse

(talvez parcial) do Sol, durante duas horas, aquando do falecimento do Rei D. Duarte, tal como já suce-dera no de D. João I e no da Rainha D. Filipa (cap. I); regulação, por Mestre Guedelha, da hora e ponto favorável ao levantamento de D. Afonso V por rei e à prestação de obediência (cap. II). Recordem-se ainda as advertências frustradas do mesmo «físico» (Crónica de D. Duarte, cap. II) e o modo como o Rei não pôde ordenar festas de regozijo pela imposição de óleo aos filhos (ibidem, cap. IX).

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o aditamento final à Crónica Geral de Espanha de 1344, também da autoria do filho mais velho do Duque de Coimbra, segundo Lindley Cintra6.

Mas passaram ambos às Crónicas dos Reis de Portugal reformadas pelo Licenciado Duarte Nunes de Leão. Se a originalidade deste último é questão ainda por dilucidar7, não pode negar-se que, no passo correspondente, o distanciamento do texto de Rui de Pina é pequeno. Assim, introduz o primeiro episódio com uma referência à motivação da honra concedida, aproveitando-a para censurar o número exor-bitante de «gente inútil e ociosa» que os Reis depois passaram a trazer na sua corte8. Segue logo a narrativa, quase pelos mesmos termos, mas com pequenas diferenças reveladoras: a estátua agora é de mármore (ou não se estivesse na época do Renascimento!) e o expressivo «com o rostro carregado de tristeza e pensa-mento» do texto de Rui de Pina aparece reduzido ao vulgar «com rosto triste». O discurso directo permanece quase inalterado, e o mesmo sucede com a insistência no dom profético, que o precede e o encerra. O segundo episódio, declaradamente apresentado como «outro tal presságio de seu fim», fica reduzido a três linhas.

Concentrando-nos no que ao nosso tema respeita, estamos perante uma história de recusa de uma distinção única: o levantamento de uma estátua honorífica em vida. A ter-se levado a efeito, seria o primeiro exemplo de estátua não-jacente a fazer-se no nosso País, segundo ensina o Rev. Doutor A. Nogueira Gonçalves, e anterior, portanto, às estátuas do rei D. Manuel e da rainha D. Maria que orna-mentam a porta axial do Mosteiro dos Jerónimos.

A recusa de uma estátua por um homem político de grande nome é tema que faz pensar num modelo clássico, e, efectivamente, há modelos destes na Antigui-dade. O exemplo mais conhecido é o de Catão-o-Antigo, que Plutarco refere nada menos de três vezes, embora com pequenas variantes: na Vita do Censor (19.4-6), nos Praecepta gerendae reipublicae (820b) e nos Regum et imperatorum apophthegmata (198e). Traduzindo o último passo, por mais sintético, ele teria dito: «Quanto a mim, antes quero que as pessoas perguntem por que razão não existe uma estátua de Catão do que por que é que ela existe».

6 Na sua edição da Crónica Geral de Espanha de 1344, vol. IV (Lisboa 1990), pp. 550-551.7 Na sua introdução à edição das Crónicas dos Reis de Portugal reformadas pelo Licenciado Duarte

Nunes de Leão (Porto 1975), M. Lopes de Almeida comenta (p. XXXI): «O inventário completo e a análise comparativa das fontes das Crónicas dos Reis, mesmo quando não fossem exaustivos, pediam um estudo particularizado, que mostrasse a aptidão selectiva e crítica do escritor, a marca funda-mental da sua cultura e preparação geral. Até que ponto se apoderou e valeu das crónicas antigas portuguesas ou castelhanas?»

8 Sobre a aposentadoria, condenada implicitamente por Fernão Lopes na Crónica de D. João I, veja--se José Hermano Saraiva, «A Revolução de Fernão Lopes», in Outras Maneiras de Ver (Lisboa 1979) cit. por João Gouveia Monteiro, Fernão Lopes. Texto e Contexto (Coimbra 1988), p. 139, nota 22. Este último autor sustenta a tese de que o nosso primeiro historiador defende indirectamente a actuação política do Regente, ao reconstituir o tempo de D. João I.

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A razão, como se vê, é outra, embora o autor das Vidas Paralelas e dos Moralia tivesse começado a ser um dos grandes educadores da Europa, como se lhe tem chamado, já na Idade Média latina, e circulassem versões em aragonês e em tos-cano de obras suas desde o final do séc. XIV9.

Mais próxima estaria a razão invocada por Tibério, quando quiseram erigir-lhe um templo na Hispania Vlterior, pois, escreve Tácito, «o que importa é que digam que desempenhou bem o seu lugar, se não desprezá-lo-ão como um sepulcro» (Anais IV.38-39)10. Mas os seis primeiros livros dos Anais apenas se conservaram num manuscrito copiado em meados do séc. IX na Alemanha e só foram difundi-dos a partir de começos do séc. XVI. Portanto, a simples história da transmissão do texto invalida a hipótese11. De qualquer modo, o segundo dos imperadores romanos estava longe de ser um paradigma moral...

Outro exemplo conhecido surge em Valério Máximo IV.1.6, e esse diz respeito a uma grande figura da Antiguidade, Cipião-o-Africano. Também a ele quiseram os seus contemporâneos erigir estátuas em todos os lugares principais de Roma; por último, até na cella do templo de Júpiter Óptimo Máximo. Mas esta e muitas outras manifestações de admiração, todas ele recusou, de tal modo que «quase se esforçou tanto a recusar honrarias como o fizera a merecê-las».

Se houve autor menor lido e mesmo traduzido no séc. XV, foi este: vinte edi-ções, só nos alvores da imprensa. Mas antes disso fora muitas vezes copiado e a corte de Avis conhecia-o bem: é citado na Virtuosa Benfeitoria, no Leal Conselheiro, na Tragedia de la Insigne Reina Dona Isabel, nas Crónicas de Zurara. Na biblioteca de D. Duarte havia um exemplar em latim, outro «per aragões».

Porém, o que ressalta das palavras do Regente não é simplesmente a modéstia dos grandes homens, a quem importa só cumprir o seu dever, não vê-lo reconhe-cido. É antes a consciência da inconstância da gratidão humana, visualizada até ao pormenor: «vossos fylhos a derrybaryam, e com as pedras lhe quebrariam os olhos». Falava o mesmo príncipe que jurara que «os que bem e dereitamente vivessem, esperassem delle em nome d’El Rey seu Senhor, bem e mercêe, e assy pena e castygo aos que o contrairo fizessem»12. São estes os dois grandes tópicos

9 Cf. D. A. Russell, Plutarch (London 1973), p. 147. Plutarco (Alexandre 72; cf. Moralia 335e) refere ainda a proposta que um arquitecto fez ao famoso general de transformar o Monte Atos da Trácia na sua estátua gigante, o que ele não aceitou. A mesma história é mencionada com variantes em Vitrúvio (De architectura II, praef.), Estrabão (XIV.641) e Luciano (Quomodo historia conscribenda sit 12 e Pro imaginibus 9).

10 Devo a localização deste passo ao Dr. Carlos Alberto Louro Fonseca.11 Sobre a transmissão dos Anais, vide L. D. Reynolds, ed., Texts and Transmission. A Survey of the

Latin Classics (Oxford 1983), s.v. A versão de Suetónio, Tibério 26 é um pouco diferente: «Permitiu-o só com a condição de não serem colocadas entre as estátuas dos deuses, mas entre os ornamentos dos templos».

12 Rui de Pina, Crónica do Senhor Rey D. Affonso V, cap. XLIX.

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– justiça e ingratidão – que vão impressionar dois poetas vindouros, em épocas, aliás, bem diferenciadas.

Desses, o primeiro é Correia Garção, que compôs um poema de setenta e qua-tro decassílabos, em verso branco, intitulado «Fala do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, aos Portugueses, querendo-lhe levantar uma estátua pelo seu bom governo, o que elle não consentiu».

Formalmente distinta de todas as outras obras do Horácio português, contém, no entanto, numerosos preceitos comuns às Odes, designadamente o culto da Virtude, a quem são dedicadas explicitamente as Odes IV e V e, implicitamente, as Odes XXXIX e XL13. Ora, essa virtude é aqui, por excelência, a Justiça, a qual deve ser inseparável do poder (vv. 11-14). Porque quem o exerce tem de ser modelo, que brilhe como o Sol. Tem de premiar a virtude e castigar os vícios. Mas, por tal fazer, não há que o recompensar (vv. 25-32):

E não queirais, Vassalos generosos,Lisonjeiros tentar minha constância,Honrosa estátua pertendendo erguer-mePorque bem vos regi; pois eu não devoCondescender convosco; infamariaDa alta virtude as máximas constantesCom que austero emprendí do régio TronoO acesso defender aos vícios torpes.

Seguem-se os erros a proscrever: a Mentira, a Lisonja, o Engano, a Vanglória. Contra a Lisonja e a Vanglória são desferidas as sentenças seguintes. É este ponto que nos conduz a uma verdadeira glosa do texto quatrocentista (vv. 44-53)14:

Vós mesmos, vossos filhos, vossos netos,De tão clara doutrina convencidos,Ou do tempo melhor aconselhados,A mesma estátua que quereis atentos,Agradecidos, hoje levantar-me,Amanhã se veria derribada

13 As duas últimas, publicadas pela primeira vez por António José Saraiva, na sua edição das Obras Completas de Correia Garção (Lisboa 1957), 2 vols., cujo texto seguiremos.

14 Estes dez versos faltam, segundo António José Saraiva, no MS. FG 8609 da Biblioteca Nacional de Lisboa. Mas figuram também no MS. 392 Manizola da Biblioteca Pública de Évora, quase sem variantes.

Agradeço a localização deste segundo códice aos Doutores Aníbal Pinto de Castro e Vítor Manuel de Aguiar e Silva, o que me permitiu consultá-lo. Efectivamente, à data em que fez a edição do nosso poeta, António José Saraiva dera-o como de paradeiro desconhecido (Vol. I, p. LIV, n.° 3).

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Em pedaços jazer, com paus e pedrasOs olhos lhe tirarem; que a FortunaLigada co’ a Inveja e co’ a SoberbaNão deixa durar muito os elogios.

O Duque pretende apenas que se mantenha a lembrança do seu nome, que perdure a memória da sua justiça e o reino se conserve em prosperidade e paz. As suas últimas palavras, essas, parecem uma amplificação do que ouvimos contar a Valério Máximo sobre Cipião-o-Africano (vv. 68-70):

Mas haja quem se lembre deste caso,E quem diga que rejeitei modestoAs honras de uma estátua; e que estas honrasQuem chega com justiça a merecê-las,Também sabe atrever-se a desprezá-las.

A «Fala» propriamente dita termina aqui. Os quatro versos restantes descre-vem a reacção silenciosa, admirativa, dos presentes. Fazem-no de uma maneira que quase sugere o processo clássico da metamorfose. E dizemos «quase» porque, se a metamorfose de seres humanos em pedra se encontra na mitologia grega, ou em histórias primitivas de máscaras de olhar terrível (Górgona-Medusa), ou como castigo da insolência para com os deuses (Níobe petrificada no Monte Sípilo), nenhum destes exemplos convinha a esta situação, que, para além de ser dada como histórica, é de surpresa e admiração. É isso que confere temporariamente aos ouvintes a imobilidade das estátuas (vv. 71-74):

Acabou de falar, e os circunstantes,Imóveis e calados, pareciamOutras tantas estátuas dedicadasÀ regência feliz do sábio Infante.

Mas, com esta breve análise, o interesse do poema fica longe de estar esgo-tado. É que ele tem toda uma história por trás: aquela que, segundo uma tra-dição conservada na família do poeta, via na escolha deste tema uma censura velada à dedicação da estátua de D. José, a qual teria sido a causa do misterioso encarceramento do autor até à morte. Seria, por conseguinte, «um documento de oposição ao governo pombalino», na frase de António José Saraiva15. O mesmo professor recorda os dois argumentos principais em contrário: a nota à margem do manuscrito setecentista do Cónego Manuel de Figueiredo, que atribui ao poema

15  A discussão deste assunto figura no prefácio da edição citada, Vol. I, pp. XXV-XXVII.

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18711. A ESTÁTUA DO INFANTE D. PEDRO: DE RUI DE PINA A MANUEL ALEGRE

a data de 1754 e afirma ter sido lido na Academia dos Ocultos; e a existência de uma ode e uma epístola de Garção que celebram o futuro Marquês de Pombal nos mais encomiásticos termos.

A primeira objecção resulta de uma incompatibilidade de datas, uma vez que a Academia dos Ocultos terminou com o Terramoto e o projecto da famosa estátua equestre data de 1770, ao passo que a sua inauguração, festejada com uma grande manifestação pública e consagrada em odes e epigramas em português e em latim, se realizou em 177516; a segunda será explicável pela necessidade de compor um poema de circunstância para a sessão de homenagem da Arcádia à elevação de Carvalho e Melo a Conde de Oeiras17 (poema esse em que, aliás, A. J. Saraiva dis-tingue, nalguns versos, «uma oposição particular e secreta», a relacionar com o facto de o poeta contar entre os seus amigos outros perseguidos pelo Marquês, como o Conde de S. Lourenço e a família Alorna). Poderemos recordar ainda que a Epístola parece ter-se destinado a solicitar um favor ao seu destinatário. Mas, por outro lado, não deixa de ser estranho que o poeta da «Fala de D. Pedro» tenha, em 1759, ao celebrar na Arcádia a concessão do título de Conde de Oeiras numa extensa ode pindárica, incluído nela uma estrofe (vv. 139-146) em que se contém a sugestão de «uma soberba estátua / de rico jaspe, como tu mereces», e, talvez não muito antes disso, na extensíssima Epistola IV18, fizesse perpassar, também, no meio de uma enumeração dos mais conhecidos actos governativos do Ministro de D. José, a sugestão das honras de uma estátua (vv. 189-191):

Que versos ou que mármores, que estátuasContar-lhe poderão as leis sagradas

Com que os vícios domaste? ......................

A ser verídica a anotação autógrafa do Cónego Manuel de Figueiredo, teríamos de admitir que o poeta mudou radicalmente de opinião naqueles escassos cinco anos, quanto à relação entre lisonja e estadistas vivos. De qualquer modo, só

16 Exemplos desse fervor poético (que, de resto, a obra-prima de Machado de Castro bem merecia) são a Ode III de António Dinis da Cruz e Silva e quatro epigramas latinos de Elpino Duriense (Poesias, Vol. III, pp. 210-211), além de uma alusão numa Ode (II, 9-10). A este conjunto podemos juntar outro grupo De Equestri Regis Iosephi I Statua Epigrammata, contidos no MS. 1-54 da Biblioteca Pública de Évora. Quanto às cerimónias da inauguração, observa José-Augusto França, A Arte em Portugal no Séc. XIX (Lisboa 1966), Vol. II, p. 204, que foram as grandes manifestações públicas em Lisboa anteriormente ao tricentenário de Camões  (apud Antonio Filipe Pimentel, «O cortejo cívico das comemorações camonianas de 1880» in Romantismo – Figuras e Factos da Época de D. Fernando II (Sintra 1988), p. 281). Reis Quita dedicou o Soneto IV só ao busto do Marquês. A outra face da medalha pode ver-se na antologia organizada por Alberto Pimenta, Musa Anti-Pombalina (Lisboa 1982), Sonetos 115 e 116.

17 Sobre a data a atribuir-lhe, vide op. cit., Vol. I, pp. 209-210 nota 1.18  Vejam-se outros exemplos no nosso livro Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa

(Lisboa 1988), pp. 172-173.

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podemos repetir com A. J. Saraiva, que «a hipótese de que tenha razões políticas o encarceramento de Garção não é portanto desprovida de verosimilhança. Mas nada mais se pode adiantar»19. Não deixa, porém, de ser interessante que a uma obra-prima da escultura portuguesa ande associado um poema de Correia Garção, que terá ido buscar este exemplum histórico de uma figura que cedo entrara na lenda como um modelo de governante perfeito e justo, a quem o favor dos homens fora adverso.

O episódio da recusa da estátua pode ver-se também, de passagem, em alguns dos dramas sobre a vida do Infante D. Pedro: é o caso do mais célebre, O Regente de Marcelino de Mesquita, e ainda da peça de Henrique José de Castro, O Duque de Coimbra, e da de Francisco Manuel Trindade, O Pajem de Alfarrobeira, ambas anteriores àquela20. O historiador Oliveira Martins também lhe faz referência21.

Mas não é desses pequenos ecos da questão que vamos agora ocupar-nos. Pelo contrário, vamos avançar mais de duzentos anos sobre o poema de Correia Garção, para chegarmos a 1981, data em que Manuel Alegre publicou Atlântico, aquele que João de Melo considerou «livro central de toda a sua obra», pois, continua o mesmo crítico, «capta esse universo sombrio e empresta-lhe o sopro de uma energia que atinge a transparência e a luz de uma autêntica contra-epopeia lusitana»22.

Estamos agora perante um poeta que, como Correia Garção, conheceu as agru-ras do cativeiro, embora, muito ao invés do árcade setecentista, tenha gozado o momento da vitória das ideias por que lutara e sofrera. Um poeta que conhece e medita os textos antigos e que exprime, através desse reviver de histórias emble-máticas, contadas muitas vezes com um ritmo encantatório (caso especial de «Nova do Achamento») ou em dois níveis narrativos (caso de «Crónica de Abril segundo Fernão Lopes»), exprime, dizíamos, a tensão entre a linha pura de um passado temperado em altos princípios de ética e um presente de valores oscilantes, que precisa de se resgatar. Porque, como escreve no poema «Esquerda como canção»23:

Dizer teu nome Álvaro Vaz de Almadaque é preciso viver de vida inteirae a esquerda a que pertenço é uma espadaapontada à vergonha em Alfarrobeira.

19 Op. cit., Vol. I, p. XXVIII.20 Dados colhidos no artigo de José Pereira Tavares, «O Infante D. Pedro, Duque de Coimbra e

Senhor de Aveiro na Literatura», Arquivo do Distrito de Aveiro 122 (1965), p. 151 e nota 1.21 Fazendo uma comparação, que não nos parece feliz, do Regente com Hamlet (Os Filhos de D. João

I [Lisboa 61936] p. 501). Melhor viram, em nosso entender, quer o Condestável D. Pedro (na Tragédia de la insigne Reina D. Isabel), quer Vasco Fernandes de Lucena (no prólogo à sua tradução da oração do Deão de Vergy), que o equipararam às figuras das antigas tragédias.

22 Na apresentação do Vol. I das Obras do poeta, O Canto e as Armas (Lisboa 1989), p. 18.23 Vol. II, p. 124.

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18911. A ESTÁTUA DO INFANTE D. PEDRO: DE RUI DE PINA A MANUEL ALEGRE

É tudo isto que enforma os seis poemas que constituem o «Romance de amor e morte do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra». Destas composições, a primeira é uma balada assente no Livro das Sete Partidas de Gomes de Santo Estêvão, ao passo que a terceira, quarta e quinta têm epígrafes alógrafas tiradas do próprio texto de Rui de Pina.

Todo o conjunto forma um verdadeiro políptico, em que o poema que mais nos interessa neste momento, «A Estátua», ocupa um lugar central.

Formalmente, temos dezassete decassílabos rimados que glosam, na aparência, a narrativa de Rui de Pina. Lá está a recusa da estátua em pedra na porta dos Estaus; o motivo do futuro e previsível quebrar da estátua pela geração seguinte; ecos verbais que remetem para diferentes passos da crónica medieval, como ‘galardão’ e ‘vilanagem’ (e não esqueçamos como são frequentes as intertextualidades em Manuel Alegre)24. Também ressoa aqui a segunda profecia atribuída ao Regente (a da interpretação da divisa da Cidade de Coimbra), na lembrança do sangue que será seu galardão. O poema ergue-se, porém, a partir destes dados, a motivações mais altas – a inteireza do seu ser, que há-de resistir muito para além da dureza do material da estátua:

Por isso estátuas não: que sou de carnee nunca em pedra hão-de poder quebrar-me.

A força da pedra é assim transferida para a da integridade moral do Duque de Coimbra, e essa transferência como que vai explodir no vigor quase onomatopaico dos grupos consonânticos do último verso acabado de ler.

Tal como em Correia Garção, o poema termina numa coda. Mas agora ela não é constituída pela reacção dos circunstantes, numa quase metamorfose à maneira clássica, conforme vimos atrás. É num só verso que se completa a fala, sugerindo um outro tipo de metamorfose, em que, paradoxalmente, vai substituir-se o modelo de uma vida, por natureza frágil e votada à destruição, à aparente perenidade de uma estátua. Este contraste, já preludiado nos versos anteriores («sou estátua de mim mesmo» e «meu corpo inteiro às mãos da vilanagem/ pode cair; mas nunca a minha imagem») concentra aqui toda a sua força:

Eu deixarei por estátua a minha vida.

Rui de Pina, Correia Garção, Manuel Alegre – três mentalidades tão diversas, como diversas foram as circunstâncias epocais que os moldaram –, embora com referentes comuns, por se inscreverem todos eles em período de crise de valores, trabalham o mesmo tema – histórico ou não – da recusa da estátua pelo Infante

24 Cf. João de Melo, cit., p. 21.

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D. Pedro. Coloca-se a primeira narrativa num contexto de presságios, que são afi-nal uma forma de tornar bem clara a experiência que o Regente, o culto, viajado e meditativo Regente, tinha colhido da fraqueza, versatilidade e ingratidão do ser humano em geral. É a segunda principalmente uma apologia da Justiça e das qualidades do bom governante. O poema de Manuel Alegre – tanto quanto é lícito desinseri-lo do conjunto a que pertence – está construído sobre uma afirmação de grandeza moral que se perfila, inatingível e invulnerável, acima da «inveja fingimento ingratidão» em que ele se sente envolvido. Todo o «Romance» vai ter, de resto, este leit-motiv, até culminar com o poema final, «Alfarrobeira», onde novamente, no meio de uma série de versos em enjambement, que sugerem a pre-cipitação do desfecho iminente, se ouve retumbar um dos motivos de «A Estátua»:

................ De Coimbra a Santarémcom D. Pedro passar a morte a vaucair em Alfarrobeira como quemfica de pé no cimo da grandeza.

Os versos finais deste poema são uma exortação para servir no futuro. Algo que podia estar no hipotexto de Garção, se na verdade ele se relaciona com a resistência ao despotismo e suas manifestações externas. Mas que, aqui, ressoa alto como um clarim.

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12. «SONETOS DO OBSCURO QUÊ»*1

Há muito que ele espreitava entre os poemas de Manuel Alegre: a forma lírica por excelência, o soneto. E também a sombra de Dante começava a ocupar um lugar de eleição entre outros nomes tutelares da poesia ocidental, desde os gregos e latinos a franceses, ingleses, americanos, espanhóis, enfim, a toda uma constelação sobre a qual o tempo não pousa as suas mãos pesadas. Se, em Praça da Canção, existe apenas um isolado soneto de intervenção («É preciso saber por que se é triste»), em O Canto e as Armas o seu número sobe para oito, sendo todos, com excepção da magnífica glosa camoniana «Aquela clara madrugada que», de reflexão ou exortação política, desde os aparentes «Sonetos de Ulisses», onde a amada é, como em Paul Éluard, a liberdade, até aos «Três sonetos com armas para toda a gente».

Ausentes dos dois livros de poemas a seguir publicados, os sonetos voltam em igual número em Coisa Amar (com destaque para os quatro, à moda de epitáfio, sobre Miguel Corte-Real). Voltam, sobretudo, na colectânea Atlântico, atravessada pelos onze sonetos do «Português Errante», que vão cerzindo as lições das crónicas com a experiência do presente. Dos sete livros posteriormente editados desaparece esta forma, excepto do último, Vinte Poemas para Camões. Mas entretanto surgira Dante: «In mezzo del camin», se intitula a segunda parte de Babilónia, e na quinta, ele é interpelado directamente. Depois, em Chegar Aqui, uma das epígrafes alógrafas é tirada do Inferno, e nessa obra perpassam as alusões ao poeta, à terzza rima, ao círculo dos condenados (com tradução de Inferno XIV.13).

Os dois – o modelo e a forma – vão confluir no presente livro. Poderá perguntar--se porquê, tendo em conta quanto ao aspecto métrico, que Manuel Alegre, embora use a canção, os decassílabos, a sextina, tem privilegiado a quintilha, a quadra, o romance, a trova («Em trovador me tomei. / Se a voz do povo me chama / eu com ele cantarei.» – como diz em O Canto e as Armas).

*1 Publicado em Jornal de Letras 600 (4-10.1.1994), 14-16.

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Poder-se-á lembrar que uma das teses mais conhecidas sobre a origem do soneto lhe aponta também origem popular, resultante da fusão de dois estram-botos sicilianos, um de oito, outro de seis versos. Mas este esquema versificatório teria sido em breve reelaborado por poetas maiores: Cavalcanti, Dante e, sobre-tudo, Petrarca. É consagrado principalmente à expressão do amor e à reflexão. A sua melodia própria (e não é mesmo a noção de «melodia» que está no étimo da designação?) exige um domínio da forma e dos sons que poucos possuem; e bem assim a concentração num conceito final, que surge como uma conclusão natural, ou então como uma farpa aguda, a apontar noutra direcção. Ora todas estas capacidades estavam presentes há muito na arte deste poeta.

E havia mais. Dante, que compôs, em La Vita Nuova e em Rime o Canzoniere, alguns dos mais belos sonetos da lírica italiana, teve no seu tempo uma activa participa-ção política, que lhe valeu uma vida errante e levou para longe «di quella nobil patria» (Inferno X.26). Às afinidades daqui decorrentes vem juntar-se outra que está na essência deste novo livro: a ansiedade ante a fragmentação que ameaça a «soberba Europa belicosa», justamente numa fase da sua longa história em que as aparências decorrentes de actos públicos que deveriam ter um alcance sem precedentes proclamam a união. Era essa a posição de Dante perante as lutas que dividiam a Itália que ele sonhava unificar. Por isso, não é por acaso que nesta obra de Manuel Alegre o trovador Sordello aparece mencionado no «Soneto 2», numa réplica ao v. 74 de Purgatorio VI, precisamente com uma parte da frase que precede a apóstrofe do poeta à Itália dilacerada da época. No mesmo sentido da identificação vai o verso do «Soneto 3»: «Todos somos exilados de Florença».

O livro abrira da sob a égide de uma epígrafe dantesca da Vita Nuova, anuncia-dora da forma escolhida: «l’arte del dire parole per rime», que vai ser o soneto. Esta é a forma disciplinada, ordenada, da grande tradição europeia, que se oporá, no «Soneto 4», qual vento de Pentecostes, à Babel e Nemrod da segunda composição (e note-se a simetria da colocação destes topoi):

Contra a grande desordem o soneto A Provença a Toscana o Trecento O vento lexical o paracleto Dicionário de rimas doce vento.

Contra as trevas e o caos eu te convido Convoco o três e os múltiplos de três O Sordello de Mântua Arnaud e Guido.

Cada uma das dez partes em que se divide o livro terá, além disso, a sua epígrafe dantesca, tirada, ora de Vita Nuova, ora da Divina Comédia. Apenas se exceptua, ocupando quase o centro (na parte VI), uma citação das Rimas, de Cavalcanti,

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19312. «SONETOS DO OBSCURO QUÊ»

extraída do começo da mais famosa das suas baladas, a que compôs ao sair de Florença sem esperança de regresso (que, de resto, acabou por se consumar mais tarde, devido à doença do poeta). Deixando de parte a vexata quaestio da partici-pação de Dante, aliás seu grande amigo e admirador, na ordem de exílio imposta pelos priores da cidade do Arno, salientemos apenas que este é outro poeta do exílio. Como ele, Manuel Alegre canta feitos e figuras contemporâneas suas (os dois sonetos anteriores exaltam a mensagem de Maio de 68 e a de Che Guevara), culminando na evocação aos «camaradas dos campos de batalha/ as armas e as guitarras destroçadas». Por isso o último terceto dessa última peça do grupo clama, apoiando-se na polissemia de «barbarismo», que tanto é o da linguagem como o da guerra:

Venha o oiro de um vinho de Chianti e contra o barbarismo bem contadas as sílabas de Guido Cavalcanti.

Voltemos, porém, ao começo do livro, ou seja, aos «Cinco sonetos da selva escura», que, abrindo com uma ténue intertextualidade camoniana, logo desfeita («Transforma-se a serpente em consoante»), põe na nossa frente «Europa do avesso sarça ardente». Os elementos da linguagem continuarão a ser personificados na quadra seguinte, iniciada sob o signo da desagregação, através do uso do mito virgiliano e dantesco de Cérbero: «três cabeças irrompem do fonema». O soneto começava com a fala do autor com Dante, mas é ainda uma outra figura, a de Ber-trand de Born, o trovador limosino do século XII-XIII, campeão da liberdade, que vem identificar-se com ele. As palavras-chave desta parte do livro — a harmonia e a rosa, símbolos de um mundo melhor — fecham a composição:

dai-me a harmonia e a rosa que não há.

Dissemos palavras-chave, porque elas vão reaparecer, com leve modificação, como um leitmotiv, nos dois sonetos seguintes, embora em posições diversas — no meio do n.º 2 e no final do n.º 3:

dai-me de novo a rosa e a harmonia.

Falámos há pouco de simetria. Essa completa-se com o soneto quinto. À fala de Dante com o trovador no terceiro verso do soneto 1, vai corresponder a apóstrofe do verso correspondente do soneto 5:

Vem ver ó Dante o século no fim ajuda-me a romper o ciclo e o cerco.

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A aliteração deste último verso, que remete para os círculos do Inferno, após um requisitório aos crimes do homem moderno e às suas ousadias, vai regressar na penúltima linha, para fechar com o mote dantesco inicialmente memorado:

Ajuda-me a romper o cerco e o ciclo. Na selva escura. In mezzo del camin.

Se neste primeiro conjunto de poemas já perpassavam o átomo e a navegação espacial, no segundo, colocado sob a égide dos versos 71-72 do Canto I do Purga-tório, referentes à liberdade, é uma parte do panorama politico deste século que é evocada, quer no construir e desmoronar do sonho igualitário soviético («O grande ziguezague») quer no destino amargo da Polónia («Cargas polacas»). Os sonetos em honra dos que tiveram grande intervenção política ou mesmo dela foram vítimas (Salvatore Quasímodo, Lorca, Jean Moulin, no bíblico «A Lira nos Salgueiros»; René Char em «Resistência») alternam com aquelas duas composi-ções, como se formassem uma rima cruzada, neste livro em que nada parece ter sido deixado ao acaso.

Encimado por um terceto do Canto XXVI do Purgatorio (112-114), em que Dante explica ao poeta Guido Guinizelli a razão por que lhe mostra tanto afecto vem, naturalmente, uma terceira parte com cinco eleitos: Rilke, Ezra Pound, Lorca, João Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa.

Retratar em verso a arte e o percurso biográfico de um grande autor — neste caso, todos da modernidade — é uma prática frequente. Os três últimos, por exem-plo, inspiraram já outros poemas portugueses (lembre-se sobretudo a «Saudação a João Cabral de Melo Neto», Alexandre O’Neill e «Túmulo de Lorca» e «Em Hydra, evocando Fernando Pessoa», ambos de Sophia de Mello Breyner, ou ainda «Pessoa Revisited», de Rui Knopfli). Mas, se, no caso presente, todos conseguem, com rara felicidade e não menor diversidade de meios estilísticos, desenhar o perfil de cada um, daríamos especial destaque ao de Rainer Maria Rilke, pela maneira como logrou captar a essência da poesia daquele que, como se lê na «chave de ouro», é «o que diz o indizível».

Poetas passam também no meio das acrobacias verbais dos sonetos da quarta parte, em que não vamos deter-nos. É que logo a seguir, tal como no Canto XI do Purgatorio, vão chegar também pintores: Uccello, Botticelli e o grupo constante de Cézanne, Picasso e Modigliani. Se, como se tem repetido desde Simónides, a pintura é uma poesia muda e a poesia uma pintura falante, «Os Cavalos de Uccello» são disso um exemplo excelente, com o seu virtuosismo quase alucinante. O pintor que passou a vida a estudar a perspectiva teria certamente ouvido com infindável deleite como os traços do seu pincel se transmudaram no ritmo frenético que percorre todo o soneto.

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19512. «SONETOS DO OBSCURO QUÊ»

Se fosse preciso dar um exemplo da versatilidade estilística de Manuel Alegre, talvez escolhêssemos os «Sonetos de Amor» da sétima parte, que variam entre os jogos verbais do primeiro, o maneirismo do segundo e o ímpeto do terceiro, no qual marcam presença reminiscências literárias de amores toscanos (Beatriz), portugueses (Mariana, Teresa, Florbela), a caminho do terceto final, que culmina num oximoro, novamente com ressonâncias de Paul Éluard:

ela só me cativa e é liberdade.

Principiando com o enigmático verso que Plutão profere, em tom ameaçador, à entrada do Canto VII do Inferno, a VIII parte mergulha num ambiente de terror, de confusão, que o próprio enunciado, feito dos temores do nosso tempo, que irrompem do meio da enumeração caótica e do tumulto das assonâncias, sugere. E, neste mundo assim pervertido:

– já não há Virgílio para guiar-me a um reino de harmonia. Por isso o meu cantar é outro exílio.

O terceiro soneto da série ecoa o do início do livro. A «Europa do Avesso» é agora a «inversa carta mapa do avesso». E, ao anterior «desagrega-se a rosa e a semântica» responde o verso «desagrega-se o mapa e o alfabeto». Também ele termina num apelo urgente:

quem traz canção quem traz a letra e o som?

Espécie de poética do soneto, passando mais uma vez sob a sombra de Dante e seguindo O’Neill com mestria no seu difícil e famoso exercício dos «Quatorze Versos», em «Soneto do Soneto», e formando um não menos hábil contraste entre os homeoteleutos em catadupa das duas quadras de «Eloquentia» e a acalmia final do último terceto, a lembrar os preceitos do tratado do Florentino:

Mas como na Eloquentia se dizia as palavras com «ritmo e harmonia» as «ásperas» e as «doces» misturadas

a nona série vai culminar com uma composição que é indirectamente mais um, e não dos menos belos, elogios da Língua Portuguesa, aquela que Afonso Lopes Vieira dissera estar habituado a falar ao mar e aos ventos. E mais uma vez perpassam neste poeta embebido de camonismo, trechos de Os Lusíadas, que o próprio nome do nosso poeta máximo vem convocar.

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Sabem todos os leitores da Divina Comédia que as suas três partes terminam com a palavra stelle, que no Florentino é metonímia do céu e da sua felicidade inalterável, a que o autor aspira. Tem, portanto, como afirmam os comentadores, um valor premonitório e ao mesmo tempo augural. Não é, porém, esse o papel emblemático que assumem aqui as estrelas. Elas funcionam como o símbolo da meta principal das viagens espaciais, da tentativa de desvendar as origens e os limites do Cosmos, velha questão que os primeiros filósofos gregos equacionaram no seu espírito e no seu ensino e que a moderna astronáutica pretende resolver com os nunca sonhados meios técnicos de que dispõe.

Mas este e muitos outros progressos da ciência não despertam no poeta o calor do entusiasmo que no chamado Século das Luzes percorre tantas obras de vates setecentistas, extasiados com os progressos do Homem. É que este saber não é gerador de esperança, mas de ansiedade. E esta ansiedade, que começara por se manifestar ante a desagregação de povos e nações, está agora confrontada com o «Obscuro quê» que dá o nome ao livro e ao seu penúltimo soneto. Por isso, um advérbio de dúvida («mas cuidado com os advérbios», lia-se na página anterior) é tudo quanto resta da esperança para religar de novo o desalento presente ao luminoso verso de Dante:

Talvez o nunca dantes desvendado em outras naves e outras caravelas «a caminho do sol e das estrelas».

Estas são algumas das várias leituras possíveis que um notável livro de poesia nos pode oferecer. Mas uma obra de verdadeira arte tem sempre muitas mais, que não caberiam numa simples apresentação. Quem o ler julgará por si, na certeza de que, para além da sedução dos ritmos e da forma, encontrará sempre por trás um espírito empenhado nos grandes problemas do nosso tempo, alguém que sente e reflecte e nos convida a meditar sobre o destino do homem e, em ligação com ele, sobre o destino e a missão da poesia.

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III. CAMONIANA VARIA

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(Página deixada propositadamente em branco)

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1. PRESENÇAS FEMININAS NA ÉPOCA DOS DESCOBRIMENTOS*

À medida que, na epopeia camoniana, se aproxima a hora de a frota de Vasco da Gama se afastar «daqueles pátrios montes», para encetar a viagem que, por ter feito a ligação do Ocidente com o Oriente, Toynbee havia de chamar a grande linha divisória da história da humanidade, destacam-se na praia figuras de desespero e de censura que erguem as suas vozes. Da segunda, a que se ouve após a partida, todos se lembram, porque o Velho do Restelo constitui um dos epifonemas mais brilhantes de Os Lusíadas, comparável aos coros das tragédias gregas1.

Antes, porém, haviam falado figuras femininas arquetípicas, a mãe e a esposa2:

Qual vai dizendo: ó filho, a quem eu tinha Só para refrigério e doce amparo Desta cansada já velhice minha, Que em choro acabará, penoso e amaro,

* Publicado em Oceanos 21 (1995), 65-70.1 Desde Wilhelm Storck, seguido por Epifânio e outros. F. Rebelo Gonçalves, na sua exaustiva

análise de «A Fala do Velho Restelo», incluída nas suas Dissertações Camonianas (São Paulo, 1937), pp. 91-177, cita, a propósito, uma frase feliz de Afrânio Peixoto, Camões e o Brasil, p. 201: «O Velho do Restelo, por si só, é como um coro de tragédia antiga, que fala à razão, com o bom senso popular, com a experiência da idade, e também para não ser ouvido, ou atendido».

2  IV. 90-91. Sobre as fontes clássicas destas duas falas, para além das conjecturas desmesuradas de Faria de Sousa, ver Rebelo Gonçalo, Dissertações Camonianas, pp. 114-122. Pouco importa, de resto, ao nosso propósito, que haja reminiscências quase contínuas de Virgílio e de Ovídio na estrofe 90.  A cena da partida das naus de Vasco da Gama aparece em outros autores do século XVI, como João de Barros, Décadas IV.2 («lançar juízos segundo o que cada um sentia daquela partida»), Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, I, 2, e Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Parte I, cap. 24. Mas só em D. Jerónimo Osório, De Rebus Emanuelis Gestis, Livro I, se faz ouvir «a fala de muitos», mais próxima, aliás, conquanto muito mais breve, da do Velho do Restelo.

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Porque me deixas, mísera e mesquinha? Porque de mim te vás, ó filho caro, A fazer o funéreo enterramento Onde sejas de peixes mantimento?

Qual em cabelo: ó doce e amado esposo, Sem quem não quis Amor que viver possa, Porque is aventurar ao mar iroso Essa vida que é minha e não é vossa? Como, por um caminho duvidoso, Vos esquece a afeição tão doce nossa? Nosso amor, nosso vão contentamento Quereis que com as velas leve o vento?

Este é o retrato das mulheres anónimas que sofrem com os Descobrimentos, com nobreza e sem esperança. Haverá também as que atraiçoam quem partiu – é o reverso da medalha, de que Gil Vicente dá um exemplo típico no Auto da Índia. Não podemos quantificar um nem outro modelo. Mas a segunda destas situações ainda se adivinha como vulgar um século depois, numa conhecida historieta da Carta de Guia de Casados: à mulher que se vai confessar e que declara ter marido na Índia e saber latim, o padre manda que o procure em dia em que esteja mais desocupado3.

Convergem aqui dois motivos: a potencial infidelidade da esposa deixada só por muito tempo e os supostamente perniciosos efeitos da educação feminina. O primeiro vem na linha do exemplo que vimos há pouco. O outro assenta num preconceito que no século anterior fora ultrapassado4. Referimo-nos às mulheres

3  Carta XXIII.  «Tende mão, filha:  sabeis  latim,  criastes-vos  em mosteiro,  tendes marido na Índia? Ora ide-vos embora, e vinde cá outro dia, que vos é força que tragais muito que dizer, e eu estou hoje com muita pressa». Algumas linhas atrás, D. Francisco Manuel de Melo tivera, ao menos, a inteligência de reconhecer: «o ponto está em que o latim não é o que dana; mas o que consigo traz de outros saberetes envolto aquele saber».

4 Talvez possamos encontrar os primeiros exemplos, no território que havia de ser Portugal, ainda no século X. Um é o célebre testamento que Mumadona fez das suas vilas ao Mosteiro de Guimarães onde figura uma biblioteca latina de vinte «libros eclesiasticos e alios spirituales», a maioria próprios do culto, mas também os Moralia in Job de S. Gregório Magno e as Etymologiae de Santo Isidoro de Sevilha. A dúvida está em saber em que medida a doadora tinha conhecimento destas obras. Outro exemplo figura na contemporânea Vita Sanctae Senorinae, a aceitarmos a versão dos Acta Sanctorum, quando diz exacte martyrum acta legebat, onde a tradução portuguesa, talvez do século XIV, escreve que eram lidas «perante si per linguagem». Se seguirmos este texto, teremos de recuar cerca de duzentos anos os primórdios da língua portuguesa escrita. Para mais pormenores, veja-se o nosso artigo «As biografias medievais de Santa Senhorinha», in Actas do 1º Ciclo de Conferências S. Rosendo e o século X, Santo Tirso 1992, pp. 127-137. Os exemplos de alfabetização feminina vêm, como é sabido, da tradição monacal. Margaret L. King, A Mulher do Renascimento, (trad. port.: Lisboa, 1994), pp. 184-185,

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doutas, ou, como frequentemente se dizia então, às mulheres latinas. Já não são, portanto, as que ficaram na praia ou nas casas, mas as que, no claustro ou no paço, difundiam o saber em sua volta.

«Mulheres latinas» eram, com efeito, desde os primórdios do Humanismo, predominantemente as aristocratas, muitas delas princesas ou até mesmo rai-nhas, patronas das artes e letras, que atraíam à sua corte poetas e eruditos, e com eles se carteavam. Sucedia isto na Itália, pátria do Humanismo, onde a paduana Maddalena Scrovegni é a primeira a brilhar, ainda no século XVI. Muitas se lhe seguem, nesse e noutros países.

No nosso, era costume situar este florescimento da cultura no feminino na corte da infanta D. Maria. Nos últimos decénios, porém, os estudos de A. Costa Ramalho5 têm vindo provar que tal fenómeno pode recuar pelo menos meio século, até ao tempo de D. João II. Efectivamente, os trabalhos desse professor vieram datar a entrada do Humanismo em Portugal de 1485, após a chegada de Cataldo Parísio Sículo, que, convidado a ensinar D. Jorge, o filho bastardo do Rei, contará entre os seus discípulos mais brilhantes a filha do Marquês de Vila Real, D. Leonor de Noronha.

Esta é, portanto, uma das primeiras grandes figuras femininas, como pode deduzir-se dos elogios que o mestre lhe tece nas suas cartas e da obra que deixou, a tradução da Crónica Geral do humanista italiano Marcantonio Coccio Sabellico, que verteu em português, e a História da Nossa Redenção6. Vale a pena transcrever a versão da parte da Carta ao rei D. Manuel em que Cataldo se refere a esta bri-lhante discípula7:

fala de uma linha de estudiosas entre o século X e o século XIV, que principia em Hrotswitha de Gandersheim, cujas obras viriam a ser publicadas séculos depois.

5  Da sua vasta obra, refiram-se sobretudo os artigos contidos em Estudos sobre a Época do Renasci-mento, Coimbra, 1969, Estudos sobre o Século XVI, Lisboa, 1983, Para a História do Humanismo em Portugal, vol. I, Coimbra, 1988 e vol. II, Lisboa, 1994, e ainda a antologia Latim Renascentista em Portugal, Coimbra 1985. Foi-nos ainda especialmente útil a consulta do Prefácio com que antecede a reedição fac-similada do estudo pioneiro de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas damas [daqui em diante citado só A Infanta D. Maria]. Sobre outros aspectos do Humanismo em Portugal, perspectivado sobretudo no enquadramento europeu, vejam-se os trabalhos de J. V. Pina Martins, nomeadamente Humanisme et Renaissance de l’Italie au Portugal. Les deux regards de Janus, 2 vols. Lisboa, 1989.

6  Veja-se o artigo sobre D. Leonor de Noronha na Enciclopédia Verbo, em que A. Costa Ramalho prova que a aristocrata portuguesa não foi aluna de André de Resende, como supôs Barbosa Machado e outros. A enumeração das obras e outros esclarecimentos encontram-se no Prefácio de A Infanta D. Maria, pp. IX-XI. Nesse mesmo prefácio, o autor chama a atenção para as considerações sobre a arte de traduzir, contidas na dedicatória à rainha D. Catarina (p. X).

7 Tradução de A. Costa Ramalho, Prefácio a A Infanta D. Maria, p. IX. O ambiente era propício, pois, no palácio do Marquês de Vila Real, não se ouve a língua portuguesa, «... ao passo que a latina floresce, reverdece, vigora» – testemunha Salvador Fernandes na Oração que pronunciou na entrada do titular no seu marquesado (tradução de A. Costa Ramalho, Latim Renascentista em Portugal, p. 113).

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Além disso, não calarei que na minha humilde situação encontrei uma coisa do céu: a Sibila de Cumas que, se ao presente o não é de todo, dentro de poucos anos se revelará como tal, plenamente. Ela excede, em talento, memória, graças de conversação, não só os nossos contemporâneos mas todos os antigos. Tudo quanto ouve logo o entende, e quando entende mais facilmente aprende, e o que aprende conserva tenazmente. Chama-se Leonor e é filha do marquês.

As outras «mulheres latinas» coevas são de posição social ainda mais elevada: a mãe desta, D. Maria Freire, Marquesa de Vila Real; a infanta D. Catarina, filha do Rei D. Duarte; a princesa Santa Joana; a rainha D. Leonor, mulher de D. João II; a rainha D. Maria, segunda esposa de D. Manuel. Conhecida sobretudo pelas suas excelsas virtudes e pela bela pintura primitiva em que os seus traços che-garam até nós8, a Princesa que dizia ter encontrado no claustro de Aveiro a sua «Lisboa a pequena», emerge dos quinze poemetos que lhe dirigiu Cataldo com um novo perfil de educadora severa de seu sobrinho D. Jorge, de boa conhecedora do Latim, e até de alvo de um amor platónico, aliás não correspondido, por parte do humanista9.

Aquela que podemos agora chamar a segunda geração de «mulheres latinas», é a que tem o seu centro na infanta D. Maria, a que foi festejada por poetas e his-toriadores e até enfeitada, pela erudição moderna, com os ouropéis de suposto objecto de algumas das mais belas líricas camonianas. Ponhamos também de parte a tradição dos «serões da Infanta», vigorosamente rebatida por Carolina Michaëlis de Vasconcelos10. Fica-nos ainda larga matéria para encómio, mesmo que descon-temos, por exemplo, no Panegírico que lhe dedicou João de Barros, as hipérboles que a colocam acima de todas as mulheres célebres de várias épocas e que lhe auguram a capacidade, se necessário, de «governar gente armada», como a sua bisavó Isabel, para além de sugerir a comparação com o filósofo-rei da República de Platão11. Mais importante e verosímil é que o autor das Décadas declare que «o

8 «O mais belo retrato da pintura antiga portuguesa», atribuível ao próprio Nuno Gonçalves, lhe chama Pedro Dias, História da Arte em Portugal, vol. 4, O Gótico (1986), p. 168.

9 Embora outros autores se tenham ocupado da matéria, foi mais uma vez A. Costa Ramalho, no seu estudo «Cataldo, a Infanta D. Joana e a educação de D. Jorge», Humanistas, 41-42 (1989-1990) 3-22, agora incluído em Para a História do Humanismo em Portugal, vol. II, pp. 51-68, quem, partindo da análise objectiva dos textos, repôs os factos na sua verdadeira perspectiva.

10 A Infanta D. Maria, pp. 27-28. No artigo «A Infanta D. Maria e o seu Tempo» in Para a História do Humanismo em Portugal, vol. I, p. 102, A. Costa Ramalho anuncia que «a própria vida da Infanta terá de ser escrita de novo, à luz das informações documentadas que já hoje possuímos».

11 A citação é da p. 180 da edição dos Panegíricos por M. Rodrigues Lapa (Lisboa, 1943). Mais adiante (p. 188), a propósito da mercê acabada de fazer à irmã por D. João III, que certamente é a concessão do senhorio de Viseu, aplica-lhe o famoso verso 6 da IV. Bucólica de Virgílio (Iam reddit et uirgo, redeunt Saturnia regna). O acontecimento data o panegírico de cerca de 1546, segundo Alexandre

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tempo que lhe sobeja dos diversos ofícios e orações gasta no estudo das letras, a que tanto se dá», e que «alcançou inteiro conhecimento da língua latina» e, mais ainda, que «quanto mais cobiçosas são as letras deste tempo, tanto maior é o louvor de V. Alteza, pois a causa final de as querer entender não é falta de honra nem de outra cousa, senão um santo desejo de saber»12.

Se da sobriedade de Damião de Góis, que em capítulo datado de 1567 refere longamente, como facto político e económico que era, a sucessão de esponsais malogrados com os mais eminentes reis e príncipes da Europa e os muitos haveres que lhe couberam em sorte13, nada poderíamos deduzir quanto ao aspecto que nos interessa, já assim não sucede com outro historiador coevo, D. Jerónimo Osório, que dela escreveu que ingenio et animi magnitudine exelluit14. Louvaram-na outros grandes humanistas da época, como André de Resende, Inácio de Morais, Vaseu15. O primeiro dedica-lhe a Oração Panegírica em honra de D. João III, proferida no Colé-gio das Artes em 1551, e aí refere, a certa altura, que «poderia nomear mulheres que se medem em erudição com toda a antiguidade, estando em primeiro lugar Maria, irmã do mesmo Rei»16.

O célebre canonista Martín de Azpilcueta dedica-lhe o Commentarius de Jobeleo et Indulgentiis Omnibus, por ocasião da visita da família real à Universidade de Coim-bra, onde ele professava com grande brilho. O prefácio desse livro, na primeira e na segunda edição, contém dados importantes sobre a Infanta. Em 1550, escreve ele: «Encontrei a cada passo quem apregoasse os seus louvores, mas detractores seus (e isto é talvez uma glória dela só) não encontrei nenhum (...) a ti que prezas ser ornada das letras de que és tu própria o mais alto ornamento. Tu que acolhes a literatura e os homens letrados com extraordinária, com maravilhosa benevo-lência, e te comprazes sumamente no serviço e companhia das mulheres letradas que tens em tua casa»17.

No seco relato de Damião de Góis sobre a vida de D. Maria, de que atrás falá-mos, perpassa, ainda que em segundo plano, o fio emocional da saudade, causada à rainha D. Leonor pelo afastamento de sua filha, que durou quase toda a vida.

Lucena e Vale, No Quarto Centenário de João de Barros, Viseu, 1970, apud A. Costa Ramalho, Para a História do Humanismo em Portugal, vol. I, p. 87, nota.

12 Pp. 179-180 da edição citada dos Panegíricos.13 Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Coimbra, 1955, Parte 4, cap. 68.14  «Que muito se avantajou com a Idade, em juízo, grandeza de ânimo», na versão de Filinto Elísio 

(edição actualizada e prefaciada por Joaquim Ferreira, Porto, 1944, vol. II, p. 282).15 As referências podem ver-se em Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, pp. 29-30 e notas res-

pectivas.16 Tradução de Gabriel de Paiva Domingues, Um Discurso de André de Resende, Coimbra, 1945; reed.

em 1982, p. 51.17 Tradução de A. Costa Ramalho, Para a História do Humanismo em Portugal, vol. I, pp. 93-94, feita

do Tratado do Jubileu.

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Mandara ela que a pequena Infanta aprendesse Latim. Dos documentos mais interessantes que nos chegaram é a carta em que a jovem Princesa dá conta à sua progenitora dos progressos feitos, e o faz na língua do Lácio, em estilo «juve-nil, de graciosa simplicidade e elegância». Carolina Michaëlis, a quem pertence esta apreciação, refere depois outra epístola latina, endereçada a Maria Tudor, a felicitá-la pelo êxito sobre a revolta conduzida pelo Duque de Northumberland. Se se trata de uma sincera congratulação à recém-entronizada rainha de Inglaterra, e não de um convencional exercício de estilo, teríamos aqui uma sublime marca de superioridade, uma vez que fora em favor desta parenta que Filipe II prete-rira os já aprazados desposórios com a infanta portuguesa. Mas, como observa Carolina Michaëlis, que chama a atenção para o facto e transcreve o original da carta, seria necessário conhecer a correspondência entre ambas para tirar uma conclusão segura18.

A epístola em verso de André de Resende visiona-a como uma divindade semelhante a Palas (não fora a coroa de louros, em vez da lança, elmo e escudo, e confundira-a com a deusa), acompanhada de Joana Vaz e Luísa Sigea. Coincide com João de Barros no topos da comparação com grandes nomes femininos da Antiguidade e no do amor da sabedoria. Mas onde o historiador se desvia para o paralelo com o filósofo-rei da República, o humanista assevera: «Como te atrai, enchendo-te de espanto, a sábia eloquência de Platão, ou como te agrada acumu-lar livros»19. Quanto ao conhecimento de Platão, fica-nos a dúvida se o tinha ou não no original, pois o primeiro erudito a elogiar em público o estudo das letras gregas20 e que, por sinal, assina o poemeto nessa língua, não o explicita. O gosto pelos livros, a posse de uma excelente biblioteca, esses ressaltam bem claros da dedicatória do Duarum Virginum Colloquium de Luísa Sigea, que afirma expressa-mente tê-lo composto naquele espaço privilegiado, utilizando os melhores dos seus livros. Qual fosse o conteúdo exacto dessa biblioteca, ninguém ousa dizê-lo. Mas o certo é que, para além da Bíblia e dos Padres da Igreja, que, segundo os cál-culos de Odette Sauvage21, perfazem mais de dois terços das citações, as restantes provêm de catorze autores gregos e latinos (das quais treze de Platão, feitas no

18 Vide A Infanta D. Maria, pp. 33-34 e notas 117 a 121. A questão do casamento falhado e as possí-veis interpretações políticas do facto, bem como as observações de Martin de Azpilcueta no prefácio da 2ª edição do seu De Iubelaeo, são analisadas por A. Costa Ramalho, Para a História do Humanismo em Portugal, vol. I, pp. 97-100.

19 Tradução de Gabriel de Paiva Domingues, «A ‘Sempre-Noiva’. Carta de André de Resende à Infanta D. Maria», Humanistas, 27-28 (1975-1976), pp. 53-69.

20 Na célebre Oratio pro Rostris, proferida na abertura das aulas da Universidade em Lisboa, em 1534.21 Na introdução à sua edição, com tradução francesa e notas, desta obra: Louise Sigée, Dialogue

de deux jeunnes Filles sur la vie de cour et la vie de retraite (1552), Paris, 1970, pp. 49-53, especialmente pp. 49-50 e nota 105.

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original e seguidas da tradução latina – prática, aliás, também seguida para as muitas referências em hebraico do Velho Testamento).

A epístola do eborense antevê a faustosa aliança com o futuro Filipe II. É, por-tanto, coetânea da primeira edição do Tratado do Jubileu do Doutor Navarro, de que atrás falámos, e do poema Sintra, dedicado por Luísa Sigea à sua ilustre patrona. Aí, ao profetizar esse brilhante destino, pela boca de uma ninfa da formosa serra, a mestra toledana imagina um concílio dos deuses, em que estavam presentes Minerva, Apolo e Calíope, quos coluit virgo, quorumque exercuit artes22.

Deixando de parte os testemunhos posteriores sobre a infanta D. Maria, como a biografia de Frei Miguel Pacheco (1675), voltemo-nos agora para as «mulheres de letras» que ela tinha em sua casa, como disse Martín Azpilcueta. Duas já nos apareceram na epístola de André de Resende: as suas mestras Joana Vaz e Luísa Sigea. Ora as já citadas mestras são precisamente duas das mais altas figuras da face feminina do Humanismo em Portugal. De uma e de outra se conhecem os mais rasgados encómios de contemporâneos seus. A mais velha, Joana Vaz, natural de Coimbra, foi elogiada por homens doutos do seu tempo, como Aires Barbosa, Luís Teixeira, André de Resende, Clenardo. «Um milagre da nossa época», escreve Baltasar Teixeira. Lusitaniae decus («honra da Lusitânia») lhe chama Rodrigo San-ches, ao terminar uma carta. «Mulher superior (...), estrela rara do nosso país e do nosso século» – escreve o mesmo humanista, acrescentando ainda palavras que parecem fazer dela uma autodidacta: «Para não falar da erudição admirável, que uma rapariga de tenros anos adquiriu entre mestres ‘mudos’, como chamam aos livros, e fora do convívio de homens doutos, quantas virtudes se requerem numa jovem da nobreza, tudo nela se encontra, recato, honestidade e modéstia»23. Este «recato, honestidade e modéstia» é confirmado logo a seguir pela menção da sua prática de considerar «ser de importância para a sua honra não escrever ou responder jamais a homem algum, sem que primeiro o pai lho imponha».

A partir dos dados que descobriu num manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa (F.G. 6368), pôde Costa Ramalho reconstituir de forma mais rigorosa a figura de Joana Vaz e, sobretudo, mostrar que era «figura de primeiro plano (...) verdadeira animadora dum círculo de eruditos que se carteavam em apurado latim, aí à roda de 1535»24.

22  «Que a donzela venerou, e cujas artes exercitou», v. 73 da edição com tradução francesa de Odette Sauvage, «Sintra, poème latin de Luisa Sigea», Arquivos do Centro Cultural Português, V, 2, (1972), 560-570.

23 Traduções de A. Costa Ramalho no ensaio sobre «Joanna Vaz, femina doctissima» in Estudos sobre a Época do Renascimento, pp. 346-352.

24 Estudos sobre a época do Renascimento, p. 346. As cartas de Rodrigo Sanches a Joana Vaz ou sobre ela encontram-se publicadas e traduzidas pelo mesmo Professor na sua antologia Latim Renascentista em Portugal, pp. 154-159.

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Este convívio epistolar é uma das características mais salientes da vida cultural do Renascimento. Não está fora dele a outra grande mestra que os quinhentistas viam sempre ao lado da Infanta: a toledana Luísa Sigea25. Sobre a sua origem e formação, ela mesma se pronuncia na carta que enviou, em 1559, a Filipe II: «Sendo eu natural de Toledo, mas criada em Portugal e de origem francesa, e instruída na língua latina, grega e hebraica, calcaica e árabe de modo não vulgar pelo meu pai e outros mestres, fui admitida e bem recebida na corte dos reis de Portugal e desempenhei não sem êxito o cargo de preceptora da Sereníssima Infanta Maria. Desposei um cidadão de Burgos, homem de não despicienda categoria, nem de sangue obscuro, que me transportou para a sua pátria»26.

Toledana é, pois, o etnónimo que se atribui a que, na dedicatória de Duarum Virginum Colloquium acrescenta o epíteto de polyglossa, de que tanto se orgulha. O direito ao título, comprova-o na epístola dirigida ao Papa Paulo III, em 1546, nas cinco línguas antigas que sabia, a acompanhar o seu poema Sintra. Destas cinco versões só chegou até nós a latina27, e outro tanto sucedeu com a resposta quinquelíngue do Sumo Pontífice. Mas o feito alcançou-lhe fama universal28. Não admira, por isso, que, mais tarde, depois de se ter retirado da corte portuguesa sem que lhe concedessem uma tença, a rainha viúva da Hungria, D. Maria, lhe desse o lugar de «dama latina»29.

Voltando à carta a Filipe II, acima referida, atente-se ainda no papel desem-penhado pelo pai na educação de Luísa Sigea. Este facto coloca-a naquela estirpe de letradas quinhentistas que eram ensinadas pelos seus progenitores ou por eles confiadas a mestres de nomeada para o fazerem. Os exemplos são numerosos, principalmente em Itália, com Laura Careta e Alessandra Scala e tantas outras,

25  Por essa naturalidade ficou conhecida e é referida nos seus próprios livros. Segundo Léon Bourdon in L. Bourdon et Odette Sauvage, «Recherches sur Luisa Sigea», Bulletin des Études Portugai-ses, 31 (1970) 33-176, há documentos que a dizem natural de Tarancón, pertencente também à região castelhana (pp. 43-44, com bibliografia). A publicação actualizada das cartas da humanista, acom-panhadas da versão francesa e de um estudo, feita por esses especialistas, veio esclarecer muitos pontos obscuros da biografia e da personalidade desta figura.

26 Modernamente publicada e traduzida para francês por Odette Sauvage no artigo em colabo-ração, referido na nota anterior, pp. 115-118. A versão apresentada é da nossa autoria. A língua aqui chamada caldaico é o sírio, conforme já advertiu Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, p. 89, nota 160.

27 A carta da Sigea e a resposta de Paulo III vêm a seguir uma à outra (pp. 80-83 do artigo citado na nota 25). A humanista diz ter sido instada a apresentar o seu poema, bem mais importante do que os que lhe mandara em tempos, pelo «egrégio poeta e filósofo Britónio», que A. Costa Ramalho, Estudos sobre o Século XVI, pp 191-194, identifica com o italiano Girolamo Britonio.

28  Sobre esta carta e o êxito que alcançou no mundo culto, veja-se L. Bourdon et Odette Sauvage, «Recherches sur Luisa Sigea», pp. 38-39, e Odette Sauvage, Dialogue de deux jeunes Filles, p. 17 e nota 27. Sobre apreço pelo poema «Sintra», idem, ibidem, p. 46.

29 Os múltiplos incidentes ocorridos em meio destas diligências e o curto êxito que lograram, devido ao falecimento da Rainha, figuram em L. Bourdon et O. Sauvage, op. cit., pp. 54-56.

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precedidas ainda de Christine de Pizan30. Ora Diogo Sigeu frequentara a Univer-sidade de Alcalá de Henares e, depois de vários incidentes, aceitara ser preceptor de D. Teodósio e dos outros filhos de D. Jaime, Duque de Bragança, em 1530, o que lhe permitiu mandar vir a família para junto de si. Luísa teria então oito anos apenas, segundo a biografia estabelecida por L. Bourdon31. É isso que lhe permite asseverar naquela carta que fora nutrita tamen apud Lusitanos.

O corpus das suas obras publicadas (faltam, por exemplo, os poemetos ofere-cidos a Paulo III) não é muito vasto, mas é valioso: vinte cartas, o poema Sintra, o Duarum Virginum Colloquium. Todos os seus escritos testemunham uma erudição invulgar, um grande domínio das três línguas sagradas – aquela em que escreve, o latim, e o grego e o hebraico, de que faz citações e traduções constantes –, a capacidade de reflectir sobre uma problemática que já vinha da Antiguidade – a oposição entre a vida pública (neste caso, da Corte) e a vida retirada – e de o fazer com uma apreciável independência de espírito.

Da irmã, Ângela Sigea, conhece-se, pelo testemunho de Vaseu32, a sua formação in utraque lingua e o seu talento musical, que lhe permitiu ensinar essa arte no Paço da Infanta. Na música também se distinguiu Paula Vicente, mais conhecida pelo privilégio real obtido para publicar as obras do pai, privilégio esse que lhe é passado designando-a por «moça de câmara da minha muito amada e prezada tia» (o trabalho viria a ser executado, como se sabe, pelo irmão). O verdadeiro papel da filha de Gil Vicente na preparação da Copilaçam está envolto em lendas que é difícil destrinçar da realidade; e a hipótese de ter composto uma gramática inglesa e outra holandesa, numa época em que as línguas modernas começavam a alcançar a custo o direito de cidade no estudo sistemático dos idiomas, é um bom exemplo da tendência para acumular fantasias sobre figuras, sobretudo femininas, que se distinguiam em tempos antigos33.

Pela mesma razão, aquela que terá sido a primeira doutora portuguesa, Públia Hortênsia de Castro – que hoje sabemos ter pertencido também a este cenáculo, ao contrário do que se julgava34 – atraiu sobre ela numerosas lendas, entre as quais avulta a do consagrado topos da «mulher vestida de homem», segundo o qual teria frequentado as aulas na Universidade de Coimbra disfarçada em trajes masculinos, na companhia de dois irmãos. A este propósito, Carolina Michaëlis comenta com

30 Exemplos numerosos em Margaret L. King, A Mulher do Renascimento, pp. 192-194.31 No artigo citado na nota 25, pp. 39-47.32 Vide Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, p. 42 e nota 186.33  Vejam-se as prudentes reservas de Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, p. 43 e respectivas

notas.34 Devido ao achado de novos documentos por Maria de Lourdes Flor de Oliveira, que tem no

prelo uma monografia sobre a humanista calipolense.

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ironia: «Aos poetas, que não quiserem abandonar a ideia do disfarce, lembrarei apenas que o traje dos estudantes era o talar preto, a roupeta dos jesuítas»35.

Que aos dezassete anos Públia Hortênsia sustentou publicamente, mas em Évora, teses de filosofia moral, está claramente expresso numa carta famosa de André de Resende, em passo que transcrevemos na versão de Carolina Michaëlis36:

Pena foi realmente que não entrasses nesta cidade (...) porque, ainda que mais nada tivesses encontrado, de que te regozijasses (e, para dizer a verdade, temos aqui algumas cousas bonitas), poderias ter assistido, seis dias depois da tua partida, a um espectáculo único. Ouvias a Públia Hor-tência de Castro, uma menina de dezassete anos, instruída além do vulgar nos estudos aristotélicos, disputar publicamente, desfazendo com suma perícia e graça os arguciosos argumentos que lhe opunham muitos homens doutos, esforçando-se por combater as teses dela. E mesmo tu, ó sábio jurisconsulto, terias confessado que nunca presenciaste um torneio mais formoso, nem poderias ter negado que uma cidade que produz tal donzela (de mais a mais de figura muito agradável), era digna de ser visitada, e fosse somente por causa dela.

O entusiasmo do autor do texto não deixa bem claro se se tratava de provas de doutoramento. Por outro lado, as listas de graduados da Universidade de Évora que ultimamente têm sido publicadas não referem o seu nome. Porque não curaram de o registar, considerando-o um caso à parte? O facto passava-se em 1565, segundo os cálculos de Carolina Michaëlis. Mais de um século depois, em 1678, a veneziana Elena Lucrezia Comaro recebe em Pádua o título de doutora em Filosofia; mas, na especialidade que desejava – a Teologia – não logrou alcançá-lo37. Também esta foi examinada em pontos da obra de Aristóteles, de lógica e de física. Antes dela, a famosa veneziana Cassandra Fedele, que aos doze anos dominava o grego e o latim e outros saberes, falara, nos finais do Quatrocentos, na mesma Universidade de Pádua. E, já na avançada idade de noventa e um anos, ainda proferiu um discurso em latim, para receber a rainha da Polónia38.

Os exemplos italianos, de que colhemos apenas dois, servem para mostrar as semelhanças entre contextos históricos parecidos. Também a jovem calipolense

35 A Infanta D. Maria, p. 116. Na página anterior, observando que Venturino pusera Salamanca onde os nacionais escreveram Coimbra, e que lhe atribuíram dois irmãos, em vez do único que se conhece, comenta: «deste modo, a história de Hortência ficou demasiadamente parecida com a de outras mulheres ilustres, como, por exemplo, a da célebre castelhana D. Isabel Vergara».

36 A Infanta D. Maria, p. 112. A carta figura no De Antiquitatibus Lusitaniae (Romae 1597), de André de Resende.

37 Cf. Margaret L. King, A Mulher do Renascimento, pp. 219-220.38 Dados colhidos na obra citada na nota anterior, pp. 207-209.

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veio a estar em evidência em situações similares. Uma foi numa obrigação, que não chegou a desempenhar, por falta de tempo, em meio dos festejos de recepção à embaixada chefiada pelo cardeal Alexandrino, em Vila Viçosa, em 1571. Tratava--se de discursar perante o legado do Papa. É a esse facto que se refere a tão citada descrição de J. B. Venturino39:

Vila Viçosa tem formosas mulheres, e, entre outras, uma que não o é menos da alma que do corpo, da idade de vinte e três anos, filha de Tomé de Castro, à qual, por sua muita literatura, chamam Públia Hortênsia. Esta donzela, que frequentara Salamanca, quis defender conclusões naturais e legais, o que não teve lugar, por causa da súbita partida do Legado.

Saliente-se, ainda, dos poucos factos conhecidos, o discurso de recepção a Filipe II, em Elvas, que não se sabe se chegou ou não a ser proferido. Sabe-se, sim, que lhe valeu uma tença real, «havendo respeito às suas letras e suficiência»40.

Oculto o seu verdadeiro nome próprio, a avaliar pelas palavras de Venturino (quanto a Hortênsia, é clara a sua ascendência à oradora romana, filha de Hortên-sio, bem conhecida dos coleccionadores de listas de mulheres célebres – e André de Resende não se esquece dela na Epístola à infanta D. Maria, atrás mencionada), também as suas obras, que compreendiam pelo menos um Flosculus Theologalis, cartas, poesias, diálogos sobre religião e filosofia e a versão de oito salmos, desa-pareceram41. A sua vida termina no claustro, como já sucedera com as suas pares italianas42. É a «solidão mais que solidificada (...)/ que nunca, mulher quiseste/ que agitasse a tua vida/ esse vento de olhar triste» que evoca a «Toada junto do busto de Públia Hortênsia de Castro», de Ruy Belo. Professa ou não, é vestida de monja que a representa o antigo quadro com o seu nome e a legenda tirada do versículo 51.23 do Eclesiástico, que é todo um programa de vida: Danti mibi sapien-tiam dabo gloriam.

39 Tradução de Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, p. 113. Sobre a confusão de Universidades já falámos atrás.

40 Carolina Michaëlis, que transcreve o alvará, o qual se encontra na Torre do Tombo, não deixa de observar que o quantitativo da tença é igual ao da do autor de Os Lusíadas (A Infanta D. Maria, p. 114).

41 Vide Carolina Michaëlis, op. cit., p. 110. A. Costa Ramalho, no artigo que escreveu para a Enciclo-pédia Verbo relativo à humanista, observa que «O seu nome latinizado de humanista, se é o mesmo do baptismo, inculca-a nascida de gente cultivada e entendida nas Humanidades». A Realencyclopädie de Pauly-Wissowa regista uma única mulher de nome Publia – uma cristã que afirmou a sua fé perante o Imperador Juliano (Teodoreto, História Eclesiástica, III, 19. 1 sqq.). A ser este modelo, a intenção seria conciliar valores pagãos com valores cristãos, no mesmo nome.

42 Exemplos numerosos de combinação da virgo docta com a virgo sacra em Margaret L. King, A Mulher do Renascimento, pp. 212-213.

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2. O «HONESTO ESTUDO» DE CAMÕES*1

Da vastidão e profundidade da cultura de Camões deram logo conta os con-temporâneos do poeta. «O Autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas» – escreveu Frei Bartolomeu Ferreira, ao terminar o seu visto para a primeira impressão de Os Lusíadas. «E foi escrevendo muito em um livro que ia fazendo que intitulava Parnaso de Luís de Camões, livro de muita erudição, doutrina e filosofia...» – anotou um amigo, o historiador Diogo do Couto. Mas tal evidência, que confirma a cada passo a leitura, quer da épica, quer da lírica, apesar de reconhecida através dos séculos pelos estudiosos – salva a voz discordante de Sousa Viterbo – tem sido posta em causa recentemente. Por isso, julgamos que valerá a pena consagrar ao assunto uns momentos de reflexão, não para fazer ressaltar a riquíssima intertextualidade de Os Lusíadas (com indiscutível realce para a Eneida, embora abrangendo também mais de uma dezena de autores gregos e latinos e outra de italianos e castelhanos), mas para apreciarmos outras provas da sua erudição. Comecemos pela posição teórica do próprio poeta sobre a matéria.

É quase no final da epopeia (X.154.5-8) que, como é sabido, ela mais claramente se exprime, em termos cuja forma exacta convém recordar:

Nem me falta na vida honesto estudo Com longa experiência misturado, Nem engenho, que aqui vereis presente, Cousas que juntas se acham raramente.

Num livro que fez época, Ensaio sobre os Latinismos dos Lusíadas (Coimbra, 1931), Carlos Eugénio Corrêa da Silva aproximou com muita propriedade, pela primeira vez, estes três predicados – estudo, experiência, engenho – das três qualidades

*1 Publicado em Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacio-nal – Casa da Moeda (1988, 22012), 27-30.

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fundamentais do orador, que Cícero requeria nos seus tratados de retórica. Temos, portanto, que, ao lado dos dons naturais e da prática, é necessário o estudo. Mas será esse o sentido da palavra aqui?

Observe-se, antes de mais, que a ocorrência é única na epopeia. Mas o verbo da mesma família estava já na estrofe anterior, num exemplum tirado do De Oratore (II.18.75-76) de Cícero:

De Formião, filósofo elegante vereis como Aníbal escarnecia, quando das artes bélicas, diante dele, com larga voz, tratava e lia. A disciplina militar prestante não se aprende, Senhor, na fantasia, sonhando, imaginando ou estudando, senão vendo, tratando e pelejando.

Aqui temos um grupo trimembre de gerúndios (sonhando, imaginando, estudando) que se opõe exactamente a outro (vendo, tratando, pelejando). A prática das armas está, pois, em clara antítese aos conhecimentos hauridos nos livros.

Ora é precisamente esse o sentido que vamos encontrar no principal teorizador poético do século XVI, António Ferreira. Os exemplos são numerosos e todos eles, como é natural, figuram nas Cartas. Escolhemos apenas dois dos mais represen-tativos. Um é da Carta a Diogo Bernardes (1.12), aquela que parafraseia de perto os preceitos da poética horaciana:

Muito, ó Poeta, o engenho pode dar-te, mas, mais que o engenho, o tempo e estudo.

Outro é da Carta a D. Simão da Silveira (II.10), e ainda mais explícito:

Haja estudo, haja uso, não haja cega ousadia, na fonte beberemos, donde o doce liquor mil campos rega.

De resto, o próprio uso linguístico de Camões só confirma o papel dado ao estudo, designadamente ao dos autores latinos. Se não houvesse mais nenhuma prova do seu saber, bastaria a extensa lista dos seus latinismos lexicais (mais de cento e setenta, contados no livro de Corrêa da Silva), para não se permitirem dúvidas sobre o conhecimento que tinha do idioma do Lácio, mesmo que não pudesse deduzir-se – e pode – que era «bacharel latino», a partir da Sátira II de André Falcão de Resende (citada por A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos [Coimbra,

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1975], pp. 2-3). Formas como argento, divícias, exício, íncola, inópia, plaga são apenas algumas amostras de um riquíssimo tesouro vocabular desta origem, com que enriqueceu a nossa língua.

Outra prova – e esta muito curiosa – pode tirar-se de um dos nomes mais famosos da lista das suas amadas. Nada menos do que Dinamene! O apelido, reconhecido como «nome fingido» por Faria e Sousa, é na verdade um helenismo de sentido bem claro (tal como o Filodemo do auto), que certamente não escapou a Camões: é o particípio do presente de um verbo que significa «poder», e deve, portanto, traduzir-se por «a poderosa». Era o nome de uma nereide, quer na Ilíada (XVIII. 43), quer em Hesíodo (Teogonia 248) – em verso repetido nos dois poemas. Desaproveitado, por razões que se adivinham, nas breves enumerações de ninfas aquáticas de Os Lusíadas (II.20 e VI.88-91), surge no enigmático catálogo da Écloga dos Faunos, no qual alguns quiseram ver uma alegoria à corte da infanta D. Maria (Faria e Sousa deu largas à imaginação sobre a matéria, e outros o seguiram), aliada a nomes que são anagramas evidentes (Belisa); e aparece também na Écloga VI, como amada de Agrário. Se esta figura acaso se identifica com a dos dois formosos e dramáticos sonetos, Quando de minhas máguas a comprida e Ah! Minha Dinamene! Assi deixaste, temos de concluir que ambas as éclogas lhes são anteriores.

Ora, para este nome, Faria e Sousa aponta o passo de Hesíodo acima referido e acrescenta que em Garcilaso, Écloga III, aparece Diamane «que corresponde a Dinamene». Mas a verdade é que, ainda quando a palavra castelhana fosse, de facto, uma corruptela, é evidente que não podia ser dessa forma errada que Camões colheu a sua. A fonte inspiradora tão-pouco pode ter sido Virgílio, onde esta nereide falta na breve enumeração do Canto IX.102-103 da Eneida ou no pequeno catálogo do Canto V.825-826. Foi certamente um dos poetas gregos, quer os lesse no original, quer nas versões latinas, que já então corriam impressas1.

Os exemplos linguísticos que apontámos podiam, se necessário fosse, multi-plicar-se, se lhes acrescentássemos os que provam os conhecimentos científicos. Mas o trabalho está feito em numerosos livros e artigos de indiscutível autoridade, que todos os especialistas conhecem.

Ao terminar estas breves reflexões, ocorre-me indagar a razão do actual recru-descer das dúvidas sobre o saber de Camões, quando é esta uma das poucas faces da sua obscura carreira em que podemos prescindir da dúvida. Talvez a tendência para aceitar aquilo a que chamaremos o mito da ciência infusa, que entre nós se opõe com tradicional facilidade ao quadro, menos romântico, do poeta aplicado e diligente, que cultiva o seu engenho no estudo e na meditação. Os Antigos já sabiam, porém, que a mãe das Musas era Mnemósine...

1  Para uma discussão mais completa deste ponto, veja-se o final do ensaio «Nomes de Ninfas em Camões», impresso neste volume (pp. 250-252).

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3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO*

É facto bem conhecido dos estudiosos que a Ode endereçada a D. Francisco Coutinho, Conde do Redondo e Vice- Rei da Índia, goza da dupla e casual distinção de ter sido a primeira obra lírica e simultaneamente a primeira composição de Camões a receber as honras da imprensa (1563). Sabido é também que a edição dos Colóquios dos Simples e Drogas de Garcia de Orta, que ela se destina a apresentar e recomendar àquela alta personagem, ficou graficamente pouco perfeita. É o pró-prio Dimas Bosque, médico valenciano (e um dos interlocutores do Colóquio 58), quem o declara no final do seu preâmbulo ao leitor: «... teve nã empresam algũs erros, por faltar o principal, empresor e ficar a obra em mãos dehũ homem seu cõpanheiro que no era ainda mui destronaarte do emprimer, e pouco corente no negoçio da empresam.» No final da obra, vinte páginas cerradas (com excepção da última, que só conta umas linhas) dos «erros da emprensam que sam muytos, e algús delles podem mudar o entendimento por onde he neseçario que se leam» (fol. 229r), deixando ficar «outros muytos erros... porque sam raros pera emmendar» (fol. 238v), mostram que a desculpa solicitada para a falta de capacidade da tipo-grafia goesa de Ioannes de Endem não era simples acto de modéstia convencional1.

Sucedeu, porém, que, embora se tenha dado nota na referida errata de quatro gralhas como sendo «as que estam no prolego» (uma das quais escolhida entre as muitas que se encontram no trecho de Dimas Bosque transcrito acima, quando escreve emprimer por emprimir), nenhuma delas recai sobre a ode camoniana. Será,

* Publicado em Revista Camoniana (1984-1985), 107-128; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2012), 83-108.

1 Um exemplo, não registado na errata, é o do fol. 60v, onde se lê epardor arcadio. A comparação com a forma correcta, emperador arcadio, que se encontra na página anterior, e o facto de a história, relativa à conservação multissecular de um pau de canela, ser conhecida de outras fontes (e. g., Diogo do Couto, Década V. I. 7, que remete para Heitor de Laguna) e dizer respeito a uma figura conhecida, evita que o leitor se perca num mar de conjecturas.

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pois, a comparação com outras versões antigas do poema que abrirá caminho à restituição do texto original.

Efectivamente, embora a Ode falte na primeira edição da Lírica (1595) e não tenha aparecido, até agora, nos diversos «Cancioneiros de mão» descobertos ou publicados nos últimos anos, temos dela uma versão sobejamente conhecida, a da segunda edição das Rimas (1598), que apresenta considerável número de variantes2.

Que as diferenças entre a edição de Goa e a segunda das Rimas eram de natureza a levar à conclusão «de que não foi certamente o livro de Garcia de Orta a fonte donde a houve o respectivo editor, mas sim outra qualquer cópia, cuja procedência não conhecemos», soube já vê-lo Xavier da Cunha, num opúsculo raro e pouco conhecido, em que tenta reconstituir o texto, tendo em conta aquelas duas versões, os comentários de Faria e Sousa e as sucessivas edições da Lírica3.

Uns anos antes, em 1867, Teófilo Braga, em estudo igualmente raro, que precede a sua edição de A primeira poesia impressa de Luiz de Camões no Livro do Doctor Garcia d’Orta intitulado Colóquios dos Simples e Drogas, fizera referência a um manuscrito «que anda como apenso junto à edição de 1595, da Biblioteca Nacional», e acrescentava que «pelo estudo das variantes chega-se ao conhecimento de que o poeta retocou por vezes a Ode magnífica». Sem aproveitar devidamente este dado, comenta a seguir: «Há pelo menos quatro lições da Ode, com retoques importantes: o pri-meiro esboço, como o publicou o poeta nos Colóquios dos Simples, em 1563; o texto achado por Estevam Lopes; o texto apurado sobre diferentes manuscritos por Faria e Sousa, e o códice descoberto pelo Visconde de Juromenha. A comparação dá a vantagem aos textos retocados pelo poeta, trasladados para as compilações dos amigos»4.

Porém só em 1974, com a publicação póstuma, num só volume, dos importantes e bem fundamentados estudos de Emmanuel Pereira Filho, As Rimas de Camões5, se analisou e valorizou o já referido testemunho do manuscrito apenso ao exemplar

2 Agora tornada acessível graças à reprodução fac-similada mandada executar pela Universi-dade do Minho (Braga, 1980), e valorizada com um estudo de Vítor Manuel Aguiar e Silva. Também o texto dos Colóquios dos Simples e Drogas, de que restavam tão poucos exemplares, teve idêntico tratamento, por ocasião do quarto centenário da edição original, por iniciativa da Academia das Ciências de Lisboa (1963).

3 O opúsculo, comemorativo do 4.º aniversário do Tricentenário Camoniano, tem o signifcativo título A Ode de Luiz de Camões ao Conde do Redondo restituída à sua primitiva lição (Lisboa, 1884). Apenas o encontramos referido, e em termos elogiosos, pelo Conde de Ficalho, Garcia da Orta e o seu tempo (1886, reimpr. Lisboa, 1983), p. 213, nota 1, e no Catálogo da Exposição Bibliográfica, Iconográfica e Medalhística de Camões, organizado por José V. de Pina Martins (Lisboa, 1972), p. 364. (Agradecemos a obtenção de fotocópias do estudo de Xavier da Cunha, bem como do de Teófilo Braga, mencionado na nota seguinte, à Doutora Maria de Lourdes Flor de Oliveira.)

4 As citações são das pp. 6 e 7. O opúsculo, editado em Lisboa, traz a data «Anno 363 do nasci-mento de Luiz de Camões, Auctor dos Lusíadas».

5 Rio de Janeiro, Aguilar, 1974. (Agradecemos ao Doutor A. Costa Ramalho ter-nos facultado o uso do seu exemplar.)

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2173. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO

das Rhythmas (1595) da Biblioteca Nacional de Lisboa, que, embora mencionado não só por Teófilo Braga, como já vimos, mas também por Costa Pimpão e A. Salgado Júnior nas suas edições, não fora ainda sistematicamente aproveitado6.

Nesse livro, a despeito das limitações provenientes de não ter levado a última demão do autor7, figura o fac-símile e transcrição diplomática do apógrafo, a descrição do códice, o estudo da questão da autoria e das relações com a edição de 1598, tudo feito segundo as normas da moderna crítica textual. As conclusões principais, que subscrevemos inteiramente, são de que o referido manuscrito (MA) é uma cópia quinhentista, elaborada entre 1595 e 1598 como trabalho prepara-tório da segunda edição das Rimas; que o copista utilizou, como fontes, mais de um documento e «se impôs o cuidado de cotejar aqueles textos que porventura encontrasse em mais de uma fonte... podemos contar com um máximo de fide-lidade às fontes eventualmente manuseadas, o que a faz portadora fiel de uma tradição precedente e, portanto, mais próximo dos arquétipos desconhecidos»8.

O mesmo estudioso brasileiro trata, em capítulo separado, da «Ode ao Conde de Redondo»9, para a qual aduz um quarto testemunho, o códice de Juromenha, aparentemente do séc. XVII, que supõe ser, pelo menos em relação à Ode, um ramo da mesma família de MA, dada a semelhança da epígrafe10:

Aquelle unico exemplo. Ao Conde de Redondo Visorei sobre o livro que compos o Doutor Orta de simplicibus.

Ode, impressa

A reabilitação dos misteriosos manuscritos de Juromenha está a ser feita e, pela nossa parte, cremos ter demonstrado que o mesmo deve fazer-se, pelo menos no que respeita a alguns dos mencionados para Os Lusíadas, com os de Faria e Sousa11.

6 Cabe a Leodegário de Azevedo Filho o mérito de ter chamado a atenção dos especialistas para a importância da obra de Emmanuel Pereira Filho, ainda antes de a referida colectânea ter sido publi-cada. Veja-se, daquele camonista brasileiro, o estudo preliminar da edição crítica das Rimas, que tem em preparação, intitulado O Cânone Lírico de Camões (Rio de Janeiro, 1976), especialmente pp. 14 e 26-27.

7  A esse respeito, veja-se Leodegário de Azevedo Filho, op. cit. p. 27.8 Citações da p. 242.9 Preferimos dizer Conde do Redondo, e não de Redondo, por ser essa a forma adaptada pelos

Colóquios e também pelos historiadores coevos, como Diogo do Couto.10 Op. cit., p. 243. Não obstante as regras da crítica textual prescreverem que se use uma só letra

maiúscula, quando muito seguida de uma minúscula, servir-nos-emos daqui em diante, por comodi-dade, das siglas deste camonista: a já mencionada MA para o Manuscrito Apenso à edição das Rimas existente na Bibllioteca Nacional de Lisboa, GO para a edição dos Colóquios dos Simples e Drogas (Goa, 1953), RI para a 2.ª edição das Rimas (1958) e JU para o Manuscrito Juromenha.

11 Na comunicação que apresentámos à III Reunião Internacional de Camonistas, organizada pela Universidade de Coimbra em Novembro de 1980, «A Transmissão Manuscrita de Os Lusíadas. Alguns Aspectos», publicada na Revista da Universidade de Coimbra 33, 1985, 51-65.

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218 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Note-se, de passagem, que este comentador cita com frequência, e por vezes até com elogio, as lições da edição de Goa que nos ocupa.

Voltando ao livro de Emmanuel Pereira Filho e seu exame à transcrição do texto da Ode ao Conde do Redondo, lembraremos aqui que ele faz um cotejo exaustivo daquilo que designa por “variantes internas”, ou seja, todas aquelas que excedem o âmbito da elisão, ortografia ou pontuação que não altere o significado12. Essas variantes atingem, numa Ode de 66 versos, a elevada cifra de trinta, em que MA diverge de GO, sendo que em vinte e dois desses casos as lições do manuscrito são seguidas por RI, o que vem confirmar, por uma larga margem de certeza, a dependência de RI em relação a MA, e mostrar que o editor já não dispunha de qualquer exemplar de GO13. Observamos ainda que, das variantes registadas no manuscrito de Juromenha, que são apenas seis, três coincidem com GO (uma no v. 50, uma no v. 58 e outra no v. 59), duas (vv. 50 e 58) são idênticas a MA, RI, e uma (v. 57) apresenta um texto distinto de qualquer dos outros testemunhos. O que nos faz supor que JU, que na sua generalidade tem os errores significativi de RI, seja um manuscrito contaminado.

A finalidade de Emmanuel Pereira Filho, no capítulo que vimos examinando, era comprovar, com base na comparação das variantes deste texto, a dependência de RI em relação a MA e, sobretudo, como ele mesmo escreveu, fazer ressaltar «os critérios de correcção adaptados por RI», os quais «nem sempre foram tão gratuitos quanto se pode crer a uma primeira observação», pelo que «nenhuma das suas lições poderá ser rejeitada sem que uma cuidadosa análise justifique a selecção crítica»14.

Assim fizeram, de resto, os editores modernos na sua grande maioria15, sem excluir Costa Pimpão (11944, 21953, 31973), Hernâni Cidade (1955) e António Salgado Júnior (1963). O primeiro, no entanto, restaurou, no v. 16, e muito correctamente, como veremos adiante, o epíteto de Febo intonso, e não intenso. Mais recentemente (1981), Maria de Lourdes Saraiva regressa à edição de Goa, por ter sido impressa em vida de Camões e, segundo supõe, «feita certamente com a sua assistência», pelo que o texto que transcreve é o de 156316. Não obstante, adaptou lições da edi-ção de 1598, como a indispensável introdução da condicional no v. 17 (se o temido

12 Op. cit., pp. 225-226.13  A contagem figura na p. 246 da obra referida, e as conclusões na p. 248. Poderemos acrescentar-

-lhe, no v. 27, pera GO, MA, para RI.14 Op. cit., p. 248, passim.15  Conforme já observou, para o seu tempo, Xavier da Cunha, op. cit., p. 10.16 Luís de Camões, Lírica Completa III (Lisboa, 1981), p. 125. Quanto à presença de Camões, não

conhecemos dados seguros para a confirmar, nem para a negar (como fez W. Storck, Vida e Obras de Luís de Camões, trad. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Lisboa, 1897, reimpr. 1980, p. 628, nota 1).

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2193. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO

Hector) e as correcções vós, ó excelente, por ó vós excelente, no v. 25, e da Medicina por na Medicina, no v. 58.

Por tudo quanto vimos anteriormente, não podemos duvidar que GO merece tanta atenção como MA e o seu derivado RI na reconstituição do texto, embora MA apresente, em relação a RI, pelo menos três erros distintivos, que Emmanuel Pereira Filho muito bem classificou de «lição péssima». São os dos vv. 53 e 54, que o copista trasladou erradamente, por ignorância dos dois mitónimos neles contidos, o que por sua vez arrastou uma correcção sintáctica no tempo e modo do verbo. Assim, GO lê17:

Hum velho que insinado Das guangeticas Musas, na Sciençia: Podaliria sutil, e arte Siluestre. Vençe ho velho chirom, de achiles mestre:

O copista de MA, pouco versado em mitologia, não entendeu o que era a ciência Podalíria, e transformou o adjectivo em pôde a lyra, pelo que no verso seguinte teve de mudar vence em vencer. Tão-pouco foi capaz de decifrar o nome do Centauro, que transformou em Achyron. Nos três passos, RI concorda com GO. Emmanuel Pereira Filho interpreta-os como outros tantos exemplos de «restauração impe-cável», embora reconheça a dificuldade de admitir que RI tenha podido voltar a GO «por simples devinatio» [sic] (p. 247).

O nome do filho de Asclépios – e de seu irmão Macáon – também não costu-mava faltar nos elogios aos tratados de Medicina quinhentistas. É o que sucede no livro de Garcia de Orta, para o qual Tomás Caiado compôs um epigrama latino, onde se lê este dístico:

Namque potens herbis, toto Podalyrius orbe, Diceris, et vera laude parare decus.

O que é curioso é que RI não deu provas da mesma cultura clássica no v. 16, ao substituir intonso, de GO, MA por intenso, variante esta que encontrou inexplicável acolhimento em editores modernos. A este respeito, escreveu Emmanuel Pereira Filho que «embora susceptível até de muita discussão, fica todavia como exemplo único de alteração introduzida por RI, diluindo-se, com seu carácter de lectio facilior, na índole correctiva dessa edição». Além do mais, bem poderia ser também uma «gralha», ou quando muito uma divergência RH-RI (Égloga II: Ao longo do sereno)

17  Modernizamos a pontuação e a grafia em todas as citações, excepto quando, como aqui, é importante reproduzir o texto exacto.

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220 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

que, numa situação contextual idêntica, curiosamente se apresenta com direcção diametralmente oposta:

(v. 504) Vinha o intenso Apollo alli culpando (RH 91v.) Vinha o intonso Apollo alli culpando (RI 112v.)18

Os defeitos da primeira edição (RH) são, como se sabe, realçados por Estêvão Lopes no «Prólogo ao Leitor» da segunda (RI):

... Procurei que os erros, que na outra por culpa dos originais se comete-ram, nesta se emendassem, de sorte que ficasse merecendo conhecer-se de todos por digno parto do grande engenho de seu autor [...] porque certo em muitas fábulas, que toca o Autor em diversas partes e textura dos versos, assi se introduziram os erros de quem os tresladava, que já quase na opinião do vulgo se tinham por próprios de Luís de Camões. E se ainda assi não ficarem na realidade de sua primeira composição, basta que em quanto pude o comuniquei com pessoas que o entendiam, conferindo vários originais, e escolhendo deles o que vinha mais próprio ao que o Poeta queria dizer, sem lhe violar a graça e termo particular seu, que nestas cousas importa muito.

Julgamos que, no caso da Écloga II, estamos perante uma dessas escolhas acertadas. Na verdade, um autor imbuído de humanismo como Camões não podia ignorar que um dos epítetos homéricos de Febo Apolo era ἀκερσεκόμης, ou seja, «de cabelo não-cortado» – maneira de indicar a juventude do deus –, o que em latim se diz intonsus. Um exemplo bem conhecido é o do Livro I das Metamorfoses de Ovídio19, em que Apolo profetiza a Dafne:

Vtque meum intonsis caput est iuvenile capillis, Tu quoque perpetuas semper gere frondis honores.

Sendo assim, não se nos afigura que o caso seja «susceptível até de muita discussão». De resto, a explicação aproximada já fora dada por Faria e Sousa, que

18 Op. cit., p. 246.19 Vv. 564-565. Cf. também: intonsosque agitaret Apollinis aura capillos, de Horácio, Epodos XV.9, e

nam decet intonsus crinis utrumque deum (sc. Apolo e Baco), de Tibulo, I.4.38. Que Camões conhecia bem as Metamorfoses, provam-no inúmeros passos de Os Lusíadas e da Lírica. Do assunto tratámos já em «O tema da metamorfose na poesia camoniana», Biblos 51 (1975), especialmente pp. 128-129 e 133. Quanto ao mito de Apolo e Dafne, lembre-se em especial o Soneto 79 e ainda a Égloga dos Faunos, vv. 352-355. (Nas citações da Lírica usaremos sempre a numeração da edição de A. J. Costa Pimpão, Coimbra, 1973).

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2213. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO

escreveu: «el intonso, que vale desbarbado, es epíteto suyo frequente en los Poetas», citando a seguir o passo da Écloga II.

Um caso diverso deste é o do v. 64, onde há duas variantes: uma é poluorosa, em que GO está contra MA e RI, que lêem sanguinosa, outra é Indica, de GO, que em MA aparece transformado em indigna, e RI emenda para Turca.

Na p. 225 do seu livro, Emmanuel Pereira Filho observa que «não há sombra de dúvida de que o copista foi enganado pela grafia indiqua (= índica, da Índia), que este é o adjectivo que vemos na lição publicada em vida de Camões». E mais adiante, na p. 248, conclui: «chega-se pelo menos a um gentílico, alusivo ao povo asiático, hostil aos portugueses de então, o que é muito mais próximo do índica do que do insuportável indigna». A esta interpretação acrescentaremos que estamos, no caso de RI, perante um erro separativo bem claro e que, no de GO e MA, se aplica o conhecido princípio da crítica textual lectio quae alterius originem explicat potior. Quanto a sanguinosa, a qualificar guerra, que MA, RI apresentam em vez de poluorosa de GO, tem o seu apoio no confronto com armas sanguinosas do v. 8 da Canção VI.

Temos até agora examinado variantes discutidas pelo grande especialista brasileiro de forma geralmente exemplar. Poderíamos ainda aditar a essa série a «restauração impecável» de RI no v. 17 (que s’, onde GO tem uma omissão evidente, ao ler que, e MA restitui a condicional, mas erra no pronome relativo, que grafa quem20, e, no v. 25, o erro separativo de MA, RI, que apresentam a vos ó excellente, em vez do ó vos excellente de GO (explicado nas pp. 230-231)21.

Há, todavia, outras variantes que, ou não foram por ele discutidas, ou poderão ser interpretadas doutro modo. De algumas dessas trataremos seguidamente.

Deixando de parte as de menor relevância, como a prática de repetir ou omitir a proposição ou o artigo em enumerações bimembres ou trimembres (vv. 2, 22, 30), ou a simples troca de preposições (nos vv. 33-35, GO lê do, onde MA, RI preferem co; no v. 58, GO, JU lêem na, MA de e RI da22), ou ainda alternâncias entre o singular e o plural (v. 22, sciençias, de GO, menos provável do que sciencia, de MA, RI; v. 48, as leis de GO, igualmente menos aceitável do que a lei de MA, RI), deter-nos-emos nas que possuem maior interesse, quer linguístico, quer literário, quer mesmo histórico-cultural. O primeiro da série é o do v. 4, onde GO lê da eternidade, e MA,

20  Há ainda outra variante neste verso, que é o qualificativo do filho de Príamo (cujo nome apa-rece latinizado em MA, RI, e com vocalização do c em GO – tal como em Lusíadas X.60.4-5). Aí, GO e RI lêem temido, contra MA, que tem tímido. Trata-se de um caso que poderá explicar-se pela oscilação na pronúncia da época, a qual parece reflectir-se na lição das duas edições de 1572 de Os Lusíadas, quando em IX.16.8 têm do mar incerto, temidos e ledas, emendado desde a edição dos Piscos para do mar incerto, tímidos e ledos, e aceite pelos modernos.

21 Faria e Sousa emendou, sem necessidade, para vós, ó excelente, que Xavier da Cunha aprova.22 A lição na Medicina parece preferível. Emmanuel Pereira Filho, que alude a estas variantes,

chama «péssima» a lição de MA e comenta, a respeito de RI: «Restaura-se, pelo menos, o artigo à do original» (p. 248).

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222 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

RI da fama eterna. Faria e Sousa foi o primeiro, que saibamos, a tentar explicar a variante. Depois de muito fantasiar sobre o templo da Fama e sua relação com os estilos arquitectónicos, discute a possibilidade de um pagão lograr glória eterna, e continua: «Deste escrupulo deviô resultar el mudarse este verso, porque en la impression del Libro de Orta hecha en Goa dize: Da Eternidade ter perpetuo dia.» Seria assim um caso a incluir no grupo dos que Emmanuel Pereira Filho classifica de «censura religiosa preventiva», da qual fornece alguns exemplos23. O argumento poderá encontrar algum apoio na comparação com Lusíadas I.9.3-4 e I.11.7-8, onde a D. Sebastião são prometidos o eterno templo e o templo da suprema eterni-dade. Em todo o caso, nas Oitavas ao Vice-Rei da Índia D. Constantino de Bragança (1558-1561), Camões não receia afirmar, a propósito de Hércules (vv. 41-44):

Aquele que nos braços poderosos tirou a vida ao Tingitano Anteu, a quem os seus trabalhos tão famosos fizeram cidadão do alto Céu...

As Oitavas em questão figuram tanto na primeira como na segunda edição das Rimas. Pelo que talvez seja apropriada outra explicação: que o próprio poeta, entendendo que era a fama de Aquiles (alcançada tanto na guerra como no saber médico) o alvo a propor ao destinatário da Ode, teria feito esta emenda.

O exemplo seguinte é a lição notícia de GO, que em MA, RI surge como polícia. Esta última, para além de ser a lectio difficilior, coaduna-se perfeitamente com o uso quinhentista do termo. Também aqui Faria e Sousa foi capaz de observar: «En la redición de Goa dize Medica noticia. Devió mudarlo el Poeta en su manuscrito, por honrar más la Medicina.» Já se vislumbra, por conseguinte, a noção do comenta-dor seiscentista, de que o próprio Camões produziu mais do que uma versão da Ode. Tornaremos a esta hipótese. No v. 28 há simultaneamente uma inversão na ordem das palavras – fenómeno extremamente frequente – e uma substituição vocabular. Com efeito, De heroes altos, ho tempo jaa passado, de GO, passou para De altos heroes o seculo passado, de MA, RI. Não há alterações nem na métrica, nem na acentuação do verso. A ordem de palavras da segunda versão e o uso do latinismo século parecem apontá-la como um aperfeiçoamento24. Foi essa, no fundo, a opinião de Faria e Sousa, que aponta: «Esta mudança es claramente de la lima del Poeta».

Um dos exemplos mais interessantes é o que vem na estrofe sexta, logo após a transição do paradigma mítico de Aquiles, que conciliava as artes bélicas com

23 Op. cit., pp. 227-228.24 A substituição de palavras vulgares por latinismos é um dos processos que avultam, quando

comparamos a versão do Canto I de Os Lusíadas no Cancioneiro de Luís Franco Correa com a da edição de 1572. Sobre o assunto, veja-se o nosso trabalho citado na nota 11.

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2233. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO

as terapêuticas, para a invocação ao Conde do Redondo (estrofe quinta). Agora Camões vai esboçar a face guerreira do apostrofado, para em seguida sugerir que, tal como o herói de antanho, ele favorecerá a arte médica. É uma situação real, histórica, a que evoca a referida estrofe sexta, que na edição de Goa figura deste modo (vv. 31-36):

Posto que ho pensamento Occupado tenhais na guerra infesta: Ou do sanguinolento Trapobanico Achem, que ho mar molesta Ou do cambaico occulto imiguo nosso. Que qualquer delles treme ao nome vosso

Para além das já mencionadas alterações na preposição nos vv. 33 e 35, e ainda no adjectivo cambaico, que aparece com outro sufixo em MA, RI (cambaio) – o que pode ser um erro de cópia, tanto mais que cambaico é a forma de Os Lusíadas (quer para adjectivar a costa, em X.60.6, quer o rei, em X.64.1, e o etnónimo correspon-dente é idêntico na formação – os Cambaicos cruéis, de X.32.8) – e da própria Lírica (Cambaico Damão em Oitavas II.100) – temos em MA, RI no v. 34, uma lição diversa:

Taprobana, ou Achêm qu’o mar molesta, Ou co Cambayo occulto imigo nosso

Estilisticamente, a enumeração dos inimigos passou de bimembre a trimembre. O poeta costuma usar uma e outra, embora talvez com preferência pela primeira25. Mas o aspecto mais interessante da questão é que o passo envolve um problema de geografia, ou, mais exactamente, de história da geografia, e, ao mesmo tempo, da história da conquista da Índia. Tudo depende da identificação de Taprobana26, questão essa largamente debatida pelos autores quinhentistas.

Com efeito, a ilha descrita por Plínio VI.7.81-91 como situada na Índia, e fer-tilíssima em animais e plantas, abundante em pérolas e ouro, veio a ser situada em Ceilão por uns, em Samatra por outros27. Os nossos escritores e cientistas de

25 Exemplos frequentes nas próprias odes, de que salientamos os da Ode VII.9-10 (roxa Clóris/branca Dóris), 14 (Nereides e Napeias), 16-17 (Anfíon/Aríon), 59 (Tejo/Douro), 60 (Marte/Febo).

26 Embora, como se sabe, o a da penúltima seja breve em latim, apenas encontramos a conse-quente acentuação proparoxítona em Castanheda II.22, que escreve Taprôbana. A leitura paroxítona ficou definitivamente consagrada por Lusíadas I.1.4, que a rima fixou para sempre.

27 Note-se que Plínio era lido e analisado, na Índia quinhentista, em versão toscana, por portu-gueses altamente colocados, como aquele Vice-Rei que Garcia de Orta refere nos seus Colóquios (fol. 83r), em passo citado pelo Conde de Ficalho, Garcia de Orta e o seu tempo, o qual supõe tratar-se de D. Pedro de Mascarenhas (p. 206), e que pensamos ser o mesmo de quem no fol. 50r o médico traça

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Quinhentos conheceram a discussão e alguns deles tomaram parte activa nela. Assim, João de Barros e Diogo do Couto não têm dúvidas de que a ilha em causa é Ceilão, que descrevem em pormenor. O primeiro sublinha mesmo (Década III.I.1) que é erro dizer que é Samatra, e promete esclarecer o assunto nos «Comentários das Tábuas da nossa Geografia, por ser matéria própria daquele lugar, onde se verá o engano que alguns presentes recebem em dizer que a Áurea Quersoneso, a que nós chamamos Samatra, é a Taprobana, e o mais que a antiguidade fabulou destas ilhas». É nesta obra perdida que Diogo do Couto se apoia para a longa dis-cussão do cap. 7 do Livro I da Década V, cuja epígrafe é bem esclarecedora: «Das várias opiniões que houve entre os Geógrafos sobre qual seja a Tapobrana [sic] de Ptolomeu: e das razões que damos pera ser esta Ilha de Ceilão; e dos nomes que sua canela tem entre todas as Nações». Aí, depois de enumerar várias teorias, escreve: «Só o nosso grande João de Barros, homem doutíssimo na Geografia, falando nas suas Décadas da Ilha de Ceilão, diz que é a Tapobrana de Ptolomeu, como mais largamente provava nas suas tábuas da Geografia, que depois de sua morte desapareceram, que foi perda muito notável. E posto que bastava esta sua autoridade pera prova bastante de ser Ceilão Tapobrana [...] mostraremos como todos falam de Ceilão, e não de Samatra». Mais adiante, precisa ainda: «E esta Ilha está na costa Índia além de Carmânia; e Samatra está fora de toda a Índia, e além do Gange muitas léguas; e só pera ir de Ceilão a Samatra há mister outros quinze dias de ventos em popa.»

Diferentemente destes, Pedro Nunes28 e, ao que parece, D. João de Castro (Roteiro de Lisboa a Goa, prólogo) colocam a ilha em Samatra. Vale a pena referir em pormenor o que se passa com o texto deste último. O passo, datado de 1538, diz o seguinte:

... Como as praias do Oriente estão submetidas e sujeitas a seu Impé-rio, como os moradores dos famosos Rios Eufrates, Indo e Ganges lhe são obedientes e tributários, como Taprobana, que os antigos criam ser outro mundo novo, reconhece seu alto nome e lhe paga páreas.

À margem, figura a explicação: «Taprobana é agora chamada Samatra». Comentando o facto, Armando Cortesão e Luís de Albuquerque, na sua edição

das Obras Completas de D. João de Castro (Coimbra, 1968), I, p. 124, nota 11, declaram ser essa a opinião do famoso capitão, «mesmo que a nota não seja do seu punho».

este interessante retrato intelectual: «Foi um Visorei nesta Índia muito curioso de saber, e posto que não sabia  latim, em toscano entendia Plínio e desejava de saber a certeza dalguns simples e encomendava-me que lho dissesse quando os achasse...»

28 Obras I (Lisboa, 1940), p. 176 («Passaram o rio Ganges tam nomeado, a grande Taprobana e as ilhas mais orientais») e p. 180, onde, criticando Ptolomeu, escreve: «E como põe a Çamatra onde está Ceylão».

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2253. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO

Uma terceira posição é a assumida por Castanheda e Garcia de Orta. A res-peito do primeiro, escreveu Hernâni Cidade, em nota à edição de Os Lusíadas que preparou para o Círculo de Leitores (Lisboa, 1972), p. 399: «Taprobana era o nome clássico da ilha de Ceilão, mas Castanheda designa com este nome a de Sumatra e o próprio Camões dá o epíteto de taprobânico ao povo de Achém, desta mesma ilha, na Ode sobre Garcia d’Orta.» No entanto, se consultarmos a História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, Livro II, cap. 22, lemos, a propósito de Ceilão: «E esta querem alguns dizer que é aquela a que antigamente chamavam Taprôbana que está setenta e cinco léguas de Cochim.» A expressão é, a nosso ver, demasiado vaga para nos dar a certeza da verdadeira posição do autor, embora pareça sugerir que ele não perfilha a identificação. As duas ilhas, Ceilão e Samatra, são referidas mais adiante, no cap. 39, sem tocar no problema da identificação com a designação antiga29.

Quanto a Garcia de Orta, faz uma descrição de Ceilão no Colóquio 15, ao tratar da canela, um dos seus mais famosos produtos. E escreve (fol. 63v): «Tem a ilha de Ceilão de comprimento 80 léguas ou mais e de largura 30 léguas [...] e a mais frutífera e milhar ilha do mundo. Alguns disseram ser Taprobana ou Samatra.»

Estamos agora perante o próprio livro para o qual o nosso Poeta compôs a ode laudatória. Antes de tornarmos à discussão do texto, vejamos, porém, o que se passa em Os Lusíadas.

A ilha de Ceilão é aí referida cinco vezes: em VII.19 (descrição da Índia), IX.14, X.51, X.107 e X.136. É o terceiro passo, ou seja, X.107, que nos importa lembrar:

Vês corre a costa célebre Indiana Para o Sul, até o Cabo Comori, Já chamado Cori, que Taprobana (Que ora é Ceilão) de fronte tem de si.

A identificação, aqui claramente feita, está de acordo com o que se lera em estância anterior do mesmo Canto (X.51), onde se faz referência ao principal pro-duto da ilha e a uma das suas localidades:

A nobre ilha também de Taprobana, Já pelo nome antigo tão famosa, Quanto agora soberba e soberana Pela cortiça cálida, cheirosa,

29 Agradecemos a colaboração na pesquisa deste e de outros dados dos historiadores quinhen-tistas à Dr.ª Zélia Sampaio Ventura. Acrescentamos ainda que Tomé Pires, na sua Suma Oriental, ed. Armando Cortesão (Coimbra, 1978), descreve ambas as ilhas (Livros IV e V, respectivamente), mas não discute a questão.

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226 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Dela dará tributo à Lusitana Bandeira, quando excelsa e gloriosa, Vencendo, se erguerá na torre erguida Em Columbo, dos próprios tão temida.

Por outro lado, X.124 descreve «a nobre ilha de Samatra» como resultante da separação da Península de Malaca, o conjunto a que os Antigos chamavam a «Áurea Quersoneso»30. Do facto é ainda reminiscente X.135.

Mas, voltando a Taprobana, falta-nos examinar uma outra ocorrência, menos clara, mas mais universalmente conhecida: a da proposição do poema (I.1.4). Aí, o topónimo é tomado como meta mais longínqua dos conhecimentos geográficos dos Antigos, e a grande glória dos Portugueses é terem-na ultrapassado. No seu comentário a este passo, Epifânio, depois de aduzir vários trechos de autores latinos, anota: «A Taprobana dos antigos é a ilha de Ceilão, segundo o próprio Camões diz expressamente em X.107 e indirectamente em X.51; mas havia quem a identificasse com a ilha de Sumatra (por exemplo, Castanheda II, cap. III, D. João de Castro, Roteiro de Lisboa a Goa [ ... ] e é possível que o Poeta, ao compor esta estância, ainda pensasse deste modo. (Na ode estampada à frente dos Coló-quios de Orta, publicados em 1563, ainda ele diz «co sanguinolento/Taprobânico Achém») .»

Também um passo da Lírica (Écloga I.364) dá como limites do poderio português o remoto mar de Taprobana31.

A precisão e amplitude dos conhecimentos geográficos de Camões tem já sido objecto de estudo32 e de admiração por parte de sábios como Humboldt. É provável que as perdidas Tábuas de João de Barros tivessem sido, como geralmente se pensa, a sua fonte principal33, e já vimos qual a posição do famoso historiador quando à localização de Taprobana. A Década III, que então citámos (e na qual se anunciava a intenção de compor as Tábuas), só veio a ser publicada postumamente – curiosa

30 Ptolomeu I.13.31 Em trecho referente ao nascimento de D. Sebastião, portanto, datável de 1554. Ora Afonso

de Albuquerque tomara Malaca em 1511. Além disso, os Portugueses chegaram às costas de Bornéu em 1523, à ilha de Celebes em 1525, ao noroeste da Nova Guiné em 1527. O nome de Taprobana está ainda no Soneto 162, em contexto que a indica como um ponto longínquo a Oriente. Quanto ao passo da Écloga I, o Doutor Luís Albuquerque, a quem consultámos sobre a matéria, pensa que tal limite do império, anunciado naquela data, já não deve dizer respeito a Ceilão, mas a Samatra. Não pode esquecer-se, ainda, segundo observa o mesmo historiador da náutica e dos descobrimentos, que o famoso e influente planisfério dito de Cantina (1502) coloca a legenda «Taprobana» sobre a ilha de Samatra. Cf. Luís de Albuquerque, Estudos de História IV (Coimbra, 1916), pp. 181-221.

32 Especialmente o livro de António Borges de Figueiredo, A Geografia dos Lusíadas (Lisboa, infra), e, recentemente, o belo artigo de Orlando Ribeiro, «Camões e a Geografia», Finisterra 15 (1980), 153- -199.

33 Assim pensa Orlando Ribeiro, op. cit., pp. 160, 175.

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2273. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO

coincidência! – em 1563. A Década V de Diogo do Couto foi por este enviada a Filipe II na armada de 159734. Por outro lado, Pedro Nunes e D. João de Castro situavam, como vimos, a discutida ilha em Samatra e Garcia de Orta hesitava.

Todos estes dados apontam, em nosso entender, para uma hipótese: em 1563, ainda Camões identificava Taprobana com Samatra, e assim podia chamar ao Achém Taprobânico. A leitura de parte da Década VII de Diogo do Couto consagrada ao vice-reinado de D. Francisco Coutinho (1561-1564), mostra que o Conde tinha esse povo da ilha de Samatra nas suas preocupações. Logo no início do cap. 16 do Livro X se lê: «Todo este Inverno gastou o Conde Viso-Rei em reformar a armada com que determinava partir entrada de Setembro pera o Achém... e pera esta jornada fez todas as preparações que lhe pareceram necessárias.» Porém, uma das naus que vinha para levar a carga da pimenta soçobrou, e, não tendo ficado mais que duas para o efeito, «determinou de as despedir muito cedo, e desistiu da Armada do Achém, e não sabemos porquê, ou se lhe veio algum regimento de novo, de que não tivemos notícia.»35 É curioso que o próprio Camões viria a celebrar, poucos anos mais tarde (1568), o feito de Dom Leonis Pereira, de ter defendido Malaca do poder dos Achéns, e que o tenha realizado noutro dos raros poemas líricos publicados em vida sua, a Elegia VII (sobre livro de Pero de Magalhães Gândavo, História da Província de Santa Cruz).

Na vigência do governo do Conde do Redondo também houve perturbações em Ceilão36, e o rei de Cambaia era sempre um oculto inimigo nosso, como se depre-ende da narrativa de Diogo do Couto37. Os habitantes de Ceilão, refere o mesmo historiador, que a princípio nem conheciam espingardas, tinham aprendido de tal maneira as artes bélicas que pouco e pouco foram «consumindo em despesas, gente, e artilharia tanto que ela só tem gastado com suas guerras mais que todas as outras conquistas deste Oriente»38.

A tentativa (abandonada, como vimos) de expedição ao Achém, data-a Couto de 1563, no passo acima referido. A ferocidade destes habitantes do Noroeste de Samatra ficou perpetuada em termos semelhantes aos da Ode na já mencionada Elegia VII.70-8739:

34 Epístola a Filipe II de Portugal, citada por A. J. Costa Pimpão na sua edição das Rimas de Camões (Coimbra, 1973), p. LXVI. O mesmo especialista refere que na Epístola que precede a IV Década (a Filipe I), o autor diz ter concluído seis Décadas (a contar da IV). Mas não pretendemos entrar aqui na inextricável questão da transmissão manuscrita da obra histórica do grande amigo de Camões.

35 Cf. também Década VII, Livro X, caps. 2 e 9.36 Década VII, Livro X, cap. 14.37 Sobre o ataque dos capitães de Cambaia, vide Década VII, Livro X, caps. 7 e 8.38 Década V, Livro I, cap. 5.39 Outra alusão à vitória no Soneto 165, Vós, Ninfas da Gangética espessura, que, tal como a Elegia,

também foi publicado com a História da Província de Santa Cruz (Lisboa, 1576).

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228 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Despois, já capitão forte e maduro, governando toda Áurea Quersoneso, lhe defendeu co braço o débil muro;

porque vindo a cercá-lo todo o peso do poder dos Achéns que se sustenta do sangue alheio, em fúria todo aceso;

este só, que a ti, Marte, representa,o castigou de sorte, que o vencido de ter quem fique vivo se contenta.

É possível que um melhor conhecimento da questão, muito acesa também entre geógrafos italianos, que Diogo do Couto cita, viesse a dar origem à emenda que passou a MA e RI:

Taprobana, ou Achém, que o mar molesta,

e que a variante seja do próprio Poeta, que corrigia e aperfeiçoava as suas obras, conforme testemunhou o mesmo Diogo do Couto a propósito de Os Lusíadas40. Mas é igualmente possível que a correcção tenha sido introduzida por alguém que, conhecedor do texto das Décadas, entendesse dever dissociar os dois etnónimos. Esse alguém podia mesmo ser o copista de MA, que efectuou o seu trabalho nos últimos anos do séc. XVI.

Se, à data da feitura da proposição de Os Lusíadas, quando D. Sebastião não era mais que um tenro e novo ramo florecente (I.7.1), o Poeta ainda entendia que Tapro-bana era em Samatra e, portanto, o passar-lhe além representava o transpor do mundo conhecido dos Antigos, até à entrada do Pacífico, é uma hipótese que, como vimos, Epifânio formulou, e que nos parece merecedora de consideração, tendo presente a similitude com o passo, que citámos, da Écloga I. Com os dados de que actualmente dispomos, não nos parece possível avançar mais41.

Na mesma estrofe, v. 36, há uma variante menor: Que qualquer delles treme ao nome vosso (GO) aparece transformado em Que qualquer delles teme o nome vosso (MA, RI). Diferença paleográfica mínima, que conduziu a uma pequena alteração sintáctica, mas que resulta numa frase mais vulgar e menos expressiva. Como escreveu Faria e Sousa, treme ao nome vosso «es mejor». Deve notar-se, no entanto,

40 Década VIII, cap. 28.41 Convém não esquecer, além disso, que a chegada dos Portugueses a Ceilão, em 1505, foi facto

que suscitou uma admiração que deixou rasto em textos de humanistas italianos escritos entre 1505 e 1510, como mostrou A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos (Lisboa, 1980), pp. 13-15 e 24, que põe em relevo o valor simbólico de Ceilão (aí  identificada com a Taprobana de Plínio), como extremo limite do mundo conhecido pelos Antigos, situado ainda mais além das conquistas de Alexandre Magno.

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2293. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO

que a regência do verbo tremer corrente em Os Lusiadas é a preposição de: tremer delle Neptuno de medroso (II.47.3), enquanto Dio ilustre dele treme (X.61.4), que todos tremem dele e nenhum fala (X.66.4).

Em contrapartida, a lição de GO no v. 39, nos, em vez de vos, que têm MA, RI, é manifestamente um erro de imprensa, proveniente de uma confusão na leitura de dois grafemas muito semelhantes42.

No v. 40, a substituição de se mostrou, de GO, por arrebentou, de MA, RI, é uma alteração que resulta mais expressiva e apropriada ao sujeito (o fruto), que vem no verso seguinte, e faz parte da metáfora construída sobre o jogo de palavras com o nome do ilustre médico43.

Efectivamente, os vv. 41-42 introduzem a apresentação do livro de Garcia de Orta, que vai ocupar as próximas estâncias, sem que esteja ausente, segundo julgamos, uma alusão ao jardim botânico que ele possuía em Goa44. Note-se, de passagem, que a forma prantas, de GO, nos parece preferível ao cultismo plantas, de MA, RI, porquanto deve ter sido aquela a usada por Camões, a ava-liar pela sua exclusiva presença em Os Lusíadas (X.70.1, X.136.5; cf. prantar, em I.49.6)45.

A metáfora prossegue na estrofe seguinte, onde se encontra um dos passos mais inseguros da Ode. Trata-se do v. 44, no qual GO lê:

produze hũa orta insigne varias eruas.

Nas outras duas versões, o adjectivo insigne desapareceu. Certamente para compensar a sua falta (embora a aceitação de repetidos hiatos a possa suprir), o copista de MA pôs verbo no plural, com prejuízo da sintaxe, e ainda acrescentou uma preposição:

produsem d’hũa orta varias eruas.

42 A observação da escrita cursiva do séc. XVI mostra grande oscilação no emprego do grafema u para a consoante. Assim, e para só citar exemplos camonianos, o copista de MA usa sempre u, bem como o do Cancioneiro Fernandes Tomás, ao passo que o Cancioneiro de Luís Franco Correa escreve sempre v; em caracteres impressos, reserva-se v para a posição inicial e u para a posição medial.

43 Na apresentação da obra por Dimas Bosque, é utilizada uma linguagem semelhante: «Receba pois o discreto leitor o fruto que desta orta de simples e fruitas da Índia o Doutor Garcia d’Orta lhe oferece.»

44 Colóquios dos Simples e Drogas, fol. 151v.45 Tanto mais de notar quanto é certo que Garcia de Orta diz planta (fol. 199r), plantas (fol. 1v) e

plantam (fol. 38r). O facto de Os Lusíadas manterem pranta é significativo, pois, conforme procuramos mostrar no nosso trabalho citado na nota 11, havia inúmeras formas vulgarizadas no manuscrito donde Luís Franco Correa trasladou o Tomo I, que aparecem latinizadas na editio princeps.

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230 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

O editor de RI detectou o erro e tentou melhorá-lo, alterando também a ordem das palavras:

hũa horta produze varias heruas.

Comparando a lição de RI com a de MA, comentou Emmanuel Pereira Filho: «a reaproximação com GO é verdadeiramente considerável, com perfeita restau-ração do verbo e da função sintática de hũa orta, com o que inclusive há até uma reaproximação ao jogo metafórico logrado por Camões» (p. 248).

Em nosso entender, porém, estamos perante um caso em que não deve haver dúvidas sobre a lição a preferir. O texto de GO evita os hiatos e contém, além disso, um elogio do autor do livro metricamente bem colocado (é sobre ele que recai o acento da sexta sílaba), e condizente com o encómio que dele faz Dimas Bosque no prólogo, ao dizer «que duvido achar na Europa quem em seu estudo lhe fizesse vantagem»46.

Ora a Ode foi impressa, como repetidamente se disse, em 1563. Nessa altura, Orta gozava do título de «físico del Rey nosso senhor». Tinha obtido, no ano anterior, o «privilégio» do Viso-Rey para a impressão da obra, que dedicara, em prosa e verso47, a Martim Afonso de Sousa, com quem embarcara para a Índia em 1534, na qualidade de seu «físico», quando aquele reputado homem público fora nomeado capitão-mor do mar, cargo logo abaixo do de Vice-Rei48. Além disso, o mesmo valenciano Dimas Bosque, que fora médico da armada do Vice-Rei D. Constantino de Bragança e físico-mor, o prefaciara em português e compusera, para o final do livro, uma recomendação em latim, endereçada ao Doutor Tomás Rodrigues, lente de Medicina na Universidade de Coimbra. A ele se juntava um elogio, na mesma língua universal dos cultos, de Tomás Caiado, que não hesita em proclamar49:

Plinius es terris, atque Dyoscorides.

46  É neste mesmo prólogo que se historia a formação científica de Orta, em Alcalá e Salamanca (confirmada no título do Colóquio I), o seu ensino «lendo nos estudos de Lisboa por alguns anos», a sua longa experiência na Índia, «não somente na companhia dos Vice-Reis e Governadores, mas em algũas cortes de reis mouros e gentios.»

47  Não julgamos provável a hipótese de Teófilo Braga, A primeira ode impressa de Luís de Camões, pp. 9-10, de que o soneto em causa fosse do próprio Poeta, embora pudesse ter dado uma «ajuda», como a que ofereceu a Heitor da Silveira, quando este mandou umas trovas ao Conde do Redondo (Redondilhas, 109).

48  Sobre esta figura, cuja acção se estendeu do Brasil ao Oriente, vide Conde de Ficalho, Garcia de Orta e o seu tempo, cap. III.

49  Destes interessantes e reveladores textos nos ocupámos já, traduzindo-os e comentando-os, em «Louvores latinos aos Colóquios dos Simples e Drogas», em folheto que veio a ser reimpresso em apêndice à nossa colectânea Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa, 1972), pp. 221-233.

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2313. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO

O livro de Garcia de Orta teve um destino brilhante na história da ciência, desde que Clusius o deu a conhecer à Europa, através de uma versão latina, ou, mais exactamente, de um epítome nessa língua, o qual conheceu muitas edições, que, por sua vez, deram origem a versões noutros idiomas50.

Porém, outro tanto não sucedeu ao seu autor. A triste história é conhecida: após a sua morte, ocorrida talvez cinco anos volvidos sobre a publicação da obra, é feito aos seus ossos o auto-de-fé que a vida lhe poupara. Supomos que tal facto não será estranho à supressão do qualificativo de insigne, que já se verifica em MA, copiado nos finais do séc. XVI. E, se este ainda traz a rubrica «A Dom Francisco Coutinho sobre o livro que compos o Doutor Orta De Simplicibus», o seu derivado RI omite por completo a finalidade do poema51. Por todos estes motivos, pensamos que, neste caso, a versão exacta é sem dúvida a da edição de Goa.

Voltando ao texto da Ode, surge nova variante no v. 45, onde GO tem nos campos lusitanos, contra MA, RI, que lêem nos campos indianos. Sobre ela teceu um largo comentário Faria e Sousa, do qual se conclui que prefere a versão de GO, com a especiosa razão de que «en los Lusitanos las produxo con la noticia que á estos dió con escrivir dellas, aviendo examinado sus virtudes». Mas, como acentuara antes, «todo puede ser». Julgamos, pelo contrário, que a versão de onde deriva MA é a mais correcta.

Uma das divergências mais merecedoras de estudo é a do v. 50, onde as quatro fontes diferem:

50 Sobre o assunto, vide Conde de Ficalho, op. cit., cap. XIV. É curioso notar que Orta afirma na dedicatória a Martim Afonso de Sousa que «bem pudera eu compor este tratado em latim, como o tinha muitos anos antes composto, e fora a Vossa Senhoria mais aprazível, pois o entendeis milhor que a materna língua, mas traiadeo [sic] em português, por ser mais geral, e porque sei que todos os que nestas indianas regiões habitam sabendo a quem vai intitulado folgarão de o ler». Ao passo que Dimas Bosque é mais restritivo: «O qual teve começado em lingua latina, e por ser mais familiar a matéria de que ele escrevia, por ser importunado de seus amigos e familiares, para que o proveito fosse mais comunicado determinou escrevê-lo na língua portuguesa a modo de diá-logo...» No seu já citado epigrama latino, Tomás Caiado, como bom humanista que era, censurou a  escolha.

51 O facto de o título estar em latim (o mesmo que emprega Dimas Bosque na sua recomenda-ção ao Doutor Tomás Rodrigues: doctorem Garciam ab Horto [ ... ] de simplicibus scribentem), conjugado com os dados referidos na nota anterior, faz-nos conjecturar que Camões tivesse composto a sua Ode para a versão primitiva do livro. Efectivamente, o derivado latino publicado por Clusius não é designado daquele modo.

Em abono da hipótese que avançamos quanto aos efeitos de uma damnatio memoriae, recorde-se que o Conde de Ficalho, op. cit., pp. 386- -388, menciona duas versões directas, embora ampliadas (não dependentes, portanto, do Epítome de Clusius) em castelhano: uma, de Madrid, 1572, por Juan Fragoso, que dá como autor e nada confessa sobre o seu modelo, na parte respeitante à Índia, e outra de Cristóvão da Costa, publicada em Burgos, em 1578, que especifica «en el qual se verifica mucho de lo que escribió el Doctor Garcia de Orta». Em Portugal, só viria a fazer-se segunda edição dos Colóquios dos Simples e Drogas em 1872...

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232 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

danos letras, e longua experiençia (GO) d’annos, se tras e varia experiencia (MA)d’annos, e tras a varia experiencia (RI) d’annos, letras e varia experiencia ( JU)

Para além da gralha evidente na primeira palavra de GO (e a edição é fértil em aglutinações indevidas), há duas diferenças fundamentais que comprovam, a nosso ver, a natureza contaminada que atrás atribuímos a JU: efectivamente, este concorda com GO em ler letras, e com MA, RI na adjectivação de experiência. Quanto ao segundo ponto, supomos que terá sido decorrente de uma alteração feita pelo próprio poeta, que, entendendo que a duração já estava expressa em carregado d’anos (vv. 49-50), teria antes querido insistir na multifacetada experiência do antigo doutor de Salamanca e de Alcalá. Notemos, no entanto, que o sintagma longa experiência regressa em Lusíadas X.154.6.

Porém, quanto à expressão sem sentido se tras de MA, que RI tentou melhorar, emendando para e tras, cremos que ela assenta numa leitura errada de letras. Que a atribuição de letras (= cultura, saber proveniente do manuseio de muitos livros52), a Garcia de Orta não destoava num médico, prova-o o elogio, já várias vezes refe-rido, de Dimas Bosque, ao proclamar: «pois são de homem que do princípio da sua idade até autorizada velhice nas letras, e faculdade de Medicina, gastou seu tempo com tanto trabalho, e diligência que duvido achar na Europa quem em seu estudo lhe fizesse vantagem». Pelo que entendemos que se deve regressar, neste particular, ao texto goês.

Mais difícil é decidir entre as três versões do v. 57:

que aguora em luz saindo ( GO) qu’impresso a lus saindo (MA, RI)o qual à luz saindo ( JU)

Todas elas correctas quanto à métrica e ao sentido, apenas se pode objectar à preposição em, se confrontarmos a perífrase para significar a publicação do livro com a rubrica com que Luís Franco Correa interrompeu (infelizmente!) a sua cópia de Os Lusíadas, ao fim do primeiro Canto: «não continuo porque sahio a lus». Por essa mesma razão, a emenda de MA, RI se nos afigura tautológica. A variante de JU, que repete as palavras iniciais do v. 55, não parece de aceitar. Pelo que julgamos que a lição mais correcta deverá ser:

que agora à luz saindo

52 Para a primeira acepção, cf. Lusíadas III.13.7-8:Com quem tu, clara Grécia, o céu penetras, e não menos por armas, que por letras.

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2333. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO

Diferentemente, no v. 58, JU concorda com MA em ler novo lume, ao passo que MA e RI, têm vivo lume. A primeira adjectivação sublinha a novidade da obra, pela que se afigura mais apropriada ao contexto, designadamente aos versos seguin-tes, e, de um modo geral, à originalidade em relação aos antigos, que Orta a cada momento acentua. A variante vivo lume tem, porém, a apoiá-la o paralelo com o lume vivo de Lusíadas V.18.1.

Também no verso seguinte JU concorda com GO, ao ler:

e descobrindo ira segredos çertos

Ao passo que MA e RI substituem a perifrástica pelo futuro descobrir nos a. Se é certo que o emprego deste tempo se justifica plenamente pelo seu uso na oração anterior (dará), também não é de enjeitar o valor progressivo contido na construção do verbo ir com o gerúndio, tão frequente em Os Lusíadas53.

Quanto ao v. 65, onde GO e MA têm ajuday, contra ajuda de RI, trata-se de um erro evidente deste último, por omissão de uma letra.

Com estas observações, não cremos ter resolvido todas as dificuldades que comporta a restituição do texto da Ode Aquele único exemplo, para a qual Emmanuel Pereira Filho tinha já dado achegas fundamentais, quer estabelecendo a lista dos códices, manuscritos e impressos, a ter em conta, quer clarificando a relação entre eles, quer ainda discutindo com argúcia diversos passos duvidosos. Procurámos dilucidar mais alguns, embora admitamos que, num ou noutro caso, possa ter havido bifurcação na transmissão, proveniente de alterações introduzidas pelo próprio autor.

No decurso da análise feita, tivemos ocasião de verificar que nesta peça lírica, mais do que em qualquer outra, se entrelaçam motivos que serão essenciais na trama de Os Lusíadas. Assim, os exemplos mitológicos são ponto de partida para a valorização das realizações portuguesas coevas, quer elas se situem no plano de acção bélica, quer no domínio intelectual, com relevo para a superioridade do saber alcançado pela experiência. Experiência que, segundo a leitura que propusemos do v. 50, vem completar o conhecimento adquirido pelas letras, tal como o preconizava Luís de Camões, ao auto-retratar-se no final da sua epopeia (X.154.5-6).

nem me falta na vida honesto estudo com longa experiência misturado.

53 Apenas alguns exemplos: abrindo as pandas asas vão ao vento (IV.49.2), assi fomos abrindo aque-les mares (V.4.1), quando subindo ireis ao eterno templo (I.9.4), novos mundos ao mundo irão mostrando (II.8).

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234 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

E tudo isto tendo como pano de fundo realidades geográficas e acontecimen-tos ou figuras marcantes do passado, que tornam indispensável a aproximação com as obras dos historiadores e cientistas de Quinhentos, pelo que as múltiplas questões de crítica textual que a Ode ao Conde do Redondo suscita atingem uma elevada dimensão cultural.

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4. A ELEGIA III DE CAMÕES*

Em frente ao Mar Negro, em Constança, a poucos quilómetros do delta do Danúbio, ergue-se, desde o século XIX, uma estátua de mármore, obra de um escultor italiano, que representa um Romano vestido com a sua toga, absorto em tristes meditações. Alguns versos em latim, gravados no pedestal, identificam-no como um dos mais célebres e mais influentes poetas exilados de todos os tempos: Ovídio. O Ovídio das Metamorfoses, repositório inesgotável de mitos, a que o autor lamentava não ter podido dar a última demão, mas que no entanto atravessou incólume a Idade Média e continua a inspirar poetas e artistas; o dos Fastos, dos Amores, da Arte de Amar, e não menos o das Elegias Tristes e das Elegias do Ponto. Foi precisamente nestas duas últimas obras que ficou gravado para sempre o perfil solitário do poeta de Sulmona.

Não vamos renovar a discussão sobre as verdadeiras causas do exílio, que ainda hoje nos surpreende no meio dos esplendores literários e da concórdia geral da Pax Augusta. Que uma terá sido a Arte de Amar, repete-o o autor vezes sem conta1; que presenciou alguma coisa grave que não podia referir, também o afirma, embora sempre de forma elíptica2. É a figura do exilado que nos importa, mandado para os confins do Império Romano, para viver entre Getas, Sármatas e Iáziges3. São as suas queixas das guerras constantes4, do clima inóspito, com frio, neve e gelo5.

* Publicado em Península. Revista de Estudos Ibéricos 1 (2004), 107-112. 1 E.g., Tristia II.7-8; Pontica I.6.25-26, II.9.73-74, II.11.2, III.3.37-40. (Nas citações destas obras de

Ovídio, servimo-nos da edição de S. G. Owen, Oxford, reprint, 1959).2 Lembre-se, por exemplo, Tristia II.207-208, III.5.49-52.3 Pontica I.2.76-77.4 E.g. Tristia III.10.53-70, V.10.21-26; Pontica I.2.13-14.5 E.g. Tristia III.8.27-32, V.2.63-66; Pontica I.2.23-26, I.3.45-50.

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236 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Ninguém compreende a sua língua6, e, quando muito, ouvem-se restos de grego com sotaque geta7.

O desespero deste isolamento, originado no confronto entre padrões civiliza-cionais e linguísticos opostos, exprime-se na indignação destes versos8:

Barbarus hic ego sum, qui non intellegor ulliEt rident stolidi verba Latina Getae.

O bárbaro aqui sou eu, a quem ninguém compreende,E das palavras latinas se riem os estólidos Getas.

Tal situação, porém, não se manterá por muito tempo. É o próprio poeta que vai ao encontro do Outro, e que em breve se afirmará capaz de se exprimir em geta9. Mais ainda, compõe um livro na língua local, o que lhe valeu ganhar fama entre os nativos10.

Com esta breve digressão, quisemos pôr em evidência as dificuldades de aculturação que podiam ocorrer no maior dos impérios antigos, e não menos o inesperado paradoxo de ter sido na região que havia de conservar até hoje uma língua derivada do latim – a actual Roménia, não obstante estar enquadrada por países eslavos e por um (a Hungria) que nem sequer pertence à área indo-europeia – que se deram estes factos que estão a completar vinte séculos.

Mas voltemos ao clima inóspito e ao isolamento, que, esses sim, são topoi que passarão à posteridade, bem como o da consolação propiciada pela escrita (carmi-nibus quaero miserarum oblivia rerum – «nos carmes busco o olvido da desgraça»11 – será um lema constantemente evocado por poetas portugueses setecentistas, como Bocage e a Marquesa de Alorna). Ligado a este tema está o da esperança na imortalidade futura da obra12, tema esse que atingira a sua mais alta expressão no carme que encerra os três primeiros livros de Odes de Horácio (monumentum

6 E.g. Tristia II.11.9-10, III.14.37-40, V.10.35-36.7 Tristia V.2.67-68.8 Tristia V.10.37-38.9 Tristia V.7.55-56; Pontica III.2.40. Noutros lugares confessa que chegou a ver-se na necessidade

de conversar consigo mesmo em latim (Tristia V.7.61-64) e de recear dar erros de latinidade nos seus versos, misturando palavras pônticas com as latinas (Tristia III.14.49-50).

10 Pontica IV.13.17-22.11 Tristia V.7.67.12 Tristia III.3.71-80, III.7.45-52, IV.10.127-132; e, sobretudo, IV.9.17-26.

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2374. A ELEGIA III DE CAMÕES

aere perennius13) e será retomado, por sua vez, pelo próprio Sulmonense, no epílogo das Metamorfoses14.

Conferem variedade a esta poesia predominantemente confessional – a que não faltam pedidos aos amigos para intercederem por ele junto de César – as invocações aos lugares famosos da Roma monumental15 e das cerimónias do triunfo, que podem ocupar toda uma elegia, como sucede com a celebração do de Tibério16. Um sem número de figuras mitológicas, que encarnavam a amizade e a lealdade, o amor, a dor da separação, a fidelidade conjugal, ora evocada sob a forma de catálogo, ora ocupando todo um poema, o uso repetido do adynaton para realçar uma impossibilidade pela firmeza da negativa – são outros tantos processos retóricos que asseguram a variatio nestes dois livros.

Teve este preâmbulo em vista conduzir-nos a uma leitura e exegese – das várias possíveis – daquele poema camoniano que Wilhelmn Storck17 chamou «a elegia do desterro», ou seja a Elegia III, conquanto tal designação conviesse igualmente às duas anteriores, sem esquecer, embora, que elas se encontram dispostas na ordem cronológica inversa dos acontecimentos, conforme já notara Faria e Sousa18. Efectivamente, esta tem por cenário «o brando Tejo» (58), quer fosse composta em Santarém, conforme supôs o mesmo Storck, quer em Constância, como man-tém uma tradição que se afigura mais fundamentada19; ao passo que a segunda decorre em Ceuta, onde o autor terá permanecido entre 1549 e 1551; e a primeira descreve a sua partida para a Índia, em 1552, e a expedição vitoriosa contra o rei de Chembe, na qual tomou parte, mal chegado a Goa.

Têm todas elas em comum o arquitexto ovidiano, sendo a primeira a que con-tém a descrição da tormentosa viagem para o exílio, que partindo de Tristia I.2 do Sulmonenese, aparece aqui remodelada em termos que prenunciam a tempestade marítima de Os Lusíadas20. As três elegias evocam, no final, figuras mitológicas tradicionais do Além.

13 É o famoso poema de Odes. III.30.14 Metamorfoses XV.871-879.15 E.g. Pontica I.8.29-38.16 Tristia IV.2 e Pontica II.1, respectivamente.17 Vida e Obra de Luís de Camões (Tradução de Carolina Michaëlis de Vasconcelos), Lisboa, reed.

1980, p. 396.18 Rimas Várias de Luís de Camões, Lisboa, 1689, Tom. IV, 2ª Parte, p. 23.19  Sobre a biografia do Poeta, seguimos a prudente reconstituição de Aníbal Pinto de Castro, 

Camões Poeta pelo Mundo em Pedaços Repartido, Lisboa, Instituto Camões, 2003, especialmente p. 6. Na numeração e citações do texto camoniano utilizaremos a edição de A. J. da Costa Pimpão (reed. revista e prefaciada por Aníbal Pinto de Castro), Coimbra, 1994.

20 A Elegia I contém, além disso, ecos bem audíveis de Virgílio, sobretudo de Geórgicas II.452-474, e de Horácio, Odes II.18.

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238 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

A Elegia III, porém, já parcialmente analisada por alguns estudiosos21, é a que coloca logo no início a figura do poeta romano absorvido pelos seus pensamentos (1-24). Aí, a condição de exilado, o clima inóspito, a separação dos entes queridos, preenchem o primeiro terceto. Repare-se desde já como o topos que incluía o frio terrível, água salobra, rios gelados, escassa vegetação22, está condensado num único lexema: «aspereza». O terceto seguinte recorda a cena da separação, à qual o Sulmonense consagrara toda a Elegia 3 do Livro I de Tristia. Aí é preponderante a figura da esposa (que roga, até, que a deixem acompanhar o marido e desmaia no momento da partida) e a de um ou dois amigos, que eram quantos lhe resta-vam dos muitos que até havia pouco contara. Com grande sobriedade, Camões concentra a emoção da despedida em três referências que preenchem o segundo terceto:

Sua cara mulher desamparando, Seus doces filhos, seu contentamento, De sua pátria os olhos apartando.

O motivo dos amigos, quer dos fiéis, quer dos ingratos (que há-de preencher elegias inteiras do autor latino, devidamente escudado por exemplos mitológicos) foi substituído pelo dos amados filhos (que Ovídio não refere, nem podia referir, porque ele tinha apenas uma filha, já casada, que vivia na Líbia). Esta alteração, aliás, de efeito dramático mais imediato, pode, no entanto, explicar-se pelo cru-zamento com um passo de Tristia III.11.15-16, onde ao afastamento dos pignora (palavra que habitualmente designa por metáfora os filhos) se junta a expulsão do país natal:

Vtque sit exiguum poenae quod coniuge cara, Quod patria careo pignoribusque meis;

Ainda que fosse castigo leve estar privado da cara esposa, Privado da pátria e dos penhores do meu afecto;

Os lamentos do poeta exilado dirigem-se, como estava consagrado por uma longa tradição, à natureza: «Aos montes e às águas se queixava» (8). O terceto

21 Designadamente, Gessey Georgette Berge Yahn, O Homem sob o Signo do Desterro. Uma Elegia de Camões, Rio de Janeiro, 1971 (a que não tivemos acesso); Carlos Ascenso André, Mal de Ausência. O Canto do Exílio na Lírica do Humanismo Português, Coimbra, 1992, pp. 230-231; Maria do Céu Fraga, Os Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, Coimbra, Centro de Estudos Camonianos, 2003, pp. 208, 216, passim.

22 Alguns exemplos são, respectivamente, Tristia III.3.7-8; III.10.25-34, 71-75. Em Pontica tão-pouco escasseiam dados semelhantes, e.g., I.3.49-50, II.7.69-74, III.1.11-24.

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2394. A ELEGIA III DE CAMÕES

seguinte poderá parecer estranho ao leitor habitual dos Antigos, revelando, ape-nas, a erudição do nosso poeta, criado na ciência do Renascimento. No entanto, também aqui, segundo julgamos, «o curso das estrelas contemplava» (10) é uma contrapartida à invocação às constelações da Ursa Maior e da Ursa Menor, que o poeta dos Tristia dizia que observavam o universo sem nunca mergulhar nas águas marinhas23. Recordemos, de passagem, que Camões havia de insistir nos dados trazidos pelos Descobrimentos a este respeito: bastará lembrar a Elegia I.113-115 («debaixo estando já da Estrela nova,/ que no novo Hemisfério resplandece,/ dando do segundo axe certa prova») e, mais ainda, o conhecido passo de Os Lusíadas V.15.7-8 («vimos as Ursas apesar de Juno/ banharem-se nas águas de Neptuno»).

O quarto terceto preludia uma descrição da natureza em tons suaves, a con-dizer com a realidade das margens do Tejo, que adiante surgirão, dulcificando, portanto, os dados observados por Ovídio. Efectivamente, o Sulmonense, ao des-crever o insuportável Inverno cítio, não se esquece de mencionar que via os peixes presos no gelo, conquanto parte deles ainda estivesse viva24. Os outros animais aí referidos são os cavalos dos inimigos e os bois que puxam os carros dos Sármatas, passando a vau sobre a superfície gelada do Danúbio25. Paralelamente, para se poder incorporar nesta contemplação o terceto seguinte (16-18):

De suas fontes via estar nascendo os saüdosos rios de cristal, a sua natureza obedecendo,

apenas virá à colação o extenso catálogo dos rios que desaguam no Mar Negro, desde as costas da Ásia Menor ao Danúbio26.

A propósito destes tercetos, escreveu Maria do Céu Fraga, muito acertadamente, que «na terra do exílio reina a harmonia», e ainda que «o poema camoniano acen-tua lexicalmente a ordem do universo ao mesmo tempo que sublinha a integração de cada elemento no seu meio natural»27. Acentuaremos, pela nossa parte, que

23 Tópico este que se repete muitas vezes, e.g., Tristia I.2.29, IV.3.1-6.24 Tristia III.10.49-50. Os peixes que nadam no mar, e que são incontáveis, figuram numa série 

de adynata em Pontica II.7.28.25 Tristia III.10.29-34.26 Pontica IV.10.45-64. A descrição culmina com a referência aos efeitos da entrada de tamanha

massa de água nas salgadas águas marinhas – observação esta ratificada pelos geógrafos actuais, como refere Jacques André na sua edição dos Pontica, Paris, 2ème tirage, 2002, p. 143, nota 1.

27 Os Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, p. 209. Julgamos menos provável a afirmação, contida na página seguinte, de que Camões «parece lembrar-se destes versos [Tristia III.8.23], desenvolvendo a partir dele os seus próprios versos numa correlação quase perfeita». Mas não concordamos com a mesma especialista quando põe em paralelo o início deste poema com o diálogo de que parte a Elegia «O poeta Simónides, falando», que assenta em Cícero, De Finibus 2.32, 104.

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os dados originários, quer dos Tristia, quer dos Pontica, pintam sempre com cores sombrias o lugar do desterro.

Os dois tercetos seguintes (19-24) voltam à dor do isolamento em terra estranha, apenas atenuado porque «sua doce Musa o acompanha / nos versos saüdosos que escrevia». Até que ponto a poesia era o seu lenitivo, lê-se repetidamente em Ovídio, especialmente em Tristia IV.10.111-112. E de Tristia IV.1.95-96 correm também «as lágrimas com que ali o campo banha» (24).

Logo a seguir, opera-se a transição para o presente do nosso poeta (25-27)28:

Destarte me afigura a fantasia a vida com que vivo, desterrado do bem que noutro tempo possuía.

«Noutro tempo» (27) – a lembrança do passado – vai dominar os tercetos seguin-tes, motivo que se liga naturalmente à «pouca culpa» (35) e à «pena», também essa imerecida (37-39), dominantes nas elegias de Ovídio.

Mas este lugar do exílio, ao contrário do que sucedia no Ponto Euxino, é lumi-noso e atraente (40-45):

Quando a roxa manhã, fermosa e bela, abre as portas ao Sol e cai o orvalho, e torna a seus queixumes filomela;

este cuidado que co sono atalhoem sonhos me parece; que o que a gente para descanso tem, me dá trabalho.

Tal como sucederá depois na Elegia II, «Aquela que de amor descomedido», o triste poeta sobe a um monte (neste caso, localizado no Calpe – 47), para aí se concentrar nas suas recordações e na expectativa da libertação, que, aliás, mal ousa esperar. A oscilação entre um presente sombrio e um passado ridente aparece simbolizada no primeiro esboço de paisagem (55-57), logo substituído pela visão do «puro, suave e brando Tejo» (58), com as suas barcas, movidas pelo vento ou pelos remos (58-63). E repare-se como estes topoi são precisamente o inverso dos de Tristia III.10.47-48:

Inclusaeque gelu stabunt in marmore puppes, Nec poterit rigidas findere remus aquas.

28 Maria do Céu Fraga, Os Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, pp. 211 e 312, vai ao ponto de classificar este quadro inicial do poema como um símile, embora tal designação não seja aqui a mais apropriada.

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2414. A ELEGIA III DE CAMÕES

Bloqueados pelo gelo, ficarão estáticos os navios no mármore,Nem o remo será capaz de as águas sulcar.

Pelo contrário, na elegia camoniana a tranquilidade do cenário funciona como um aceno de libertação, que leva à apóstrofe seguinte (67-72):

ó fugitivas ondas, esperai! que, pois me não levais em companhia, ao menos estas lágrimas levai, até que venha aquele alegre dia que eu vá onde vós is, contente e ledo. Mas tanto tempo, quem o passaria?

No seu já mencionado livro, Maria do Céu Fraga considera, muito justamente, que «estes tercetos dão ao desterro camoniano a verdadeira dimensão trágica desta nostalgia (...). O nosso poeta luta não com o espaço físico, humanamente transponível, mas com o tempo».29

Daqui se passa ao tema da morte, que não aniquila a alma, que é imortal (76- -78). Não é, porém, nesse sentido metafísico que o poema prossegue, mas no da utilização dos motivos clássicos que simbolizam o Além (79-84): as «portas Tar-táreas», o passar do Letes, os suplícios de Tântalo e Tício, que empalideceriam em comparação com os seus (o chamado «esquema de superação»)30. O Averno tradicional assomará também, com maior ou menor evidência, nas Elegias I e II. No poema que estamos a considerar, eles suscitam uma reflexão final sobre a dor que estes pensamentos lhe avolumam, e que durará «até que a noite eterna me consuma» (91), a menos que a Fortuna, dona e senhora da mudança, lhe permita ver «aquele dia desejado» (92). Mas mesmo sobre esta esperança fugaz o verso final faz pairar a dúvida:

Se nela há i mudar um triste estado.

Entre o poeta latino que «aos montes e às águas se queixava» (8) e o lusitano, que apostrofava as águas do Tejo (64-67) há uma continuidade de motivos que tentámos pôr em evidência. Mas o paralelismo das situações está longe de ser

29 Maria do Céu Fraga, Os Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, p. 213.30 A comparação com os supliciados no Além é o tema recorrente da Canção II, «A instabilidade

da fortuna», que desde Faria e Sousa é costume aproximar da Canção XV de Sannazaro, «Qual pena, lasso». Tratámos desta questão em Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa, Lisboa, 1988, pp. 79-81.

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total. Ao exilado de Tomis consola-o a companhia dos seus versos. Camões dirá de si que (85-87):

Esta imaginação me acrescenta mil mágoas no sentido, porque a vida de imaginações tristes se sustenta.

Até que, por último, a esperança de «aquele dia desejado» (92) se desvanece. É nestes tons menores, que hão-de alcançar a sua mais alta expressão nalgumas Canções, designadamente a IX e a X, que termina a Elegia III, aquela que terá sido o seu primeiro poema de degredo, composto a partir da evocação do Sulmonense Ovídio.

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5. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES*

Entre todo o maravilhoso pagão de que Camões se serve nos seus versos, pas-sando sem esforço – ao contrário da maioria dos seus comentadores – deste para a humana realidade ou até para a espiritualidade cristã, têm lugar de eleição as divindades femininas dos campos e das águas, nas quais a transição da beleza natural para a beleza corporal se esbate facilmente1.

Veja-se um exemplo encastoado n’Os Lusíadas, numa sequência de estrofes que, na terminologia consagrada do género épico, teria de se chamar, aridamente, o catálogo das conquistas de D. Afonso Henriques:

A estas nobres vilas sometidas, ajunta também Mafra, em pouco espaço, e nas serras da Lua conhecidas sojuga a fria Sintra, o duro braço; Sintra, onde as Náiades, escondidas nas fontes, vão fugindo ao doce laço, onde Amor as enreda brandamente, nas águas acendendo fogo ardente.

(III.56)

Aqui temos, numa fugaz miniatura, um tema a que Camões volta muitas vezes: as Ninfas perseguidas pelo Amor. O exemplo mais célebre, o da chamada Ilha dos

* Publicado em Biblos 51 (1980), 315-325; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 31-44.

1 É frequente o poeta sugerir a beleza da amada comparando-a a uma Ninfa (e.g. Odes II.15-21, XIII.1-7) ou designá-la por sua Ninfa (Sonetos 101 e 106) ou ainda tratá-la por Ninfa (Écloga 3.167, 232). Também nós não distinguiremos entre umas e outras neste estudo. (Todas as referências à Lírica são feitas pela edição das Rimas de A. J. Pimpão (Coimbra, 1973)).

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Amores, foi já objecto de um interessante estudo estético de Helmut Hatzfeld2. Não é esse, aliás, o aspecto que aqui nos propomos estudar, mas tão-somente alguns nomes, seu significado e origem, pelo que nos podem dizer da cultura do poeta.

Esses nomes surgem n’Os Lusíadas, mas com mais frequência na Lírica (Éclogas, Elegias, Sonetos). Podem eles repartir-se por duas espécies: os anagramas e os mitónimos gregos – directos ou pela mediação de poetas latinos3.

De menor interesse são os primeiros, para a finalidade que nos ocupa. A Belisa, interlocutora da Écloga III e amada de Frondoso na Écloga VI, esconde certamente uma Isabel, e outro tanto sucederá com a Sibela do Soneto 754.

Mais importante do que estes é o nome de Nise, que parece ficar na fronteira entre o anagrama e o mitónimo. Efectivamente, se não é improvável que repre-sente Inês no Soneto 685, torna-se muito duvidoso que se passe outro tanto com a do breve catálogo da Écloga dos Faunos (100-111) e com a do pequeno grupo de nomes de Nereides que, em Os Lusíadas II.20, desviam as naus do porto de Mombaça.

No comentário a este último passo, depois de notar a semelhança com o Canto X da Eneida, Faria e Sousa (que, relativamente ao Soneto 68, dissera tratar-se de um anagrama de Inês) faz referência a Hesíodo, Burcardo e outros autores que «nembram muchas, e entre ellas estas tres, con la advertencia de que llama Nise, por suaviçar el nombre, a lo que ellos Neseo, que vale nadar.»

A etimologia está manifestamente errada. Esta Nise deve equivaler à Nisaee de Eneida V.826, que, por sua vez, é a transliteração latina, com itacismo, da Νησαίη

2 «Camões’ manieristische und Tassos barocke Gestaltung des Nymphemnotivs (Lusíadas IV.54-89 und Gerusalemme XV.55-XVI.58)», Portugiesische Forschungen der Görresgesellschaft III (1963), 91-109.

3 Por motivos adiante explicitados, não nos parece provável, neste caso (ao contrário do exemplo detectado por José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas (Lisboa, 21979), pp. 56-57, para Lampetusa, em I.46.8 – exemplo esse que, aliás, Epifânio resolve de outro modo) a hipótese da utilização de obras como as Genealogiae de Boccaccio ou a Officina de Ravísio Textor.

4  Os nomes de forma adjectiva, como Silvana, amada de Duriano na Écloga IV, e a Daliana da Écloga VII e dos Sonetos 69 e 70, representam outro tipo de criptónimo. Para a primeira, Faria e Sousa sugere duas hipóteses: o mesmo que Sílvia, anagrama de Luísa, ou derivado do apelido Silva. Parece mais simples supor que é o feminino de Silvano, divindade campestre (o Dicionário Latino de Lewis and Short refere a ocorrência, numa inscrição, de Silvanae como deusas dos bosques). Silvano é um dos segadores da Écloga X de António Ferreira. Na Écloga Montano, Sá de Miranda intitula Silvestre um dos seus pastores, e o mesmo faz Bernardim Ribeiro na Écloga III. Por sua vez, Sílvio é um dos pastores das Éclogas I e X de Diogo Bernardes, enquanto Sílvia dá o nome à Écloga XIV do mesmo autor, e a uma Elegia de António Ferreira contida só no Cancioneiro Fernandes Tomás (no seu estudo sobre esse códice (Coimbra, 1922), p. 89, Carolina Michaëlis recorda que «Caminha festejara também uma Sílvia na sua mocidade (D. Margarida da Silva)»; no próprio Camões, figura uma Sílvia no Soneto 74 e Sílvio no 78 (sobre as variantes do nome no primeiro destes sonetos, vide Arthur Lee-Francis Askins, The Cancioneiro de Cristóvão Borges (Braga, 1979), p. 193).

5  Anagrama será seguramente na Écloga VII de Diogo Bernardes. A identificação com Inês de Lima, filha de D. Francisco de Lima, Visconde de Vila Nova de Cerveira, foi feita por Delfim Guimarães, Arquivo Literário, VII, pp. 218-220 (apud ed. Marques Braga de Diogo Bernardes, vol. II (Lisboa, 1946), p. 51).

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2455. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES

que figura tanto no catálogo das Nereides de Hesíodo (Teogonia 249) como no da Ilíada (XVIII.40)6 e que significa «a que vive nas ilhas» (como Ἀχταίη é «a que habita nos promontórios», Ἠιόνη «a que mora nas margens» e Ψαμάθη «a das areias»).

No passo de Os Lusíadas, Nise está junto com Cloto e Nerine. Que em Cloto houve troca de nome com uma das Parcas, quando se devia dizer Doto (Δωτώ Il. XVIII.43 = Th. 248), foi primeiro notado por Trigoso no Exame crítico comparativo das primeiras cinco edições dos Lusíadas, segundo informa Epifânio no seu comentário ad locum. O erro vinha das edições da Eneida do séc. XVI, que, por gralha tipográfica facilmente explicável, substituíram D por Cl em Aen. IX.1027.

O mesmo Epifânio afirma, a propósito do terceiro nome, que é «um patronímico equivalente a filha de Nereu». Efectivamente, a palavra figura nessa qualidade, a acompanhar nome de Galateia (Nerine Galatea), em Virgílio, Bucólicas VII.37. No passo acima citado do Canto IX da Eneida (102-103), lê-se também8:

.......................... qualis Nereia Dotoet Galatea secant spumantem pectore pontum.

Os comentadores modernos têm geralmente explicado que Nise e Nerine são invenções do poeta (v.g. Cláudio Basto, Hernâni Cidade, A. J. Costa Pimpão)9.

Porém, em face dos factos atrás apontados, seria tentador admitir que entre Nise e Nerine não devia haver vírgula, e que este último nome era o patronímico correspondente àquela. Para tanto, haveria que supor que, como sucede tantas vezes no texto camoniano, e designadamente no famoso erro separativo da edição

6 Colocámos intencionalmente Hesíodo primeiro, não porque alinhemos no grupo dos que têm a Teogonia por anterior à Ilíada, mas porque, seguindo na esteira de Zenódoto e de Aristarco, reco-nhecemos na enumeração homérica (onde, aliás, em vez dos cinquenta nomes das filhas de Nereu em Hesíodo, figuram só trinta e três, dos quais apenas dezassete são comuns) o modelo do poeta da Beócia.

7  Pudemos verificar o facto na edição de 1515, existente no Instituto de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra. A hipercorrecção ao texto de Os Lusíadas principiou na versão francesa de Duperron de Castera, em 1735, segundo Gomes de Amorim (apud Epifânio, comm. ad locum). Note-se que, de duas das fontes geralmente apontadas como prováveis para os conhecimentos mitológicos de Camões, as Genealogiae de Boccaccio e a Officina de Ravísio Textor, a primeira diz Doto e a segunda Cloto.

8 «... tal como a Nereide Doto e Galateia cortam com o peito o mar espumante.»9 Exceptua-se, tanto quanto pudemos saber, Júlio Nogueira, Dicionário e Gramática de «Os Lusí-

adas» (São Paulo, 1960), p. 285, que, seguindo na esteira de Otoniel Mota, identificou Nise com a já citada Ninfa virgiliana Nesaee (Aen. V.826 = Georg. IV.338); quanto a Nerine, supõe-no equivalente de Nereida e compara-o com o patronímico de Nerine Galatea de Buc. VII.37, mas fica na dúvida (citado por Emanuel Paulo Ramos – a quem agradecemos estas informações – no seu comentário ad locum). Na sua tradução inglesa comentada de Os Lusíadas (New York, 1950), Leonard Bacon também diz: «Camões’ Nereids, Burton succeeds in linking up with the Iliad and Aeneid, but Nerina [sic] seems to be the Portuguese’s own invention» (p. 71). António Salgado Júnior nota apenas que Nise e Nerine se não encontram em Virgílio, e António José Saraiva chama-lhes «nereidas camonianas».

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246 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

E (e entre substituído por entre), tivesse sido omitida uma copulativa que ligava os dois verbos10 em perfeito paralelismo com o que se passava com a outra Ninfa. A leitura seria esta:

Cloto c’o peito corta e atravessa com mais furor o mar do que costuma;salta Nise Nerine <e> se arremessa por cima da água crespa, em força suma.

A sequência do texto afirma que as Nereides que fizeram deter a nau capitaina eram muitas11. A especificação podia ser apenas bimembre, tal como sucede no

10 Outros exemplos que podem provir da oscilação no uso linguístico ou resultar de uma intenção estilística: a alternância (comum a António Ferreira) entre toda parte e toda a parte (I.2.7, etc.); todo o dano (I.83.3) e todo dano; quando Gama (I.84.3), que a edição de 1663 emendou para quando o Gama. Um exemplo de troca nas copulativas, com reflexos no sentido da frase, é a proposta de José Maria Rodrigues, «Um ‘e’ a mais e outro de menos em uma oitava de Os Lusíadas» [VI.18] (Lisboa, 1938).

Convém ainda acrescentar que a pontuação de Os Lusíadas, se, por um lado, é muito melhor do que a de outras obras contemporâneas, e mais adequada à leitura, tem, no entanto, erros evidentes, em que surge ou falta uma virgula onde o sentido requeria o contrário. Alguns exemplos tirados da edição Ee:

E vendo sem contraste, e sem braueza dos ventos, ou das, agoas sem corrente, que a Nao passar auante não podia, auendo-o por milagre assi dezia.

(II.29.5-8)

Esta, o velho que os filhos proprios come, por decreto do, Ceo ligeiro, e leue,

(III.22.5-6)

Fizerão caualleiros nesta empresa mais, affinando a fama Portuguesa.

(IV.56.7-8)

por fogo, ferro agoa, calma e frio,(IV.104.6)

Sobre a famosa confusão dos Marcomanos com Polónios, em III.11.4 – originada num erro de pontuação – leia-se o artigo de Armando Sousa Gomes, «Marcomanos não são Polónios», A Língua Portuguesa 4 (1934), 147-149.

Quanto à frequência de expressões paralelas em Camões, vide José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas (Lisboa, 21979), pp. 488-489.

11 Carece de fundamento a hipótese de Faria e Sousa, de que as Ninfas eram três, porque se des-tinavam cada uma a sua nau, tal como sucederia no Canto V da Eneida, onde as seis ninfas nomeadas indicariam que era esse o número de embarcações de Eneias. É que, logo adiante, na estância 22, se declara que eram muitas mais:

Põem-se a Deusa com outras em dereito da proa capitaina, e ali fechandoo caminho da barra estão de jeito,

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2475. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES

Canto VI, quando Vénus leva as Ninfas a abrandar os Ventos, para pôr termo à tempestade. Aí singularizam-se somente Oritia e Galatea12, quando havia muitas mais na formosa companhia:

Desta maneira as outras amansavam subitamente os outros amadores.

(VI.91.1-2)

A aceitarmos a estrofe tal como está nas duas edições datadas de 1572, terí-amos que admitir que Camões, ao invés da sua prática habitual, substituiu aqui um nome de uma Ninfa – que com tanta facilidade encontrava sempre – por uma designação genérica das filhas de Nereu.

Supomos, porém, que não foi esse o caso, e que se trata de um fenómeno semelhante ao que ocorreu na estância 51 do Canto V, onde se lê esta anomalia mitológica na história de Adamastor:

Fui dos filhos aspérrimos da Terra qual Encélado, Egeo, e o Centimano; chamei-me Adamastor, e fui na guerra contra o que vibra os raios de Vulcano.

Ora Centimano (em prosa, Centímano) é atributo de Egéon, gigante de cem braços, como pode ler-se num símile da Eneida X.565-569:

que em vão assopra o vento, a vela inchando. Põem no madeiro duro o brando peito,pera detrás a forte nau forçando.Outras em derredor levando-a estavam,e da barra inimiga a desviavam.

O símile das formigas, que ocupa a estância 23, concorre ainda para reforçar a noção de pluralidade indefinida. Por outro lado, a estrofe 28 confirma que só a nau capitaina precisava de ser desviada.

12 Estância 88-89. Galateia, comum a Ilíada XVIII.45 e a Teogonia 250, passou à Eneida IX.103, depois de ter sido a amada do Ciclope no Idílio XI de Teócrito; é frequente na Lírica camoniana (Elegia I.74; Écloga II.223 (onde representa a amada de Sannazaro); objecto da paixão de Sereno na Écloga VIII. Quanto a Oritia, é uma das Nereides na Ilíada XVIII.48 e não figura em Hesíodo. De outra Oritia, filha de Erecteu e raptada por Bóreas, falava Ovídio nas Metamorfoses VI.675-721; Virgílio faz-lhe alusão em Georg. IV.463 e em Aen. XII.83. Em Os Lusíadas, estão combinados os dois mitos, pois é na qualidade de amada do Vento Norte que a Ninfa consegue amansar o sopro temível às naus.

É certo que as Genealogiae de Boccaccio fornecem o catálogo completo das Nereides da Ilíada, onde figura Oritia, mas o facto de aí se ler correctamente Doto, e não Cloto (vide supra, nota 7) faz-nos pôr em dúvida que fosse a fonte que serviu a Camões; por sua vez, na Officina de Ravísio Textor, onde persiste o erro Clotho, falta Oritia, bem como outras Ninfas homéricas. A combinação destes factos torna mais provável que o modelo tenha sido o homérico.

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248 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Aegaeon qualis, centum cui bracchia dicuntcentenasque manus, quinquaginta oribus ignem pectoribusque arsisse, Iovis cum fulmina contra tot paribus streperet clupeis, tot stringeret enses.

A irregularidade foi notada por Faria e Sousa, que comenta: «Creemos que la conjuncion e, sobra, porque parece hazer dos Gigantes de uno; pues Egeo es Briareo: i epíteto suyo el centimano, porque tenia cien manos.» Cita, depois, em abono da sua identificação, um passo do Canto I da Ilíada (que ocorre em I.402-404).

Hernâni Cidade, no seu comentário ad locum, também observa: «Centimano (ou melhor Centímano se lermos independentemente do metro) que tem cem mãos, não é nome de gigante, mas epíteto dado a Briareu ou Egeon e a Tifeu, gigantes que igualmente foram na escalada do Céu».

Que poderia tratar-se de uma hendíade ou de sinonímia, também o suspeitou Ruben Franca, As armas, e os barões... (Pernambuco, 1973), p. 79.

Por sua vez, Leonard Bacon, na sua já referida tradução comentada, observa, na p. 205: «Egeus, properly Aegeon («hundredfold Aegeon» in Statius, Thebais, IV .535) is all over the war of the Gods and Giants. Hundred Hands, I take to be Briareus».

É oportuno recordar que segundo Hesíodo, Teogonia 149, os Centímanos eram três: Kottos, Briareos e Gyas. Mas, dos três, o mais importante era, de longe, Briareu, como observa M. L. West, Hesiod: Theogony (Oxford, 1966), p. 209, que menciona também o passo da Ilíada em que ele é identificado com Egéon. Esta identifi-cação, bem como o cognome (Centimanus ou Centumgeminus, tradução do grego Ἑκατόγχειρ, composto criado tardiamente pelos mitógrafos), era conhecida tanto das Genealogiae como da Officina, que acrescenta «fuisse fertur centimanus» e cita o passo da Eneida13.

Em consequência de quanto ficou dito, e, particularmente, da semelhança com o passo da Eneida acima referido, supomos que o verso 2 deverá ler-se do seguinte modo:

qual Encélado, Egeo, o Centimano.

A mesma Nise, ponto de partida destas considerações, figura num pequeno e discutido catálogo da Écloga dos Faunos, 100-111, no momento em que se avistam as Ninfas que acodem ao incitamento da companheira:

13 Epifânio, no seu comentário, refere exemplos latinos de ocorrências dos outros dois: centi-manus Gyas em Horácio, Odes II.17.14 (em texto, aliás, de tradição insegura – vide P. G. M. Nisbet and Margaret Hubbard, A Commentary on Horace Odes Book II [Oxford, 1978], p. 279) e centimanum... Typhoea em Ovídio, Metamorfoses III.303.

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2495. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES

Dinamene e Efire, a quem topara nuas Febo num rio, e encobriram seus delicados corpos n’água clara; Sirinx e Nise, que das mãos fugiramdo Tegeu Pan, Amanta e Elisa,destras no arco, mais que quantas tiram; a linda Daliana, com Belisa, ambas vindas do Tejo, que como elas nenhũa tão fermosa as ervas pisa; todas estas angélicas donzelas pelo viçoso monte alegres iam, quais no Céu largo as nítidas estrelas.

Note-se, logo de entrada, a perfeita simetria do quadro: num total de oito nomes, a cada grupo de dois pertence uma circunstância específica14. Assim, Dinamene e Efire estão ligadas ao próprio deus da poesia e ao motivo – tão frequente em Ovídio, e central na sequência narrativa desta mesma écloga – da Ninfa surpre-endida ao banhar-se num rio ou num lago; Sirinx e Nise são perseguidas por Pan; Amanta e Elisa têm pontaria certeira (o que deverá entender-se alegoricamente); Daliana e Belisa, as mais belas, provêm das margens do Tejo. Um terceto cabe às duas primeiras; o seguinte, até à pausa, à terceira e quarta, e daí até ao final, à quinta e sexta; finalmente, um terceto às duas últimas.

A referência ao Tejo, retirando a máscara bucólica ao terceto, despertou, natu-ralmente, a curiosidade dos comentadores. Faria e Sousa partiu do número total (nove) para a identificação com as nove Musas (quando Camões, embora chame Ninfa a Calíope em Lus. III.2.1, nunca dá outra atribuição a essas divindades, como é de regra, que não seja a de inspirar os poetas); com mais um salto de imagi-nação, e atendendo a que as duas últimas parecem colocar a cena em Portugal, formulou a hipótese de nestes tercetos se encontrar uma alegoria ao Paço – a corte da Infanta D. Maria15 – hipótese que Juromenha aceitou16 e que Mendes dos Remédios não desprezou17.

14  Sobre a «estética binária», veja-se Vítor Manuel de Aguiar e Silva , Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa (Coimbra, 1971), pp. 355-358.

15 Rimas Várias de Luís de Camões, vol. II, t. V, col. 307. No seu comentário a Os Lusíadas, vol. I, col. 158, já Faria e Sousa pretendera explicar que as Tágides minhas de I.4 eram as «damas de Lisboa».

16 Obras de Luís de Camões, vol. III, p. 419. Juromenha vai ao ponto de lembrar que as duas Ninfas vindas do Tejo podiam ser as  Irmãs Sigeias, naturais, como é sabido, de Toledo. No exemplar da biblioteca de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, existente no Instituto de Língua e Literatura Por-tuguesas da Universidade de Coimbra, a famosa investigadora exprimiu o seu desacordo com três irónicos pontos de exclamação na margem.

17 Camões, Écloga dos Faunos (Coimbra, 1923), pp. 12 e 57-58.

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250 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Deixando de parte as tentativas biografistas, que são alheias ao nosso propó-sito, notemos que, neste conjunto, os quatro primeiros nomes, embora possam representar pessoas humanas – e certamente o eram, tanto como as outras –, derivam da tradição clássica18.

Comecemos pela última desse grupo. De Nise já dissemos o suficiente. Aqui aparece associada a uma aventura que efectivamente se dera só com Sirinx19. É a que refere Ovídio nas Metamorfoses I.689-712, ao narrar o aition da flauta de Pan. Quanto a Efire, embora se lhe faça alusão nas Metamorfoses II.240, a sua origem está por certo no Catálogo das Nereides de Geórgicas IV.334-347, onde o nome figura no verso 343. Note-se que Efire é, além de Tétis, a única Ninfa expressamente nomeada na Ilha dos Amores (Lusíadas IX.76.2), como sendo aquela que Leonardo perseguia20.

Chegámos, enfim, a Dinamene, nome marcadamente helénico, a Δυναμένη de Ilíada XVIII.43 = Teogonia 248, não referido por Virgílio nem Ovídio, e dotado de uma etimologia transparente. É «a poderosa». Faria e Sousa, que refere o facto, embora com alguma inexactidão21, recorda, além de Hesíodo, Garcilaso, que na Écloga III fala de Nise e Diamane. Sendo assim (e existindo as já mencionadas razões para excluir as Genealogiae ou a Officina), permanece a hipótese de ser do modelo grego (no original ou em versão latina, mas o entendimento do seu sentido aponta para

18 W. Storck, Luiz de Camões: slimtliche Gedichte, 4. Band (Paderborn, 91882), p. 417, comenta: «Der Dichter mischt übernommene (Ephyre, Syrinx, Nise) und erfundene Nymphennamen, wie aufs Deut-lichste v. 106 ff. zeigen; daher darf man nicht zu ängstlich nach seiner Quelle suchen.»

19  As edições de 1595 e de 1598 têm Sirene, lição que Costa Pimpão muito acertadamente rejeitou em favor de Sirinx. Ao mito de Pan e Syrinx alude Sannazaro na Poesia X da Arcadia:

E già Pan furioso con la sanna spezzà l’samata canna; ond’or piangendo se stesso riprendendo, Amor losinga; che de la sua Siringa si ricorda.

20  Se este Leonardo tem, como geralmente se pensa, algo de auto-biográfico, é curioso que na Écloga dos Faunos Efire apareça como um duplo de Dinamene.

21 «Poderosa en las aguas» (Il, V.284) excede as premissas (e falta a referência à Ilíada). A propósito do Soneto 101, limita-se a declarar que é «nombre fingido».

De outras fantasias etimológicas sobre este mitónimo (como a chinesa, proposta por Afrânio Peixoto em Dinamene e Ensaios Camonianos) não cumpre que nos ocupemos aqui (embora valha a pena acentuar que a Dinamene da Écloga VI.73-75 e 249 é branca e de olhos verdes). Pode ler-se uma crítica lúcida ao «romance de Dinamene» em A. J. Costa Pimpão, ed. das Rimas, cit., pp. LXII--LXVII. Uma extensa discussão do assunto (com bibliografia), o qual se liga de perto à vexata qua-estio da autenticidade do chamado passo camoniano da VIII Década de Diogo do Couto, existente num manuscrito do Porto e noutro de Madrid, encontra-se na já citada edição do Cancioneiro de Cristóvão Borges, por A. L. F. Askins, pp. 209-216. Quanto ao significado do nome (ausente de Boc-caccio e de Ravísio Textor), ele foi também visto por José Maria Rodrigues na sua edição da Lírica, p. XVIII.

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2515. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES

a primeira solução) que Camões derivou a palavra, pois não teria podido recompô--la através da corruptela castelhana22.

O nome aparece também na Écloga VI.74, 217 e 249, e na Elegia I.78. Se se trata da mesma pessoa, e se esta, por sua vez, é identificável com a Dinamene dos Sonetos 100 e 101 (para já não falar de outros igualmente famosos, pertencentes ao chamado Ciclo de Dinamene, como o 80 e o 106), teríamos a prova de que a Elegia e Éclogas em questão lhes eram anteriores23. Julgamos, no entanto, duvi-dosa essa identificação, e arriscado qualquer suporte biográfico que se pretenda dar-lhe. Observemos apenas que Dinamene, que fazia parte do coro das Nereides que seguia a nau em que Camões embarcara para a Índia (Elegia I), não aparece nunca n’Os Lusíadas.

É precisamente naquela Elegia que surge o outro catálogo camoniano de divindades marítimas:

O coro das Nereidas nos seguia, os ventos, namorada Galateia consigo, sossegados, os movia.

Das argênteas conchinhas, Panopeia andava pelo mar fazendo molhos, Melanto, Dinamene, com Ligeia.

(Elegia I.73-78)

22 A edição crítica de Garcilaso por Elias L. Rivers (Madrid, 1964) cita Diamane como a forma da princeps. Também aqui, na Écloga III há quatro ninfas, das quais se lê:

........................... que del Tajo amadosalieron juntas, a cantar me offrezco: Phillódoce, Diamane y Climene, Nise que en hermosura par no tiene.

É interessante notar que o copista do Soneto Ah, minha Dinamene, assi deixaste no Cancioneiro de Cristóvão Borges (copista esse que Askins no prefácio à sua edição, p. 6, supõe ser espanhol), escre-veu Diamene (n.º 135, p. 138), ao passo que o Cancioneiro de Luís Franco Correa apresenta a forma correcta (fol. 69v).

23  Os Cancioneiros manuscritos quinhentistas pouco nos ajudam neste particular, pois quase só fornecem argumentos ex silentio ou, quando muito, um terminus a quo. Assim, o de Cristóvão Borges e o de Luís Franco Correa não contêm nenhuma das duas Éclogas em causa; o segundo inclui, porém, a Elegia I (fol. 4), pertencente à parte do apógrafo que, segundo R. Bismut (La lyrique de Camões [Paris, 1970), pp. 383-386), teria sido copiada entre 1557 e 1560. O mesmo se passaria com o Soneto 80 (comum a Cristóvão Borges), ao passo que o 101 teria sido trasladado entre 1560 e 1565 (também figura em Cristóvão Borges). O 100 e o 106 faltam em ambos. Em contrapartida, o índice do Cancioneiro do P.e Pedro Ribeiro conhece todas estas composições, mas atribui os Sonetos 100, 101 (alterado) e 106 a Diogo Bernardes.

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252 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Quanto a Panopeia, reaparecerá em Os Lusíadas VI.23.8, e corresponde certa-mente à de Eneida V.825, que por sua vez provinha de Πανόπη da Ilíada XVIII.45 e de Teogonia 250. Tal como muitos outros passos desta Elegia, também a relação da presença de Galateia com o sossego dos ventos preludia os acontecimentos atrás referidos do Canto VI de Os Lusíadas.

Com as outras três compõe o poeta um daqueles versos, assentes numa sequên-cia nominal de delicada harmonia, em que Virgílio e Ovídio haviam sido mestres. Precisamente destes autores foram tomados os nomes: Ligeia é a Ligea das Geórgicas IV.336, e Melanto a Melantho amada por Neptuno em Metamorfoses VI.120.

Resta-nos um nome que alterna com o de Dinamene na Écloga VI (vv. 107, 144, 231). É Lemnoria, a amada de Alieuto:

Alieuto se chama, que perdido era pela fermosa Lemnoria, Ninfa que tem o mar ennobrecido.

(Écloga VI.106-108)

Desta, afirma Faria e Sousa que «quiere decir Ninfa de la agua», e logo se lança em fantasiosas hipóteses de identificação com D. Guiomar, baseando--se em etimologias populares deste nome. Parece-nos que é a Λιμνῴρεια de Ilíada XVIII.41, com fenómeno de hipercorrecção de um suposto itacismo, que aqui está presente. «Lago» ou «lagoa» (λίμνη) entra na composição deste mitó- nimo.

Já referimos Thetis (que é uma Nereide, a distinguir de Τηθύς, uma Titânide filha de Uranos e Gaia, de Lusíadas VI.21 e IX.85,89), com modelos em Teogonia 244, Eneida V.825 e ainda Metamorfoses XIII.738-899.

Em conclusão, poderemos talvez dizer que, de mais de duas dezenas de nomes de Ninfas, um pequeno número é formado por anagramas ou criptónimos ao gosto da época, mas a maioria ascende à Eneida ou às Geórgicas e, pelo menos alguns, a modelos gregos, com ou sem mediação latina.

Estão neste último caso Ὠρείθυια da Ilíada (embora se cruze com o mito das Metamorfoses), Δυναμένη da Ilíada e da Teogonia, e Λιμνῴρεια, só da Ilíada24.

O conhecimento destes nomes confirma-nos na opinião de que Camões tinha notícia do catálogo das Nereides da Ilíada – e não através de Boccaccio, que escreve Dinameni com itacismo e Liminoria com anaptixe – e entendia o seu significado, essencial nalguns casos. O que aumenta a probabilidade, já sugerida por outros

24  Destas, a primeira figura só nas Genealogiae; a segunda e a terceira, tanto aí como em Ravísio Textor.

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2535. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES

indícios25, de que o nosso maior poeta, além de manusear o latim com extrema familiaridade, também tinha algum conhecimento, pelo menos, da outra língua clássica.

25 Leiam-se, a este propósito, as considerações de A. Costa Ramalho «Sobre o nome de Adamas-tor», no seu livro Estudos Camonianos (Coimbra, 1975), pp. 33-41.

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(Página deixada propositadamente em branco)

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6. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS*

Em relação aos modelos clássicos, todos sabem como Camões os tomou por norma na sua epopeia e como os ajustou aos objectivos que se propunha alcançar. O poema tem, pois, uma proposição, invocação e narração lançada in medias res. Tem ainda – e aí o seu modelo terá vindo das Geórgicas de Virgílio (I. 24-42), como já notou Faria e Sousa, e dos Fastos de Ovídio (I.3-26), como sugeriu Epifânio – uma longa dedicatória a D. Sebastião. Neste esquema, porém, inserem-se algumas diferenças significativas, nas quais nos propomos atentar.

Uma está na estrofe terceira, que serve de articulação entre a proposição e a invocação; outra, na própria invocação. É que o poeta não vai limitar-se a cantar uma série de feitos comparáveis aos dos grandes heróis antigos, mas muito supe-riores a eles. O facto, preludiado no “passaram ainda além da Taprobana”, limite oriental do mundo conhecido pelos Antigos – quer deva identificar-se neste passo com Ceilão, quer com Sumatra (no que o próprio Camões parece ter hesitado – cf. M. H. Rocha Pereira, 1988c: 83-108, espec. 94-101)1 – é reencarecido na estrofe 3 com a introdução da fórmula conhecida, desde Propércio2, como cedat, combinada com taceat, e constituindo assim, conforme observou Kurt Reichenberger (1961: 79-88, espec. p. 89), o motivo da Ueberbietung ou «esquema de superação», definido por Curtius (21954: 169-172)3. O esquema em questão culmina nos dois últimos versos da referida oitava:

* Publicado em Revista Portuguesa de Filologia 25.2 (2003-2006), 911-924; Actas da VI Reunião Interna-cional de Camonistas. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra (2012), 51-61.

1 Taprobanam alterum orbem terrarum esse diu existimatum est – chega a dizer Plínio (VII. 81) citado por Faria e Sousa e recordado por Epifânio. De qualquer modo, foi a chegada dos Portugueses a Ceilão que deixou em textos de humanistas italianos as marcas do grande assombro (Ramalho, 1980:13-15 e 24).

2 Cedite Romani scriptores, cedite Grai / nescio quid maius nascitur lliade (II.324.65-66). Este famoso dístico de Propércio referente à Eneida já foi citado por Faria e Sousa.

3 A tradução por «esquema de superação» é de R. M. Rosado Fernandes (Lausberg e Rosado Fer-nandes, 52004: 108). O «esquema de superação» também figura nos grandes cientistas da época: Garcia de Orla, Colóquios dos Simples e Drogas, nº XX; Duarte Pacheco Pereira, Esmeralda de Situ Orbis, prólogo.

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256 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

cesse tudo o que a Musa antigua canta,que outro valor mais alto se alevanta.

Se referimos este texto que todos sabem de cor, não foi para evidenciar este princípio estruturante do poema (cf. Kurt Reichenberger, 1960: 1-2; é de sua autoria a expressão), mas por ser esta a primeira referência à Musa que nele se contém. Não pertence, porém, ainda, à invocação. Essa virá logo a seguir; contudo, não será endereçada à Musa, mas, como todos sabem, às “Tágides minhas”. Ocupará duas estrofes completas, nas quais soam com insistência as alusões à lírica do Poeta, com maior incidência na poesia bucólica: “se sempre em verso humilde celebrado / foi de mim vosso rio alegremente”, em I.4.3-4, remete por hipálage para o adjectivo emblemático do canto pastoril4 (“non omnes arbusta iuvant humilesque myricae”, da mais discutida écloga de Virgílio – IV.2) e para a paisa-gem do vale do Tejo, cenário habitual, embora não único, dos idílios camonianos, particularmente de “Ao longo do sereno / Tejo suave e brando” (II.1-2); do mesmo modo, “a agreste avena ou frauta ruda” (I.5.2) reenvia para a não menos célebre “silvestrem tenui musam meditaris avena”, que Títiro exercitava no começo da Bucólica I do Mantuano e que agora vai ceder o lugar à tuba canora e belicosa (I.5.3).

As Musas voltarão a ser mencionadas neste canto, no decorrer da dedicató-ria a D. Sebastião, mas agora para sublinhar a veracidade dos feitos que vão ser celebrados, em contraposição com os dos poemas renascentistas, cantados por Boiardo ou Ariosto, ou ainda pela medieval Chanson de Roland, essas “vãs façanhas / fantásticas, fingidas, mentirosas” (I.11.1-2), glorificadas por “estranhas / Musas, de engrandecer-se desejosas” (I.11.3-4).

É, pois, entre a antigua Musa e as estranhas Musas que vão situar-se as divin-dades inspiradoras invocadas nas estâncias 3-4. Entre a Antiguidade Clássica e os modelos estrangeiros surge, porém, algo que pareceria inesperado, não fora a insensibilização causada por cinco séculos de leitura e exegese camoniana: as Tágides minhas.

O nome – aliás, um patronímico – fora inventado por um grande humanista, como se sabe pela declaração do próprio. Efectivamente, André de Resende, na anotação 25 ao Canto II do seu poema Vincentius Levita et Martyr, observa que foi ele que teve a ousadia (nos ausi sumus) de derivar do “Tagus Lusitaniae fluvius... nominatissimus” os nomes de Taganus, Tagis,-idis (este, no poema sobre a morte de D. Beatriz de Saboia), Cistaganus e Transtaganus. O facto é bem conhecido dos

Pedro Nunes, no Tratado em Defensão da Carta de Marear, exaltava a descoberta de «novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e, o que mais é, novos céus e novas estrelas».

4 Epifânio recorda, a propósito, a divisão dos estilos conhecida por Cícero, Orator 192 (neque humilem et abiectam orationem nec minus altam et exaggeratam probat).

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2576. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS

especialistas de Camões desde que José Maria Rodrigues e Carolina Michaëlis de Vasconcelos (Carolina Michaëlis, O Instituto, n.º 52, 1905: 241-250) para ele chamaram a atenção, a propósito do esclarecimento da origem da palavra Lusíadas5.

A explicação para o que aparece como um desvio da norma literária é que tem variado. É conhecida a de Faria e Sousa, de que as Tágides eram as damas de Lisboa, identificação que ele julgava comprovar com a aproximação às Éclogas, nomeadamente a dos Faunos, no passo em que se descreve a chegada das Ninfas (que vai ao ponto de etiquetar uma a uma com os nomes das Musas, a pretexto de serem nove). Essa foi, no pitoresco e acertado dizer de Epifânio, uma “cerebrina ideia”. Este mesmo comentador, que a seguir refere a criação do patronímico pelo humanista eborense, faz também a seguinte observação:

Uma crença, que ascende aos tempos mais antigos, atribui às águas de certas fontes e rios, entre outras virtudes sobrenaturais, a de darem inspiração poética aos que beberem delas; estavam neste caso duas fontes da Beócia, que brotavam do monte Hélicon, a fonte de Aganipe e a Hipo-crene; as Musas foram originariamente Ninfas de fontes criadoras de insp- iração.

A fonte de Hipocrene vem, de facto, mencionada no último verso da estrofe camoniana que estamos a analisar. Mas o seu modelo imediato pode ter sido, como notou J. V. de Pina Martins na sua introdução à edição fac-simile de Vincentius Levita et Martyr, novamente o poema do eborense (Resende/ Pina Martins, Introduction, 1981: 50-51), que também sobre este nome dá uma explicação: Hippocrenen, id est fontem Boeotiae Musis sacrum, sic dictum, quoniam ab equo Pegaso factus sit. Repare--se ainda que no princípio da Teogonia de Hesíodo (5-8), esta nascente pertence ao grupo daquelas que se situam nas alturas do Hélicon, nas quais se banham as Musas, antes de iniciarem os seus cantos e danças.

Que Ninfas e Musas nem sempre se distinguem claramente, é um facto. Mas não é de crer, no entanto, que, como afirma Epifânio, as Musas fossem «originaria-mente ninfas de fontes criadoras de inspiração». Elas são um grupo de divindades associadas a Apolo, embora significativamente filhas de Zeus e de Mnemósine, a Memória (Hesíodo, Teogonia 53-61) – e têm um nome que está talvez etimologica-mente ligado a μανθάνω “aprender”6. O poeta, como vidente que é, delas depende para ser capaz de ter sabedoria e capacidade criadora (Burkert, 1977: 180 e Dodds,

5 A questão foi retomada modernamente (Ramalho, 1982: 221-236).6 Sobre as várias etimologias propostas para o nome das Musas, veja-se Chantraine (1980: s.v.

μοῦσα).

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258 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

1951: 80-82). Nenhum texto exprime talvez tão bem essa relação como este frag-mento de Píndaro:

µαντεύεο, Μοίσα, προφατεύσω δ’ έγώ.

(Frg. 150 Snell-Maehler)

Musa, dá-me um oráculo: eu serei o teu profeta.

As Musas, neste sentido de inspiradoras do Poeta, em geral, ou nomeadas de acordo com as atribuições específicas que lhes haviam sido cometidas a partir do séc. II depois de Cristo (e não antes disso, como geralmente se afirma), são invocadas em pontos fundamentais de Os Lusíadas, designadamente, antes de se iniciar a narrativa da História de Portugal (III.1) e antes de principiar a profecia dos feitos portugueses no Oriente (X.8-9). Em ambos os passos, é Calíope expres-samente nomeada, e no segundo diz-se dela que é a principal entre as nove irmãs (X.9.7-8):

Mas tu me dá que cumpra, ó grã Rainhadas Musas, c’o que quero à nação minha.

Mais uma vez, o modelo ascende a Hesíodo que, ao fazer o catálogo das Musas na Teogonia (77-79) – a mais antiga menção conhecida dos seus nomes – termina com o de Calíope, acrescentando: «esta é, de todas, a principal» (ἣ δὲ προφερεστάτη ἐστὶν ἁπασέων). Virgílio, ao invocá-la em especial na Eneida IX.525, limitara-se a implorar-lhe que desse inspiração ao seu canto (Vos, o Calliope, precor, aspirate canenti).

A tradição mítica consagrada pelo texto de Hesíodo transparece ainda na estrofe dedicada à criação da Universidade de Coimbra, quando se referem as Musas, símbolos do saber, como provenientes do Monte Hélicon, tal como as situara o proémio da Teogonia (Lus. III.97.1-4):

Fez primeiro em Coimbra exercitar-seo valeroso ofício de Minervae de Helicona as Musas fez passar-sea pisar do Mondego a fértil erva.

As Musas, e Calíope entre elas singularizada, ocorrem ainda depois de termi-nada a narrativa da História de Portugal, nas duas últimas estâncias do epifonema do Canto V (99-100), que vale a pena recordar na íntegra, porque contêm dados importantes para a questão que nos ocupa:

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2596. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS

Às Musas agradeça o nosso GamaO muito amor da pátria, que as obrigaa dar aos seus, na lira, nome e famade toda a ilustre e bélica fadiga;que ele, nem quem na estirpe seu se chama, Calíope não tem por tão amiganem as Filhas do Tejo, que deixassemas telas de ouro fino e que o cantassem.

Porque o amor fraterno e puro gostode dar a todo o Lusitano feitoseu louvor, é somente o pressupostodas Tágides gentis, e seu respeito.Porém não deixe, enfim, de ter dispostoninguém a grandes obras sempre o peito:que, por esta ou por outra qualquer via,não perderá seu preço e sua valia.

Temos aqui a outra ocorrência do nome das Tágides, na estância 100, e a perí-frase que igualmente as designa na estrofe 99 (Filhas do Tejo), construída em coorde-nação a Calíope, como observa Epifânio, e, como nota ainda o mesmo comentador, tendo por ocupação habitual trabalhar as telas de ouro fino, tal como «as ninfas que rodeavam Cirene, a mãe de Aristeu», nas Geórgicas de Virgílio, IV.334-3357.

As Ninfas do Tejo são chamadas a inspirar o Poeta, juntamente com as do Mondego (e repare-se como a perífrase aqui era necessária, pois o rio que banha Coimbra nem a partir do seu nome latino, muito menos do português, se prestava a criar um patronímico8) na invocação suspensa do final do Canto VII, quando o Poeta se preparava para começar a descrição das bandeiras (78-87). No entanto, se as Ninfas do Mondego são também mencionadas, são as do Tejo que mais mar-cadamente se invocam. Referiremos apenas os passos mais significativos para o nosso propósito, embora com o inconveniente de com isso excluir alguns dos trechos mais célebres do poema, ou por conterem dados autobiográficos, ou por

7 Faria e Sousa mencionara vagamente Virgil., Georg. IV e acrescentara-lhe Claudiano, De raptu Proserpinae I; Sannazaro, Arc. Prosa 12; e um texto bem mais próximo, a Écloga III de Garcilaso: «sacando telas delicadas del oro que el feiice Tajo embia».

8  A partir do arranjo do nome  latino do Douro, o muito erudito António Ribeiro dos Santos (Elpino Duriense) havia de criar, no séc. XVIII, as suas Dórides como ninfas do Douro, nas odes «A D. Catarina Michaela de Sousa, quando esteve na cidade do Porto» e «Em louvor das Dórides». (M. H. Rocha Pereira, 1972: 209-212). Já nos nossos dias, José Gomes Ferreira (Poesia VI 1976, p. 90) consagra um poema à “Descoberta dos Dourodeias”.

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darem voz a certas críticas sociais e políticas (Bismutt, 1974: VII.78; VII.79.1-4; VII.82.1-2; VII.85.1-8):

Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego,eu, que cometo insano e temeráriosem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,por caminho tão árduo, longo e vário.Vosso favor invoco, que navegopor alto mar com vento tão contrário,que se não me ajudais, hei grande medo,que o meu fraco batel se alague cedo.

Olhai que há tanto tempo que cantandoo vosso Tejo e os vossos Lusitanosa fortuna me traz peregrinando,novos trabalhos vendo e novos danos,............................................................

Vede, Ninfas, que engenhos de senhoreso vosso Tejo cria valerosos,que assi sabem prezar com tais favoresa quem os fez cantando gloriosos!..............................................................

Nem, Camenas, também cuideis que cantequem com hábito honesto e grave veio,por contentar o Rei no ofício novo,a despir e roubar o pobre povo.

Por duas vezes as Ninfas são ligadas ao rio, e nos mesmos termos (o vosso Tejo); na estrofe 85 são chamadas Camenas, o equivalente latino das Musas, que haviam usado Lívio Andronico e Névio, e que nunca se apagou de todo da Literatura Latina (nada menos de dez ocorrências em Horácio, sendo uma da Arte Poética9); e por último, esvaem-se as Tágides, destinatárias destas lamentações e advertências, para dar lugar a uma renovada profissão de confiança no deus da poesia e sua comitiva, que levarão a bom termo os seus propósitos (VII.87):

9  O antigo nome latino das Musas figura também noutro passo de Os Lusíadas, no idílico quadro das mulheres negras da angra de Santa Helena que, em V. 63, «Cantigas pastoris, em prosa ou rima/ na sua língua cantam, concertadas/ co’o doce som das rústicas avenas,/ imitando de Títiro as Camenas.».

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2616. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS

Aqueles só direi, que aventurarampor seu Deus, por seu Rei, a amada vida,onde, perdendo-a, em fama a dilataram,tão bem de suas obras merecida.Apolo e as Musas que me acompanharamme dobrarão a fúria concedida,enquanto eu tomo alento descansadopor tornar ao trabalho, mais folgado.

Note-se que a fúria remete de novo para a área semântica da inspiração épica, tal como a que fora pedida às Tágides em I.5.110. A equivalência destas às Musas tornou-se evidente.

As referências às Musas somam uma dezena ao longo da epopeia (sem contar as que singularizam Calíope), mas é no Canto X que se acumulam, cada vez mais como metonímia para a inspiração poética, a culminar na apóstrofe famosa que introduz as desalentadas considerações finais (X.145.1-4):

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenhodestemperada e a voz enrouquecidae não do canto, mas de ver que venhocantar a gente surda e endurecida.

Estas, por sua vez, precedem o «espelho de príncipes» dirigido ao jovem monarca, antes de encerrar o poema com a promessa de novo carme para celebrar os augurados feitos.

A promessa de compor um grande poema em honra de uma figura notável aparece mais do que uma vez na Lírica, nomeadamente na Écloga V, “A quem darei queixumes namorados”, dedicada a D. António de Noronha, segundo a rubrica, ou ao pai deste, D. Francisco de Noronha, na correcção de W. Storck (Costa Pimpão e Aníbal Castro, 1994: 416)11. O facto de essa figura poder ser também a de uma dama – porventura a mesma em ambos (idem, 1994: 413)12 – antevê-se em dois poemas, a Ode VI, “Pode um desejo imenso” e a Écloga IV, “Cantando por um vale docemente”. Na primeira destas composições, uma fermosura como a de Beatriz ou Laura suscita a inspiração do Poeta, que anuncia (81-84):

10 Esta observação sobre a fúria encontra-se já em Epifânio.11 Por esta edição das Rimas faremos todas as citações.12 Sobre a destinatária desta Ode, A. J. Costa Pimpão observa (loc. cit.): «O redactor do apenso

manuscrito, já várias vezes referido, baseado não sabemos em que autoridade, diz que esta Ode foi dirigida a D. Francisca de Aragão». Quanto à écloda IV, tem a rubrica «A ũa Dama».

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262 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

por vós levantarei não visto canto,que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante; que o nosso claro Tejoenvolto um pouco vejo e dissonante.

Na dedicatória da Écloga IV vai mais longe (14-18):

Em vós tenho Helicon, tenho Pegaso;em vós tenho Calíope, em vós Talia,e as outras irmãs do fero Marte;em vós perde Minerva sua valia;em vós estão os sonos de Parnaso;das Piérides em vós se encerra a arte.

e, mais adiante (27-32):

Podeis fazer que creça de hora em horao nome Lusitano, e faça envejaa Esmirna, que de Homero se engrandece.Podeis fazer também que o mundo vejasoar na ruda frauta o que a sonoracítara Mantuana só merece.

Foi este trecho, junto com a já atrás referida chegada das Ninfas na Écloga dos Faunos, que serviu de esteio à hipótese de Faria e Sousa sobre a identificação das Tágides com as damas de Lisboa.

A Écloga IV atribuía à sua destinatária os poderes das Musas e dos montes sagrados que elas habitavam. Além disso, punha em jogo a emulação com os dois modelos épicos supremos: os mesmos Homero e Virgílio que ao longo de Os Lusí-adas são o duplo paralelo por que se afere a superioridade dos feitos lusitanos13.

Note-se que chamar Ninfa à mulher amada ou a uma mulher superior é prática constante da lírica camoniana. Na Écloga I, “Que grande variedade vão fazendo”, há um grupo de “fermosas Ninfas”, entre as quais “ũa, de desusada fermosura / que das outras parece ser senhora” (345-346), mais adiante erguida a “deusa, bela e delicada” (383) e facilmente identificável, sob o anagrama de Aónia, como a princesa D. Joana, viúva do príncipe D. João, filho de D. João III (385-388). Na Écloga II, “Ao longo do sereno”, a Ninfa com que sonha Almeno (em pp. 297-314) é mani-festamente a sua amada, como, aliás, em tantos outros exemplos. Mas as Ninfas

13 O duplo paralelo abrange também exempla da história grega e romana, de tal modo que se pode dizer que constituem um princípio de composição. (M. H. Rocha Pereira, 1988b: 109-131).

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2636. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS

podem também ser as tradicionais divindades do campo, das árvores, das águas, e aí o Poeta demonstra frequentemente a sua erudição mitológica, distinguindo-as pelos nomes adequados, quer andasse sempre com as Genealogiae de Boccaccio e a Officina de Ravisius Textor à mão, como julga a maior parte dos seus comentadores, quer não. Dessa erudição é prova o Soneto 73, que começa

Náiades, vós, que os rios habitais,

invocação essa a que contrapõe, na segunda quadra, a das

Dríades, vós, que as setas atirais,os fugitivos cervos derrubando,

E, na Écloga VI, “A rústica contenda desusada” (193-194), é a elas ainda, con-quanto inominadas, que Agrário se dirige:

e vós, deusas do bosque e clara fonte,ou dos troncos que vivem largos anos,

O mar alto é povoado por Nereides, como as daquele coro que acompanhava a nau em que o poeta seguia para a Índia na Elegia I, “O poeta Simónides falando” (73-78)14, justamente considerada como um primeiro esboço de passos célebres de Os Lusíadas, designadamente a descrição da tempestade:

O coro das Nereidas nos seguia,os ventos, namorada Galateiaconsigo, sossegados, os movia. Das argênteas conchinhas, Panopeiaandava pelo mar fazendo molhos,Melanto, Dinamene, com Ligeia.

É nesta mesma Elegia que o Poeta se lamenta nestes termos (88-99):

.......... – Ó claras Ninfas! Se o sentidoem puro amor tivestes, e inda agorada memória o não tendes esquecido;se, por ventura, fordes algũ’horaaonde entra o grão Tejo a dar tributoa Tétis, que vós tendes por Senhora;

14 Analisámos estes nomes e sua proveniência (M. H. Rocha Pereira, 1988a: 31-44, espec. 42-43).

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264 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

ou por verdes o prado verde enxuto,ou por colherdes ouro rutilante,das Tágicas areias rico fruto;nelas em verso heróico e elegante,escrevei cũa concha o que em mim vistes:pode ser que algum peito se quebrante.

“Das Tágicas areias rico fruto”, diz o verso 96, aludindo à lenda que atribuía ao Tejo águas auríferas, e usando um adjectivo derivado do nome latino do rio.

Mas, se procurarmos melhor, encontraremos, na Lírica também, mais pre-cisamente nas Éclogas, o famoso patronímico criado por André de Resende. Encontrá-lo-emos duas vezes, uma das quais com a vantagem de pertencer a uma obra datada. Trata-se da Écloga I, “Que grande variedade vão fazendo”, que é na verdade um duplo epicédio a D. António de Noronha, morto em África em 1553, e ao príncipe D. João, falecido no ano seguinte. No canto de Frondélio, o jovem filho do 2º Conde de Linhares é homenageado sob o nome arcádico de Tiónio, com motivos que lembram de perto os da morte de Dáfnis na V Bucólica de Virgílio, como o da tristeza das Ninfas, dos animais, da própria Natureza, os quais são entrelaçados com o dos amores de Tiónio, contrariados pelo pai, que (218-219):

porque do pensamento lho tirasse,longe da causa dele o apartou,

Ora a transição para este segundo tema é feita através das Ninfas do Tejo e das da montanha (187-192):

As Tágides no rio e na asperezado monte as Oreadas, conhecendoquem te obrigou ao duro e fero Marte,como geral sentença vão dizendoque não pode no mundo haver tristezaem cuja causa Amor não tenha parte.

As Tágides terão tido aqui o seu primeiro aparecimento na Literatura Portu-guesa, na qualidade de Ninfas do Tejo (e por sinal que em contexto semelhante ao dos versos citados pelo humanista eborense). Serão depois uma presença constante no mundo pastoril, a ponto de darem o nome a um dos Idílios de Bocage (XI).

A Écloga III, “Passado já algum tempo que os amores”, que não sabemos datar, é o outro exemplo. Aí, na fala de Belisa, tem lugar uma metamorfose, uma das muitas que se detectam em Camões (M. H. Rocha Pereira, 1988b: 45-37 – sobre a

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2656. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS

frequência deste motivo, popularizado pelo poema de Ovídio, em Camões), da pastora em rochedo. Quem a opera são as Ninfas do Tejo (218-220):

Vês as ninfas do Tejo que, mudando,me vão já, pouco a pouco, o claro gestonoutra forma mais dura traspassando!

As margens do rio eram o cenário desta Écloga (“pela praia do Tejo discorria”, diz o v. 11). É aí que Almeno avista a sua “linda pastora” (v. 7), “a lavar a beatilha e o trançado” (v.12), aí que “não lhe soube dizer o que convinha” (v. 20). O encontro e desencontro entre os dois é preludiado por estes versos (35-42):

As mágoas, que passaram, se dirão;mas as que ela dizia,lembrando-lhe que viaas águas murmurar do Tejo amenas,remeto a vós, ó Tágides Camenas,que, de mágoa, não posso dizer tanto,porque em tamanhas penasme cansa a pena e a dor me imped’o canto.

As Ninfas do Tejo ligadas ao rio que habitam ou identificadas com as Camenas, foi o que vimos há pouco no Canto VII de Os Lusíadas. Aqui, os dois nomes – o patro-nímico sob forma adjectiva e a antiga designação latina das Musas – juntaram-se num único sintagma.

A localização das Musas (que, aliás, já vinha do proémio da Teogonia de Hesíodo, onde são qualificadas ora de Helicónias, ora de Olímpicas) pode encontrar-se ainda, e de forma bem significativa, numa Ode de Camões, precisamente aquela Lírica sua que foi a primeira a ser publicada em vida do autor e das raras a ter essa dita: a Ode VIII, “Aquele único exemplo”, endereçada a D. Francisco Coutinho, Conde de Redondo e vice-rei da Índia, para lhe apresentar e recomendar os Colóquios dos Simples e Drogas de Garcia de Orta. Ao autor do livro que, depois de resumido e traduzido em latim, havia de dar a conhecer à Europa culta os recursos tera-pêuticos das plantas indianas, é atribuída a assistência das Musas (aqui tomadas no seu sentido primeiro de inspiradoras de todas as formas do saber15), que são qualificadas de Gangéticas, com indiscutível propriedade topográfica. Por isso, o Poeta não hesita em elogiar o médico nestes termos, embora o faça envolvendo-o na tradição épica do preceptorado de Quíron a Aquiles16 (49-54):

15 Cf. Platão, A República 548b: «a verdadeira Musa, a da dialéctica e da filosofia».16 Cf. Ilíada XI. 830-832.

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E vede carregadod’anos, e trás a vária experiência,um velho, que, ensinadodas Gangéticas Musas na ciênciaPodalíria sutil e arte silvestre,vence o velho Quíron, d’Aquiles mestre.

É tempo de voltarmos à invocação de Os Lusíadas e de, com os dados obtidos, procurar esclarecer as razões da escolha das Tágides como fonte de inspiração da epopeia. Para isso teremos de recorrer de novo a André de Resende, que observa como os grandes rios do País lhe foram estabelecendo os limites. É que, diz ele, de início, o reino de Portugal mantinha-se entre o Douro e o Minho, como se fossem o seu berço. Depois, propagou-se até ao Mondego. O Guadiana separa a Lusitânia da Bética. Mas o Tejo, esse, corta ao meio a Lusitânia (“Tagus autem mediam secat Lusitaniam”). Daí a distinção das terras em cistaganas e transtaganas, segundo os neologismos por ele criados.

O rio identifica o País, e as suas Ninfas passarão também a ser detentoras do saber poético. Ao invocar a Musa da epopeia no começo da narrativa da História de Portugal, Camões pretende transferir para o seu País a desejada presença de Calíope (III.2):

Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,como merece a gente Lusitana;que veja e saiba o mundo que do Tejoo licor de Aganipe corre e mana. Deixa as flores do Pindo, que já vejo banhar-me Apolo na água soberana; senão diria que tens algum receio que se escureça o teu querido Orfeio.

Aganipe toma agora o lugar de Hipocrene, de I.4.8. No plano épico, falara-se antes de “tudo o que a antigua Musa canta” (I.3.7); a seguir, como já vimos, das “estra-nhas / Musas de engrandecer-se desejosas” (I.11.3-4). Entre umas e outras obras se vão situar Os Lusíadas, narrando feitos ainda mais valorosos do que os antigos, e verídicos, como em nenhum dos outros grandes poemas. É este último ponto que Vasco da Gama acentua ao terminar a sua narrativa ao Rei de Melinde (V.89.4-8):

Que, por muito e por muito que se afinemnestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,a verdade que eu conto, nua e pura,vence toda grandíloqua escritura!

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2676. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS

Noutros passos podiam evocar-se as Musas, nomeadamente Calíope, que não estavam nunca deslocadas numa epopeia composta em clave greco-latina. Mas no lugar solene da invocação de todo o poema, havia que assinalar que essa obra moldada pelos cânones da Antiguidade era também eminentemente nacional17. O próprio deus da poesia havia de conferir às águas do Tejo o mesmo valor das de Aganipe e de Hipocrene. As Tágides seriam assim as novas entidades míticas dadoras da “fúria grande e sonorosa” que há-de distinguir esta epopeia.

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17  No  seu  já  citado artigo  (Reichenberger,  1961:  92) o Autor observa: «Kennzeichend  für die patriotische Haltung, die Camões in jeder Phase seines: Beginnens beseelt, ist die Abwandlung des traditionellen Musenanrufs in eine Invocatio der Nymphen des Tejo, die er um die gesuchte esuchte Inspiration angeht».

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268 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

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7. O MITO DE ORFEU E EURÍDICE EM CAMÕES*

Entre os mitos gregos, poucos tinham tantas condições para fascinar a pos-teridade como o de Orfeu e Eurídice. O poder da poesia e o poder do amor juntos numa só história são os seus pólos magnetizadores da sensibilidade de todas as épocas, sem excluir a nossa.

A esta difusão não foi alheio o facto de terem sido dois dos poetas mais lidos da Latinidade a dar-lhe forma inesquecível: Virgílio e Ovídio. Certamente por esse motivo, a lenda do cantor da Trácia não precisou de aguardar o Renascimento, como tantas outras, e, bem ao contrário, conheceu uma tradição contínua através da Idade Média.1

É, porém, a partir de La Favola di Orfeo, de Angelo Poliziano, cantada e recitada em Mântua em 1472, com cenários pintados por Rafael, impressa em 1494 e con-tinuamente reeditada (dezanove edições até 1524!) que se torna um dos temas favoritos dos poetas quinhentistas. «Foi ela de certo uma das jóias da poesia italiana que Miranda trouxe das suas viagens, apesar de não citar nunca o nome de Angelo Poliziano» – anotou Carolina Michaëlis a propósito das nove estrofes da «Fábula do Mondego» que o «bom Sá» torneia, lembrando-se do poeta huma-nista, e também das Geórgicas e das Metamorfoses.2 O modelo assim recriado iria

* Publicado em Actas da IV Reunião Internacional de Camonistas. Ponta Delgada, Universidade dos Açores (1984), 466-473; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacio-nal – Casa da Moeda (1988, 22012), 69-81.

1  Sobre o assunto, veja-se John Block Friedman, Orpheus in the Middle Ages (Harvard University Press, 1970).

2 Tanto os dados sobre a fortuna de La Favola di Orfeo como a frase citada provêm da edição das Poesias de Francisco de Sá de Miranda (Halle, 1885), p. 818. As informações sobre o espectáculo constam de Edward J. Dent, Opera (Penguin Books, reimpr. 1965), p. 30. Lembre-se ainda que a mais antiga ópera de que há notícia é a Euridice de Peri (Florença, 1600), e que o verdadeiro criador do género, Claudio Monteverdi, se estreou com um Orfeo (que se conserva), em 1607, também em Mântua, como o de Poliziano.

A história de Orfeu, que Dante pusera no limbo no Canto IV do Inferno, não era estranha ao Can-cioneiro Geral. Lê-se no «Inferno dos Namorados» de Duarte de Brito, o seu nome em primeiro lugar:

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270 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

encontrar novo eco em Diogo Bernardes, que longamente o desenvolveu, na Carta XXVI e na Carta XXXI, que repetem os versos uma da outra (com ligeiríssimas variantes), para além da introdução do motivo e do fecho, que divergem3. Apenas dois exemplos, para comprovar a semelhança: Antre mortos a busca antes da morte, de Bernardes, retoma o mirandino qu’entre muertos la sigue, antes de muerto; o mesmo acontece com, respectivamente, tod’a corte infernal ficou vencida e todo enternece por donde encamina. Mas também o modelo de Poliziano fica à vista, quando se lê que é Prosérpina quem demove o marido a restituir Eurídice a Orfeu (o facto está implícito em Virgílio; mas em Ovídio, a magnanimidade provém dos reis do Érebo em conjunto)4.

Sem entrar no pormenor de outras comparações, por alheias ao nosso propósito, merece, no entanto, ser realçada a melodia do verso e o maneirismo dos jogos de palavras que aqui se evidenciam e que distinguem, como é sabido, o cantor do Lima do seu mestre e amigo.

É curioso que o mito falte quase por completo noutro membro destacado deste círculo literário. Referimo-nos, como é evidente, a António Ferreira, precisamente o destinatário da Carta XII de Bernardes, onde os três poetas aparecem unidos em trecho pelo qual perpassa também a alusão ao cantor da Trácia:

Não nos queiras negar, já que te temos por mestre desta Musa, o largo canto por onde com nossa honra nos guiemos.

Com Erudyce vy Orfeo tangendo sa doçe lyra.

Por sua vez, no «Fingimento de Amores», Diogo Brandão põe Orfeu a falar em nome dos secaçes de Cupido, em termos que bem o identificam nesta parte das suas lamentações:

E por mays çertos signaes d’Euridiçe foy marido, por ela mesma perdido nestas penas ymmortaes. Eu fuy aquelle c’ouvistes que na museca soube tanto que fyz com meu doçe canto nom penar as almas tristes.

(Agradecemos à Doutora Aida Dias esta referência a Diogo Brandão).3 Assim, XXVI.238-288 é praticamente igual a XXXI.94-144. Distinto é, porém, o tratamento do

tema em duas oitavas da Carta XX.4 Sá de Miranda diz claramente que é Plutão quem autoriza a saída de Eurídice e impõe a

condição de não olhar para trás. Em La Favola di Orfeo outro tanto se passa, mas em consequência de uma intervenção de Prosérpina.

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2717. O MITO DE ORFEU E EURÍDICE EM CAMÕES

Que quando o meu vier a valer tantoque tenha pouca inveja ao que moveu Plutão a piedade, e Radamanto,

cantarei teu amor, e amor do Céuonde o bom Sá Miranda s’escondeu.

Outra alusão ocorre, quando pranteia, na Carta XXI, a morte de António Fer-reira perante Pedro de Andrade Caminha:

Um som que do profundo bem puderaEurídice tornar à luz do dia mil vezes, se mil vezes lá descera.

Ferreira, porém, não se serviu do mito, senão em fugazes alusões5, e é signifi-cativo, julgamos, da profundidade do seu sentimento, que não o tenha utilizado, nem na Elegia V, nem nos Sonetos consagrados à perda de Maria Pimentel. Outro tanto fez Camões, talvez pelos mesmos motivos, nos Sonetos do convencional – e decerto erradamente – chamado Ciclo de Dinamene. Mas muito diferente é o caso da generalidade da sua obra. Dir-se-ia até que teria nutrido pelo mito de Orfeu e Eurídice uma preferência quase obsessiva.

Ele forma o motivo de dois símiles colocados em pontos fulcrais de Os Lusíadas: na alegria dos Portugueses ao ouvirem Monçaide falar clara a língua de Castela (VII.29) e imediatamente antes da longa profecia que a bela Ninfa faz na Ilha Namorada (X.5)6.

O primeiro recorda o fascínio exercido por Orfeu sobre a Natureza:

Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo, só por ouvir o amante da donzela Eurídice, tocando a lira de ouro, tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro.

O segundo aproveita o motivo da cessação dos suplícios dos infernos, ao escutar a voz maravilhosa:

Músicos instrumentos não faltavam, quais no profundo reino os nus espritos fizeram descansar da eterna pena c’uma voz duma angélica Sirena.

5 E.g. Écloga III.1-6-21; Écloga VI.109-111; Soneto XIII do Livro II (onde atribui a D. Simão da Silveira o papel de Orfeu); Elegia VII.77-78 (versão do «Amor Fugido» de Mosco).

6 Há ainda breves referências a Orfeu em III.1 e III.2.

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272 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Mas o tema percorre sobretudo a lírica, desde os tempos da mocidade do poeta, pois está na Elegia II, composta em Ceuta antes de 15537 e na Écloga dos Faunos (173-175), também anterior àquela data, marcada pelo terminus ante quem da morte do destinatário de ambas, Dom António de Noronha8, passa nas composições na medida velha, como o «ABC em motos» e no Soneto 151, onde constitui o centro da resposta a D. Simão da Silveira sobre as origens daquela forma literária. Isto, sem contar, por apócrifo, o Soneto Orfeo enamorado que tañia, só conhecido, como se sabe, a partir da edição de Alvares da Cunha.

Porém os desenvolvimentos principais são o da referida Elegia II, Aquela que de amor descomedido, e, sobretudo, o da Ode III, Se de meu pensamento. É destes que passamos a ocupar-nos seguidamente.

Na Elegia II, o mito aparece num longo finale de oito tercetos, em que o tema da perenidade do amor se entrelaça com o do poder da voz. O duplo motivo estava anunciado no começo, mas desta vez em ligação com outro mito também favorito de Camões, o de Eco e Narciso, com a variante, que lhe não era menos grata, da metamorfose:

despois que a deusa em pedra a converteu de seu humano gesto verdadeiro a última voz só lhe concedeu.

No termo da Elegia, depois de ter glosado largamente o tema da mudança, prevê a continuação do seu canto no além, um além cuja paisagem é a tradicio-nal do Hades greco-latino, com as negras águas do Cocito, esses hórridos penedos, / a quem negou Natura o claro dia9. Aí o próprio Orfeu já seguro / de perder sua Eurídice, o ajudará a celebrar o gesto claro e puro / que nunca perderei da fantasia – e neste ponto há uma recordação da estrofe segunda da Elegia III de Garcilaso, como notou Faria e Sousa10. Os motivos que se seguem são tomados de Ovídio, Metamorfoses

7 O erro da localização na Índia, que vem na editio princeps, já foi refutado por Juromenha, Obras de Luiz de Camões (Lisboa, 1862), vol. III, p. 456.

8 Sobre a questão da data, vide a edição das Rimas por A. J. da Costa Pimpão (Coimbra, 1973), pp. 407, 411-412. Desta edição nos servimos em todas as citações da Lírica. Relativamente à Elegia II, veja-se estudo do mesmo Professor, A Elegia Segunda, «Aquela que de amor descomedido», e a chamada Écloga Primeira, «Que grande variedade vão fazendo» de Luís de Camões (Coimbra, 1973).

9 Poderá ver-se no verso 110 ao pé dos carregados arvoredos, uma alusão indirecta ao mito de Tântalo, que prepara o tema dos supliciados divinos.

10 Especialmente nos seguintes versos:

Libre mi alma de su estrecha roca por el Aestigio laco conducida celebrándote trá, y aquel sonido hará pasar las aguas del olvido.

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2737. O MITO DE ORFEU E EURÍDICE EM CAMÕES

X.40-41 (a atenção comovida das sombras) e de XI.47-48 (crescimento das águas do rio com o choro). Porém o da suspensão das penas infernais, que o Sulmonense transformara num catálogo dos supliciados divinos, é aqui reduzido a um único terceto, com dois exemplos:

Em Salmoneu as penas faltarão, e das filhas de Belo, juntamente, de lágrimas os vasos se encherão.

As filhas de Belo estavam nas Metamorfoses X.43-44, onde se lê apenas que elas «deixaram as suas urnas», noção que Camões levou mais longe, ultrapassando as barreiras do adynaton da lenda: a comoção será tal que o tonel sem fundo das Danaides se encherá, não já de água, mas de lágrimas.

E Salmoneu? Salmoneu era desconhecido de Ovídio. Talvez por isso, o copista do que Juromenha chama «meu MS», sem mais explicações, substituiu este verso por outro em que se refere um mito mais vulgar neste contexto:

De Tântalo as maçãs não fugirão

O que se podia saber, ou melhor, o que se ignorava destes apógrafos desco-nhecidos, de que Juromenha se declarava possuidor, resumiu-o Costa Pimpão, em 1973, na p. LII da sua edição das Rimas. Dados recentes tornam hoje essa crítica menos severa11. Posto isto, podemos tornar a Salmoneu.

O herói eólio provém da descrição dos infernos do Canto VI da Eneida, versos 585-594, onde se narram os seus crimes, mas, ao contrário do que sucede com os outros supliciados, apenas se afirma do seu estado:

Vidi et crudeles dantem Salmonea poenas («Vi também Salmoneu, expiando cruéis penas»). (VI.585)

A versão camoniana diz também, enunciando o castigo de uma forma vaga:

Em Salmoneu as penas faltarão

Salmoneu fora insolente, pois quisera equiparar-se a Júpiter, imitando-lhe os atributos do raio e do trovão; as Danaides tinham dado a morte aos que pretendiam

11 Obras de Luiz de Camões, Vol. III, p. 462. Cf. também Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Notas sobre o Cânone da Lírica Camoniana (Coimbra, 1968), que fala de «um texto secularmente falsificado». Agra-decemos as informações sobre a nova posição da crítica em face da autenticidade dos apógrafos de Juromenha ao Doutor Aníbal de Castro.

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274 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

desposá-las à força. Dois crimes que se sobrepunham, em poderoso contraste, à situação do poeta, que vivia sossegado na tristeza, / e ali não me faltava um brando engano, / que tirasse os desejos da fraqueza. / E vendo-me enganado estar ufano, / deu à roda Fortuna, e deu comigo / onde de novo choro o novo dano (versos 91-96), e que proclama, a terminar:

Oh! bem afortunado! Tu, que alcançaste com lira toante, Orfeu, ser escutado do fero Radamante, e c’os teus olhos ver a doce amante!

As infernais figuras moveste com teu canto docemente; as três Fúrias escuras, implacáveis à gente, quietas se tornaram, de repente.

Ficou como pasmado todo o Estígio reino c’o teu canto; e, quase descansado, de teu eterno pranto cessou de alçar Sísifo o grave canto.

A ordem se mudava das penas que ordenava ali Plutão, em descanso tornava a roda de Ixião, e em glória quantas penas ali são.

Pelo qual, admirada a Rainha infernal e comovida, te deu a desejada esposa que, perdida, de tantos dias já tivera a vida.

Note-se em primeiro lugar que o desenlace fatal da história – segunda perda de Eurídice, por Orfeu não ter vencido o desejo de olhar para trás – é aqui igno-rado (ao contrário do que sucede na Elegia II, onde já seguro / de perder sua Eurídice indica, em nosso entender, e ao invés do que pensaram Faria e Sousa e Costa Pimpão, que esse momento terrível foi superado com a morte do próprio Orfeu,

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2757. O MITO DE ORFEU E EURÍDICE EM CAMÕES

que, regressado definitivamente ao reino das sombras, «pode já olhar seguro a sua Eurídice», como se lê nas Metamorfoses XI.6612.

Os tópicos ascendem, na sua generalidade, a Virgílio e a Ovídio. Deste é o da quietação das Fúrias, da paragem do suplício de Sísifo e do de Ixião – este, comum a Virgílio. Das Geórgicas vem a concessão feita por Prosérpina, mas com a notável variante de ser o espanto causado pela cessação das penas infernais que a demove13. Uma figura a mais, Radamanto, logo de início, como a daquele que escuta primeiro o cantor, tira indirectamente a sua origem do facto de ser este, no Canto VI da Eneida, o juiz do Tártaro (566-567)14:

Cnosius haec Rhadamanthus habet durissima regna castigatque auditque dolos subigitque fateri

Detém estes duríssimos reinos o Cnóssio Radamanto, tortura, instrui os processos e força à confissão

Mais proximamente, poderá ser um eco da Écloga XI da Arcadia de Sannazaro, em contexto muito semelhante a este, como já indicou Faria e Sousa15.

A brandura dos deuses infernais neste caso é logo contrastada com o rigor da amada, em formulação que retoma tópico, tantas vezes usado na lírica camoniana (e também, aliás, de cepa greco-latina), do paralelismo da sua crueza com a dos tigres da Hircânia ou com os rochedos.

Mas a Ode vai prosseguir numa nota de beleza e de harmonia: as Ninfas do mar, que compreendem e escutam o poeta, e que das águas emergem, em companhia /

12 Na sua edição das Rimas Várias, Vol. II, Tomo IV, 2.ª parte, p. 24, Faria e Sousa escreve: «Quiere dezir, que Orfeo ya certíssimo de que no bolverá a cobrar su Euridice, por màs que cante, estarà desocupado para ayudarle en su nuevo canto». Também Costa Pimpão, A Elegia Segunda... , cit., p. 15, interpreta a frase como significando um facto consumado.

A mais antiga versão conhecida do mito, a que figura em Eurípides, Alceste 357-362, apenas refere o êxito alcançado pelo canto de Orfeu, facto esse que não obriga a excluir a sequência trágica da história, como observa A. M. Dale na sua edição comentada da peça (Oxford, 1954), p. 80.

13 A hipótese, formulada por Faria e Sousa no com. ad locum, de se tratar de uma alusão velada ao papel da rainha D. Catarina na perseguição ao poeta, não merece ser considerada.

14  Em Poliziano, aparece a figura de Minos a prevenir Plutão dos perigos de receber um vivo nos infernos. Minos e Radamanto alternam em Diogo Bernardes (Minos na Carta XX e Radamanto na Carta XII).

15 Rimas Várias, Vol. II, Tomo III, p.136:

Felice Orfeo, che inanzi l’hore estreme, per ricovrar colei che pianse tanto, sicuro ando dove piu andar si teme. Vinse Megera, vinse Radamanto;a pietà mosse il re del crudo regno.

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276 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

cantando e colhendo lindas flores. Esta rápida visão – que é, aliás, um lugar comum dos poetas renascentistas – forma novo contraste com a agonia que lhe vai na alma.

Deste modo, o quadro não é tão pungente ainda como o do Soneto O céu, a terra o vento sossegado..., talvez um dos mais dramáticos da poesia portuguesa, com um Aónio desolado, a quem leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita. Aqui, se não tem a sorte de Orfeu, as Nereides ao menos o escutam, embora seja apenas para ouvir a sua tristeza:

..................... e neste estadosomente vive nele o seu cuidado.

O motivo da suspensão das penas infernais, ante o fascínio do canto do poeta era, como já vimos, tópico inseparável da catábase de Orfeu. Fora assim nas Geór-gicas e nas Metamorfoses. Fora-o também em Poliziano, onde perpassa na fala de Plutão, ao manifestar o seu espanto por terem parado a roda de Ixião, a pedra de Sísifo, as Danaides, Tântalo, Cérbero, as Fúrias. E a ligação era tão estreita, que se tornou possível utilizar a menção dessas penas como termo de comparação para o sofrimento do poeta enamorado, seguindo o processo que Curtius chamou Überbietung, ou seja, «esquema de superação»16.

É assim que sucede, embora fugidiamente, no final da Elegia III, O Sulmonense Ovídio, desterrado, onde Camões pensa que nem a morte poderá pôr termo ao seu sofrimento, que é superior ao dos condenados tradicionais, como Tântalo e Tício17:

Que se às portas Tartáreas chegasse, temo que tanto mal pala memória nem ao passar de Lete lhe passasse.

Que, se a Tântalo e Tício for notória a pena com que vai que a atormenta, a pena que lá têm terão por glória.

16 Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter (Bern, 1948), pp. 169-172. A versão adaptada, de «esquema de superação», é a proposta por R. M. Rosado Fernandes, na sua tradução, com prefácio e aditamentos, de Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária (Lisboa, 1966), p. 108.

17 Faria e Sousa recorda, a propósito do Letes, um passo de Ovídio, Pontica II e outro do Soneto 291 de Petrarca (Rimas Várias, Vol. II, Tomo IV, p. 29). É um lugar comum da Antiguidade. A mesma ideia está, de resto, como notou o mesmo Faria e Sousa, ibidem, no Soneto 57 de Camões, quando escreve:

Mas dou-vos esta firme segurança que posto que me mate o meu tormento, por as águas do eterno esquecimento segura passará minha lembrança.

Uma análise deste passo – que excede, a nosso ver, as premissas do texto – pode ler-se em Ger-sey Bergo Yahn, O Homem sob o signo do desterro: uma Elegia de Camões (Rio de Janeiro, 1981), pp. 87-93.

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2777. O MITO DE ORFEU E EURÍDICE EM CAMÕES

Esta imaginação me acrescenta mil mágoas no sentido, porque a vida de imaginações tristes se sustenta. (77-87)

O outro exemplo é muito mais complexo e elaborado. Trata-se da Canção II, cujas sete longas estrofes de dezasseis versos obedecem a uma perfeita arquitec-tura. Faz a primeira as vezes de proposição:

A instabilidade da Fortuna, os enganos suaves d’Amor cego, (suaves, se duraram longamente), direi, por dar à vida algum sossego; que pois a grave pena me importuna, importune meu canto a toda a gente...........................................................

Logo neste começo ouvimos falar em pena, uma palavra-chave que, com a sua polissemia de «sofrimento» e «castigo», nos prepara para o abismo infernal de meu tormento da segunda estrofe. São, efectivamente, as penas infernais que daqui em diante serão tomadas, uma a uma, para formarem o «esquema de superação» dos seus sofrimentos morais. Assim, cada estrofe vai culminar na comparação com um supliciado divino: Tântalo, Ixião, Tício, Sísifo. A ideia já estava na Canção XV de Sannazaro, Qual pena, lasso, como advertiu Faria e Sousa18. Mas, no poeta italiano, diremos nós, há um percurso da alma através de cada uma das penas do além, per ammenda de’ passati danni, com as quais sucessivamente se identifica (indi... poi... al fine); em Camões, é a história da sua paixão – conquanto mais sugerida do que delineada – que atrai as comparações com os modelos míticos19.

Em cada uma dessas estrofes da Canção II, o nome próprio é preludiado por uma série de jogos de palavras, que aproveitam dados do mito para sugerir um drama que se desenrola no mais íntimo do poeta, por ter posto o seu amor em

18 Rimas Várias, Vol. II, Tomo 3, p 22.19 Deve notar-se que a mencionada Canção XV de Sannazaro tem exactamente o mesmo esquema

formal que a de Camões e, como ela, joga de início com a polissemia de pena, que compara, logo de entrada, com as do além (giù nel gran pianto eterno), definindo-a, a seguir, por meio de uma série de antíteses e oximoros. Mas, continua a primeira estrofe, a sua alma in se sola poi soffrir ciascuna. As seis estrofes seguintes descrevem esse percurso, que a levam a identificar-se com as Danaides, Sísifo, Tântalo, Ixião, Tício (dos quais só o segundo e o terceiro são nomeados). Em Camões, além da omissão das descendentes de Belo e da alteração da ordem, a parte mitológica é enquadrada por duas estrofes: a segunda, que mostra como Amor o fez cair na culpa e mais na pena; a sétima, que substitui ao paralelo mítico o exemplo do sonho do avarento. A ambos é comum a culpa da revelação indiscreta do amor: Poi che la sua nascosa / speranza discoverse / e’l suo desire aperse / a tutto ’l mondo, che celar doveva, – no primeiro; o fim de meu desejo, / que a língua descobriu por desvario – no segundo.

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278 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

alto lugar. É particularmente elucidativa a maneira como aproveita em pormenor o mito de Ixião, o rei dos Lápitas, a quem, por pretender atentar contra Juno, foi dada a imagem da deusa numa nuvem (motivo que regressará, transformado, na história de Adamastor, em Os Lusiadas V.56-57, e que é também referido na Écloga II, Ao longo do sereno, versos 342-344) – de modo que toda a estrofe é uma sobrepo-sição contínua da aventura mítica e da própria:

Despois que aquela em quem minh’alma vivequis alcançar o baixo atrevimento, debaixo deste engano a alcancei: a nuvem do contino pensamento m’afigurou nos braços, e assi a tive, sonhando o que acordado desejei. Porque a meu desejo me gabei de alcançar um bem de tanto preço, além do que padeço, atado em ũa roda estou penando, que em mil mudanças me anda rodeando, onde, se a algum bem subo, logo deço, e assi ganho e perco a confiança; e assi me tem atado ũa vingança, como Ixião, tão firme na mudança.

Todo o vocabulário da frustração vai passando ao longo do poema: engano (50), enganosamente (80), fingindo (81), embalde (92), até que na última estrofe sintetiza o seu estado de espírito numa sentença onde há ressonâncias dantescas20 e a subtil substituição da tradição mítica pela cristã:

Porque aqueles que estão na noite escura, nunca sentirão tanto o triste abiso, se ignorarem o bem do Paraíso.

A situação do poeta é afinal a mesma que se espelha em inúmeras outras com-posições, e, em particular, no Soneto Num tão alto lugar, de tanto preço, que termina com o verso de Petrarca, Un bel morir tutta la vita onora.

20 Como é sabido, tiveram audiência universal os célebres versos postos na boca de Francesca de Rimini em Inferno V.121-123. No entanto, os comentadores de Dante registam a presença do tópico já em Boécio, De Consolatione Philosophiae II, p. 4.

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2797. O MITO DE ORFEU E EURÍDICE EM CAMÕES

Ao fazer estas aproximações, não é nosso intento ressuscitar a tese infantista ou outras congéneres, nem, de resto, o nosso interesse se orienta para o biografismo21. Quisemos apenas mostrar que há certas constantes no pensamento do poeta que tanto se exprimem por alusões veladas, como através de símbolos consagrados por uma longa tradição literária. Está neste último caso o uso multiplicado do mito de Orfeu e Eurídice e da catábase em geral, cujos exemplos principais acabámos de analisar.

21  Sobre as tentações «de ler a lírica camoniana em clave biográfica», veja-se a conferência de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, «Aspectos petrarquistas da lírica de Camões» in: Cuatro lecciones sobre Camoens (Madrid, 1981), pp. 99-116.

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(Página deixada propositadamente em branco)

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8. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA*

A presença, em larga escala, de modelos ovidianos, quer na lírica, quer em Os Lusíadas, tem sido repetidamente apontada pelos comentadores de Camões, desde Faria e Sousa aos mais recentes. Seja uma referência nominal, como a da Elegia VI1, seja numa rápida confissão moral, como na Canção X2, ou no retrato do exilado de Tomi com que abre a Elegia III3, ou na inesperada reminiscência dos Tristia que surge em meio da meditação ora bíblica ora platónica de Sôbolos rios

* Publicado em Biblos 51 (1975), 125-143; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 45-67.

1 Vv. 121-123. Em todas as citações da lírica usaremos a numeração e o texto da edição das Rimas de A. J. da Costa Pimpão (Coimbra, Atlântida, 1973), excepto para as Éclogas, onde seguiremos o suplemento publicado pelo mesmo especialista, também nesse ano, através do Centro de Estudos Românicos da Faculdade de Letras de Coimbra.

2 Que eu conheci mil vezes na venturao milhor, e pior segui, forçado. (vv. 45-56)paráfrase de ................. video meliora proboque,deteriora sequor ............................. (Met. VII.20-21)

(«Vejo e aprovo o que é melhor, sigo o pior»).3 Os oito tercetos iniciais desta Elegia condensam elementos dos Tristia e das Epistulae ex Ponto,

mas o modelo imediato, para o motivo do afastamento da família, sobretudo da mulher e dos filhos, é Tristia III.11.15-16; para os elementos da paisagem (dulcificados em relação aos inhospita litora Ponti de Tristia  III.11.7,  lugar de clima adverso, onde até o mar fica gelado e os peixes prisioneiros das águas – Tristia III.10.37-50), Tristia V.2.23-28. Por sua vez, o tópico da compasnhia – única – da Musa, referida no oitavo terceto, exprime-se com especial relevo em Tristia IV.10.111-122, e as lágrimas com que ali o campo banha do v. 24 correm ainda de Tristia IV.1.95-96.

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que vão4, no descritivo pitoresco de Tritão a convocar os deuses marinhos para o concilio, no canto VI de Os Lusíadas5, ou ainda no motivo das Ninfas do canto IX6, podemos dizer que o poeta de Sulmona é uma influência constantemente sentida na obra de Camões.

Mas, a despeito da grande popularidade das elegias de Tristia e de Ex Ponto, das Heróides, da Arte de Amar e dos Amores7, falar da influência de Ovídio é sobretudo falar das Metamorfoses.

Efectivamente, desde o seu aparecimento que esse poema fizera esquecer os seus antecessores no género (como os Aitia de Calímaco, hoje parcialmente recupe-rados), para se tornar como que um repositório universal da tradição mitológica. Conhecido sem descontinuidade, pode dizer-se, através da Idade Média, atinge uma voga extraordinária no séc. XVI8.

Escreveu Hernâni Cidade que «da leitura das Metamorfoses do poeta latino não fixou Camões apenas a narrativa; mais de uma imagem impressionante se lhe transmitiu da memória à página»9. É esse processo de aproveitamento que vamos ver em primeiro lugar, sem nos determos em confrontos pormenorizados, quando eles já estão feitos10, mas procurando assim o caminho para conhecer melhor uma das faces do Poeta.

Se atentarmos nos Sonetos, aí encontramos logo diversos exemplos de tra-tamento de mitos das Metamorfoses11, como no 62 (Por sua Ninfa, Céfalo deixava),

4 Cf. Kurt Reichenberger, «Der christliche Humanismus des Camões», Aufsätze zur portugiesischen Kulturgeschichte (citado a partir daqui Port. Aufsätze) 4, 1964, pp. 120-121.

5 Lus. VI.17-19 e Met. I.331-342 (identificação de Faria e Sousa).6 A semelhança, notada por Faria e Sousa, entre Fasti I.405 sqq. e as Ninfas da Ilha dos Amores,

foi retomada por Helmut Hatzfeld, «Camões’ manieristische und Tassos barocke Gestaltung des Nym-phenmotivs», Port. Aufsätze 3, 1962/1963, pp. 92-93. Outra parte do episódio dos Fastos a que pertence esse texto, acrescentarei, foi aproveitada na Écloga dos Faunos. Vide infra, nota 28.

7 De todos estes poemas, além dos Fastos, mencionados na nota anterior, há reminiscências apontadas desde Faria e Sousa.

8  Sobre a influência de Ovídio nas literaturas europeias, veja-se, entre outros, L. P. Wilkinson, Ovid Surveyed (Cambridge, 1962), caps. XI e XII.

9 Luís de Camões, O Lírico (Lisboa, 31967), p. 128.10 Sobretudo por Faria e Sousa, Rimas Várias de Luís de Camões (Lisboa, 1685, 2 vols.), e por Hernâni

Cidade, Luís de Camões. O Lírico.11 Sobre a variedade de conteúdo do soneto camoniano, vide António José Saraiva e Óscar Lopes,

História da Literatura Portuguesa (Porto, s.a., 5ª ed.), p. 332. Que alguns são «miniaturas de Idílios, cheios de amenidade e graça», como o 22 (Num jardim adornado de verdura), 74 (Num bosque que das Ninfas se habitava), 69 (Tomava Daliana por vingança), 70 (Quantas vezes do fuso s’esquecia,), 13 (Alegres campos, verdes arvoredos), notou-o J. M. da Costa e Silva (Ensaios III, p. 143), citado por F. Costa Marques, Camões, poeta bucólico (Coimbra, 1939), p. 21, nota 1, o qual acrescenta passos das Elegias III (O Sulmonense Ovídio, des-terrado), II (Aquela que de amor descomedido) e Divino almo pastor (em todos os exemplos, excepto no último, que é de autenticidade duvidosa, substituímos os números indicados por esses autores pelos corres-pondentes na edição de que estamos a servir-nos). Pela nossa parte, não incluiríamos nesta rubrica os sonetos n.os 22 e 74, que são de temática anacreôntica. Em contrapartida, acrescentar-lhes-íamos

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2838. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA

63 (Sentindo-se tomada a bela esposa), 72 (Em fermosa Leteia se confia), 79 (O filho de Latona esclarecido) e 152 (Depois que viu Cibele o corpo humano) – os dois primeiros inspirados no Livro VII.672-862, o terceiro em X.68-71, o quarto em I.438-567, e o quinto em X.103-105.

Os dois sonetos referentes a Céfalo e Prócris (62 e 63) versam dois momentos dessa famosa «tragédia de ciúme e de desentendimento», como expressivamente lhe chamou L. P. Wilkinson12. É admissível a hipótese, formulada já por Faria e Sousa, de ter existido um terceiro soneto que contivesse o drama final, resultante do equívoco em volta do nome de Aura13. O certo é que a metamorfose propriamente dita, com a petrificação da raposa de Tebas, não passou à versão camoniana. O propósito do Poeta era claramente esboçar uma situação que lhe permitisse chegar a um fecho conceituoso sobre os paradoxos do amor14.

Metamorfose típica é a contida no Soneto 72, tanto mais digna de nota, quanto é certo que a história de Oleno e Leteia é conhecida apenas através dos quatro versos de Ovídio acima referidos, mediante os quais – segundo um processo cor-rente no poema para ligar narrativas independentes – é encastoado no mito de Orfeu e Eurídice este pequeno drama. A concisão do seu tratamento não impede, no entanto, que se colham os dados essenciais: um crime de hybris, por parte de Leteia, confisa figurae15; a dedicação de Oleno, que quer tomar sobre si a falta; o castigo dos dois, transformados em rochedos na região da Tróade16:

... nunc lapides, quos umida sustinet Ide.

(Met. X.71)

O soneto camoniano dedica quatro versos a cada momento significativo do drama: vaidade de Leteia; castigo decretado pelos deuses; decisão de Oleno, oferecendo-se, por amor, para o suportar. Esta motivação tem a sua contrapar-tida na razão invocada para a efectivação da dupla metamorfose, que encerra abruptamente a história:

os n.os 60 (Todo o animal da calma repousava), 67 (O raio cristalino s’estendia), 77 (Na metade do céu subido ardia), 78 ( Já a saudosa Aurora destoucava), 103 (Cantando estava um dia bem seguro), 112 (Indo o triste pastor todo embebido). Note-se, aliás, que tanto a temática pastoril como a anacreôntica são correntes nos poetas quinhentistas (exemplos em Sá de Miranda, em António Ferreira, em Diogo Bernardes).

12 Op. cit., p. 92.13 Op. cit., vol. I, p. 293.14  «Lo mejor de ambos a dós es el terceto ultimo de cada uno: y solo para lograr aquellas pon-

deraciones se escribieron ellos» – comenta Faria e Sousa, op. cit., I, p. 293.15 Met. X.69.16 «... agora rochedos, que o Ida húmido sustenta.»

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mas, porque a morte Amor não apartasse, ambos tornados são em pedra dura.

Antes de prosseguirmos, vale a pena recordar que o poeta também tratou este mito da Écloga dos Faunos17, a que adiante nos referiremos com mais pormenor, dando-lhe uma oitava inteira:

[E] se entre as claras águas houve amores, Os penedos também foram perdidos.Olhai os dous conformes amadores,no monte Ida em pedra convertidos:Leteia, por cair em vãos errares,de sua fermosura procedidos;Oleno, porque a culpa em si tomava,por não se castigar quem tanto amava.

(316-323)

À boa maneira homérica, a história é tratada hysteron proteron: o resultado da metamorfose primeira, numa expressão em que é de assinalar o valor estilístico da ambivalência do qualificativo conformes; a segunda metade da oitava, com dois versos a explicar a causa da perdição de Leteia, e os outros dois para a de Oleno.

Tornando aos sonetos, temos outro, o 79, em que se passa exactamente o con-trário do caso precedente, ou seja, de uma das mais longas narrativas do poema ovidiano, Camões extraiu apenas os dados para preparar o contraste entre a des-treza no manejo do arco pelo Filho de Latona esclarecido, vencedor da serpente Píton, e a sua rendição às setas do Amor, quando pela Ninfa Peneia andou perdido. A «chave de ouro» mostra como o mito serviu apenas para fornecer um paralelo destinado a encarecer, por contraste, a situação sem esperança do poeta perante a amada18. De lado ficou o diálogo insolente entre Apolo vitorioso da serpente e o pequeno Cupido, que conduz à vingança deste (Met. I.456-474); todo o pormenor da história de Dafne, da sua resistência e fuga, e, sobretudo, a minuciosa descrição da sua mudança em loureiro e do destino desta árvore (I.475-567).

O mito de Átis constitui o ponto de partida do soneto 152, apenas porque o moço frígio se metamorfoseou em pinheiro, porque era esse o apelido do destinatário

17 O único elemento de cronologia relativa de que dispomos é que o soneto, para ser anterior à écloga, teria de ter sido composto antes de 1553, data do falecimento de D. António de Noronha, destinatário desta última.

18 O tratamento do mesmo mito na Écloga dos Faunos, onde aparece associado ao de Ciparisso, é ainda mais breve (352-355). Outro tanto se repete em Lus. IX.57.

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da composição. A identificação exacta deste, contudo, é dúvida que tem desafiado a argúcia dos comentadores19.

O certo é que, nesta breve referência, a metamorfose encontra-se já consu-mada, de modo que se podem ignorar habilmente os precedentes da história, cuja recordação seria inoportuna, e transformar a mágoa de Cibele num pedido desta a Júpiter para que à nova árvore seja dado valor simbólico superior ao da palma e do loureiro. A inspiração para tudo isto pode ter sido colhida na parte final do catálogo das árvores que vêm escutar o canto de Orfeu em Met. X.102-10520:

... et lentae, victoris praemia, palmae et succinta comas hirsutaque vertice pinus, grata deum matri; siquidem Cybeleius Attis exuit hac hominem truncoque induruit illo.

A lenda de Átis, conhecia-a, de resto, Camões perfeitamente21, se não através do famoso carme 63 de Catulo, pelo menos na versão de um outro poema de Ovídio, os Fastos (IV.223-246), de onde provieram os tópicos que encontramos em duas oitavas da já citada Écloga dos Faunos (356-371).

Tal como no exemplo que vimos há pouco, pertencente a esta mesma compo-sição, a história é apresentada pelo processo de hysteron proteron, com a figura do jovem transformado em árvore e a razão desse castigo:

Está o moço de Frígia delicado no mais alto arvoredo convertido, que tantas vezes fere o vento, irado; galardão de seus erros merecido, que, da alta Berecíntia sendo amado, por ũa ninfa baixa foi perdido;e a deusa a quem perdeu do pensamento quis que também perdesse o entendimento.

19 Cf. a nota de Costa Pimpão ad locum (p. 407 da sua edição). O soneto redobra de interesse, se se aceitar a hipótese de Storck (Luís de Camões’ sämmtliche Gedichte, II, Paderborn, 1880, p. 408), de que o verso final: 

cantando à vossa sombra verso eterno

se deve entender como referente a Os Lusíadas.20  «... e as flexíveis palmeiras, prémio dos vencedores, e o pinheiro enramado, de topo hirsuto, 

caro à mãe dos deuses; pois Átis, a Cibele consagrado, aí perdeu a forma humana e endureceu naquele tronco.»

21 A Antiguidade legou-nos, aliás, duas versões divergentes da lenda, sobre as quais vide Franz Bömer, P. Ovidius Naso. Die Fasten (Heidelberg, 1958), Band II, pp. 226-227.

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Ao contrário do que sucedia no soneto, aqui não se pretende exaltar a árvore, mas antes censurar o jovem, que não soube corresponder – falta que Os Lusíadas retomarão em IX.57.5-6 – a tão alto amor como era o de Cibele (e Ovídio por-menorizara o juramento de fidelidade à deusa, a sua quebra posteriormente, o reconhecimento da justiça no castigo sofrido).

Porém nesse passo dos Fastos não há metamorfose de Átis, mas outra espécie de castigo: a Ninfa do rio Ságaris, sua amada, perece em consequência das feridas que Cibele inflige à sua árvore, e o jovem, alucinado, acaba por se emascular. A parte relativa a Átis foi aproveitada por Camões para a segunda das oitavas que consagrou a este mito, esquivando, porém, a crueza da descrição do original e acrescentando-lhe, até, uma nota de comiseração, na dor sentida pelas feras e no lançar, para o final do quadro, do motivo do desaparecer da beleza física22.

Por duas vezes já, apontámos paralelos com a mais famosa bucólica de Camões, a Écloga dos Faunos. Efectivamente, apesar de ter sido Virgílio o seu principal e confessado modelo no género23, por vezes seguido muito de perto, e da nítida influência de Sannazaro e Garcilaso, a todo o momento se nos deparam também reminiscências de Ovídio.

Também aqui não vamos enumerá-las todas, porque a maior parte desse tra-balho se encontra feita pelos comentadores, sobretudo Faria e Sousa e Storck.

No caso concreto desta Écloga, lembremos que já o primeiro destes estudiosos apontou e analisou as influências constantes das Salices de Sannazaro e da Écloga III de Garcilaso, e ainda as ocasionais da Écloga II deste último autor.

22  Supomos que no texto do verso 368, que, aliás, figura assim na edição de Manuel de Lira: 

Já no indino monte se lançava

deve ser corrigido o adjectivo, que não faz sentido, pelo nome próprio que está em Ovídio no passo correspondente do v. 234, para localizar esse monte:

effugit et cursu Dindyma summa petit

(fugiu e na sua corrida procurou as alturas do Díndimo)

ficando portanto:

Já no Díndimo monte se lançava

que, além de lectio difficilior, evita o hiato do texto tradicional.Note-se que o topónimo em latim aparece tanto no masculino singular (e.g. Catulo 35.14, 63.91;

Ovídio, Fast. IV.249) como no neutro plural (e.g. Virg. Aen. X.617; Ov. Met. II.223, Fast. IV.234). A deusa recebe do facto de ter o seu culto nesse monte o epíteto de Dindimene (e.g. Hor. Carm. I.16.5). A desig-nação era também conhecida de Camões, que a emprega mais adiante nesta mesma Écloga (v. 474):

Sabe-o da deusa Dindimene o templo.23  Veja-se,  a  este propósito,  o  já  referido estudo de F. Costa Marques, Camões, poeta bucólico.

Parece-nos exagerada a informação de G. Le Gentil, ao tratar das éclogas, de que «Camões, que tanto se inspirou em Virgílio para a sua epopeia, não parece lembrar-se senão raramente das Bucólicas e das Geórgicas» (Camões, trad. port., Lisboa, 1969, p. 150).

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As três composições têm, efectivamente, traços comuns: a dedicatória, a pre-sença de um grupo de Ninfas num locus amoenus, prontas a refugiar-se nas águas, quando surpreendidas.

Das Salices, em que os comentadores têm reconhecido, por sua vez, o modelo da história de Dafne (Ovídio, Met. I.452 sqq.), o nosso poeta aproveitou o motivo do canto das divindades silvestres e sua fascinação ao avistar as Ninfas. A quebra da promessa dos Sátiros, perseguição às Ninfas, pedido de socorro destas às Náiades e o lançar-se ao rio, com a subsequente metamorfose em salgueiros, que constitui o fecho da história, não figuram na Écloga dos Faunos.

Em Garcilaso, o locus amoenus é nas margens do Tejo. O motivo da Ninfa que, maravilhada com as belezas do sítio, vai chamar as irmãs para virem gozar os encantos do local, assemelha-se ao do nosso poeta. Mas, a partir daqui, Garcilaso usa um processo já conhecido de Ovídio e tradicional na poesia latina desde Catulo (que o herdara dos poetas helenísticos), para intercalar outras histórias: as Náia-des trazem telas, onde cada uma borda a sua. Temos assim, sucessivamente, a de Orfeu e Eurídice, de Dafne e Apolo, da morte de Adónis. A quarta, porém, escolhe um assunto contemporâneo, o pranto das Ninfas por Elisa, a amada de Nemoroso. Quando se dirigem de novo para o rio, as ninfas escutam os cantos amoibeus de dois pastores, terminados os quais regressam às suas águas.

O cenário em que decorre a Écloga dos Faunos é localizado no Parnaso, num formoso quadro natural, a que é fácil apontar precedentes em Ovídio (Met. III.161 sqq.) e em Garcilaso (Éclogas II e III)24, mas que excede a qualquer deles pela beleza, variedade e musicalidade da expressão. A chegada das Ninfas e a cena em que, surpreendidas pelos Sátiros, fogem espavoridas, tem sido considerada justamente, desde Faria e Sousa a Roger Bismut25, como o prelúdio ao episódio da Ilha dos Amores em Os Lusíadas.

É mais adiante, nas queixas dos Sátiros desiludidos, que nós vamos encon-trar em catadupa (sobretudo na do segundo) os mitos de Ovídio26 – tirados

24 Estas e outras fontes são devidamente apontadas por Faria e Sousa. Recordemos de passa-gem, como curiosidade da nossa história literária, que é a propósito desta mesma Bucólica que esse comentador propõe a personificação de ribeiro (v. 40) como o autor da Menina e Moça e a identificação das Ninfas, que vão surgindo a partir do v. 91 (sendo duas naturais do Tejo), com a Infanta D. Maria e as suas damas...

25 La lyrique de Camões (Paris, 1970), especialmente pp. 177 e 220-229, que põe em evidência o que ele intitula «mecanismos de auto-imitação». Veja-se também a edição de Mendes dos Remédios da Écloga dos Faunos (Coimbra, 1923), p. 56.

26 «Os monólogos dos dois sátiros estão cheios de reminiscências clássicas; o do 2.º, especial-mente, é como que um resumo de muitos passos das Metamorfoses de Ovídio» – escreveu José Maria Rodrigues («A propósito das éclogas de Vergílio e de Camões», Boletim da Academia das Sciências de Lisboa, N. S., 2, 1930, p. 886). «Não sei que mais exemplos célebres de amor excessivo, sacrificado, dramático este poderia invocar para abrandar nas ninfas a aspereza insana com que se lhe recu-savam» – observa Hernâni Cidade (Luís de Camões. O Lírico, p. 127), que depois transcreve e compara exemplos, para concluir: «O poeta, em geral, contenta-se de receber a sugestão, sem decalcar. E os

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principalmente das Metamorfoses, mas ocasionalmente também dos Fastos e das Heróides27.

Note-se que o poeta, tal como na lenda de Átis combinara elementos da versão breve das Metamorfoses com a mais extensa, e diversa, dos Fastos (conforme vimos acima), faz outro tanto com a história de Priapo e Loto, referida no primeiro dos poemas em IX.340-348 e contada em moldes distintos, que ignoram a mudança em pinheiro, no segundo, em I.393-440. O quadro da descrição das atitudes das Ninfas, pertencente a esse trecho dos Fastos, ficou para o episódio da Ilha dos Amores, bem como para o seu esboço na Écloga dos Faunos, como também dissemos atrás28.

Tanto quanto podemos julgar pelo estado actual do texto – como é sabido, a edição de 1595 adverte que entre os vv. 483 e 484 se tiraram duas oitavas, e Juromenha acusa a falta de pelo menos uma entre 379 e 380 – o encadeamento desta série de histórias, que podiam ter o título geral de «O poder do Amor», está feito com tanta variedade como habilidade e, a despeito da identidade do fim de todas elas, não se pode falar de monotonia. Repare-se que nada menos de trinta mitos são contados, cujos protagonistas sofrem todos a pena da metamorfose, a qual, salvo em dois casos (Ífis e Adónis), em que não é mencionada, embora claramente subentendida, constitui o ponto fulcral e ao mesmo tempo o elo de ligação das histórias, e quase sempre é referida em primeiro lugar, para maior ênfase.

A ordem dada a esta enumeração, com alternância entre grupos de estrofes que abrangem dois e três mitos cada uma, estrofes consagradas a um só mito (Oleno e Leteia; Píramo e Tisbe; Fílis e Demofonte; Clície; Hipómenes e Atalanta), ou sequências de mais de uma estrofe para cada um (Dáfnis; Átis; Priapo e Loto; Alcíone), para culminar com as quatro oitavas e meia dedicadas a Actéon, cuja lenda é contada de modo dramático29, faz esquecer que estamos perante aquele tipo de composição literária que tecnicamente se denomina um catálogo.

O erudito Sátiro Segundo tem, aliás, consciência do facto, quer quando se interrompe para fazer esta distinção em que joga com as suas próprias pala- vras:

episódios em que mais se demora são os mais dramáticos...» (p. 129). Na página seguinte, refere ainda, com a penetração crítica que o caracteriza, como o nosso poeta acrescentou habilmente ao mito de Actéon o motivo (inspirado noutro passo ovidiano) do jogo verbal derivado do emprego do eco. Sobre as diversas versões camonianas daquele mito e a tese de Faria e Sousa acerca da razão da insistência que nele fazem Os Lusíadas, vide A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos (Coimbra, 1975), cap. IV, «O mito de Actéon em Camões».

27 O pormenor das equivalências está em Faria e Sousa.28 Supra, nota 6.29  Uma fina análise do tratamento do mito de Alcíone e do de Actéon nesta Écloga pode ler-se 

em Hernâni Cidade, Luís de Camões, O Lírico, pp. 129-130.

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Já vos disse que de Amor sempre tiveramas cousas insensíveis pena e glória.Vêde as sensíveis como se perderam;e dir-vos-ei das aves larga história.Que as penas que em sua alma se sofreram nas asas lhe ficaram por memória.E aquele alívio e leve movimentolhe ficou por dor do pensamento.

(420-427)

quer quando, a terminar o seu canto, o resume deste modo:

Aqui, ó Ninfas minhas, vos pintei todo de amores um jardim suave; das aves, pedras, águas vos contei, sem me ficar bonina, fera ou ave.

(508-511)

O Primeiro Sátiro, em cujo argumentar se reflecte algo da concepção da cha-mada Vénus física de Lucrécio, aludira, à passagem, a um ou outro mito celebrado nas Metamorfoses (Eurídice em 173-175, Epérie nos dois versos seguintes, Aracne em 256-257). Alusões também rápidas, mas com outra finalidade – a de invocar tempos felizes em que tinha o amor maior poder (v. 183), animando a natureza com todas as galas da alegoria mitológica, são as que faz Agrário30 na Écloga II (Ao longo do sereno), a partir do v. 190.

Em parte reminiscência das Metamorfoses (Narciso, Eco, Jacinto, Adónis, seguidos de mais uma cena de perseguição dos Faunos às Ninfas fugitivas), ligam-se a uma enumeração de divindades campestres romanas, que denotam outras fontes de inspiração: Sannazaro e Garcilaso31.

Mais adiante, noutra fala de Agrário, passam Endimião (vv. 339-341), Ixião (vv. 342-344), Páris e Enone (vv. 363-377), estes conhecidos das Heróides (V.). Noutro passo ainda, o mesmo pastor refere o mito de Dafne e Apolo (vv. 492-494), que lhe serve de termo de comparação para introduzir uma bela paráfrase da X. Bucólica de Virgílio (vv. 495-518). A resposta de Almeno refere, a concluir, a metamorfose de Anaxárete (vv. 561-564).

30 A erudição deste pastor, que uma convenção literária estabelecida desde Virgílio (não de Teócrito) faz passar despercebida, foi acentuada por Hernâni Cidade, Luís de Camões. O Lírico, p. 298.

31 Faria e Sousa cita expressamente, para os vv. 215 sqq., a Écloga que termina a Prosa X da Arcadia. De notar que, tal como o poeta italiano, Camões usa nesta fala rima encadeada.

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Esta última história marca o regresso ao modelo ovidiano (Met. XIV.698-759), em passo de que, aliás, mais uma vez, só se aproveitou um motivo: a transformação da altiva jovem em duro mármore (v. 561). Também para Narciso e para Eco se fizera outro tanto, imobilizando um e outro no momento que precede a metamorfose (vv. 198-202), de modo que a figura do jovem se sobrepõe à da flor a que fornece aition, e a da Ninfa ao fenómeno acústico que a sua história pretende explicar. Quando a seguir se mencionam Jacinto e Adónis (vv. 203-206), a anterior forma humana é já só uma lembrança perpetuada por aquelas flores que embelezam o prado32.

O mito de Eco e Narciso reaparece a abrir a Elegia II numa engenhosa perífrase:

Aquela que de amor descomedidopelo fermoso moço se perdeuque só por si de amores foi perdido, despois que a deusa em pedra a converteu de seu humano gesto verdadeiro, a última voz só lhe concedeu:

(1-6)

Breve evocação de uma metamorfose, que servirá de termo de comparação com a situação do poeta, a quem só resta o canto. O processo literário é, em certa medida, paralelo ao da Elegia III, com o retrato de Ovídio exilado de que já falámos (note-se a correspondência formal entre o destarte do v. 25 deste poema e o assi do v. 7 do que estamos a examinar). Num caso é, portanto, uma metamorfose, e noutro um facto histórico, que fazem as vezes do símile tão usado na epopeia.

Ainda a propósito do refúgio na poesia, observe-se a insistência com que Camões (tal como Sannazaro, aliás) trata o mito de Orfeu, ou, mais exactamente, o momento da catábase em que a beleza do seu canto subjuga os próprios deuses infernais e sustém as penas dos supliciados: recorde-se o final da Elegia II, acima citada (vv. 106-130), e cinco estrofes da Ode III, Se de meu pensamento (vv. 36- -60)33. É que o simbolismo que pode extrair-se desta parte da história do cantor da Trácia,

32  Estas duas metamorfoses, a de Narciso e a de Adónis, estão integradas na flora da Ilha dos Amores (Lus. IX.60.5-8):

Ali a cabeça a flor Cefísia inclina sôbolo tanque lúcido e sereno; f lorece o filho e neto de Ciniras, por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.

33 A estes exemplos, onde os tópicos ovidianos de Met. X.11-63 se misturam com os virgilianos de Georg. IV.466-483 e de Aen. VI.580-627, poderia acrescentar-se o do encarecimento dos sofrimentos do poeta sobre os dos próprios supliciados no Tártaro, na Elegia II, O Sulmonense Ovídio, desterrado (vv. 79-84), e no final das ·estrofes terceira, quarta, quinta e sexta da Canção II, A instabilidade da fortuna.

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na qual a vitória da poesia e do amor sobre a morte se unificam, presta-se admi-ravelmente a exprimir uma das mais profundas esperanças do poeta.

Em Os Lusíadas há diversos passos em que se faz referência mais ou menos extensa a metamorfoses tiradas da tradição mítica antiga, quase sempre ovidiana. A maior parte das vezes são elaboradas perífrases, como quando, em I.42.6-8, o poeta quer dizer que se estava em Fevereiro34, ou, um pouco mais adiante, em I.46.5-8, para descrever a gente moçambicana, resume um tanto elipticamente uma das mais longas histórias contadas por Ovídio35:

A gente da cor era verdadeiraque Fáeton nas terras acendidasao mundo deu, de ousado e não prudente– o Pado o sabe, e Lampetusa o sente.

Os exemplos concentram-se na descrição da Ilha dos Amores, afinada sobretudo pela tónica ovidiana36. Já atrás registámos dois deles37. Mais interessante do que qualquer destes, porém, são aqueles em que Camões, seguindo o processo clássico, cria ele mesmo metamorfoses. Estão neste caso dois dos mais célebres episódios de Os Lusíadas: o de Inês de Castro e o de Adamastor.

Que a paixão de Pedro e Inês era comparável aos grandes dramas amorosos da Antiguidade, já o tinha visto Fernão Lopes38. Enquadrando-o na narrativa da história de Portugal, o poeta dá uma réplica feliz e original, no plano do embate entre um sentimento avassalador e os superiores interesses da Nação, ao canto IV da Eneida39.

34 Uma perífrase semelhante para o mês de Abril, em II.72 (que, aliás, principia em termos mitológicos e se completa com dados cristãos), não explicita o processo da metamorfose, embora o subentenda também.

35 Met. I.750- II.366. A continuação desta história, relativa a Cicno, em II.367-380, serviu para uma perífrase muito mais breve, mas ainda alusiva ao mito, em Lus. I.49.8 (Os de Fáeton queimados). Outra perífrase ainda, agora para designar a luz do Sol, em Lus. V.91.6.

36  Sobre as diversas fontes propostas para este canto, veja-se V. M. Aguiar e Silva, «O Significado do Episódio da Ilha dos Amores na estrutura de ‘Os Lusíadas’», Ciclo de Lições Comemorativas do IV Cen-tenário da Publicação de Os Lusíadas, XLVIII Curso de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Lisboa, 1972), pp. 84-85 (colectânea daqui em diante citada como Ciclo de Lições).

37 Supra, nota 32.38 Os paralelos escolhidos são Ariadne e Dido, «segundo se lee em suas epistollas» (Crónica de D.

Pedro I, cap. XLIV), o que quer dizer que a fonte de conhecimento são as Heróides (X e VII, respecti-vamente; é curioso que o segundo destes poemetos tenha sido um dos que João Rodrigues de Sá de Meneses verteu e que, como se sabe, figura no Cancioneiro Geral).

39 Aqui acaba a semelhança. O motivo do acolhimento, em terras longínquas, a um hóspede que depois é solicitado a contar a sua história foi utilizado, como todos sabem, para a recepção do Rei de Melinde e o conjunto da narrativa que lhe é feita.

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292 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Sem nos determos nos pormenores de influências clássicas apontados pelos comentadores, nem nas duas estâncias que amplificam o horror do morticínio (a 133, com uma feliz adaptação de Geórgicas IV.525-527, notada por Epifânio, e a 134, com um dos mais formosos símiles do poema), é na 135 que vamos deter-nos. «Galantisima metamorfosi» lhe chamou Faria e Sousa, na linguagem adocicada da época. E recorda o Epitáfio de Adónis, de Bíon (aliás não relevante), o remate dos amores de Bíblis, a qual se transforma em fonte (Ovídio, Met. IX.663-665), e o pranto de Aurora por seu filho Mémnon, de onde deriva o orvalho (Met. XIII.622). Reconhece, contudo, que «fabrico aqui nuestro poeta destrisimo una hermosa fabula»40. Epifânio, citando o estudo de Fonseca Pinto, Ignez de Castro, Iconografia, Historia, Literatura, aponta um passo de Apolónio de Rodes, I.1065-1069, em que se dá como origem de uma fonte as lágrimas que as Ninfas choraram pela morte de Clite.

A história da Fonte dos Amores tem sido objecto de diversos trabalhos, entre os quais avultam os de Carolina Michaëlis e de António de Vasconcelos41. Salien-tamos as conclusões a que chegaram: adquirida para o Mosteiro de Santa Clara pela Rainha Santa, em 1326, a fonte aparece, com o nome que hoje conserva, em 1360, e é cantada por três poetas antes de Camões – Sá de Miranda (Écloga IX.529 e Fábula do Mondego 60 sqq.), Inácio de Morais (Conimbricae Encomium) e Jorge Fer-nandes42. Destes autores, o mais interessante para o nosso caso é o segundo, por contar uma história de amores entre uma Ninfa e o Mondego, na qual aquela se transforma em fonte, que o rio continua a procurar nas suas cheias (sem esque-cer a invocação de Alfeu e Aretusa). Em qualquer deles, porém, falta a relação com a lenda inesiana, o que levou António de Vasconoelos a supor que teria sido Camões quem ligou os dois motivos. Nenhum argumento seguro surgiu até hoje para invalidar esta hipótese. O facto de, na mesma época, o humanista Inácio de Morais ter imaginado uma explicação mitológica para a origem da fonte, e Camões outra muito diversa, e de ambas estarem dentro dos cânones ovidianos, parece-nos confirmar a possibilidade de não existir ainda nenhuma tradição sobre o nome.

De qualquer modo, ao terminar a história de Inês, o nosso poeta apresenta um autêntico aition, não de carácter universal, mas puramente local, que se lhe ajusta com naturalidade, ao mesmo tempo que a enquadra nos moldes dos grandes dramas de amor contados no poema de Ovídio.

O episódio do Adamastor tem sido analisado e interpretado sob os mais variados ângulos. Tão-pouco vamos aqui renovar a discussão, que se encontra resumida e

40 Lusíadas de Luís de Camões comentadas (Lisboa, 1639), vol. I, pp. 215-216.41 Respectivamente, «Pedro, Inês e a Fonte dos Amores», Lusitânia, 2, 1925, 159-182, e Inês de

Castro (Portucalense Editora, 1933), pp. 114-124.42 A argumentação desenvolvida por Jorge de Sena, Estudos de História e de Cultura (Lisboa, vol. I,

1967), pp. 282-289, sobre a cronologia deste soneto (transcrito por Carolina Michaëlis, op. cit., p. 180, do Cancioneiro Fernandes Tomás) leva-nos hoje a supô-lo posterior a Os Lusíadas.

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enriquecida com novos elementos em trabalhos recentes e autorizados43, como não vamos retomar a questão do significado deste passo na estrutura do poema44. Que-remos apenas pôr em relevo que nesta figura se congregam elementos fundamentais da grande tradição axiológica grega: castigo da hybris dos navegantes portugueses, por terem ultrapassado os vedados términos (o que é mais uma maneira indirecta de exaltar a grandeza dos seus feitos), nas profecias do gigante (V.41-48); castigo da paixão amorosa ilícita, por meio de uma humilhante decepção (V.52-57). Tal como Ixião fora ludibriado pela nuvem que tomara pela esposa de Júpiter45, também Ada-mastor, cego de amores da alta esposa de Peleu (V.52.1) é cruelmente desiludido, pois se acha abraçado cum duro monte (V.56.3). O seu desespero é terrível:

Daqui me parto, irado e quase insanoda mágoa e da desonra ali passada,a buscar outro mundo onde não vissequem de meu pranto e de meu mal se risse.

(V.57.5-8)

Porém, Adamastor não é castigado com um suplício infernal, como o pai dos Centauros, mas com nova metamorfose46, de modo que

em fim minha grandíssima estaturaneste remoto cabo converteramos deuses, e por mais dobradas mágoasme anda Tétis cercando destas águas.

(V.59.5-8)

43 Quanto à origem do nome, vide A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos, cap. II, «Sobre o nome de Adamastor». A discussão relativa às suas origens e significado encontra-se no mesmo livro, cap. III, «Aspectos clássicos do Adamastor». Aí o autor insere esta figura numa dupla tradição mítica, a de Polifemo e a da Gigantomaquia. O artigo de H. Houwens Post, «Eine wenig bekannte Quelle der ‘Lusiaden’», Port. Aufsätze 1, 1960, 87-93, encontra-lhe a origem em Valério Flaco, Argonautica I.598-607 (para a profecia) e II.17-24 (para a Gigantomaquia). O segundo destes paralelos parece-nos aceitável nas linhas gerais, mas, no pormenor da metamorfose, está muito mais próxima a fonte já indicada por Faria e Sousa e aceite por Epifânio: Ovídio, Met. IV.655-660. A hipótese de Leonard Bacon, no comentário à sua tradução do poema para inglês (The Hispanic Society of America, New York, 1950, p. 206), segundo a qual a imagem de Adamastor derrubado teria a sua origem na Odisseia XI.576-581, parece-nos de rejeitar.

44  Sobre este assunto, veja-se especialmente João Mendes, Literatura Portuguesa, I (Lisboa, 1974), pp. 234-239 e 254, e Aníbal Pinto de Castro, «O episódio do Adamastor: seu lugar e significação na estrutura de ‘Os Lusíadas’», Ciclo de Lições, pp. 61-78.

45 O mito encontra-se na Écloga II, Ao longo do sereno (vv. 342-344), e, de uma forma mais próxima do passo que nos ocupa (embora decorrendo no plano da fantasia, apenas), na Canção II, A instabili-dade da Fortuna (vv. 48-62).

46 O carácter compósito desta metamorfose foi notado por A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos, p. 49.

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O castigo agrava-se com a presença de Tétis, que, qual redobrado suplício de Tântalo, é próxima e inacessível ao mesmo tempo.

Por um admirável contraste, é precisamente neste momento, em que o gigante conta a sua redução a acidente geográfico, que ele mais se humaniza, desapare-cendo cum medonho choro (V.60.1), e desfazendo-se então a nuvem negra (V.60.3) que assustara os mareantes em V.37-38 e que, sendo a um tempo fenómeno natural e símbolo de envolvimento sobrenatural47, é o ponto de articulação do plano real com o mítico, usado para introduzir e para encerrar o episódio48.

Parece-nos que, em termos de religião grega, podemos ver nesta invenção a procura de um duplo aition: o histórico, que dá a razão dos naufrágios sofridos naquelas paragens; e o geográfico, que explica a presença daquele cabo em moldes algo semelhantes aos que usara Ovídio para dar conta do aparecimento do monte Atlas, no extremo oposto do mesmo continente.

Há ainda outro tipo de metamorfose que transcende os quadros da mitologia clássica e se coloca num plano puramente espiritual. É o caso de um dos mais céle-bres sonetos camonianos, o n.º 20, Transforma-se o amador na coisa amada, motivo que aflora também nos vv. 324-326 da Écloga II, Ao longo do sereno. No referido soneto, o poeta teve como ponto de partida um verso de Petrarca, mas transfunde nele conceitos platónicos e aristotélicos, como observou Hernâni Cidade49.

O mesmo especialista aproxima desta obra a Canção VII, Manda-me amor que cante docemente50, poema que se considera inspirado numa composição de Petrarca, a Canção Nel dolce tempo de la prima etade, embora a imitação seja, como escreveu Rodrigues Lapa, «muito por alto e superiormente, sem descer às minúcias do poeta italiano, que se imagina transformado em louro, cisne, estátua, fonte, eco,

47 Desde Homero que os heróis podem ser envoltos numa névoa, por efeito da protecção divina (e.g. Odisseia VII.140), O motivo é retomado na Eneida I.411-414, 516, 580. A nuvem pode também ocultar o divino, como em Hesíodo, Teogonia 9.

48 Fomos encontrar uma interpretação da nuvem próxima da nossa em António José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, I (Lisboa, 41972), p. 129, quando, referindo-se ao modo de relacionar o plano divino com o humano, escreve: «Um terceiro processo consiste em dar uma preparação realista ao surgimento do mito. Exemplificando: o Adamastor vem numa nuvem carregada e desfaz-se em choro quando ela se desprende em chuva – confunde-se assim com um fenómeno meteorológico». Não vemos, no entanto, por que razão o Adamastor deva considerar-se um «pseudomito», como sustenta o mesmo investigador na p. 101 do mesmo livro.

49 Luís de Camões. O Lírico, pp. 105-151 e 175-176. É desta última página a magnífica síntese: «O tema aqui tratado é comum à poesia platonizante e petrarquizante do tempo. Mas será difícil encontrar um outro soneto em que o conceito platónico da ideia assim reforce seu poder expressivo com o conceito aristotélico da forma».

50 Ibidem, p. 176, onde também se lê: «Nela o Poeta exprime a redução da actividade psíquica a um alto e doce pensamento, desejo transcendente, que assume foros de razão». Ao tratarmos desta canção, abstraímos do problema das três versões que nos foram transmitidas, hoje resolvido pelo estudo de Jorge de Sena citado adiante (nota 52).

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cervo»51. Efectivamente, apesar do aparato mitológico que ornamenta a estrofe segunda, e das mudanças operadas na natureza pela visão da amada na estrofe terceira – que mais parece uma epifania divina –, é só na quarta que o poeta sente a sua própria e paradoxal transformação:

Tanta vingança Amor de mim queriaque mudava a humana natureza:e os montes e a durezadeles em mim, por troca, traspassava.Ó que gentil partido!Trocar o ser do monte sem sentido,pelo que num juízo humano estava!Olhai que doce engano:tirar comum proveito de meu dano!

(52-60)

Esta transformação encontra-se perfeitamente definida por Jorge de Sena no seu livro Uma Canção de Camões: «Os montes, e (também e sobretudo) a dureza deles, em mim por troca trespassava. Isto é, transfundia no poeta a insensibilidade das coisas da natureza, na medida em que atribuía a elas a sensibilidade intelectual das coisas do espírito»52.

Que este tipo de mudança está longe da linha ovidiana, é ponto que não oferece dúvidas. Mas pensar, como aquele investigador, que Camões recolheu nele «a mara-vilhosa intuição de Apuleio (ainda que possa não ter havido influência directa), parece-nos mais difícil de aceitar53, embora reconheçamos a posição central que, assim entendida, a metamorfose ocupa na lírica camoniana54.

51 Luís de Camões, Líricas (Lisboa, 1940), p. 42.52 Uma Canção de Camões (Lisboa, 1966), pp. 417-418. Não julgamos, no entanto, que a visão seja 

referente, não a «um ente», mas a «uma essência». O parentesco desta visão com a da Ode VI, Pode um desejo imenso (vv. 64-67) e de outros passos que procuram exprimir o inefável foi assinalado por Jacinto do Prado Coelho, A Letra e o Leitor (Lisboa, 1969), p. 24.

53 As metamorfoses que dão o título ao livro latino são de carácter mágico e transitório. E o «conteúdo espiritual superior» que efectivamente existe advém-lhe, muito mais que do mito de Eros e Psyche, do sentido do Livro XI, que, esse sim, contém uma «ascese iniciática», que faz da obra um documento precioso para a história da espiritualidade pagã do séc. II (cf. A. J. Festugière, Personal Religion among the Greeks [Berkeley, 1954], cap. V, «Popular Piety: Lucius and Isis»); sobre a possibili-dade de considerar a história de Psyche como uma alegoria dos rituais da iniciação que vai sofrer o protagonista, no final da obra, vide R. Merkelbach, «Eros und Psyche», Philologus 102, 1958, 103-116. Esse tipo de espiritualidade não seria compatível – como, aliás, Jorge de Sena reconhece (ibidem, p. 429) – com a religião do nosso poeta.

54 Idem, ibidem, p. 431.

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Com estes exemplos, estamos, portanto, perante um género de metamorfoses que acusa um carácter mais marcadamente original. Mas não é este o que nos propusemos estudar em especial, uma vez que tomámos a palavra no seu sentido mais corrente em religião grega, que é o da passagem, geralmente definitiva, de um a outro estado – seja ao de animal, vegetal ou mineral.

A nítida predilecção que Camões manifesta por este motivo não é exclusivo seu. Já vinha de Petrarca, de Fontano, de Sannazaro, de Garcilaso. E, muito antes destes, como sabemos, da própria Antiguidade, e em especial de Ovídio55.

E já aí se põe a questão: terá a metamorfose apenas um valor etiológico, o de preservar uma resposta primitiva às dúvidas do homem que ainda não ultrapassou os esquemas do pensar mítico, e que a cultura do Século de Augusto aceita pelo apelo à imaginação e aos sentidos que tais histórias contêm56? Representará ela «uma existência espiritual decaída e castigada», «uma degradação do espírito», «uma decadência do humano», «uma atitude negativa para com a natureza»? Hegel, autor desta última explicação, põe em contraste o papel do lobo na história dos deuses egípcios Osíris e Hórus com o do mito arcádico de Licáon (Met. I.163- -243), e, admitindo embora a heterogeneidade deste tipo de narrativas, considera que geralmente a mudança de forma representa um grave castigo dos deuses57.

Julgamos que não pode deixar de se considerar também outro lado da questão. Este evidencia-se nos casos em que a metamorfose surge como uma possibilidade de evasão, de esperança na passagem a uma forma que é um não-aniquilamento, ou pelo menos, não é um aniquilamento total.

É o próprio Ovídio que nos dá a sugestão numa das suas Epistulae ex Ponto58:´

ille ego sum, lignum qui non admittar in ullum: ille ego sum, frustra qui lapis esse velim.

(I.2.33-34)

e num passo das Metamorfoses em que Mirra, reconhecendo a gravidade da sua falta, pede aos deuses que lhe mudem a forma, negando-lhe tanto a vida como a

55  Dizemos em especial, pelas razões  já apontadas supra, nota 8. Porque de metamorfoses se ocuparam, e largamente, os chamados mitógrafos, sobretudo Antonino Liberal, Apolodoro, Higino. E não esqueçamos, para os autores do séc. XVI, a Officina de Ravisio Textor e as Genealogiae Deorum de Boccaccio, mencionadas em José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas (Coimbra, 1905).

56  Como prova desta afirmação, veja-se o testemunho autobiográfico de André Gide citado por Hermann Fränkel, Ovid, a Poet Between Two Worlds (Berkeley, 1956), p. 220, nota 73.

57 Estética, II, pp. 107-109 e 166-172, da tradução francesa (Paris, Aubier, 1944), que seguimos, por não dispormos do original alemão. As expressões citadas provêm, as duas primeiras, da p. 107, e as outras duas, da p. 167.

58 «Eu sou aquele, que não posso passar a tronco algum; eu sou aquele, que em vão quereria ser pedra.»

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morte (X.483-487). Este segundo exemplo é apontado por Hermann Fränkel, que explica: «Separation from the self means normally death, but not in a metamor-phosis... The device of transformation offered a compromise for the dilemma between life and death»59.

É à luz desta interpretação que melhor podemos compreender o acolhimento deste motivo pelos cultores da estética chamada maneirista, porquanto está ligado ao característico tema da mudança60, tão corrente nos poetas desse período em geral, e de Camões em particular.

Efectivamente, mudança, transformação, resistência ao tempo, desejo de imor-talidade através do canto, identificado com o próprio poeta61, são ideias afins, que estão na essência da visão camoniana do mundo. São as mesmas que informam os dois primeiros tercetos da já citada Elegia II, onde a Ninfa Eco petrificada tem ainda – e só – a sua voz, tal como o autor dos versos. A metamorfose é também, afinal, uma forma de permanência.

59 Op. cit., p. 99.60 Cf. Kurt Reichenberger, «Der christliche Humanismus des Camões», Port. Aufsätze 4, 1964, pp.

114-115, e bibliografia aí scitada, e V. M. Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa (Coimbra, 1971), pp. 279-293, especialmente p. 285.

61 Este último ponto foi evidenciado por Eduardo Lourenço de Faria, «Camões et le temps ou la raison oscillante» in Visages de Luís de Camões (Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, Paris, 1972), pp. 109-124.

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(Página deixada propositadamente em branco)

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9. A TEMPESTADE MARÍTIMA DE OS LUSÍADAS . ESTUDO COMPARATIVO*1

O tema da tempestade marítima era um tema épico por excelência desde a Odisseia, onde se enquadrava naturalmente nos errores de Ulisses, transcorridos nos mares, sob a perseguição da cólera de Poséidon. Há uma no Canto IX (67-81), outra no Canto XII (397-409). Mas a grande tempestade, aquela que se tornou arquitexto das muitas que se lhe seguiram, é a do Canto V (282-463).

Daí o tema passará à Eneida (I.81-156), a Ovídio, Metamorfoses (XI.410-748), a Lucano (V.597-677), para não falar do seu tratamento na elegia (Tristes I. 2) e no teatro (Pacúvio 99-106; Séneca, Agamémnon 466-578), que derivavam daquele e de outros modelos gregos. Está também presente num poeta quinhentista como Ariosto.

É esta variada intertextualidade que vamos encontrar no Canto VI de Os Lusí-adas, enriquecida com outros dados e com a experiência náutica do poeta, a que a Elegia I, «O poeta Simónides, falando», dera a sua primeira expressão. A com-paração que nos propomos fazer centrar-se-á, porém, de preferência, em Homero e Virgílio e, ocasionalmente, em Ovídio, como principais modelos camonianos.

O próprio texto da epopeia portuguesa aponta, discretamente embora, para as suas fontes. Assim, a primeira metade da estância 77 recorda o episódio de Céix e Alcíone, do Canto XI das Metamorfoses, no qual os dois esposos são transformados numa ave mítica, depois de o primeiro ter sido vítima de uma fortíssima tormenta:

As Alcióneas aves triste cantoJunto da costa brava levantaram Lembrando-se de seu passado pranto, Que as furiosas águas lhe causaram.

*1 Comunicação apresentada à Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa, na sessão de 28 de Fevereiro de 1991. Publicada em Memórias da Academia de Ciências de Lisboa, Classe de Letras (1990-1991, ed. 1993), vol. 29, pp. 91-103.

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300 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Esse Canto XI deixará as suas marcas na estância 80.3-4, quando se lê:

Vendo ora o mar até o inferno aberto, Ora com nova fúria ao céu subia

que condensa os versos 503-506 de Ovídio1. (Note-se de passagem que uma hipér-bole semelhante surgira na estância 76, essa, porém, mais próxima de Ariosto, como observou Faria e Sousa).

Na estância seguinte, os últimos dois versos, sobre Deucalião e Pirra:

No grão dilúvio, donde sós vieramOs dous que em gente as pedras converteram

são uma discreta lembrança da descrição do dilúvio, no Canto I do mesmo poema. Mais adiante, porém, na prece de Vasco da Gama, estância 81, a alusão será subs-tituída por idêntica situação, reportada ao bíblico Noé:

E guardaste cos filhos o segundo Povoador do alagado e vácuo mundo.

A Eneida, cuja omnipresença o leitor assíduo de Virgílio vislumbra a cada momento, está recordada na mesma estância 78 de que vimos há pouco uma parte, numa fugaz perífrase para designar Vulcano, a qual tem a sua raiz em episódio célebre do Canto VIII:

O grão ferreiro sórdido, que obrou Do enteado as armas radiantes.

Ao passo que, na própria fala do Gama, está encastoada uma alusão ao Canto VII.302-302 do mesmo poema:

Doutra Cila e Caríbdis já passados, Outras Sirtes e baixos arenosos,

logo seguida de uma reminiscência horaciana (Odes 1.3):

Outros Acroceráunios infamados

1 Et nunc sublimis veluti de vertice montis despicere in vallis imumque Acheronta videtur, nunc, ubi demissam curvum circumstetit aequor, suspicere inferno summum de gurgite caelum.

Faria e Sousa aponta a fonte ovidiana para a estrofe 76 e refere ainda, noutros passos, o Agamémnon de Séneca e a Farsália de Lucano, sem dúvida mais distanciados.

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3019. A TEMPESTADE MARÍTIMA DE OS LUSÍADAS. ESTUDO COMPARATIVO

pertencentes ao locus classicus da objurgatória contra a navegação, que havia alcançado o seu eco mais vibrante na fala do Velho do Restelo2.

Se a menção de Cila e Caríbdis podia também remeter o leitor para a Odisseia3, as Sirtes, essas, tinham sido acabadas de referir no contexto bíblico da estrofe anterior, lembrando o naufrágio de S. Paulo, nos Actos dos Apóstolos (27.17):

Tu que livraste Paulo e defendeste Das Sirtes arenosas e ondas feias

Esta prece do Gama é um dos exemplos mais acabados de uma querela ociosa travada durante séculos, em volta da suposta colisão do chamado maravilhoso pagão e do chamado maravilhoso cristão em Os Lusíadas, a qual se encontra ultra-passada desde os estudos de A. Costa Ramalho4.

Efectivamente, as três estâncias pelas quais se estende abrangem, na primeira, conforme é próprio da tipologia da prece, o vocativo à divindade com os seus atributos («Divina guarda, angélica, celeste, / Que os céus, o mar e terra senho-reias») seguidos da enumeração de mercês passadas, todas bíblicas; a segunda recorda as vicissitudes próprias, enquadradas dentro do esquema de superação ou ‘Ueberbietung’5, corrente em Os Lusíadas; a terceira retoma declaradamente um motivo famoso, quer da Odisseia (τρισμάκαροι Δαναοὶ / καὶ τετράκις), quer da Eneida (o terque quaterque beati). Vale a pena atentarmos nela, parque exemplifica o modo de adaptar moldes greco-romanos a um contexto histórico assente em base cristã. Tirando os advérbios multiplicativos, o poeta substitui a glória alcançada na Guerra de Tróia pela que os Portugueses obtiveram morrendo em África, na luta contra os mouros, inimigos da Fé cristã:

Ó ditosos aqueles que puderamEntre as agudas lanças africanas Morrer, enquanto fortes sustiveramA santa Fé, nas terras mauritanas:

2 Também aqui infamis scopulos Acroceraunia será fonte comum a Ariosto, de quem Faria e Sousa cita, do canto 21: «L’Acrocerauno D’infamato nome».

3 É possível que, sendo os famosos escolhos marinhos mais conhecidos pela Odisseia, e os outros dois perigos de ascendência latina, estejamos em presença de mais um exemplo da alternância exemplo grego/exemplo romano, que é quase uma constante de Os Lusíadas, como procurámos demonstrar no nosso artigo «Presenças da Antiguidade Clássica em Os Lusíadas», in revista da Universidade de Aveiro / Letras 1 (1984), 87-106.

4 Estudos Camonianos (Coimbra, 1975), pp. 19-24. Veja-se também o nosso artigo citado na nota anterior, p. 98.

5 Sobre esta designação, vide o nosso artigo citado na nota 3, pp. 88-89.

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302 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

De quem feitos ilustres se souberam,De quem ficam memórias soberanas, De quem se ganha a vida com perdê-la, Doce fazendo a morte as honras dela.

Esta fala do herói no meio dos elementos furiosos é topos fundamental nas tem-pestades épicas. Concebida como uma fala solitária na Odisseia, onde Ulisses está já privado de todos os seus companheiros e luta sozinho na jangada, num grandioso cenário deserto da presença humana, mantém-se como um solilóquio do homem perante a divindade em Virgílio (Eneias não invoca os deuses, mas toma a atitude da prece, duplicis tendens ad sidera palmas) e em Camões (o Gama apela para a Divina Guarda). Quer no poema latino, quer no português, os gritos dos companheiros de viagem já se ouviram, primeiro no verso célebre pelas suas onomatopeias (insequitur clamorque virum stridorque rudentum – 87), depois em «o céu fere com gritos nisto a gente» (72.1). Esta solidão desesperada, denotadora da pequenez do homem, Camões amplifica-a numa das comparações breves com que encarece a descrição (74.5-8):

Nos altíssimos mares, que cresceram,A pequena grandura dum batel,Mostra a possante nau, que move espanto, Sendo que se sustém nas ondas tanto.

Fazia parte da tradição literária que à fala do herói se seguisse o naufrágio. Assim, na Odisseia, a jangada é sacudida por uma grande onda, o herói cai, agarrado ao leme, o mastro parte-se, a vela e a verga tombam no mar, Ulisses fica debaixo de água, mas consegue voltar à superfície e regressar à jangada, que se torna o joguete dos ventos (V.313-332). Na Eneida, porém, é toda uma armada que está sob o jugo da tempestade. As naus são derrubadas uma após outra e, dispersos no meio do mar, apparent rari nantes in gurgite vasto / arma virumque tabulaeque et Troia gaza per undas (I.118-119). A esperança de um renascimento de Tróia em novas paragens jazia desfeita em mil bocados.

Também em Os Lusíadas se segue à fala do herói o recrudescer da tempestade, numa das estâncias mais ricas em efeitos sonoros do poema (VI. 84):

Assi dizendo os ventos que lutavam, Como touros indómitos bramando, Mais e mais a tormenta acrescentavam.Pela miúda enxárcia assoviando: Relâmpados medonhos não cessavam,Feros trovões que vêm representando Cair o céu dos eixos sobre a terra, Consigo os elementos terem guerra.

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3039. A TEMPESTADE MARÍTIMA DE OS LUSÍADAS. ESTUDO COMPARATIVO

Muito da experiência do autor trasladada para a Elegia 1.109-129 regressa aqui quase pelas mesmas palavras. É uma tempestade no mar alto, em pleno Oceano Índico – não no Mediterrâneo – e vivida por quem a descreve. Num interessante estudo sobre o assunto, Hennio Morgan Birchal observou com acerto que em Camões predomina a acção: «O recolher velas, o deslastrear o navio, o dar à bomba, o fixar o leme – é tudo acção, coerente com os transes da luta». «Compare-se isso – prossegue – com o que tem de vago como enumeração, e de passivo como participação humana, a página de Virgilio»6.

Mas a tempestade de Os Lusíadas não podia ser seguida de naufrágio. Pelo con-trário, na manhã seguinte, aplacadas as ondas, os mareantes avistam a terra da Índia. É que, como escreveu Epifânio na sua edição, «A tempestade descrita neste canto é pura ficção de Camões, que procurou deste modo dar interesse poético ao resto da viagem de Melinde a Calecut». E cita a seguir o texto de Castanheda I.13: «E deu-lhes Deus tão boa ventura que fazendo já rosto o inverno da Índia, pelo que faz naquele golfão grandes tormentas, ele não achou nenhuma, antes vento a popa». A este ponto voltaremos.

No mais, segue a linha clássica com pequenas variantes. Em socorro do herói em perigo vinha sempre uma divindade com funções de adjuvante. Em Homero, era a deusa marinha Ino Leucoteia que lhe emprestava o seu véu, para que o herói vencesse as ondas (V.333-338 e 370-375). O texto, tal como chegou até nós, apresenta até, diga-se de passagem, um segundo adjuvante na figura de Atena (V.382-387, versos atetizados por Duentzer, seguido por Schadewaldt e Von der Muehll, mas aceites pelos editores mais recentes, com o Stanford e Hainsworth). Na Eneida, é Neptuno, o deus do mar – que em Homero era oponente – quem vem apaziguar os seus domínios embravecidos. De notar que Neptuno é depois coadjuvado pela Nereide Cymothoe (etimológicamente, ‘a que é veloz como as ondas’) e pelo deus Tritão, no soltar das naus. Se a motivação mítica da epopeia grega fora, portanto, a cólera de Poséidon, a do poema latino fora a ira de Juno, secundada pelo auxílio de Éolo e dos Ventos, a quem a rainha dos deuses prometerá dar a mais bela das suas ninfas, Deiopeia. Também em Os Lusíadas a tempestade desaba por inter-postas divindades: Baco convence os deuses marinhos a derrubar os Lusitanos. E, porque era Baco o oponente, o adjuvante não podia deixar de ser Vénus. Mas também a deusa do Amor tem os seus apoiantes, as Ninfas coroadas de rosas que, com os seus encantos, submetem os Ventos, e de que duas são individualizadas com nome e fala: Oritia e Galateia. Daqui resulta que as Ninfas, que na Eneida se situavam entre os oponentes, funcionam no poema camoniano como adjuvantes, numa inversão de papéis semelhante à que já se manifestara com a do deus do mar, entre Homero e Virgílio.

6 Esquemas de Lições sobre «Os Lusíadas» (Lisboa, 1972), pp. 25-26.

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Ao coro dos oponentes em todos os três poemas pertencem, como não podia deixar de ser, os Ventos. Ora o excitar dos Ventos estava, naturalmente, entre os primeiros topoi do momento do desencadear da tempestade nas três epopeias. E, como, em qualquer delas, os Ventos são personalidades míticas, transpôs-se para esse plano a explicação do rolar desencontrado das vagas, tanto mais desencon-trado quanto é certo que os responsáveis da agitação marinha sopram dos quatro pontos cardiais. É o que sucede na Odisseia V.295-296, que traduzimos:

Precipitam-se à uma o Euro, o Noto, o Zéfiro tempestuoso, e o Bóreas que limpa os céus, rolando uma vaga enorme.

Mais adiante, os mesmos quatro Ventos jogam uns aos outros os restos da jangada de Ulisses:

Uma vez é o Noto que a atira a Bóreas para a levar,outra vez é o Euro que a dá a Zéfiro a perseguir.

Fica bem patente, neste último passo, a oposição completa dos quadrantes: sul--norte, este-oeste. E note-se também que o qualificativo de ‘tempestuoso’, dado a Zéfiro (e repetido em VII.119) tem sido tomado como sinal de que o autor vivia na costa egeia da Ásia Menor, onde esses ventos sopram com força.

Na Eneida são três os ventos que rolam as vagas, Euro, Noto e Áfrico, em passo que traduzimos (1.85-86):

Levantam à uma o Oceano o Euro, o Noto e o Áfrico fértil em procelas, e revolvem vagas enormes até à praia.

O Noto costuma ser o equivalente latino de Bóreas. Do norte de África, de onde a armada está próxima, sopra o vento Sudoeste. Mais adiante, no naufrágio, é o Áquilo que se abate contra as velas, Noto que atira três navios para os escolhos, Euro que faz outro tanto com mais três naus, arrastando-as para as Sirtes.

Ora Áquilo era geralmente tomado como o correspondente latino de Bóreas, como Austro o era de Noto. Dizemos geralmente, pois o contemporâneo de Virgí-lio, Vitrúvio, ao traçar a rosa dos ventos, usa sempre Septentrio para o que sopra do Norte e coloca Áquilo nos pontos colaterais, entre Septentrio e Solanus, ou seja, a Nordeste7. Por sua vez, uma inscrição do Museu do Vaticano com os nomes dos Ventos, referida por Haebler em Pauly-Wissowa, situa Bóreas ou Áquilo a

7 De Architectura I.6.4-10.

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Nornordeste; ao passo que numa placa de mármore de Aquileia o vento Áquilo está a Nornoroeste8.

Toda esta imprecisão se vai reflectir no texto de Os Lusíadas, onde, na estância 76, se lê:

Noto, Austro, Bóreas, Áquilo queriam Arruinar a máquina do mundo,A noite negra e feia se alumia,Cos raios, em que o Pólo todo ardia.

A este propósito, comentou Faria e Sousa: «Si bien estos quatro nombres, no son mas de dos vientos, el P. entendiò que eran quatro como expressamente consta de la est. 31, diziendo ‘Boreas e o companheiro Aquilo’».

Também Epifânio observou: «Noto é o nome grego e Austro o nome latino de um mesmo vento, o Sul; também Bóreas é o nome grego e Áquilo o nome latino de um mesmo vento, propriamente o Nordeste».

A hipótese de que Camões estava a fazer seguir cada nome de vento pelo seu correspondente latino, produzindo uma enumeração bimembre, onde o ritmo de acção alucinante e o desconcerto das direcções se coadunava melhor com a enumeração quadrimembre, poderia aqui pôr-se, mas deve ser liminarmente rejeitada. Para tal contribui, de resto, o exemplo, citado por Faria e Sousa, do mesmo Canto, que já referimos.

Por isso será mais prudente a explicação genérica de Costa Pimpão, ao dizer: «Noto (νότος) e Austro, ventos do Sul; Bóreas (Βορέας) e Áquilo, ventos do Nordeste»9.

Outro aspecto que será interessante analisar é a frequência do emprego de um processo literário característico dos Poemas Homéricos, o símile desenvolvido, do qual diremos, na esteira de Bowra, que consta da comparação de uma acção compósita com outra compósita.

Ora a tempestade da Odisseia, poema bem mais parco em símiles do que a Ilíada, está cheia desse processo literário: nada menos de quatro, ou, se levarmos o episó-dio até ao apaziguamento final do adormecer de Ulisses, cinco. Nos dois primeiros,

8 Pauly-Wissowa, s.v . Βορέας, onde se mostra também que desde Timóstenes que Bóreas pode ser o Nornordeste (Geographi minores II.473). A mesma Enciclopédia, s.v. ‘Winde’, ‘Windrosen’, observa que a imprecisão nos quadrantes dos ventos reflecte as condições meteorológicas do Mar Egeu e das rotas para o Egeu e a Magna Grécia.

9 Citações das respectivas edições comentadas de Faria e Sousa (Madrid, 1639), de Epifânio (Porto, 21916) e de Costa Pimpão (Lisboa, 1972). Por sua vez, António José Saraiva anota na sua (Porto, 1978), p. 463, s.v. Áquilo: «Um dos quatro principais ventos. É a palavra latina correspondente a Bóreas, vento norte; mas Camões parece distinguir os dois.» Emanuel Paulo Ramos (Porto, 1982), p. 499, diz genericamente «ventos do Sul, os dois primeiros; e do Norte, os dois últimos.»

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o símile transporta-nos do mar para a terra: os cardos selvagens, que Bóreas sopra pela planura fora, são termo de comparação para a jangada de Ulisses, empurrada pelos ventos em todas as direcções (V.328-330); mais adiante, quando a jangada se desfaz, o mar dispersa-lhe as traves como o vento tempestuoso dispersa a palha seca (V.368-370). Da esfera dos sentimentos, da vida familiar, é tirado o terceiro símile, para sugerir a alegria do náufrago que ao terceiro dia avista terra: ele é como os filhos que vêem voltar à vida o pai doente (V.394-399). Da vida animal vem o quarto: Ulisses agarrado a uma falésia, enquanto aguarda o refluxo das águas, deixa a pele agarrada às rochas, tal como sucede ao polvo arrancado às pedras que o abrigam (V.432-435). O último sugere a calma e a esperança: Ulisses adormecido no leito de folhas que preparou sob a oliveira mansa enxertada no mesmo pé de uma oliveira brava é como a brasa que os homens resguardam para conservar o fogo (V.488-491). Um fundo cultural – reminiscência do tempo em que o fogo era uma conquista a preservar com cuidado – e um valor simbólico – a chama da vida do herói é pouco mais que um tição que é preciso abrigar – entrelaçam-se nesta nota de quietude com que encerra o canto.

Na Eneida, pelo contrário, o episódio da tempestade comporta um único, e, aliás, extenso, símile, por sinal, o primeiro do poema, mas colocado numa posição-chave: o final do episódio. Neptuno acaba de acalmar as vagas e de libertar as naus junto com Cimótoe e Tritão, como já referimos, e parte no seu carro, deslizando sobre as ondas com as rodas ligeiras (I.148-156):

E tal como quando, muita vez, numa grande multidão se elevaa sedição, e o vulgo obscuro tem o ânimo exaltado,já voam fachos e pedras, e o furor lhe ministra as armas;e então, se acaso avistam um homem com o peso da piedade e do mérito, ficam em silêncio e, de ouvidos atentos, se detêm;ele, com as suas palavras, governa os ânimos, abranda os corações: assim caiu todo o fragor do pélago, depois que o pai,olhando do alto o mar e transportado pelo céu aberto,em voo para as alturas, deu rédea solta ao seu dócil carro.

Os comentadores têm notado aqui a singularidade de o símile ilustrar o mundo da natureza a partir do humano, ao contrário do habitual10, bem com o a presença de conceitos-chave da ideologia da Eneida, como o que se traduz na expressão pietate gravem, de I.151. É com essas qualidades, nota Williams, na esteira de Otis e Poeschl, que «Eneias procura inaugurar uma melhor ordem do mundo; mais

10 10 Cf. R. D. Williams, ed., The Aeneid of Virgil, Vol. I (London, 1972), p. 172; E. Paratore, ed., Virgilio: Eneide, Vol. I (Milano, 1978), pp. 149-150.

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ainda, o domínio exercido pelo estadista sensato e responsável aqui retratado (regit, 153) antecipa em miniatura a missão de Roma»11.

Também Os Lusíadas se adornam com muitos e belos símiles desenvolvidos, a ocupar uma estância inteira. Tal não sucede, porém, no episódio da tempes-tade, certamente porque a violência e rapidez da acção não necessita dessa passagem brusca a outra cena, com o seu afastamento temporário do teatro dos acontecimentos, que é o símile. Apenas comparações breves, como a da estân- cia 74:

Os ventos eram tais, que não puderam Mostrar mais força de ímpeto cruel, Se pera derribar então vieramA fortíssima Torre de Babel.

Mais adiante, os ventos são «como touros indómitos bramando» (est. 84). Noutra estrofe ainda, a 87, as Ninfas belas «mais fermosas vinham que as estre- las».

Na viva descrição das manobras marítimas – o silvar do apito, o alerta, o alijar da carga – pode apontar-se, como fez Faria e Sousa, a proximidade do modelo de Ariosto.

Precisamente, a voz do mestre na sua nau, a dar ordens breves e urgentes, é uma das diferenças em relação aos modelos clássicos, onde, como vimos, a voz humana se ergue, lamentosa, no meio da passividade, incapaz de resistir à fúria dos elementos. Notámos, também, que Os Lusíadas contêm o topos da fala do herói solitário, e até em termos muito semelhantes, com hábeis transições do chamado maravilhoso pagão para o chamado maravilhoso cristão.

Umas considerações ainda sobre as diferenças estruturais. Na Odisseia preva-lece o esquema monólogo-descrição-símile, como já foi notado por Hainsworth. O mesmo helenista observa ainda que se encontra aqui a maior concentração de monólogos do poema – seis – contra um total de quatro nas outras partes, e o relevo que dá ao episódio o uso repetido do discurso directo12.

Já vimos que não é assim na Eneida. O esquema é mais simples: descrição, um momento interrompida pelo clamor dos homens, monólogo, descrição, símile final e único, mas muito extenso.

Novamente mais complexo é o esquema de Os Lusíadas. Abre esta parte do poema, quase ex abrupto, pondo termo à sequência da narrativa das aventuras dos Doze de Inglaterra, o apito do mestre, logo seguido das suas ordens, com

11 Op. cit., Vol. I, p. 172.12 Omero, Odisseia, Vol. II, ed. J. B. Hainsworth, Fondazione Lorenzo Valla, Milano (1982), pp. 173

e 179.

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alternância entre o discurso indirecto e o directo. Segue a descrição da tormenta, interrompida por duas vezes pelos gritos dos mareantes. O monólogo do herói é muito mais extenso – três estâncias completas contra catorze versos em Homero e oito em Virgílio – mas, sobretudo, não é apenas um lamento: é também uma prece à Divina Guarda, embora revestindo a forma de um protesto. A esta atitude do Gama parecem responder negativamente os elementos da Natureza, com o recrudescer da tempestade, no que se retorna à semelhança com os modelos, quer grego, quer latino.

Diferente, como já vimos, no final do episódio, o modo de intervenção divina: indirecta em Homero, onde Ino Leucoteia dá conselhos ao herói, sob o disfarce de uma metamorfose em ave marinha; directa e movimentada em Virgílio, com o próprio deus do mar e seus adjuvantes a desencalhar as naus; de novo indirecta em Camões – Vénus manda as Nereides ao encontro dos Ventos, terminando num processo de sedução, a que poderíamos chamar, ao gosto renascentista, o triunfo do amor.

Outra inovação considerável da epopeia portuguesa consiste na maneira de conceber a motivação mítica do episódio. Ela surge após um proémio calmo, de navegação cadenciada e sem perigo (Odisseia V.262-281; Eneida I.34-35; Lusíadas VI.6.1-4 e, novamente, VI.38). A cólera divina, essa, é que vai irromper de maneiras diferentes, e sucessivamente mais elaboradas: a fúria de Poséidon, porque Ulisses está prestes a alcançar a terra dos Feaces, em Homero (V.283-290); a ira de Juno, porque o seu prestígio está mais uma vez em jogo, com a iminente chegada de Eneias à Itália, pelo que vai pedir a Éolo que solte os Ventos, em Virgílio (1.36-80); o despeito de Baco, porque os feitos dos Portugueses na Índia virão a obliterar os seus, pelo que pede a Neptuno que convoque o concílio dos deuses marinhos, em Camões (V.6.4-8 – VI.37).

A elaboração camoniana, com fortes reminiscências das Metamorfoses, quer para a descrição do palácio de Neptuno, quer para a da figura de Tritão, quer para a reunião dos deuses, está concebida na melhor tradição da epopeia clássica, ou seja, convocando um concílio das divindades quando se avizinha um passo decisivo da acção, mas é, em si, uma livre e grandiosa concepção do poeta, que sublinha, talvez como nenhuma outra, a importância do cometimento que está quase a executar-se.

Efectivamente, já vimos que a tempestade que se lhe segue não é um facto histórico. É uma concessão à tradição épica, um embelezamento da narrativa. Mas é-o só aparentemente. Era preciso sublinhar, no momento decisivo em que a expedição estava a chegar à India, a histórica sublimidade do acontecimento. Nas epopeias greco-latinas, a acção ter-se-ia talvez processado de modo inverso, isto é, um concílio dos deuses, na ausência da divindade perseguidora, decidiria ajudar o herói. Aqui sucede precisamente contrário: é a divindade perseguidora que faz com que o concílio seja convocado e obtém o assentimento deste para criar

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3099. A TEMPESTADE MARÍTIMA DE OS LUSÍADAS. ESTUDO COMPARATIVO

obstáculos à vitória. Esse concílio, por sua vez, não é no Olimpo, mas no fundo do mar. É a rendição do senhorio dos mares que assim vai estar em causa. E, contra a prática estabelecida, os deuses das profundidades vão ficar derrotados.

Também o naufrágio não se consuma. A tempestade é medonha, e parece que vai «arruinar a máquina do mundo» (Lus. VI.76.6), mas, uma vez serenada pela deusa, os seus efeitos ficam anulados e, na terra de Calecut, «já a manhã clara dava nos outeiros» (Lus. VI.96.1). A vitória estava alcançada.

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(Página deixada propositadamente em branco)

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10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS*

Entre os muitos lugares comuns que há séculos se amontoam sobre Os Lusíadas, podíamos contar estes: que são um exemplo perfeito de poema do Renascimento1 e, como tal, imbuídos até ao cerne do classicismo greco-latino. Da primeira qua-lidade, são prova o entusiasmo pelas novas descobertas e pelo novo mundo que com elas surge; da segunda, são-no a presença constante, explícita ou adivinhada, dos modelos antigos, testemunho de uma erudição profundamente assimilada.

É certo que um e outro facto têm sido negados nos últimos tempos, como, aliás, sucede periodicamente a tudo o que se considera ciência adquirida; é um modo de afirmação da crítica que algumas vezes pode abrir caminhos novos, mas que não raro embate, inutilmente, com a mais indiscutível evidência. Não é essa a via que vamos tentar. Nem sequer nos permitimos a promessa da novidade. Muito do que vamos dizer é conhecido e aceite desde Faria e Sousa e confirmado por Epifânio e outros. Alguma coisa resultará, no entanto, segundo esperamos, de aproximações diferentes e do distinto ângulo de visão sob o qual procuraremos analisar e interpretar os factos.

O poema apresenta-se, desde o início, como um desafio aos modelos tradicionais da Antiguidade, que logo se adivinha será resolvido no sentido da superação. E, se a Eneida, ambicionando reunir numa só obra a Ilíada e a Odisseia, tomava daquela as armas e desta o varão (Ἄνδρα μοι ἔννεπε, Μοῦσα...), numa fórmula lapidar que ficou célebre (Arma virumque cano), Os Lusíadas, retomando a herança épica, tiram o carácter individual ao herói, substituindo-o por um plural universalizante – As

* Publicado em Revista da Universidade de Aveiro / Letras 1 (1984), 87-106; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 109-131.

1  Sem prejuízo da coexistência em Camões de elementos maneiristas com os renascentistas, como notou Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa (Coimbra, 1971), p. 14.

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armas e os barões assinalados2. O intento confirma-se com a estrofe terceira, que oferece pela primeira vez, como notou Kurt Reichenberger3, um motivo que vai percorrer o poema: aquele que Curtius definiu como Überbietung4 – ou, em por-tuguês, esquema de superação5 – aqui introduzida pela chamada fórmula cedat («cesse») bem conhecida desde Estácio e Propércio, combinada com a fórmula taceat («cale-se»):

Cessem do sábio Grego e do Troiano as navegações grandes que fizeram; cale-se de Alexandre e de Trajano a fama das vitórias que tiveram; que eu canto o peito ilustre lusitano a quem Neptuno e Marte obedeceram; cesse tudo o que a Musa antigua canta, que outro valor mais alto se alevanta.

Se nos permitimos a repetição de uma estrofe que todos mais ou menos sabemos de cor, é porque contém dois princípios de composição que serão uma constante de Os Lusíadas: um, é a já referida Überbietung, que culmina nos dois versos finais e que já foi posta em relevo, em sugestivo artigo, pelo mesmo Kurt Reichenberger6; outro, é o paralelismo greco-latino, que aquele estudioso aponta neste passo, mas que é geral no poema, e está aqui consubstanciado em dois pares de exemplos: um literário (o sábio Grego e o Troiano, ou seja, Ulisses e Eneias), outro histórico (Alexandre e Trajano).

A junção do Grão Macedónio com o imperador de origem hispana irá repetir-se no mesmo Canto, na estância 75. Ou então surgirá Alexandre em frente de César,

2  Não julgamos que haja hendíade no começo da Eneida (a interpretação que aqui lhe damos, encontrámo-la depois no comentário de R. D. Williams (London, 1972), I, p. 156. Quanto ao começo de Os Lusíadas, José Maria Rodrigues, que a aceitava quando escreveu «Uma divergência no texto da primeira estância», Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa, 13 (1921), 726-727, mostra-se céptico nos «Aditamentos e correcções» às Fontes dos Lusíadas (Lisboa, 21979) pp. 511-512. Negou-a Rubem Franca , As armas e os barões... (Pernambuco, 1973), pp. 72-87.

3 «Epische Grösse und manuelinischer Stil. Untersuchungen zum Proomium der ‘Lusiaden’», Aufsätze zur portugiesischen Kulturgeschichte (adiante citados abreviadamente Port. Aufsätze), 2 (1961), p. 89.

4 Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter (Bern, 1948), pp. 169-172.5 Na sua tradução, com prefácio e aditamentos, de Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica

Literária (Lisboa, 1966), p. 108, R. M. Rosado Fernandes oferece esta versão. Cf. Johannes Kleinstück, «O problema da novidade n’‘Os Lusíadas’», Psort. Aufsätze 11 (1961), p. 68.

6 «Vergleich und Überbietung, Strukturprinzipien im Epos des Camões», Germanisch-Romanische Monatsschrift, N. F. 10 (1960) 1-2. No ensaio citado na nota 3, o mesmo autor refere, a propósito deste passo: «Wie in den Vitae des Plutarchs hat die Gestalt aus dem griechischen Altertum in jedem Fall ein römisches Pendant». A esta conclusão, que, aliás, o autor não explora, tinhamos chegado inde-pendentemente da leitura deste artigo.

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31310. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS

em VII.12 – tal como os colocara Plutarco nas Vidas Paralelas e o mesmo Camões na Elegia VII.467.

A enumeração, sem ordem aparente, de nomes grandes da história grega ou da romana, ou das duas juntas, era moda que já vinha, entre nós, do Cancioneiro Geral, onde Luis Anriques, no poema à morte de D. João II, cita, numa só estrofe, cerca de uma dezena de nomes da tradição heróica dos Helenos8. O hábito tinha sido, certamente, tomado dos humanistas, e designadamente daquele que trouxera esse movimento intelectual para a corte do Príncipe Perfeito e para o País, como o têm provado os diversos estudos a ele consagrados por A. Costa Ramalho9: o italiano Cataldo Parísio Sículo. Na oração com que recebeu em Évora, em 1490, a princesa D. Isabel, noiva do Príncipe D. Afonso, refere-se o humanista a D. João II como superior a Alexandre e a César, e à Rainha D. Leonor (ignoscant Manes...) como par de Cícero e Demóstenes10. Esse hábito mantém-se, por exemplo, na oração que o discípulo dilecto de Cataldo, o Conde de Alcoutim, D. Pedro de Meneses, proferirá em 1504, na abertura das aulas da Universidade, então em Lisboa11.

Também os corifeus do Renascimento literário português (bem como os seus modelos italianos e castelhanos) usaram largamente do processo. Vejamos, entre muitos, dois exemplos de Sá de Miranda, um tirado da Carta a D. João III12:

Outrossi pera os reveses (queira Deus que não releve!) em vós têm os portugueses Codro, dos atenieses, Décios, que só Roma teve.

outro da Carta a João Raiz de Sá Meneses:

Dous vencedores do mundo, César e Alexandre o grande, nas letras foram té o fundo: em que a fortuna não mande,

7 As citações da Lírica são todas feitas pela edição das Rimas por A. J. da Costa Pimpão (Coimbra, 1973). As de Os Lusíadas pela edição fac-similada da de 1572 (Lisboa, 1972), salvo na ortografia e na pontuação, que modernizámos.

8 Cancioneiro Geral, edd. A. J. Costa Pimpão e Aida Dias, I (Coimbra, 1973), n.º 366, vv. 41-48.9 Sobretudo em Estudos sobre a Época do Renascimento (Coimbra, 1969), pp. 31-116; no prefácio às

Duas Orações, citadas na nota seguinte, e no de Martinho, verdadeiro Salomão (Coimbra, 1974).10 Cataldo Parísio Sículo, Duas Orações, edd. M. Margarida Brandão G. da Silva e A. Costa Ramalho

(Coimbra, 1974), pp. 56 e 58.11 Apud A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos (Coimbra, 1975), p. 9.12 Seguimos a edição de Rodrigues Lapa (Lisboa, 21943).

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ponho aqui Bruto, o segundo, e os grandes dous Cipiões, fim (como dizem) fatal, de Cartago, e dous Catões; pudera pôr Anibal.

Escolhemos estes passos, o primeiro, porque contém, em perfeito paralelismo, um modelo grego e outro latino; o segundo, por representativo de maior acumu-lação de figuras da história romana (que predominam no bom Sá), com o fim de defender um princípio que humanistas e poetas portugueses do século XVI, entre eles Camões, não se cansariam de glosar: o de que o exercício das armas não era incompatível com o gosto pela poesia, antes achava nela o seu galardão13.

Fenómeno idêntico ocorre em António Ferreira, que ora faz comparações em que heróis gregos e romanos se confundem (Catão, Fábio, Menelau, Agesilau sucedem-se nos nove primeiros versos da Carta V do Livro I), ora acumulações em que só o metro parece condicionar a ordem, como esta da Carta I.1.102-10314:

Rómulo, Baco, Castor, Pólux, Brutos, Décios, Scipiões, Fábios e Júlios.

Não quer isto dizer que o discípulo de Diogo de Teive, precisamente aquele dos nossos líricos que imitou de perto, pela primeira vez, Teócrito, Mosco e algumas Anacreontea, não tivesse um conhecimento dos modelos gregos melhor do que qualquer dos seus compatriotas15. Mas, seja em cartas, elegias, odes ou éclogas, predominam os latinos.

13 Do Pro Archia, que Petrarca redescobrira, consta um famoso elogio das Letras, que culmina em VI-VIII e X.24. Este elogio deve ter estado na mente de Camões ao compor as estâncias 95 e 96 do Canto X de Os Lusíadas. Note-se que o primeiro estudioso a assinalar a influência daquela oração de Cícero na nossa epopeia foi Epifânio, que deve completar-se com Carlos Eugénio Corrêa da Silva, Ensaio sobre os Latinismos dos Lusíadas (Coimbra, 1935), pp. 12-14. Poderíamos acrescentar que os exemplos se multiplicam em António Ferreira (e.g. Odes II.2.20; Cartas I.3.95-98; Cartas II.7.28.33. Cf. também Diogo Bernardes, Carta XXVI.163-174). Cícero, aliás, retomou a dicotomia sob a forma arma/toga inúmeras vezes (e.g. Pro Murena 11.24; De Oratore I.2.7; Brutus 73.256-257; Philippicae II.8.20). Escusado será dizer que a ideia tem raízes gregas, particularmente fundas em Píndaro, que não se cansa de repetir que, sem a glória conferida pela Poesia, a maior coragem permanecerá obscura (exemplos no nosso artigo «O conceito de Poesia na Grécia arcaica», Humanitas 13-14 (1961-1962), pp. 345-346, onde também se citam outros autores gregos). Sobre a frequência da antítese letras/artes nos humanistas, veja-se Luís de Sousa Rebelo in Dicionário de Literatura, ed. Jacinto do Prado Coelho (Porto, 31973), II, 437.

14 Seguimos a edição dos Poemas Lusitanos por Marques Braga (Lisboa, I, 1939; II, 1953).15  Julgámos tê-lo demonstrado suficientemente em «Alguns aspectos do classicismo de António 

Ferreira» e «Dois Epigramas de António Ferreira», artigos incluídos no nosso livro Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa, 1972).

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31510. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS

Uma excepção tem de registar-se, no que concerne aos dois maiores da Anti-guidade. Estes figuram sempre juntos, numa espécie de binómio que já fora consa-grado por Petrarca, através dos topónimos que melhor os simbolizavam (Mantova e Smirna). Também Sá de Miranda falou, na dedicatória da Écloga Célia, do

Fuego d’Esmirna o Mantua.

E António Ferreira, na Carta ao Infante D. Duarte (I.13.63), interroga-se, quando será que, para celebrar condignamente o jovem irmão do rei,

s’achará novo Homero ou novo Maro?

Na verdade, pergunta na Carta a D. Simão de Silveira16 (II.10.106-108):

Porque mais Mântua, e Esmirna que Lisboa, se o claro Sol seu lume nos não nega, terá (se d’arte usar) maior coroa?

Aqui, o Horácio lusitano toca num ponto essencial, que é nele uma aspiração profunda: o anseio de que se escreva uma epopeia digna dos feitos marítimos dos Portugueses, e em português. A exortação foi feita muitas vezes pelo poeta17, como é sabido. E antes dele (pensando, evidentemente, em bem escandidos hexâmetros latinos), já o tinham desejado os humanistas18.

Também na Écloga IV.27-32, Camões prenunciara:

Podeis fazer que creça de hora em horao nome Lusitano e faça envejaa Esmirna, que de Homero se engrandece. Podeis fazer também que o mundo veja soar na rude frauta o que a sonoracítara Mantuana só merece.

Mas voltemos a Camões épico, onde o modelo da Odisseia forma com o da Eneida um par obcecante:

16 Cf. também em Diogo Bernardes, Écloga XI.41-42:

Celebre o grão Marão Heróis Latinos; d’Homero os Gregos sejam celebrados.

17 Lembremos só as Odes I.1; I.8; II.1; e as Cartas I.8, I.13 e II.6 (em II.4 convida Diogo de Teive a celebrar o português império, mas em verso e prosa latinos); e ainda a Écloga X.54-64.

18 Cf. A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos, pp. 8-9.

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Crês tu que tanto Eneias e o facundo Ulisses pelo mundo se estendessem?

– pergunta Vasco da Gama ao Rei de Melinde (V.86.3-4), ao terminar a sua longa narrativa da História de Portugal. E logo na estrofe seguinte reencarece, amplificando:

Esse, que bebeu tanto da água Aónia, sobre quem tem contenda peregrina, entre si, Rodes, Smirna, e Colofónia, Atenas, Ios, Argo, e Salamina; essoutro que esclarece toda Ausónia, a cuja voz altíssona e divina ouvindo, o pátrio Míncio se adormece, mas o Tibre c’o som se ensoberbece.

Ao começar a revelação da máquina do mundo (X.8), são o aedo da corte de Alcínoo (pela Odisseia) e o da de Dido (pela Eneida) que servem para a já referida Überbietung:

Matéria é de coturno, e não de soco,a que a Ninfa aprendeu no imenso lago; qual Iopas não soube ou Demodoco, entre os Feaces, um, outro, em Cartago.

Efectivamente, as duas grandes epopeias são o referente constante de Os Lusí-adas. Pode, num ponto ou noutro, ter-se aproximado mais de Apolónio de Rodes ou de Valério Flaco – embora não até aos extremos em que ultimamente se tem querido fazer crer19 – e são sem dúvida numerosas as intertextualidades ovidianas (além de outras), mas o que domina é o modelo homérico e o virgiliano. A Camões não escapou a percepção de que Ulisses, navegando por mares ignotos, consciente das responsabilidades que sente pelos homens da sua equipagem, respondendo às mais difíceis situações com a πολυμηχανία, é o herói-padrão que melhor serve para uma viagem como nunca os Antigos tinham feito. Mas é também, e acima

19 Designadamente nos trabalhos de António Salgado Junior, «Os Lusíadas e o tema das Argonáu-ticas», Ocidente 38, n.º 146, pp. 277- -294; 40, n.º 158, pp. 261-284, e nos de H. Howens Post, sobretudo «Eine wenig bekannte Quelle der Lusiaden», Port. Aufsätze 1 (1960), 87-93, e ainda no final do artigo de Kurt Reichenberger, «Der Abschied der Lusiaden. Ein Beitrag zur dichterischen Gestaltung der Höhepunkte im Epos des Camões», Port. Aufsätze (1960), 67-86. Sobre o assunto, veja-se J. L. Carvalho, «Camões e Valério Flaco», Euphrosyne N.S. 4 (1970), 195-202. A este respeito se pronunciara já J. M. Rodrigues, Fontes d’Os Lusíadas, pp. 533-534.

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31710. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS

de tudo, o homem com avidez de saber, de haurir novos conhecimentos, que lhe permitam situar-se melhor no mundo.

Tal como Ulisses na caverna do Ciclope quer ver tudo até ao fim, incluindo o próprio monstro (e, devido a essa curiosidade, dificilmente consegue salvar-se e a alguns dos que levava consigo), também os Portugueses, no Sudoeste da África, se metem em perigosa aventura com os nativos, preludiada nestes termos (V.26.1-4):

Desembarcamos logo na espaçosa parte, por onde a gente se espalhou, de ver cousas estranhas desejosa da terra que outro povo não pisou.

De Eneias se tirara o retrato do homem de missão, daquele que há-de lançar os fundamentos de um império que saberá impor hábitos de paz, poupar os vencidos e derrubar os orgulhosos20. É aquele que, arrancado à doçura da vida em Cartago pela advertência dos deuses, logo21:

inflama-o o desejo de fugir, deixando estas doces terrasatónito com tal advertência e ordem dos deuses.

Esta visão do herói, muito tempo deturpada por se procurarem ver nele o espírito belicoso e a personalidade forte de um Aquiles, em vez do modelo estóico que no rosto simula a esperança e no fundo do coração recalca a dor22 é a nossa visão de hoje, e aquela que Camões soube encontrar.

Bem diferente destes é o Jasão sempre sem saber o que fazer (ἀμήχανος, em oposição ao πολυμήχανος Ὀδυσσεύς, o anti-herói, como expressivamente lhe chamou Gilbert Lawal23), de Apolónio de Rodes, ou mesmo o de Valério Flaco, que é dominado pelo medo e ansiedade (I.693-699).

20 Pacifique imponere morem,/ parcere subiectis et debellare superbos (VI.852-853). Jorge Borges de Macedo caracteriza perfeitamente o Gama neste trecho de Os Lusíadas e a História (Lisboa, 1979), p. 81: «O herói camoniano não é, pois, impecável. Vive as dificuldades da execução, enfrenta-as, e resolve--as, porque nele se consubstancia a paixão e a lucidez executiva; luta por realizar o que lhe cumpre... Gama apresenta-se como um herói-padrão, executor responsável e habilitado, vigiando-se na execução, enfrentando as condições de realização de uma tarefa difícil, como homem de carne e de sentidos.»

21 Ardet abire fuga dulcisque relinquere terras, attonitus tanto monitu imperioque deorum (IV.281-282).

22 Spem uultu simulat, premit altum corde dolorem (I.208).23 «Apollonius’ Argonautica: Jason as Anti-Hero», Yale Classical Studies 19 (1966), 111-169.

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318 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

As referências de Os Lusíadas aos Argonautas são várias24, mas, a nosso ver, não--estruturais; apenas têm a finalidade de apontar um paralelo mítico enobrecedor para os Portugueses que se aventuraram a mares desconhecidos. Nesse sentido são os vossos Argonautas (I.18.6), mas superam-nos, de longe, pela grandeza do seu destino, como homens de missão, que a fé e o império foram dilatando.

Bem diferente, repetimos, é o papel desempenhado pela Eneida e pela Odisseia. Este último não tem sido, a nosso ver, suficientemente posto em relevo, pelo que não será supérfluo insistir nele.

Logo de início, o lançamento da acção in medias res, como Homero praticara e Horácio teorizara, é suspenso por um concílio dos deuses, onde se vai discu-tir a sorte da armada portuguesa – tal como a de Ulisses o fora no princípio do Canto I da Odisseia e depois no Canto V, onde a acção leva um impulso decisivo25. Ao passo que na Eneida se regista um único concílio, o do princípio do Canto X, em que Júpiter pretende serenar as deusas que fizeram com que se abrissem as hostilidades entre os Troianos e Rútulos.

Quando é recebido pelo Rei de Melinde, o embaixador prestante de Vasco da Gama compara a situação presente com a de Ulisses em Esquéria26:

Mas tu, em quem mui certo confiamos achar-se mais verdade, ó Rei benigno, e aquela certa ajuda em ti esperamos, que teve o perdido Ítaco em Alcino: a teu porto seguro nevegamos, conduzido do intérprete divino,que – pois a ti nos manda – está mui claroque és de peito sincero, humano e raro.

O perdido Ítaco em Alcino é aqui um elemento funcional. Pois não é só o acolhi-mento de Alcínoo a Ulisses que se quer sugerir como modelo: é também a esperança de que, tal como o rei dos Feaces, o de Melinde tenha o poder único de recolocar a expedição na rota certa; e é, num plano mais longínquo, o prelúdio do motivo da narrativa do passado dos heróis, que vai começar no Canto III, tal como o perdido

24 I.18; IV.83, 85; V.28; VI.31, 63; IX.64. Aliás o modelo também estava em Ariosto, como mostrou J. M. Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, p. 381.

25 Trata-se de uma reduplicação de motivos (como tantas outras da Odisseia) que tem sido expli-cada diversamente. As teorias que têm maior aceitação são talvez as de D. Page, The Homeric Odyssey (Oxford, 1955), pp. 70-71, e a de E. Delebecque, Télémaque et la structure de l’Odyssée (Aix-en-Provence, 1958), cap. V.

26 II.82. O que não impede de, na sequência do encontro, o poeta se voltar para o modelo virgi-liano da recepção feita por Dido a Eneias.

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31910. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS

Ítaco, uma vez identificado perante Alcínoo, enceta os seus apologoi – quatro cantos de excitantes aventuras, quase todas situadas no domínio do fantástico.

Neste último ponto surge, porém, uma diferença essencial: a história contada pelo Gama é toda verdadeira. Por isso, ao terminá-la, ele se distancia em relação ao modelo, gastando duas estâncias a resumir esse género de aventuras, desde agora superadas (V.88-89):

Cantem, louvem e escrevam sempre extremos desses seus Semideuses, e encareçam, fingindo Magas Circes, Polifemos, Sirenas que c’o canto os adormeçam; dêm-lhe mais navegar à vela e remos, os Cícones, e a terra onde se esqueçam os companheiros, em gostando o loto; dêm-lhe perder nas águas o Piloto.

Ventos soltos lhe finjam e imaginem dos odres, e Calipsos namoradas; Harpias, que o manjar lhe contaminem; decer às sombras nuas já passadas. Que por muito e muito que se afinem nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas, a verdade que eu conto, nua e pura, vence toda grandíloca escritura.

As histórias todas do Canto IX (Cícones, Lotófagos, Ciclope), duas do X (a ilha dos Ventos e Circe), a catábase do XI, as Sereias do XII (Cila e Caríbdis figuram noutros pontos27), e até a estadia na Ilha de Calipso, cuja referência encerra o mesmo Canto XII (depois de ter ocupado quase todo o V) – pode dizer-se que ape-nas falta uma aventura importante – a das Vacas do Sol. Quanto à perda do piloto, tanto pode ser o de Menelau, que tamanho relevo assume no regresso do Atrida em Odisseia III.278-290, como o desaparecimento nas águas do piloto Palinuro em Eneida V.827-871. As Harpias, conhecidas da Odisseia, essas evidenciam-se muito mais na Eneida (III.192-269)28.

27 E.g. II.45 (referido a Eneias), VI.82 (onde também se mencionam as Sirtes da Eneida e os Acro-ceráunios do Orlando Furioso). Note-se que Cila e Caríbdis, Polifemo e as Sereias são vistos à distância por Eneias.

28  É irrelevante, para o efeito, que este último motivo tenha vindo de Apolónio de Rodes e figure também em Valério Flaco.

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O conhecimento da Odisseia por parte de Camões não deve oferecer dúvidas. Apenas fica em aberto se ele era directo ou indirecto – tal como o fica quanto à obra de Platão29. Neste ponto, como noutros, ainda nada adiantámos sobre a pru-dente reserva com que Wilhelm Storck escreveu: «É impossível provar que Camões lesse de facto os autores gregos no original; parece-nos, contudo, verosímil.»30

Alusões claras à Eneida não faltam. Recordem-se apenas as duas mais evidentes. Uma situa-se na profecia de Júpiter a Vénus, onde mais uma vez surge o esquema de superação a partir de um famoso trecho do Livro VIII, a descrição do escudo de Eneias, nas estrofes 53 e 54 do Canto II; outra é o símile em que se compara a súplica da fermosíssima Maria a seu pai D. Afonso IV com idêntica atitude de Vénus, no Livro I.227-269, do poema latino:

Não de outra sorte a tímida Maria falando está, que a triste Vénus, quando a Júpiter, seu pai, favor pedia, pera Eneias, seu filho, navegando; que a tanta piedade o comovia que, caído das mãos o raio infando, tudo o clemente padre lhe concede, pesando-lhe do pouco que lhe pede.

(III.106)

Este último exemplo é tanto mais curioso, quanto, como é sabido, Camões utilizara já o motivo da súplica de Vénus e consequente profecia das glórias dos seus protegidos num episódio célebre do Canto II.33-56, que, apesar das suas fortes conotações ovidianas, não deixa de ser fundamentalmente inspirado nos versos 223-304 do Livro I da Eneida.

Das múltiplas imitações e hábeis aproveitamentos de trechos da Eneida não vamos ocupar-nos. O trabalho está feito desde Faria e Sousa, completado por Epifânio e outros, e corria o risco de se transformar num estéril catálogo.

Mais importante será sublinhar a capacidade mitopoiética de Camões, não quanto à velha questão do papel dos deuses e da coexistência do maravilhoso pagão com o cristão – dificuldade que se nos afigura definitivamente ultrapassada

29 Que tal conhecimento não era um facto isolado, prova-o a poesia de seu amigo André Falcão de Resende que parafraseia a alegoria da caverna (apud Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, pp. 312-313).

30 Vida e Obras de Luís de Camões. Primeira Parte. Tradução anotação de Carolina Michaëlis de Vasconcelos (Lisboa, reimpr. 1980), p. 245, nota 2. Cf. também p. 225. C. M. Bowra, From Virgil to Milton (London, reimpr. 1961) p. 88, supõe que o Poeta terá lido Homero na tradução latina de Lorenzo Valla.

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desde que A. Costa Ramalho a recolocou na sua perspectiva humanista e quinhen-tista31. A este propósito, Hernâni Cidade refere o da súplica de Vénus, o das Ninfas a desviar as naus em Mombaça, Vénus a serenar a tempestade no Índico, o sonho de D. Manuel, o Velho do Restelo, o Adamastor, o discurso de Baco, a Ilha dos Amores32.

De entre estes, se alguns têm modelo virgiliano bem evidente, embora não exclusivo (designadamente a súplica de Vénus, o Sonho de D. Manuel), outros, a despeito de revelarem a combinação de múltiplos elementos clássicos de diversas proveniências, como o Velho do Restelo, Adamastor e a Ilha dos Amores, valem como criações próprias, cuja perenidade se funda, não só nas realidades que alegorizam – os perigos da cobiça das riquezas, os pavores do mar desconhecido, a glória dos navegantes – mas também na sua íntima conexão com o assunto da epopeia.

Porque são já muito conhecidos, e porque também nos ocupámos de um nou-tro lugar, não nos deteremos neste ponto, não obstante a sua relevância, se não o tempo de observar que dois dos mitos – o desviar das naus por Vénus e pelas Ninfas em Mombaça e o Adamastor – têm, além de outras qualidades, a de serem exemplos de aition perfeito: no primeiro caso, a partir de um facto histórico e natural, relatado por Castanheda I.9 (a impossibilidade de aportar a Mombaça); no segundo, de um fenómeno geográfico, causa justificada de temores para todos os mareantes (o Cabo da Boa Esperança). Recordemos ainda brevemente o aition da Fonte dos Amores, com que termina o episódio de Inês de Castro, também na melhor tradição clássica33.

Voltemos ao outro dos aspectos que enunciámos: o emprego sistemático (embora não exclusivo – pode exemplificar também a preocupação de fornecer contrapar-tidas romanas aos heróis e feitos portugueses34) do paralelismo de motivos gregos

31 Estudos Camonianos, pp. 19-24. A esses exemplos podemos acrescentar o de António Ferreira, que, na «História de Santa Comba dos Vales», para melhor sugerir a fuga da Santa ante a perseguição do Rei Mouro, não hesita em introduzir símiles pagãos: o mito de Diana e Actéon (289-292), de Dafne e Apolo (369-372), de Atalanta e Hipómenes (373-376).

32 Luís de Camões. O Épico (Lisboa, 31968), pp. 136-154. Do mesmo autor, veja-se também o artigo ‘Lusíadas’ no Dicionário de Literatura, ed. J. Prado Coelho, vol. II, p. 581.

33 Sobre o Sonho de D. Manuel e o Velho do Restelo, não foram ainda excedidos os estudos de F. Rebelo Gonçalves, Dissertações Camonianas (S. Paulo, 1937), pp. 59-177. Sobre as origens do Adamas-tor, veja-se, em especial, A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos, pp, 44-45, e Aníbal Pinto de Castro, «O episódio do Adamastor: seu lugar e significação na estrutura de Os Lusíadas» in XLVIII Curso de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Ciclo de Lições Comemorativas do IV Centenário da Publicação de ‘Os Lusíadas’ (Lisboa, 1972), pp. 63-78; ocupámo-nos também do assunto em «O tema da metamorfose na poesia camoniana», Biblos 51 (1975), 138-140. Sobre a Ilha dos Amores, vide A. Costa Ramalho, op. cit., pp. 89-95, e Vítor Manuel de Aguiar e Silva, «Função e significado do episódio da Ilha dos Amores na estrutura de Os Lusíadas» in Ciclo de Lições, cit., pp. 81-96.

34  Alguns exemplos: Nunálvares frente aos irmãos em Aljubarrota é como Pompeu e César ·(IV.32), e a apóstrofe que se segue sobre os traidores (IV.33) é dirigida a Sertório, Coriolano, Catilina; ao

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com os latinos35. Eles aparecem com frequência a enquadrar as grandes cenas do passado nacional. Assim, nas desordens que se seguiram à morte de D. Fernando, no começo do Canto IV, a história de Astíanax serve de termo de comparação ao destino do Bispo de Lisboa (estância 5), para, logo na estrofe seguinte, se invocar um caso romano – as proscrições de Mário e Sila. Nos preliminares da Batalha de Aljubarrota, a parénese de Nunálvares aos seus guerreiros é comparada ao juramento exigido por Públio Cornélio Cipião após a derrota de Canas (IV.20), e, logo três estâncias depois, se afirma que o comandante da vanguarda do exér-cito de D. João I bem merecia reger os mui possantes / orientais exércitos sem conto / com que passava Xerxes o Helesponto. O ponto culminante do drama de Inês de Castro é enquadrado por mitos gregos (Policena e Pirro, III.131; Tiestes e Atreu, III.133). A vingança de D. Pedro I vai, porém, buscar exemplo à história romana (III.136).

Mais adiante, no Canto seguinte (IV.53), a coragem do Infante Santo é adornada com exemplos da virtus grega e romana:

Codro, por que o inimigo não vencesse deixou antes vencer da morte a vida; Régulo, por que a pátria não perdesse, quis mais a liberdade ver perdida. Este, por que se Espanha não temesse, a cativeiro eterno se convida. Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto, nem os Décios leais, fizeram tanto.

No epifonema sobre o poder do dinheiro, no Canto VIII, logo após o resgate do Gama, portanto, noutro ponto crucial do empreendimento, o poeta gasta uma estrofe em que se lêem dois exemplos gregos e um romano (VIII.97):

A Polidora mata o Rei Treício, só por ficar senhor do grão tesouro; entra, pelo fortíssimo edifício, com a filha de Acriso a chuva d’ouro;

herói a rezar antes da Batalha de Valverde dá o paradigma de Numa Pompílio (VIII.31); a Batalha do Salado deixa a perder de vista Mário e Aníbal, e até Tito em Jerusalém (III.116-117). Parte dos exemplos aqui aduzidos foi também utilizada por Kurt Reichenberger, «Der Abschied der Lusiaden. Ein Beitrag zur dichterischen Gestaltung der Höhepunkte im Epos des Camões», Port. Aufsätze 1 (1960), 67-86, especialmente pp. 80-81.

35 Não empregamos aqui paralelismo no complexo sentido que lhe dão actualmente os estrutu-ralistas, sobre o qual vide Maurice-Jean Lefebvre, Estrutura do Discurso da Poesia e da Narrativa (trad. port., Coimbra, 1975), pp. 251-255.

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pode tanto com Tarpeia avaro vício, que, a troco do metal luzente e louro, entrega aos inimigos a alta torre, do qual quase afogada em pago morre.

A simetria torna-se perfeita – dois exemplos de cada proveniência – nas com-parações que encarecem os feitos de Duarte Pacheco Pereira em X.21:

Aquele que nos Campos Maratónioso grão poder de Dario estrue e rende; ou quem com quatro mil Lacedemónioso passo de Termópilas defende;nem o mancebo Cocles dos Ausónios, que com todo o poder Tusco contende em defensa da ponte, ou Quinto Fábio, foi como este na guerra forte e sábio.

A visão da Antiguidade Clássica como um todo constituinte de uma só unidade cultural principiara entre os próprios Gregos e Latinos. Teria sido Cícero, tanto quanto pudemos apurar, o primeiro a tomar consciência de que não era lícito chamar bárbaros aos Romanos, como pode ver-se por este passo do De Republica que traduzimos a seguir36:

Cipião: Rómulo, diz lá, acaso foi rei de bárbaros? Lélio: Se, como dizem os Gregos, todos os povos são gregos ou são

bárbaros, temo que ele tenha sido rei de bárbaros. Mas, pelo contrário, se esse nome se deve aplicar aos costumes, e não às línguas, entendo que os Romanos não são mais bárbaros do que os Gregos.

36 Cedo, num, Scipio, barbarorum Romulus rex fuit? (Lael). Si ut Graeci dicunt omnis aut Graios esse aut barbaros, vereor ne barbarorum rex fuerit; sin id nomen moribus dandum est, non linguis, non Graecos minus barbaros quam Romanos puto (I.37.58). Deste tratado se sabe que é de 54 a. C. É duvidoso se lhe é anterior esta curiosa diferenciação que esboçara Lucrécio (V.35-36):

propter Atlantem litus pelagique severa quo neque noster adit quisquam nec barbarus audet?

Ou seja: «para além das plagas atlânticas e dos pavores do pélago, onde nenhum dos nossos ou dos bárbaros ousa penetrar?» No seu comentário ad locum, Cyril Bailey (T. Lucreti Cari De Rerum Natura Libri Sex [Oxford, 1947], vol. II, p. 1327) tem dúvidas sobre a inclusão dos Gregos nesta antítese. No tempo de Plauto (ca. 254-184 a.C.) ainda era possível fazer rir o auditório, dizendo que se ia apresentar uma peça de Demófilo «traduzida para a língua dos bárbaros» (Maccus uortit barbare – Asinaria 11).

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324 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

O mesmo Cícero, no Brutus, delineou uma história da oratória grega seguida da da romana. No séc. I da nossa era, Quintiliano faz, no extenso capítulo pri-meiro do Livro X da sua De Institutione Oratoria, a história da literatura grega, logo seguida da da romana, a qual é comparada a todo o tempo com o modelo helénico. Pela mesma época, Plutarco escreve as suas Vidas Paralelas, em que a cada herói grego contrapõe um romano, consagrando assim uma paridade que, a partir do Renascimento, só viria a ser posta em causa no séc. XVIII, na sequência dos estudos de Winckelmann. Essa paridade resulta também, não o esqueçamos, da assimilação da cultura grega, lentamente feita pelos Romanos, e adornada de algumas características próprias, e do bilinguismo dos Latinos cultos, factos que conduziram a um resultado que foi decisivo para a cultura euro- peia.

Também aqui se pode falar de reconquista, quando os Humanistas, terminada a Idade Média, restauram a perdida unidade cultural. Compreende-se que agora se possa falar (Lus. V.97)

Da Lácia, Grega ou Bárbara nação

e que Castanheda se refira, no começo da sua obra, a Bárbaros, Gregos e Lati- nos37.

Mas também se compreende que bárbaro tenda a tomar o sentido de não--civilizado, cruel. É curioso notar que, das dezasseis ocorrências da palavra em Os Lusíadas, oito sejam identificadas com Mouros, por vezes numa duplicação como esta: o bárbaro gentio (I.16.3), c’o sangue mouro, bárbaro e nefando (III.75.8).

Esta palavra contribui para acentuar o distanciamento entre aqueles que se reclamam do património cultural greco-romano

do torpe Ismaelita cavaleiro, do Turco Oriental e do Gentio, que inda bebe o licor do santo Rio.

(I.8.6-8)

Neste sentido, os Portugueses, cujos feitos a cada momento ultrapassam os paradigmas gregos e latinos, surgem como os seus continuadores naturais. Assim pensa Vénus:

37 O mesmo trikolon também se encontra em Ariosto, Orlando Furioso XLVI. 75 (citado por José Maria Rodrigues, As Fontes dos Lusíadas [Lisboa, 21979], p. 388).

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32510. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS

E porque tanto imitam as antigas obras de meus Romanos, me ofereço a lhe dar tanta ajuda em quanto posso, a quanto se estender o poder nosso

(IX.38.5-8)

E Júpiter profetizara-o em II.44.5-8:

Que eu vos prometo, filha, que vejais esquecerem-se Gregos e Romanos, pelos ilustres feitos que esta gente há-de fazer nas partes do Oriente.

Na sua longa profecia do Canto X, Tétis ousa dizer, sobre Duarte Pacheco Pereira, o Aquiles Lusitano, que

Nenhum claro barão no Márcio jogo, que nas asas da fama se sustenha, chega a este, que a palma a todos toma, e perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.

(X.19.5-8)

Estes descendentes espirituais dos Romanos levam ainda mais além o legado tradicional clássico. Eles dão novos mundos ao mundo, eles adquirem conheci-mentos nunca ouvidos.

As descobertas, feitas por cuidada observação ao longo da viagem, são motivo de orgulho para o Gama:

Já descoberto tínhamos diante lá no novo Hemisfério nova estrela, não vista de outra gente, que ignorantealguns tempos esteve incerta dela. Vimos a parte menos rutilante e por falta d’estrelas menos bela do Pólo fixo, onde inda se não sabe que outra terra comece, ou mar acabe.

(V.14)

E, mais adiante:

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326 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS

Os casos vi que os rudos marinheiros, que tem por mestra a longa experiência, contam por certos sempre, e verdadeiros, julgando as cousas só pela aparência, e que os que tem juízos mais inteiros, que só por puro engenho e por ciência vem do mundo os segredos escondidos, julgam por falsos ou mal entendidos.

(V.17)

Vi claramente visto – continua o Gama na estância 18, ao referir-se ao fogo de Santelmo. E logo a seguir, até à estância 22, conclui a famosa descrição da tromba marítima com a não menos célebre exclamação:

Vejam agora os sábios na escritura que segredos são estes de Natura!

Na estância seguinte, continua a defender o primado da observação directa38:

Se os antigos filósofos, que andaram tantas terras, por ver segredos delas, as maravilhas que eu passei passaram, a tão diversos ventos dando as velas; que grandes escrituras que deixaram, que influição de sinos e de estrelas, que estranhezas, que grandes qualidades, e tudo sem mentir, puras verdades!

Mas talvez nenhum trecho exprima com tanto entusiasmo a novidade cien-tífica das navegações portuguesas como as palavras postas na boca do próprio Adamastor (V.50):

Eu sou aquele oculto e grande Cabo a quem chamais vós outros Tormentório, que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo, Plínio, e quantos passaram, fui notório.

38  V. 23. Epifânio, com a sua argúcia habitual, encontra dois passos de Cícero sobre estes filósofos: De Finibus V.19 e Tusculanae IV.19.

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32710. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS

Aqui toda a africana costa acabo deste meu nunca visto promontório, que pera o Pólo Antárctico se estende, a quem vossa ousadia tanto ofende.

Fala aqui, mais uma vez, o homem do Renascimento, o amigo de Garcia de Orta, daquele que, no XX dos Colóquios dos Simples e Drogas, ousara escrever

que se sabe mais em um dia agora pelos Portugueses do que se sabia em cem anos pelos Romanos.

Fora essa obra que, depois de traduzida em latim, viria a alcançar uma divulga-ção poucas vezes gozada por tratados científicos nacionais39, a mesma que Camões apresentara, em 1563, com a elegante Ode ao Conde do Redondo, Vice-Rei da Índia, cujo favor solicitava para o trabalho do médico seu amigo, para as plantas novas, que os doutos não conhecem.

As novidades científicas dos Descobrimentos também tinham sido vistas por outro homem de saber insigne, Pedro Nunes, que, no Tratado em Defensão da Carta de Marear, impresso em 1537, declarara40:

Não há dúvida que as navegações deste reino, de cem anos a esta parte, são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e discretas conjeituras que as de nenhuma outra gente no mundo. Os Portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e, o que mais é, novo céu e novas estrelas.

O asserto não passou despercebido a um dos nossos humanistas, o portuense Belchior Beleago, que, ao fazer a oração de sapiência da abertura das aulas da Universidade de Coimbra, em 1548, no meio de um entrelaçado de citações ou reminiscências dos mais variados autores gregos e latinos (com predomínio de Cícero, Plutarco, Plínio e Quintiliano) insere esta lembrança dos dizeres do nosso primeiro matemático, que traduzo41:

39  Sobre a extraordinária influência exercida pelos Colóquios, vide Conde de Ficalho, Garcia de Orta e o Seu Tempo (Lisboa, 1886), p. 374, e Augusta Gersão Ventura, Clúsio, Portugal e os Portugueses (Coimbra, 1933). Da Ode ao Conde do Redondo tratámos neste livro, em capítulo anterior.

40 Pedro Nunes, Obras, vol. I (Lisboa, 1940), p. 175. Também aqui modernizámos a ortografia e pontuação.

41 Soleo saepe nostrorum hominum res gestas admirari, easque crebris usurpare sermonibus. Nihil tamen video in illis ad gloriam maius, quam quod terrarum ignotarum lustratione nova sidera, ignotas stellas, incognitas

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Costumo admirar os feitos dos nossos homens e servir-me deles em frequentes práticas, mas nada vejo de mais glorioso do que, atravessando terras ignoradas, terem investigado novos céus, estrelas ignotas, regiões incógnitas; ou seja, terem percorrido com aras vitoriosas outros mundos da Terra, que Alexandre Magno se doía de escaparem às suas vitórias – coisa que sem dúvida nunca teriam podido fazer, se não estivessem instruídos na observação do céu.

A confiança na razão e no poder do espírito humano, a fé no progresso da ciên-cia, reveladas em todos estes textos, são outras tantas manifestações do espírito renascentista42. Humanistas, cientistas, poetas convergem neste modo de sentir.

Alimentados pelos valores éticos da Antiguidade, vivendo os seus paradigmas, superando os modelos na aproximação cada vez mais intensa da verdade, circula em Os Lusíadas o ar fresco do Renascimento. E diríamos também o do classicismo greco-latino, cuja essência não consiste, como frequentemente se julga, em repetir, mas em recriar, a partir de uma norma. E, nesse sentido também, a nossa epopeia é, ela mesma, um renascimento.

regiones: hoc est, alios terrarum orbes, quos Alexander Magnus suis victoriis superesse dolebat, invictis armis peragrarunt. Quod profecto numquam facere potuissent, nisi siderum observatione edocti fuissent.

O texto pode ver-se na nossa edição fac-similada, com introdução, tradução e notas, de Belchior Beleago, Oração sobre o Estudo de Todas as Disciplinas (Porto, Centro de Estudos Humanísticos, 1959), p. 40. À data em que fizemos esse trabalho, reconhecemos a paráfrase de Pedro Nunes. Não a assina-lámos, porém, nas notas, por não nos ter sido possível localizá-la. Essa atenção devemo-la à grande estudiosa que foi a Dra. Augusta Gersão Ventura.

Já observou A. Costa Ramalho, Portuguese Essays (Lisboa, 21968), p. 23, que, embora as orações académicas quinhentistas sejam muito similares entre si, divergem na ênfase dada a certos aspectos da cultura, e assim, a de Belchior Beleago, sendo semelhante à que Arnaldo Fabrício fizera no ano anterior, difere no encómio que faz das navegações portuguesas.

42 Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, cit., p. 212.

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11. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS. ALGUNS ASPECTOS*

Em diversas obras suas, esse grande mestre da Camonologia que foi Hernâni Cidade1 enumerou, com exemplar clareza, o que até então se sabia de positivo sobre manuscritos do poema: um, a que se referira episodicamente Manuel Correa, na edição de 1613, a propósito de uma única variante que figurava num «livro de mão» do próprio Poeta, mas que nunca foi encontrado2; e quatro apógrafos, dos quais deve ser imediatamente eliminado como falsificação o último, forjado por Filinto Elísio. Dos três que restam desta curta série, conserva-se um, o que se contém no Cancioneiro de Luís Franco Correa, de fol. 203r a 215v, com o Canto I apenas, porque esse «companheiro e muito amigo de luis de camões», como se lê na portada, só queria trasladar «obras dos milhores poetas do meu tempo, ainda naõ empresas», e, entretanto, Os Lusíadas foram publicados. «Naõ continuo porq sahio a lus» – escreve no canto inferior esquerdo da página a mesma mão quinhentista que copiara o texto até ali.

Tornaremos a este apógrafo da Biblioteca Nacional de Lisboa, hoje acessível, graças à edição facsimilada que dele fez a Comissão Executiva do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas. Entretanto, seja-nos permitido recordar as circuns-tâncias em que Faria e Sousa declara ter descoberto em Madrid os dois outros

* Publicado em Revista da Universidade de Coimbra 33 (1985), 51-65. 1 Prefácio à sua edição das Obras Completas de Luís de Camões (Lisboa, 1947), vol. IV, pp. VIII-XI;

Luís de Camões, o Épico (Lisboa, 31968), pp. 237-240; Prefácio à Edição Comemorativa do IV Centenário da Publicação de ‘Os Lusíadas’ (Lisboa, 1972), pp. I-VII.

2 É a lição flor clícia (heliótropo) por flor cifísia (narciso), que tem a princeps em IX.60.5. A infor-mação de Manuel Correa foi registada por Faria e Sousa, que a comentou nestes termos: «No era malo para la ponderación de que inclinava la cabeça, siendo esto tan natural de la Clicia, Heliotropio, o Tornasol, que todo es uno: però con el Narciso no queda menos propio, porque por su mismo amor siempre se inclino sobre el estanque de buena gana a verse, i a enamorarse: i dale el Poeta en la transformacion la porfia que tuvo en la relidad, poniendole a mirarse sobre el estanque.»

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manuscritos, e as conhecidas palavras de exultação com que registou o achado, no prefácio à sua edição comentada3:

«O buen Dios, como favoreces las honestas ocupaciones! O judiciosos Lectores, amigos de hallazgos de monumentos doctos! Hasta que tenia yo discurrido con mis pensamientos, i coniecturas sobre esto de lo que tardo nuestro Poeta en esta Musica, quando al punto que se empeçava la impression destes Comentarios, encuentro casualmente dos manuscritos deste poema. El primero, i de mas estima, apareció entre unos libros viejos de Pedro Coelho, librero en esta corte de Madrid; es una copia de los pri-meros seis cantos, escrita antes que el Poeta passasse a la India: con que me hallo mas contento que un ignorante; mas loco que un enamorado; i mas sobervio que un rico.»

O texto prossegue com o que chamaríamos prova de autenticidade paleográ-fica do manuscrito: letra igual à de João de Barros na Quarta Década e na Geogra-fia e à dos cadernos com as obras de Sá de Miranda. E continua, trasladando o cólofon:

«Estes seys cantos se furtaraõ a Luis de Camões da obra que tem come-çado sobre o descubrimiento, e conquista da India por os Portugueses. Vam todos acabados, excepto o sexto, que posto que vay aqui o fim delle, faltalhe hũa historia de amores que Leonardo contou estando vigiando, que há de prosiguir sobre a Rima 46 onde logo se sente bem a falta della; porque fica fria, e curta a conversaçam dos vigiantes; e o proprio canto mais breve que os outros.»

Conta seguidamente a admiração causada por tal achado junto de alguns cortesãos seus amigos, e o muito que apreciaram aquela cópia, sobretudo porque viram «en ella muchas estancias que no estàn en el Poema impresso; i muchas enmiendas, i mucha variedad. I porque de todo esto se ve patente mucho de lo que yo pretendia vencer con argumentos, apuntaré algo dello». Seguem-se, até ao final da coluna 37 e ocupando quase toda a 38, diversas considerações sobre o que Faria e Sousa entende servir para provar que os seis primeiros cantos foram compostos antes da partida para a Índia (sem se lembrar que a passagem do Cabo da Boa Esperança e a tempestade marítima assentam tanto em reminiscências literárias das epopeias clássicas como na experiência vivida de que a Elegia I é testemunho, mas com esta interessante observação: «prueva tambien con esta

3 Lusíadas de Luís de Camoens comentadas por Manuel de Faria e Sousa (Madrid, 1639), Tomo I, col. 37.

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33111. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS. ALGUNS ASPECTOS

copia lo que diximos de la estimacion que se hazia deste Poema, aun antes de acabado, pues assi como iva escriviendo se lo ivan hurtando»); depois, vem uma enumeração das diferenças maiores entre o manuscrito e o impresso.

Ao chegar ao final desta coluna, começa a referência ao segundo manuscrito «aũq no es de tanta estima, porque teniendo infinitas alteraciones se ve clara-mente que no son del Poeta.» Escrito pela mão de Manuel Correa Montenegro e dedicado ao Duque de Bragança D. Teodósio, confessa ter mudado todos os versos esdrúxulos e agudos, «por ser muy mal parecidos em estilo heroico, ao menos no tempo de agora: trocamos algũas palabras por outras ao parecer melhor soantes, etc.». Confessa ainda ter acrescentado oitavas.

Saliente-se que, como notou Hernâni Cidade4, uma dessas estâncias, colocada entre aquelas em que Paulo da Gama descreve as bandeiras ao Catual, representa a tomada de Azamor pelo Duque de Bragança D. Jaime, quinze anos depois da chegada de Vasco da Gama à Índia...

«Agora novamente reduzido» – declarava Manuel Correa Montenegro no título do seu manuscrito. A avaliar pelos poucos exemplos recentemente dados a público, algo de semelhante teria acontecido, mas desta vez não no sentido literário, mas no religioso, num outro manuscrito desde há pouco conhecido, que parece não ser mais que uma versão judaizante da epopeia5. Enquanto se aguarda a sua publi-cação, não é possível ir mais além.

Neste momento há também notícia, através de um artigo de jornal6, de um outro manuscrito, que estaria a ser estudado e preparado para a impressão por esse grande conhecedor e editor de Cancioneiros de mão do Século XVI que é o Prof. A. L.-F. Askins.

Tudo isto significa que o que vamos dizer tem um carácter provisório e que poderá ser alterado com os novos dados que se esperam.

Para a análise que nos propusemos fazer, dispomos, portanto, apenas, de dois testemunhos merecedores de estudo: o primeiro dos manuscritos referidos por Faria e Sousa, com seis cantos e só conhecido indirecta e parcialmente (o próprio declara só ter tomado nota das diferenças principais), e o de Luís Franco Correa, com o Canto I somente. Que eles fossem um só na origem, foi hipótese que logo se aventou, quando do aparecimento deste último no século passado. O que, dado o completo descrédito em que aquele polígrafo caíra, lançava ipso facto a

4 Prefâcio da Edição Comemorativa do IV Centenário, p. VII.5 Maria Antonieta Soares de Azevedo, «Um manuscrito quinhentista de ‘Os Lusíadas’», Colóquio/

Letras, 55 (Maio de 1980), pp. 14-23.6 Francisco de Sequeiros, «Descoberto um manuscrito de ‘Os Lusíadas’, Expresso, 9 de Junho

de 1978. A informação aí transmitida é de Maria Antonieta Soares de Azevedo, que diz ter ido esse manuscrito de Espanha para os Estados Unidos.

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desconfiança sobre a autenticidade do de Luís Franco. O caso complicava-se ainda devido à circunstância de este extenso Cancioneiro, além do Auto de Filodemo, conter grande número de líricas, umas atribuídas a Camões e outros poetas, muitas anónimas, de que o Visconde de Juromenha se serviu para aumentar indiscriminadamente a sua edição. Para Wilhelm Storck, uma das razões que mais influíram na sua suspeita de falsificação foi a concordância «em alguns pontos com outro manuscrito, inventado pelo magno fabulista Faria e Sousa»7. Já D. Carolina Michaëlis aceita a autenticidade, quando escreve, por exemplo: «Não é culpa de Luís Franco, se os modernos exploradores (o Visconde de Juromenha e T. Braga) atribuem a Camões textos que (imperfeitos) andam no Florilégio sem nome de autor.»8

Na sua recente edição do Cancioneiro de Cristóvão Borges9, Arthur Lee-Francis Askins lamenta a falta de um estudo completo do códice, que possa dissipar as dúvidas subsistentes – e aqui é justo salientar os trabalhos preliminares de R. Bismut na sua Lyrique de Camões10 –, mas observa em nota que a grande variedade de papéis usados, com múltiplas marcas-de-água, e o método algo discricionário de preparação da obra (que a portada declara, como se sabe, ter sido transcrita ao longo de trinta e dois anos) favorecem a hipótese da genuinidade.

No decurso do seu importante prefácio, Askins aproveita, de resto, este teste-munho para atingir uma importante conclusão; a de que circulava manuscrita, em meados do século XVI, uma compilação de uma antologia de Sonetos de Camões, cuja ordenação se adivinha ainda através da comparação entre partes do Can-cioneiro de Cristóvão Borges, do de Luís Franco e do índice do P.e Pedro Ribeiro. Dá especial relevo à coincidência dos manuscritos de Cristóvão Borges e de Luís Franco nas lições do primeiro verso dos Sonetos Tempo é já que minha confiança, Olhos fermosos em quem quis Natura e Se de vosso formoso e lindo gesto11. Note-se que, se prosseguirmos a colação dos textos, encontramos muitos mais exemplos em que as variantes dos dois citados cancioneiros se opõem à das versões impres-sas12, embora cada um apresente, por vezes, erros distintivos. Casos idênticos são observáveis noutros Sonetos, como Náiades vós que os rios habitais e Num bosque que das Ninfas se habitava.13

7 Vida e Obra de Luís de Camões. Versão do original alemão anotada por Carolina Michaëlis de Vasconcelos (Lisboa, 1897), pp. 16-18. (A citação é da p. 18).

8 Nota 2 da p. 72 de O Cancioneiro de Fernandes Tomás (Coimbra, 1922). Cf. ainda, inter alia, O Can-cioneiro do P.e Pedro Ribeiro (Coimbra, 1924), p. 112, nota 3.

9 Braga (1980), pp. 18-19 e nota 17.10 Paris (1970), pp. 235-240 e também 453-457.11 Op. cit., p. 23.12 Respectivamente, de 1595, 1598 e 1668.13 Exemplos do primeiro (utilizando as siglas P = editio princeps, B = Cristóvão Borges, F = Luís

Franco): 10 e vinde P: om. B F // 11 d’uns olhos P: só de olhos B F // 12 vereis P: e vereis B F. Exemplos

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33311. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS. ALGUNS ASPECTOS

Se fizemos estas referências, aparentemente alheias ao nosso propósito, é por-que elas nos levam de imediato a pressupor que algo de semelhante deverá ter-se passado com o poema épico, cujo Canto I o Cancioneiro de Luís Franco transcreve, ou seja, que essa transcrição conserva uma primeira versão de Os Lusíadas, que depois foi emendada e aperfeiçoada pelo Poeta. Esta hipótese, que não está na dependência da possível data do regresso de Goa de Luís Franco, encontra-se, aliás, em perfeita concordância com a informação que nos proporciona o famoso passo do cap. XXVIII da Década VIII de Diogo do Couto, não só no texto do manuscrito do Porto e no de Madrid – vexata quaestio em que não pretendemos tocar – mas na versão impressa em 1673. Seja-nos permitido recordar as palavras mais per-tinentes do historiador14:

...... «E aquelle inverno que esteve em Moçambique, acabou de aperfeiçoar as suas Lusíadas pera as imprimir» ......

Uma primeira versão que circulava entre amigos (a portada do Cancioneiro de Luís Franco diz que as obras que lá vão são «tresladadas de papeis da letra dos mesmos que as composeraõ») ou que era difundida furtivamente (caso do primeiro manuscrito que Faria e Sousa declara ter encontrado na livraria de Pedro Coelho), é durante longos meses revista, até atingir a forma que hoje conhecemos. Sendo assim, e a aceitarmos provisoriamente como verídica a informação daquele que D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, com discreto sabor clássico, gostava de chamar o Polihistor15, temos duas hipóteses a considerar: ou são cópias independentes de um mesmo original ou um é cópia do outro. (A pos-sibilidade de o manuscrito ser um só ficaria a priori eliminada pela diferença de extensão, para além da existência de muitos erros significativos, como em breve veremos).

Principiemos pela segunda hipótese, utilizando um dos índices mais fáceis para ajuizar de questões deste género: as lacunas e os acrescentos. A nossa observação tem de limitar-se, como é evidente, ao Canto I.

Em Luís Franco faltam duas estâncias, a XXIX e XXX. Deve tratar-se de um salto do copista, pois a estrofe XXXI pressupõe, pelo sentido, o conhecimento da anterior. A estrofe XXXII, que encarece sobre o tema da precedente, é desconhecida

do segundo: 2 Sílvia P: Sibella B F / ninfa linda P: linda ninfa B F. Como é de esperar, há também casos de concordância de P com F, o que demonstra que B e F são independentes.

14  Pode ver-se uma discussão do problema, com a respectiva bibliografia, em Askins, op. cit., pp. 209-216.

15 E.g. O Cancioneiro de Fernandes Tomás, p. 67. «Fabulista-mor», na mesma página, «amoral letrado» e «rouba-honras» (p. 76) são outros dos títulos que lhe confere.

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de ambos16. Entre a estância LXXX e a LXXXI, o manuscrito de Faria e Sousa tem uma estrofe que falta no de Luís Franco e na obra impressa.

O passo mais elucidativo, porém, é o que ocorre entre as estâncias LXXVII e LXXVIII, ou, mais exactamente, as variantes da LXXVII e as duas estâncias que se lhe seguem, e que não constam da editio princeps.

Trata-se do momento em que Baco, alarmado com o profetizado triunfo dos Portugueses na Índia, premedita uma cilada que os aniquile. A forma impressa da estância LXXVII é a seguinte:

Isto dizendo, irado e quasi insano sobre a terra africana descendeu, onde, vestindo a forma e gesto humano, pera o Prasso sabido se moveu.E, por milhor tecer o astuto engano, no gesto natural se converteu dum Mouro, em Moçambique conhecido, velho, sábio, e c’o Xeque mui valido.

Os dois manuscritos são coincidentes no primeiro verso, mas logo a seguir se desviam em idêntico sentido. O trajecto do deus é descrito em pormenor, a par-tir de Tebas, sua terra natal, até Moçambique, onde toma a forma de um Mouro. Seguimos o texto de Faria e Sousa:

Isto dizendo, irado e quasi insano, sobre a Tebana parte descendeu, onde, vestindo a forma e gesto humano, para donde o Sol nasce se moveu. Já atravessa o Mar Mediterrano, já de Cleopatra o reino discorreu; já deixa à mão direita os Garamantes, e os desertos de Líbia circunstantes.

Já Méroe deixa atrás, e a terra ardente,que o septênfluo rio vai regando, onde reina o mui santo Presidente, os preceitos de Cristo amoestando;

16 Como diz Faria e Sousa nas «Lecciones varias deste poema» (vol. II, col. 650); «no estava en el original: hizola de nuevo el Poeta».

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já passa a terra de águas carecente, que estão as alagoas sustentando, donde seu nascimento tem o Nilo, que gera o monstruoso cocodrilo.

Daqui ao Cabo Prasso vai direito; e, entrando em Moçambique, nesse instante, se faz na forma Mouro contrafeito, a um dos mais honrados similhante. E, como a seu regente fosse aceito, entrando um pouco triste no semblante, desta sorte o Tebano lhe falava, apartando-o dos outros com que estava.

O complemento «desta sorte» parecia anunciar o discurso directo logo a seguir. Efectivamente, ler-se-ia então:

Saberás, Xeque nosso, que sabido

como primeiro verso da estância LXXIX. No texto impresso, porém, esta estrofe é precedida pela LXXVIII, que refere em discurso indirecto o começo da fala do falso Mouro.

Temos aqui dois aspectos a considerar: um, a razão provável da redução deste passo, omitindo a descrição geográfica; outro, os dados que a critica textual nos fornece para estabelecermos a relação entre os manuscritos. Principiaremos pela última e usaremos a numeração romana para distinguir as três estrofes, e as siglas F para Franco Correa e C para o manuscrito que Faria e Sousa diz ter achado na livraria de Pedro Coelho.

A colação dos dois textos revela apenas algumas variantes, que passamos a examinar. Desta análise excluímos as que são meramente ortográficas, não só por ser essa uma prática corrente em trabalhos desta natureza, como ainda porque não é de crer que a transcrição de Faria e Sousa tenha tido em atenção esses pormenores, e, por outro lado, Franco Correa é muito desleixado na maté-ria. Divergências como preceptos (em II.4) e semblante (em III.6), em C, e preceitos e sembrante em F podem apenas revelar a pronúncia popular deste último copista. Por isso mesmo, não deixa de ser curioso que ambos concordem na forma com metátese cocrodilo em II.8 (a única ocorrência da palavra na princeps, em X.XCV.3, restaura a forma erudita).

O copista de F era, como é geralmente reconhecido, muito atreito a erros, a despeito da revisão que o manuscrito levou, e que se nota em frequentes emendas supralineares ou à margem. Este passo contém, precisamente, um exemplo muito

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curioso na estância II, verso 2. Aí lê-se em C, conforme já vimos, uma perífrase para designar o Nilo, na qual figura um epíteto alusivo às suas sete bocas, que é tirado das Metamorfoses de Ovídio (I.422 e XV.753): septênfluo rio. F, porém, não entendeu o adjectivo e leu mal o substantivo rio, de modo que transformou o latinismo num composto, aliás, não registado nos dicionários17: em vez das duas palavras acabadas de mencionar, escreveu septemfluvio. Detectado o erro ao fazer a revisão, passou um traço por baixo das últimas três letras e escreveu na margem a palavra largo. Emenda feita já sem o original à vista, em que o adjectivo composto terá sido tomado por um topónimo? Deve notar-se que há um pequeno espaço entre Septem e fluuio e que o copista é muito variável na distância observada entre as palavras e na ligação entre as letras, para além do hábito, já notado, de aglutinar os artigos com os substantivos18.

Em III.5, a lição e de C é preferível, sob o ponto de vista sintáctico, a que de F. Em outros versos, porém, a vantagem é de F sobre C. Assim sucede por duas vezes na estância I, onde, no verso 2, C diz Thebana parte, em vez de Thebana patria de F, que é sem dúvida a lição correcta; e, no verso 5, o imperfeito atravessava, de F, parece mais consentâneo com os dois perfeitos que o ladeiam (moveu, discorreu) do que com o presente atravessa, que se lê em C (embora ambas as formas sejam metricamente aceitáveis). A descrição só a partir do verso 7 muda para o presente, que se mantém depois em todo o itinerário de Baco.

Esta longa descrição do caminho do deus, a que Faria e Sousa atribui modelo virgiliano (certamente a descida de Mercúrio do Olimpo a Cartago, na Eneida IV. 238-258, onde o motivo da geografia do percurso – embora diverso – também figura) foi eliminada na versão impressa, ficando dela apenas:

sobre a terra Africana descendeu, onde, vestindo a forma e gesto humano, pera o Prasso sabido se moveu.

«Warum C. die Fassung der Strophen geändert habe, lässt sich nicht errathen» – escreveu, em 1883, Wilhelm Storck, que, logo acrescenta que se encontrava aqui um dado geográfico erróneo, pois Moçambique não está a nascente de Tebas, mas na direcção marcadamente meridional19. O que o Poeta diz é que Baco, partindo de Tebas para atravessar o Mediterrâneo, começa por se mover para Oriente; toda

17 Outro epíteto do Nilo, septemgeminus, foi usado por Catulo XI.7 e por Virgílio, Eneida VI.800. O mesmo Ovídio em Met. V.187 escreveu septemplice Nilo.

18 Uma pequena cruz a seguir ao composto pode ter sido traçada posteriormente. O códice apresenta muitas na margem de diversas composições.

19 Luis de Camões: Die Lusiaden (Paderborn, 1883), p. 390. Sobre as dificuldades e divergências na localização do Cabo Prasso, veja-se José Maria Rodrigues, Fontes d’ Os Lusíadas (Coimbra, 1905), pp. 69-74.

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a sequência da descrição – tão rigorosa – é claramente feita no sentido Norte-Sul. Deixando de lado as razões que haviam sido aduzidas, mais de dois séculos antes, por Faria e Sousa20, por pouco convincentes, poderemos facilmente encontrar outra: é que a referência a estes lugares veio a ter melhor cabimento noutros passos do poema. O Nilo e as «alagoas» donde se dizia provir, a sua fauna típica, a referência aos cristãos etíopes, a Méroe, tudo isso era parte natural da descrição do continente africano no Canto X, em cuja estância XCV se lê:

Olha lá as alagoas, donde o Nilo nace, que não souberam os Antigos, vê-lo rega, gerando o crocodilo; os povos Abassis, de Cristo amigos; olha como sem muros (novo estilo) se defendem milhor dos inimigos;vê Méroe, que ilha foi de antiga fama, que ora dos naturais Nobá se chama.

Uma alusão a alguns destes lugares faz parte da descrição do itinerário de Pedro da Covilhã e Afonso de Paiva, em IV.LXII. 5-8:

Vão a Mênfis, e às terras que se regam das enchentes Nilóticas undosas; sobem à Etiópia, sobre Egipto, que de Cristo lá guarda o santo rito.

Depois de reduzida a viagem de Baco aos quatro primeiros versos da estância LXXVII, a metamorfose do deus limita-se aos outros quatro. De novo, surge outra estrofe, a LXXVIII, em que desde logo começam a desdobrar-se as calúnias aos navegantes portugueses21, que prosseguirão em LXXIX, com a mudança, tornada necessária, e que já vimos, do primeiro verso; além de outras. Efectivamente, F e C concordam em ler, no verso 3, discorrido por destruído; no 5, lá nos altos pensamentos, em vez da mais apropriada redacção final, e que todos seus intentos; no 6, pera nos destruírem, que, com a alteração do verso anterior, se transformou em são pera nos matarem. Apenas um erro separativo do copista de F no verso 4, que trocou a ordem da segunda e terceira palavras ( já trazem, por trazem já).

20 Vol. I, col. 338.21  Como escreveu Faria e Sousa (I, col. 338): «I en la 78, con mejor invencion, no le introduze 

hablãdo, sino refiere lo que empeçò a hablar; en la siguiente le introduze hasta la 81.»

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Prosseguindo na comparação entre os dois manuscritos, temos um outro exemplo muito nítido na transposição que ocorre na estância XX, onde a ordem dos versos 3 a 6 aparece em ambos alterada deste modo22:

pisando o cristalino céu fermoso pelo Caminho Lácteo excelente, se juntam em concílio glorioso sobre as cousas futuras do Oriente.

Também em XXII.4 ambos os manuscritos tinham:

com um gesto severo e soberano

que na edição impressa está enriquecido, na melodia e no significado, em:

com gesto alto, severo e soberano.

Ambos liam Brígio por Castelhano23 em XXV.5; e, em XXXIII.3, em vez de

por quantas qualidades via nela

estava

por quanta semelhança via nela.

Em XXXVIII.4, F e C coincidem em ler cujo valor, que depois foi alterado para o mais raro cuja valia. Outros exemplos figuram em XLIII.6, XLIV.l, XLIV.2, LXI.5, LXI.6, LXIV.8, LXVII.8, LXXI.2, LXXII.7, LXXXVI.4, LXXXVII.1, XCII.8, CIV.824.

Uma das lições concordantes mais significativas encontra-se logo na estân-cia IV.I, onde a invocação é feita às Tágides Musas, quando o impresso diz, como todos recordam, Tágides minhas. A alteração demonstra que o Poeta considerava o mitónimo criado por André de Resende já suficientemente claro para ser tomado como um substantivo, sem necessidade de explicitar que eram as novas divinda-des inspiradoras. Ao possessivo pode atribuir-se a simples intenção de acentuar o carácter nacional do poema (que demarcara já da Odisseia e da Eneida, como consagrado a mais altos feitos, e que mais adiante distinguirá do Orlando Furioso,

22 Apenas uma variante: F lê ajuntam onde C tem juntam.23 Faria e Sousa nota que Camões eliminou quase por completo do poema o antigo etnónimo

dos Castelhanos.24 Alguns deles com pequenas variantes, atribuíveis a erro do copista.

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por verídico) ou tomar-se como um indicativo da naturalidade do Poeta, como já tem sido feito, não sem alguma razão, a nosso ver25.

Os erros disjuntivos de E são suficientemente numerosos para demonstrar a sua independência relativamente a C. De um modo geral, são erros de copista que não entendeu bem o texto. Apenas alguns exemplos, todos eles muito claros: em V.4, e a cor ao gesto muda foi transcrito como e a cor ao justo muda; em XII.3, dom Fuas passou a Dom Frias; em XV.4, dareis matéria a nunca ouvido canto foi deteriorado em dareis matéria a mim e ouvido canto; em CII.4, mas a que a Mahamede celebrava foi mal entendido como e a que havia a medo celebrava. Os tempos dos verbos encontram-se muitas vezes alterados, ainda que isso destrua o esquema rimático ou produza um erro de métrica. Ambas as faltas concorrem em LXIX.7; onde determina, em rima com imagina, passou a determinava. A perda de rima é ocasionada em LIX.4 por acordava, em vez de acordou. Em LXX.3, disse-lhe por diz-lhe resulta numa sílaba a mais.

Aliás, toda a cópia de F revela uma tendência para reflectir a linguagem popular. Ao grupo -cl- substituiu-se -cr- em incrinai (IX.I) e incrina (C.1), craro (LIII.6) e decrara (XCVII.6). As formas com a protético são frequentes: acometendo (XXVII.l), arrecea (XXXIV.5), alevanta (LXXXIX.1) – embora a regra conheça excepções, como costu-mado por acostumado, em XCV.2. Frequentes também as metáteses: profia (XXVII.7 e XXXIV.7), trovado (XXXVII.7), detriminação (XL.2), detriminados (XLI.8), detreminado (LXXX.7), detrimina (XCIX.1), detriminação (CI.2). Em CIV.3, temos uma vocalização em bautizado. Casos como indinado (LXXVI.5) ou indine (CVI. 7) não são probantes, uma vez que a prática da editio princeps não só é oscilante a este respeito, como a rima demonstra que a manutenção do grupo consonântico -gn- não era mais do que um cultismo gráfico.

Em muitos exemplos, a substituição da forma vulgar pelo latinismo deve reve-lar a lima do Poeta. Assim, em XXXVII.6, tronco do bastão do manuscrito passa a conto do bastão no impresso; o sufixo -vel regressa à forma -bil em visíbil e invisíbil (LXV.2), insensíbil (LXV.4), insufríbil (LXV.6); em XCVII.2, malvado é emendado para malévolo. A estância LXXII oferece duas alterações em que a uma palavra, aliás, de origem latina, se substitui um latinismo que constitui neologismo ao mesmo tempo (a que chamaremos, usando a expressiva terminologia de J. Herculano de Carvalho, um latinismo insólito26): obsequente, na linha 7, e cógnito na seguinte, em vez de, respectivamente, inimigo e régio. O mesmo sucede na estrofe XXXIV.4 onde a belicosa gente se torna na gente belígera. De notar que as três palavras constam da

25 É curioso notar a prova de mau gosto de Manuel Correa Montenegro, ao «corrigir» a expressão para Musas do Tejo.

26 «Contribuição de ‘Os Lusíadas’ para a renovação da língua portuguesa», Revista Portuguesa de Filologia, 18 (1980), p. 15.

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lista de vocábulos novos introduzidos por Camões, que Faria e Sousa apontou27. Vale a pena observar que, dos vinte e cinco termos novos aí registados para o Canto I, vinte e um estavam já na redacção de que F é cópia, e que houve um que, depois de não ter sido compreendido na primeira versão, aparece emendado supra lineam: ethereo, em LXXIII.2, que fora lido eterno. Por outro lado, em XVI.2, é de crer que exício não foi entendido à primeira leitura nem à segunda, pois a uma primeira forma exercio foi acrescentada por cima a sílaba ci, que se supunha omitida (exercício)28.

Ocorrerá neste momento perguntar o que se passa com o manuscrito da livraria de Pedro Coelho no tocante a estes aperfeiçoamentos. Quanto às formas em -vel, Faria e Sousa não as registou, mas ele mesmo declarou, no apêndice de «Lecciones varias deste poema», que «Lo que solo tuviere alteracion considerable, es lo que se ha de ver aqui»29. Lá vêm, portanto, relativamente à estrofe LXXII, obsequente e cógnito. Mas ficaram certamente excluídos os múltiplos exemplos de singular por plural ou vice-versa: padeçam por padeça (XXXVIII.5), panos e cintas por pano e cinta em XLVII.1 e 5, os céus por o céu, em LVIII.3, festas por festa em LIX.7, ventos por vento em XCV.3. Apenas cita como amostra da lei a substituir das leis em II.6. Num dos exemplos, o de LXXXII.7, ler Portugueses (como faz C) por Português (da edição impressa) dá, evidentemente uma sílaba a mais, que não parece ter per-turbado o copista.

Os casos de melhoria estilística (quer pela procura de um termo mais raro – que pode ou não ser um latinismo –, mais expressivo ou mais eufónico) prolongam-se nos cantos que Luís Franco Correa já não copiou. Apontamos apenas um pequeno número: lindas filhas de Nereu passa a alvas filhas de Nereu (II.XIX.l), e as banais ondas levantadas (II.XX.7) a ondas encurvadas, os frescos fios d’ouro (II.XXXVI.l) a crespos fios d’ouro (repare-se no valor pictórico de todas estas alterações). O movimentado verso 3 da estância LXVII do Canto III – fere, mata, derriba denodado – provém de uma enumeração bimembre – uns captiva, outros mata denodado. Outras substitui-ções mostram a preferência pela conotação de ordem moral (os brutos matadores de III.CXXXII.l eram apenas duros matadores) ou pelo latinismo raro (a crua mesa de Tiestes torna-se a seva mesa de Tiestes no mesmo episódio de Inês de Castro, em III.CXXXIII.3) ou pelo efeito de uma sugestiva aliteração: fresca fonte por gentil fonte (no aition final do mesmo episódio, III.CXXXV.7). E atente-se no efeito da substituição de dois dos adjectivos que descrevem a aparição de Tétis em V.LV.4:

27 A lista, que vem nas col. 69-70 do Vol. I, pode ler-se também na edição do Visconde de Juro-menha, Vol. V (Lisboa, 1866), pp. 449-450. Nela figura igualmente o citado malévolo.

28 Na II Reunião Internacional de Camonistas, realizada em Niterói em 1973, Hamilton Elia apresentou uma comunicação intitulada «O Canto I de ‘Os Lusíadas’ no Cancioneiro de Luís Franco Correa» que contém uma comparação sinóptica exaustiva entre o texto da princeps e o de Luís Franco.

29 Lusíadas, Vol. II, col. 647-658.

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da linda Thetys inclyta despida, que é visualizada com mais relevo, sedução e energia em da branca Thetys única despida.

As amostras dadas baseiam-se, conforme resulta de quanto dissemos, nos dados de Faria e Sousa. Esses dados compreendem também estâncias novas. Além das já vistas, uma no Canto III (a seguir à X) e uma alteração grande na XXIX; no Canto IV, três estrofes de louvor aos bastardos, após a II, que, apesar de sobrecarregadas de motivos clássicos, não figuram na edição impressa. Muitos outros exemplos podiam apontar-se, mas o mais intrigante é o discutido episódio do taful de Sevilha, longo trecho de mau gosto, entretecido precisamente num dos momentos mais solenes do poema: a descrição da batalha de Aljubarrota. A questão foi já discutida, com lapidar concisão, por Hernâni Cidade, que observa: «Que contraste violento entre o texto épico d’Os Lusíadas e o que lhe acrescenta o novo episódio da batalha»30. Seguidamente, o mesmo Professor discute o outro suposto acrescento, a história de amores que Leonardo contaria no mesmo canto. Parece-nos inútil insistir neles, porque a impossibilidade de comprovar a autenticidade pela comparação com Franco Correia nada nos permite adiantar. No estado actual da questão, apenas poderemos repetir com Hernâni Cidade: «Mesmo admitindo que o Poeta o tivesse composto, a tempo oportuno o teria elimi- nado...»31.

Um outro ponto deve ainda merecer a nossa atenção: dá o manuscrito de Franco Correa algum contributo para dirimir a famosa questão das duas edições datadas de 1572? É certo que não podemos utilizar um dos errores significativi mais claros, tornaram de Ee por começaram de E, porquanto a estância XXIX está omissa no Cancioneiro, conforme já dissemos. Mas em todos os restantes, incluindo queres (XXXVIII.5) e responde, de LXIV.1 (onde E lê, respectivamente, queiras e respondeo), mostram o parentesco de C com Ee, e apontam, por conseguinte, para a anterio-ridade, hoje geralmente aceite, da edição com o pelicano voltado para a esquerda sobre a que o tem virado para a direita. Uma excepção: em LIX.6, F lê toldos como E e contra Ee, que apresenta todos. O facto pode, no entanto, explicar-se, admi-tindo que a falta do l em Ee não passa de uma simples gralha, que E corrigiu sem esforço. Outra, ainda menos significativa, é o erro fortíssimo gente, que Ee tem em XXXI.1, onde E e F lêem a forma feminina do adjectivo. Mais adiante veremos outras deste género.

30 Edição do IV Centenário de Os Lusíadas, cit., p. IV.31 Ibidem, p. VI.

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Apesar de todos estes factos, sobre o manuscrito de Luís Franco Correa, lavrou Hernâni Cidade a sentença que peço vénia para recordar na íntegra32:

É pena que a importância de um manuscrito anterior ao texto publicado sofra o enorme desconto de não diferir deste senão pela mais avultada soma de erros de toda a ordem, incluindo a métrica, só atribuíveis a um mau copista, lamentavelmente presunçoso e incapaz de nos oferecer texto de mais cuidada revisão do que o publicado pelo Poeta! Nenhuma utilidade nele se recolhe para a restituição da edição original.

A regra com que termina este juízo de valor tem, a nosso ver, algumas excepções para a confirmar. Uma é a que surge no verso 1 da estância LXXXI, onde a lição deste feito, de Franco Correa, evita a repetição da rima no verso 5 (que de jeito). Se é certo que há mais exemplos do fenómeno no poema, também é exacto, como notou António Salgado Junior, ao defender esta lição – proposta independentemente como emenda por Manoel Correa – que nos outros passos a palavra repetida na rima não tem exactamente a mesma construção e significado, como aqui33.

Em I.XCV.8, dizer como F:

as velas manda dar ao largo vento

em vez da contracção às velas das duas edições de 1572, é mais conforme com a prática camoniana (cf. II.XVIII.2, II.LXIV.8, V.XXIII.4)34.

Outro exemplo poderá ser I.XXXV.5, onde Franco Correa escreve:

brama toda a montanha

como mais tarde o fará Manoel Correa. Trata-se de um caso que tem inúmeros e conhecidos paralelos, não só em Camões como em António Ferreira, que mostram que a língua oscilava ainda entre o uso ou omissão do artigo após o pronome inde-finido, e que poderia dar-se como uma simples questão ortográfica (o a era aberto,

32 Ibidem, p. II. Note-se que W. Storck se apoiou na variante de Luís Franco em I.II.3-4 para defender a emenda A fé e império. Cf. José Maria Rodrigues, Fontes d’Os Lusíadas, p. 184 e nota 1.

33 São estas as suas palavras, no comm. ad locum: ... «diremos tratar-se de repetição da pala-vra jeito como terminal dos versos 1º e 5º, de ambas as vezes a fazer parte da expressão de jeito, na mesmíssima função adverbial. Temo-la, pois, por não contida no âmbito normal da versificação do poema, e cremos em erro tipográfico. Da mesma maneira se pensava já quando da edição preparada por Manoel Correa».

34 Deve observar-se que José Maria Rodrigues, que em Fontes d’Os Lusíadas (1905), p. 492, nota 1, escrevia a respeito deste passo «Manifestamente As velas», mais tarde, em artigo do Boletim da Aca-demia das Ciências de Lisboa XIII, 2, 1919 (Coimbra, 1921), p. 703, esclareceu: «E aas velas com dois aa, para não haver dúvida nenhuma a respeito da pronúncia, do artigo».

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quer resultasse de uma contracção, quer não), se não fosse a ocorrência da mesma construção também no plural, facto exemplificado por José Maria Rodrigues35. O mesmo Camonista chegou a admitir, no entanto, para este passo, a presença do artigo como provável, embora mais tarde pareça ter mudado de opinião36 e o tenha omitido na sua própria edição. Diferentemente entendeu Epifânio, que o inseriu e anotou: «Todo seguido de substantivo apelativo sem o artigo definido só pode empregar-se no sentido de ‘todos’; Camões disse pois necessariamente ‘toda a montanha’; a omissão do a é fácil de explicar-se atendendo a que ‘toda a’ se pronuncia ‘toda’.»

Em outros pontos, o manuscrito de Franco Correa supera a princeps, por estar livre de certas gralhas tipográficas que esta apresenta (quer na edição Ee, quer na E). O facto é tanto mais digno de nota, quanto é sabido – como já referimos – que o Cancioneiro quinhentista enferma de numerosos erros de ortografia. São eles: Viriato em XXVI.3 (e não Variato37); dovidoso em XXVII.1 (por dividoso); ímpeto em XXXV.4 (por ímpito38); almadias, em XCII.l (por almádias de Ee e almàdias de E). Este último exemplo – emendado, como os outros, já nas edições antigas – é confirmado pela métrica, pois o acento do verso deve recair aqui na sexta sílaba, e pelo paralelo com II.LXXXVII.2, onde a palavra surge em posição final e em rima com dias e vias, e ainda pela sua colocação em VIII.LXXXIV.8, e pela grafia e acentuação de VIII.XCIII.539.

Pode objectar-se que seis ou sete lições preferíveis, entre dezenas de variantes, é muito pouco para justificar a atenção dada ao manuscrito do amigo de Camões. Não pensamos assim. Este breve estudo permitiu-nos, pelo menos, tirar algumas conclusões que parecem úteis a um melhor conhecimento do Poeta e do poema. A primeira é a de que circulou uma primeira forma de Os Lusíadas, de que F e C são cópias independentes; se essas cópias também acrescentavam algo de seu (e o episódio do taful sevilhano em C poderia ser um caso), não temos elementos para o afirmar. De qualquer modo, a similitude do texto existente na Biblioteca Nacional de Lisboa e do referido por Faria e Sousa dá a este polígrafo uma credibilidade que

35 Fontes d’Os Lusíadas, pp. 486-487.36 Ibidem, p. 487, nota 2, e p. 538.37 A forma correcta Viriato é a que figura nas outras duas ocorrências do antropónimo (VIII.

VI.3 e VIII. XXXVI.4).38 Ímpito repete-se em IV.LXXII.5, mas a forma correcta reaparece em VI.LXXIV.2.39 Este é, aliás, um dos casos onde se registam variantes de exemplar para exemplar. Assim, o

que serviu para a edição facsimilada da Imprensa Nacional escreve almadias, ao passo que o utilizado para o Índice Analítico de A. G. Cunha tem almàdias. Apenas alguns exemplos mais: em II.C.2, a pri-meira tem rejoando e a segunda resoando; em III.LXXV.1, aquela diz leuisse, e esta leuasse; e, na mesma estância, no verso 8, lê fangue onde a outra tem sangue.

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não deve mais ser-lhe negada tão sistematicamente como se tem feito em geral40. Outra conclusão – e esta de não menor importância – é que o confronto dessa primeira versão com a impressa permite-nos ver, em muitos casos, como o Poeta trabalhava. Desde a eliminação pura e simples de estrofes de boa feitura (como no caso da viagem de Baco), em função de uma necessidade estrutural do poema, à busca da expressão mais rara, mais eufónica, mais merecedora do famoso elogio da língua que com pouca corrupção crê que é latina, quase não há verso que não mostre a razão dos dizeres de Diogo do Couto, que mencionámos no começo, e que não tenha levado a lima do Poeta. Por isso mesmo, não é de admirar que o manuscrito de Franco Correa não traga lições melhores do que a editio princeps. A razão do seu interesse reside precisamente no motivo inverso: através dela sur-preendemos um pouco do acto criador, da poiesis de uma obra-prima.

40 Um caso semelhante que se observa na lírica foi notado por A. J. Costa Pimpão, na sua edição das Rimas (Coimbra, 1973), p. LIV.

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12. UM SONETO A CAMÕES*

Era costume muito difundido no séc. XVI antepor às obras, quer literárias, quer científicas, poemas laudatórios em latim ou em vulgar. Destas últimas, recordemos dois exemplos, ambos relativos a autores lusitanos: a edição do Thesaurus Paupe-rum de Pedro Hispano, feita em Francoforte em 1576, compreende nada menos de quatro poemas latinos, dos quais três são em dísticos elegíacos e um é uma ode sáfica – e isso não obstante tratar-se de um livro de medicina1; a princeps dos Colóquios dos Simples e Drogas, de Garcia de Orta, saída em Goa em 1563, também tem um epigrama latino e, além disso, uma ode em português – nada menos do que a Ode VIII, ao Conde do Redondo, Vice-Rei da Índia, por Luís de Camões2. Foi essa aliás, como é sabido, a primeira obra sua a ver a letra de forma. De resto, para além de Os Lusíadas, só mais dois poemetos foram impressos em vida do autor, e esses também, por singular coincidência, de tipo encomiástico: a Elegia VII e o Soneto 165, ambos a elogiar o livro de Pêro de Magalhães Gândavo, História da Província de Santa Cruz, de 1576.

Em contrapartida, uma praxe semelhante viria a ser cumprida para com a sua restante obra lírica, depois de morto o poeta. Assim, quando Manuel de Lyra imprimiu, em 1595, as Rhythmas de Luís de Camões, fê-las preceder de dois epigramas latinos ao «Príncipe dos Poetas», por Manuel de Sousa Coutinho, de um soneto em Português por Francisco Lopes, de outro em italiano por Luís Franco, do célebre «Quem louvará Camões qu’ele não seja?», de Diogo Bernardes, e ainda de outro soneto de Diogo Taborda Leitão. Esgotada esta edição, Pedro Crasbeek faz sair a

* Publicado em Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 133-138.

1 Publicados e traduzidos na nossa edição de Obras Médicas de Pedro Hispano (Coimbra, 1973), pp. 380-385.

2 Seguimos a numeração e o texto da edição das Rimas, por A. J. Costa Pimpão (Coimbra, 1973). Do epigrama latino que referimos, da autoria de Tomás Caiado, pode ver-se a tradução que demos em Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa, 1972), p. 225.

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segunda, três anos mais tarde, antecedida de todos estes encómios, excepto o de Luís Franco, e acrescentada em mais quatro: dois em italiano (o de Leonardo Turricano e o de Torquato Tasso) e dois em português. Destes últimos, um é do licenciado Gaspar Gomez Pontino. Do outro, apenas se lê na rubrica: «Ao Autor, por hum seu amigo. Ao qual respondeo com o Soneto 62, que começa3

De tão divino attento, e voz humana.

O Soneto em questão figurava já, aliás, na primeira edição, mas aí aparecia incorporado no texto, a preceder a resposta do autor. Quer dizer, tratava-se de um louvor feito em vida do poeta, que depois foi ocupar o lugar que lhe competia junto dos demais4.

Ora é sobre este mesmo Soneto que nos propomos falar, porquanto é único na série, sob dois pontos de vista: no anonimato que envolve o seu autor nas duas primeiras edições e em elogiar, além do épico e do lírico, como se tinha tornado habitual, o autor dramático também5.

O texto, tal como vem na edição de 1598, é o seguinte (modernizado na grafia e na pontuação):

Quem é este que na harpa Lusitana abate as Musas Gregas e Latinas? E faz que ao mundo esqueçam as Plautinasgraças, com graça alegre e lira ufana? Luís de Camões é, que a soberana Potência lhe influiu partes divinas, por quem espiram as flores e boninas, da Homérica Musa e Mantuana.Se tu, triunfante Roma, este alcançaras no teu teatro e cena luminosa, nunca do grão Terêntio te admiraras, mas antes, sem contraste, curiosa estátua d’ouro ali lhe levantaras,contente de ventura tão ditosa.

3 A evidente gralha do texto, «attento» por «accento», aparece corrigida na p. 16v, e não existia na primeira edição.

4  Estes factos foram já registados por Vítor Manuel de Aguiar e Silva, no seu Estudo Introdutório à edição fac-similada da de 1598 (Braga, 1980), pp. VIII-IX.

5 Não cremos que o nome de Sófocles, citado entre os de Virgílio, Píndaro e Ovídio, no Epigrama primeiro de Manuel de Sousa Coutinho, deva ser tomado por algo mais do que um símbolo da poesia.

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34712. UM SONETO A CAMÕES

Na primeira edição existe apenas, em relação a esta, uma diferença no oitavo verso: em vez de «da Homérica Musa e Mantuana», que reflecte o consabido para-lelismo com os dois maiores épicos da Antiguidade, lê-se nela «da Homérica Musa italiana». A sintaxe claudicante leva a supor que não seria intenção do autor dos versos propor a comparação com Ariosto ou com Tasso (cronologicamente impos-sível neste caso). De resto, Camões, na sua resposta pelos mesmos consoantes, retomou parte da comparação, ao retribuir o elogio:

De tão divino acento e voz humana, de tão doces palavras peregrinas, bem sei que minhas obras não são dinas, que o rudo engenho meu me desengana. Mas de vossos escritos corre e mana licor que vence as Águas Cabalinas; e convosco do Tejo as flores finas farão enveja à cópia Mantuana.E, pois, a vós de si não sendo avaras, as filhas de Mnemósine fermosa partes dadas vos tem, ao mundo caras, a minha Musa e a vossa tão famosa, ambas posso chamar ao mundo raras: a vossa d’alta, a minha d’envejosa.

Faria e Sousa tentou, naturalmente, identificar o autor do encómio, e, embora reconhecendo «no me consta quien fuesse su Autor», logo a seguir propõe o nome de João Lopes Leitão «cavallero de valor y de ingenio, y de calidad estimables tanto como lo veremos sobre el son. 54 de la Cent. 2 y particularmente sobre la Esparsa 7. Y un manuscrito dice que es de Francisco Gomez de Azevedo»6.

A publicação recente do Cancioneiro de Cristóvão Borges, por A. L. F. Askins, atribui a este último a autoria. No seu comentário, aquele erudito investigador historia, não só essa questão, como outra não menos interessante, que é a identificação da peça que motivara o soneto laudatório de «um seu amigo»7. Que este seria João Lopes Leitão, foi hipótese retomada por Teófilo Braga e não rejeitada por Jorge de Sena; Storck e Aubrey Bell favoreceram Gomes de Azevedo. A comédia, essa, seria o Filodemo (Teófilo Braga) ou os Enfatriões (Storck). Na primeira destas duas

6 Rimas de Luís de Camões (reimpr. da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1972), vol. I, pp. 127-128.

7  Braga, 1979, p. 60. Na mesma obra, pp. 231-232, dão-se as referências bibliográficas, que omiti-mos por brevidade. Veja-se também a edição dos Sonetos de Camões, por Cleonice Berardinelli (Braga, 1980), p. 665.

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possibilidades, o local da récita seria Goa (como ensina o Cancioneiro de Luís Franco Correa); na segunda, seria Lisboa (a aceitar como critério de localização a alusão a Alfama, no verso 175, como se tem feito). Storck fundamenta a sua opinião também no facto de o Soneto elogiar já o poeta épico.

Ora o Cancioneiro de Luís Franco «companheiro em o estado da Índia e muito amigo de Luís de Camões», como se lê na portada, transcreve, é certo, o Filodemo, com a indicação de que foi representado na Índia a Francisco Barreto, mas tam-bém conhece Os Lusíadas, de que copiou todo o primeiro canto, e só não conti-nuou, declara, porque entretanto a epopeia «saiu à luz». Não há, portanto, razão suficiente para excluir a candidatura de Filodemo. Mas, por outro lado, a alusão às Musas Plautinas aponta para os Enfatriões e pode bem confirmar a suposição de Teófilo Braga, de que a propiciava, e onde, a nosso ver, a alusão a Alfama não constituiria uma incógnita para o público.

Mas voltemos à versão do Cancioneiro de Cristóvão Borges. Outra parte do seu interesse reside em apresentar algumas variantes. E, se algumas são simples erros de copista, provados pelo sentido e pelo metro (no v. 1 lê-se «Quem a este que na harpa Lusitana»), outros podem proporcionar-nos indicações aproveitáveis. Assim, quando se lê no v. 8 «da Omerica musa, e Tulliana», parece evidente que quem o transcreveu teria na frente um modelo semelhante ao da edição de 1595 («da Homerica Musa italiana»), que não soube interpretar. Mas outro tanto pode não ter sucedido com o v. 11, onde, em vez do nome do outro grande comedió-grafo latino – que Camões, aliás, não imitou – surge o de um actor romano muito conhecido dos leitores de Cícero:

nunca do grande Roscio te admiraras

Bastariam as referências à arte de Róscio no cap. XVII do Pro Archia de Cícero – essa vibrante defesa das Belas-Letras, que deixou marcas sensíveis em Os Lusíadas, bem como em outros quinhentistas nacionais – para fazer aceitar, em princípio, esta lectio difficilior. Podemos mesmo supor que foi a relação de Cícero com Róscio (a quem defendeu em tribunal) que arrastou a variante «e Tulliana», acima refe-rida, no modelo que serviu ao Cancioneiro de Cristóvão Borges8. Tudo isto, de resto, nada nos diz sobre o autor do Soneto, senão que era pessoa culta. Mas a resposta de Camões levanta um pouco mais a ponta do véu; por muito que descontemos à hiperbólica generosidade da retribuição, não podemos deixar de admitir que

8 Askins, op. cit., p. 20, formula a hipótese da existência de uma antologia de Sonetos de Camões de onde teriam derivado os textos deste e de outros Cancioneiros. Quanto ao copista do de Cristóvão Borges, era pouco versado em nomes antigos. Na resposta de Camões, transformou as musas em «filhas de Gnemosine».

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34912. UM SONETO A CAMÕES

o seu destinatário era poeta conhecido9. Podemos ainda acrescentar – porque o Soneto o diz claramente – que era natural das margens do Tejo e podemos repetir, com Faria e Sousa, que há uma certa afinidade entre este elogio e o Soneto que começa «Senhor João Lopes, o meu baixo estado». Efectivamente, essa composição camoniana louva um poeta lírico capaz de

lançar ao vento a voz tão docemente que fez ao ar sereno e sossegado.

Nada temos, até à data, que permita comprovar a objectividade do elogio. Os poetas amigos de Camões – exceptuando Diogo Bernardes – são sombras que, tudo leva a crer, poderão estar sepultadas nos Cancioneiros de mão do século XVI (quantos mais andarão perdidos, além dos que foram estudados ou publicados por Carolina Michaëlis, Askins e outros?).

No caso presente, a naturalidade acima mencionada não discorda daquela que é confirmada, para João Lopes Leitão, pelas investigações documentais de Maria Clara Pereira da Costa10. É este, de resto, um dos nomes que Diogo do Couto refere com frequência na companhia do Poeta11. Terá sido ele o único a festejar, ao lado do épico e do lírico, o comediógrafo, cujos autos só tão tardiamente viriam a ser editados12? Dos mistérios que, directa ou indirectamente, envolvem a obra de Camões, apenas podemos afirmar que não é este o maior.

9 Também Askins (op. cit., p. 232) reconhece que o «Soneto de resposta pressupõe (se é simples-mente uma galantaria) que o autor, quem quer que ele tenha sido, era um poeta exímio e conhecido».

10 Da Investigação da Casa de Camões em Constância (1977), pp. 71-73 e passim.11 Décadas VII. 10.2. Cf. Storck, Vida e Obra de Luís de Camões (trad. Carolina Michaëlis, Lisboa,

reimp. 1980), especialmente pp. 615, 617-620, 625, 633-634.12 Os Enfatriões e Filodemo em 1587, juntos com os autos de António Prestes e outros. El-Rei Seleuco

só em 1645, na edição das obras completas por Paulo Craesbeeck (cf. Hernâni Cidade, prefácio ao vol. III da sua edição de Camões [Lisboa, 1946), p. VII).

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