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Ética e antropologia O ponto de partida da teoria da ação comunicativa é o mundo vivido (Lebenswelt): o lugar das relações sociais espontâneas, das certezas pré-reflexivas, dos vínculos que nunca foram postos em dúvida. As relações sociais que se dão no mundo vivido assumem, caracteristicamente, a forma da ação comunicativa: um processo interativo, linguisticamente mediatizado, pelo qual os indivíduos coordenam seus projetos de ação e organizam suas ligações recíprocas. Na comunicação normal invocamos sempre, implicitamente, pretensões de validade (Gueltigkeitsansprueche) com relação a todos os enunciados. Quando falamos, estamos sempre asseverando, tacitamente, que nossas afirmações sobre fatos e acontecimentos são verdadeiras, que a norma subjacente ao enunciado lingüístico é justa, e que a expressão dos nossos sentimentos é veraz. Na comunicação que se dá no mundo vivido, as três pretensões de validade se entrelaçam. O processo comunicativo se vincula sempre a três " mundos": o mundo objetivo das coisas, com relação ao qual cabem pretensões de verdade (Wahrheitsansprücht); o mundo social das normas e instituições, com relação às quais são invocadas pretensões de justiça (Ricbtigkeitsansprüche); e o mundo subjetivo das vivências e sentimentos, com relação ao qual se alegam pretensões de veracidade (Wahrhaftigkeitsansprüche). A coordenação comunicativa entre os interlocutores se dá através da expectativa de que se necessário cada interlocutor poderá justificar essas pretensões de validade. A validade da pretensão de veracidade só pode ser demonstrada pela consistência entre as palavras do interlocutor e os seus atos. Mas no caso das outras duas, ele precisará apresentar provas e argumentos - dentro de um quadro teórico geralmente aceito, no caso das proposições

Ética e Antropologia

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tica e antropologia

O ponto de partida da teoria da ao comunicativa o mundo vivido (Lebenswelt): o lugar das relaes sociais espontneas, das certezas pr-reflexivas, dos vnculos que nunca foram postos em dvida. As relaes sociais que se do no mundo vivido assumem, caracteristicamente, a forma da ao comunicativa: um processo interativo, linguisticamente mediatizado, pelo qual os indivduos coordenam seus projetos de ao e organizam suas ligaes recprocas.Na comunicao normal invocamos sempre, implicitamente, pretenses de validade (Gueltigkeitsansprueche) com relao a todos os enunciados. Quando falamos, estamos sempre asseverando, tacitamente, que nossas afirmaes sobre fatos e acontecimentos so verdadeiras, que a norma subjacente ao enunciado lingstico justa, e que a expresso dos nossos sentimentos veraz. Na comunicao que se d no mundo vivido, as trs pretenses de validade se entrelaam. O processo comunicativo se vincula sempre a trs " mundos": o mundo objetivo das coisas, com relao ao qual cabem pretenses de verdade (Wahrheitsansprcht); o mundo social das normas e instituies, com relao s quais so invocadas pretenses de justia (Ricbtigkeitsansprche); e o mundo subjetivo das vivncias e sentimentos, com relao ao qual se alegam pretenses de veracidade (Wahrhaftigkeitsansprche).A coordenao comunicativa entre os interlocutores se d atravs da expectativa de que se necessrio cada interlocutor poder justificar essas pretenses de validade. A validade da pretenso de veracidade s pode ser demonstrada pela consistncia entre as palavras do interlocutor e os seus atos. Mas no caso das outras duas, ele precisar apresentar provas e argumentos - dentro de um quadro terico geralmente aceito, no caso das proposies descritivas, ou dentro de uma ordem normativa existente, no caso das proposies prescritivas. Por exemplo, ele dir que as primeiras so verdadeiras porque se apoiam numa teoria aceita sobre o mundo fsico, e as segundas so corretas porque se apoiam numa norma vigente. A situao muda quando o que se contesta a prpria validade da teoria ou da norma. Sua problematizao requer o adandono do mundo vivido e o ingresso num tipo de argumentao sui generis. o discurso.As pretenses de validade correspondentes questes cognitivas so problematizadas nos discursos tericos, e as correspondentes questes normativas, nos discursos prticos. Nos dois casos, os participantes se distanciam do mundo vivido e assumem uma atitude crtico-hipottica de investigao imparcial do que antes era visto como no-problemtico. Nos dois casos, a argumentao discursiva tem como ponto de partida a suspenso radical da crena na validade do que havia sido afirmado. Ela posta entre parnteses, at que se conclua, pelo consenso, o processo de discusso discursiva, que pode levar confirmao (mas tambm negao) dos fatos apresentados como verdadeiros, e justificao (mas tambm refutao) das normas apresentadas como justas.Nos dois discursos, portanto o consenso que valida a proposio, mas a validao s ser conclusiva se o consenso for fundado. O consenso ser fundado se a argumentao tiver sido conduzida segundo certos pressupostos pragmticos, que incluem o de que todos os interessados tenham direito de participar do discurso, de que todos os participantes tenham iguais oportunidades de apresentar e refutar argumentos, de que todos os argumentos sejam submetidos ao livre exame de todos, de que nenhum dos participantes sofra qualquer coao, e outros. Esses pressupostos so os que prevalecem numa situao lingstica ideal, para Habermas, ou numa comunidade argumentativa ideal, para Apel. So condies ideais, porque raramente se atualizam em discursos concretos. Ao mesmo tempo, precisam ser pressupostas como reais, porque sem a expectativa de que elas estariam presentes, nenhum interessado participaria da argumentao.Esses pressupostos esto na origem de qualquer argumentao, terica ou prtica. Eles remetem a valores morais, e nesse sentido podemos dizer que a tica pressuposta por qualquer discurso. Mas as questes normativas so debatidas nos discursos prticos. Contra o positivismo, a teoria da ao comunicativa afirma que as proposies normativas so to wahrheitsfaehig, to susceptveis de serem falsas ou verdadeiras, como as proposies descritivas. Como estas, as proposies normativas so validadas por um consenso fundado. O consenso em questes prticas ser fundado quando a argumentao for conduzida segundo uma regra de procedimento derivada dos pressupostos pragmticos de qualquer argumentao, prtica ou terica. Essa regra o princpio da universalizao, o princpio U. o seguinte o enunciado do princpio U: "Todas as normas vlidas precisam atender condio de que as conseqncias e efeitos colaterais que presumivelmente resultaro da observncia geral dessa norma para a satisfao dos interesses de cada indivduo possam ser aceitas no coercitivamente por todos os envolvidos."O princpio U pode ser fundamentado. Ele deriva dos pressupostos pragmticos de toda e qualquer argumentao discursiva. Cada pessoa que ingressa num discurso prtico se obriga intuitivamente a aceitar procedimentos que equivalem ao reconhecimento implcito do princpio U. No posso, sem contradizer pressupostos gerais da comunicao, aceitar, na argumentao moral, que alguns interessados sejam excludos, que alguns participantes sejam coagidos, que outros no tenham a possibilidade de argumentar em defesa dos seus interesses, que outros se arroguem o direito de no seguir a norma.A tica comunicativa formalista, porque ela pressupe que os contedos sero trazidos moldura argumentativa pelos prprios interessados. Ao mesmo tempo, ela remete a uma tica material, encrustada nas estruturas formais da interao e do discurso. No nvel da comunicao quotidiana h uma srie de normas implcitas, como a que prescreve o respeito integridade fsica de cada participante - a relao de violncia a anttese da relao comunicativa - a que prescreve a busca da verdade e da justia, a que exprime a exigncia da veracidade. No nvel do discurso, a situao lingstica ideal e seu derivado, o princpio U, prescrevem o tratamento igual de todos os participantes, a considerao dos interesses de cada um, a ausncia de coao, a incluso de todos os interessados. Subjacente camada normativa, existem vrios valores fundamentais, vinculados a cada pretenso de validade e prpria exigncia de inter-relacionamento atravs do nexo comunicativo. Todos esses valores podem ser expressos dicotomicamente, para que fique claro que correspondem a determinadas escolhas e preferncias: o consenso prefervel violncia, o saber prefervel ao no-saber, a veracidade prefervel mentira, a igualdade prefervel discriminao e a liberdade prefervel coao.A tica comunicativa universalista. Ela se funda na hiptese de uma natureza humana universal, fundada na universalidade da comunicao pela linguagem. A moldura argumentativa igualmente universal, no no sentido de que no existam discursos locais, em que os interessados abrangeriam apenas um grupo social especfico, mas no sentido de que os argumentos usados devem ser susceptveis de convencer todos os seres racionais, mesmo os no diretamente envolvidos. o conceito kantiano da raesonierrende Oeffentlichkeit, uma comunidade argumentativa aberta, abrangendo tendencialmente a humanidade inteira. Universal, tambm, o princpio U, verso comunicativa do imperativo categrico, cujo contedo a exigncia da universalizao. Sem dvida, o pleno desdobramento da competncia discursiva, cujo princpio operacional o princpio U, mais fcil nas sociedades modernas, em que j amadureceram as condies poltico-institucionais para a abertura de discursos problematizadores. Ao mesmo tempo, no verdade que o processo discursivo seja exclusivo das sociedades modernas. Esse processo est pressuposto em toda e qualquer forma de comunicao lingstica, independentemente de variaes espacio-temporais. Por menos modernas que sejam as formas de vida, no possvel imaginar uma interao comunicativa normal sem que as pretenses de validade inerentes a tal comunicao suscitem, mesmo embrionariamente, a necessidade de algum tipo de discurso. Ora, admitir a universalidade do discurso admitir a universalidade do princpio U, pois sabemos que ele deriva necessariamente de pressupostos pragmtico-lingsticos sem os quais a argumentao discursiva impossvel. Universais, enfim, so os valores materiais implcitos nas estruturas da interao e do discurso. Mesmo no sendo universalmente vigentes, so universalmente vlidos, porque aderem s estruturas universais do entendimento pela linguagem (1).III

Como toda cincia, a antropologia est sujeita jurisdio do discurso terico. Ela recolhe o seu material na observao emprica, mas a validade dos enunciados relativos a tais observaes precisa ser posta prova numa comunidade argumentativa de pares, e s depois de atingido o consenso esses enunciados podem ser considerados vlidos. Se isso verdade, j encontramos de sada um primeiro cruzamento entre a antropologia e a tica, como deixa muito claro o texto de Roberto Cardoso. Pois como qualquer discurso, o terico se estrutura luz dos pressupostos pragmticos da argumentao, e estes so em sua essncia de natureza tica. uma tica argumentativa, com uma estrutura de normas e valores que privilegiam o entendimento mtuo e incluem valores como a liberdade de todos os participantes e igualdade de tratamento no decurso do processo argumentativo. Se a objetividade dos anunciados s pode ser testada num discurso terico, a argumentao conduzida nesse discurso s ser vlida se observar a tica argumentativa.Nisso, a antropologia no difere de qualquer outra cincia. Em ltima anlise, num cho normativo que brotam os enunciados cognitivos da antropologia.Mas creio que podemos explorar mais a fundo a relao entre o quadro comunicativo e o saber antropolgico. Alm de depender desse dilogo entre pares, no dependeria a validade desse saber, tambm, de um dilogo com seu prprio objeto de estudo - a cultura que se quer conhecer?Se o compreendi bem, Roberto Cardoso responde afirmativamente (2), mas sem se estender nesse aspecto do encontro intercultural. Ele examina primeiramente outro aspecto, em que o encontro funciona para promover a mudana social. Discutirei mais adiante esse tipo importantssimo de argumentao entre culturas, mas meu interesse no momento epistmico: a relao entre o saber antropolgico e a comunicao intercultural.Penso que essa relao constitutiva da objetividade de tal saber. O antroplogo no se limita a estudar seu objeto com um olhar reificante anlogo ao usado pelo cientista natural quando se relaciona com o mundo fisico, s ento submetendo suas observaes comunidade argumentativa dos pares; o prprio saber que ele apresenta aos pares se cristaliza dialogicamente, no pela observao monolgica do povo primitivo, mas por um processo interativo em que o horizonte do cientista e o dos indivduos estudados tenderiam aproximao, sem chegarem jamais fuso. Teramos assim uma antropologia comunicativa, cuja objetividade sobredeterminada por duas intersubjetividades: na origem a que se estabelece no dilogo com a cultura, e em seguida a que se estabelece no dilogo com a comunidade cientfica.Mas antes de irmos adiante, bom deixar claro que os dois processos comunicativos no so idnticos.A intersubjetividade do dilogo entre pares simtrica, como ocorre no caso de qualquer cincia. Mas a outra, que a precede, ambgua, pois ao mesmo tempo simtrica e assimtrica. Ela simtrica, porque regida por uma tica discursiva aplicvel a todos os participantes.Os pricpios bsicos da argumentao - liberdade e igualdade argumentativas - valeriam para todos. E assimtrica, porque o estatuto dos dois plos diferente. Graas tica argumentativa, todos so sujeitos da argumentao; mas s alguns so objetos. A meta da argumentao obter conhecimentos vlidos sobre a cultura de um dos dois plos, e no sobre as duas culturas.Mas nesse caso, s a relao comunicativa entre pares merece plenamente a denominao de discurso, pois este supe a estrita simetria de estatuto entre todos os participantes. Reservaramos o nome de quase-discurso para aquelas formas de comunicao em que a simetria apenas parcial.Reformulada, a tese seria ento que a validade do saber antropolgico determinada por um discurso terico entre pares, tendo como objeto um conhecimento obtido a partir de um quase-discurso, realizado entre o antroplogo e a comunidade estudada.Esse quase-discurso seria naturalmente terico, j que seus fins so cognitivos. Mas a matria, da argumentao incluiria questes normativas, e no apenas questes de fato. O carter desse discurso seria por isso estranhamente hbrido. O antroplogo teria que ser to "dual" como o quase-discurso de que ele participa. Se quiser levar a srio o seu papei dialgico, ter que entrar no jogo argumentativo, apresentando argumentos tanto em questes de fato - a magia ou no instrumentalmente eficaz, a feitiaria pode ou no induzir doena e morte de uma pessoa? - como em questes normativas e axiolgicas - o infanticidio ou no legtimo? Em questes factuais o antroplogo se comportar como se estivesse num verdadeiro discurso terico, e em questes de legitimao, sem em nenhum momento perder de vista seu interesse cognitivo, dever entrar na argumentao sobre a validade das normas, exatamente como se estivesse num discurso prtico. A hiptese subjacente a essa metodologia que esse fogo cruzado de alegaes e refutaes acabe permitindo um conhecimento mais seguro da realidade que se quer pesquisar que o procedimento monolgico habitual, pelo qual um informante se limita a responder perguntas, sem ser provocado a defender a validade de suas crenas culturais.Mas seria lcito recorrer estratgia do quase-discurso? Afinal, toda a tradio positivista e relativista da antropologia recomenda que o investigador ponha entre parnteses os seus prprios pontos de vista enquanto realiza a pesquisa. Ele deve ser wertfrei, abordar imparcialemnte seu objeto, sem deixar que os resultados da investigao sejam afetados por sua prpria escala de valores. Uma variante dessa atitude o chamado relativismo metodolgico, o procedimento pelo qual o pesquisador age como se todos os elementos da cultura fossem vlidos, por mais que fora do contexto especfico da pesquisa ele sustente uma opinio oposta. Presume-se assim que os preconceitos culturais do observador no interfiram com a objetividade da investigao. Ora, o mtodo do quase-discurso, longe de exigir o auto-cancelamento da subjetividade do antroplogo, impe, pelo contrrio, que ele exponha sem hesitar os seus prprios pontos de vista, participando ativamente da argumentao. No estaria comprometida, com isso, a objetividade da pesquisa?

Cumpre observar, preliminarmente, que a simples afirmao de que os valores da "nossa" cultura devem ser desativados durante a observao no garante de modo algum que esse resultado seja alcanado. Todos sabemos que na prtica nenhum observador consegue, realmente, deixar de avaliar, mesmo quando julga estar apenas descrevendo, e que nessa avaliao os preconceitos culturais, mesmo inconscientemente, desempenham um papel decisivo. O relativismo metodolgico se baseia numa fico, e se expe aos mesmos impasses do positivismo: agir como se todas as culturas fossem equivalentes e como se dentro da mesma cultura todos os elementos fossem vlidos no oferece nenhuma garantia de que na prtica essa fico possa manter-se.Creio que a estratgia do quase-discurso no somente no afeta a objetividade da pesquisa como oferece perspectivas mais promissoras para evitar as distores etnocntricas.Adotada a moldura comunicativa, o antroplogo atende preocupao anti-etnocntrica que est na raiz do positivismo e do relativismo: o mero fato de escolher a via da argumentao j mostra que ele est disposto, de sada, a abrir-se aos pontos de vista do seu interlocutor, em vez de impor despoticamente suas certezas culturais. Ao mesmo tempo, a teoria comunicativa no o confronta com a exigncia impossvel de abster-se de todos os juzos de valor, ingressando na argumentao como um indivduo fora da histria e fora do espao. Ele s pode participar da argumentao, pelo contrrio, se tiver opinies, que podem ou no ser condicionadas por circunstncias de tempo e lugar, e se estiver disposto a defend-las com argumentos racionais. Ele no pode aceitar a tese relativista de que todas as opinies se equivalem, pois est convencido de que as suas so verdadeiras. Por outro lado, ele admite, como regra bsica do "jogo de linguagem" da argumentao, a possibilidade de que os argumentos do interlocutor venham a revelar-se mais convincentes, caso em que ele ajustar e rever suas prprias convices. Em suma, o investigador acredita na verdade, e por isso no ctico; mas aceita a hiptese de que seus interlocutores estejam mais prximos dela, e por isso no dogmtico. O debate livre e aberto das questes factuais e normativas, em que o antroplogo expe e rev suas opinies, facilita a emergncia de um saber terico sobre todas essas questes. Longe de ser bloqueada pela introduo no processo do ponto de vista do antroplogo, a objetividade desse saber assegurada, precisamente pela tomada de posio do antroplogo no que se refere validade das crenas cognitivas e legitimidade das normas, porque ela estimular seus interlocutores a definirem mais claramente as razes pelas quais a comunidade as aceita.Essa posio me parece conceitualmente correta, mas h evidentemente problemas de operacionalizao e dificuldades em certos casos especficos. Um bom exemplo dado pela investigao, feita por Vincent Crapanzano, de 21 racistas sul-africanos, mencionada no texto de Roberto Cardoso (3). Como aplicar o mtodo dialgico a grupos cujos valores nos inspiram tal averso que virtualmente excluem qualquer possibilidade de " fuso de horizontes" ? Como dialogar com esses grupos, e com a sub-cultura dos SS, na Alemanha nazista?Sem dvida, o quadro comunicativo pode em si mesmo resolver parte desse problema. Como ele no nos impe nenhuma " postura relativizante", no precisamos sofrer nenhum dilaceramento existencial em nosso repdio ao racismo. No precisamos atender exigncia delirante dos relativistas de justificar, ou pelo menos abster-se de condenar, os campos de concentrao e o apartheid, sob a alegao de que tais prticas fazem sentido em suas respectivas culturas, do mesmo modo que a tolerncia inter-racial faz sentido na nossa. A perspectiva comunicativa no nos probe, antes nos impe, a expresso dos nossos julgamentos de valor, nesses casos e em outros semelhantes. O antroplogo comunicativo pode enlouquecer como qualquer outra pessoa, mas se ficar esquizofrnico certamente no ser pela ciso de personalidade que se d no antroplogo relativista, que por um lado adere aos valores universalistas dos direitos humanos e por outro lado se sente obrigado por seu credo relativista a "respeitar" a validade cultural das prticas que violem esses direitos.No temos que respeitar coisa nenhuma, porque a atitude do "respeito" deriva da esfera do sagrado, onde no existe nenhuma argumentao; temos, isso sim, que tratar nossos interlocutores como seres racionais, capazes de argumentao, e a melhor maneira de prestar homenagem dignidade humana desses seres racionais inclu-los na esfera da argumentao, em vez de mant-los num santurio extra-argumentativo, como os animais ameaados de extino.Toda a questo, entretanto, est em saber se de fato vivel entrar numa relao argumentativa com certos grupos, como os afrikaaners de Crapanzano. H limites para nossa capacidade de empatia com o ponto de vista do outro. Para isso h duas respostas.Primeiro, nem sempre o quadro dialgico possvel, ou porque alguns grupos recusam, de todo, entrar numa relao argumentativa, ou porque o processo comunicativo, uma vez instaurado, no pode prosseguir devido a bloqueios internos que impedem a porosidade de uns aos argumentos dos outros. Se uma dessas condies se verificar no caso dos racistas, o assunto est encerrado, e o antroplogo recorrer a outras tcnicas para fazer sua investigao.Segundo, vale a pena tentar, apesar de tudo, e sempre que possvel, a relao argumentativa. Se os racistas aceitam argumentar, esto demonstrando alguma disposio de aceitar certas regras do jogo da argumentao, como considerar o ponto de vista do outro, e no seria razovel que o antroplogo se mostrasse mais intransigente que os prprios afrikaaners, fechando-se argumentao dos seus interlocutores. No prevejo, como resultado do quase-discurso instaurado, nem que os antroplogos se convertam ao racismo nem que os racistas se convenam da ilegitimidade do aphartheid. Mas se o dilogo no produziria qualquer aproximao no que diz respeito legitimidade do sistema normativo sul-africano, poderia produzir bons resultados do ponto de vista do conhecimento desse sistema. Afinal, nesse caso como no anterior, o quase-discurso seria terico, vinculado a fins cognitivos, e sem nenhuma dvida uma comunicao que permitisse ao afrikaaner, estimulado pelos contra-argumentos do interlocutor, expor as razes pelas quais considera legtima o apartheid, daria ao antroplogo valiosos elementos de informao sobre o lugar ocupado pelo racismo no sistema de crenas da cultura estudada, a relao entre essas crenas e o sistema socio-econmico etc.No gostaria de terminar este tpico antes de mecionar a curiosa analogia existente entre o mtodo do quase-discurso e as entrevistas clnicas realizadas com crianas, segundo a metodologia de Piaget. Na entrevista clnica, o pesquisador conta uma historieta que culmina numa ao problemtica por parte do personagem principal, e pede s crianas que tomem posio quanto legitimidade moral desse comportamento: estava certo ou errado, e por que? O interessante nessa tcnica que longe de limitar-se a registrar a resposta da criana, o pesquisador instaura com ela uma verdadeira relao argumentativa. Ele discute os argumentos da criana, tenta refut-los, procura convenc-la do ponto de vista oposto, chama ateno para certas implicaes colaterais da resposta dada, etc. A criana tem toda oportunidade de responder a esses contra-argumentos, e no fim do processo argumentativo o pesquisador chega a certas concluses sobre a maneira como a criana se relaciona com o sistema normativo, luz do seu estgio de desenvolvimento psicogentico. Em outras palavras, foi conduzido um quase-discurso, porque uma relao ao mesmo tempo simtrica, baseada na igualdade de direitos de todos os participantes enquanto sujeitos da argumentao, e assimtrica, devido diferena de estatuto entre o adulto que tem um objetivo cognitivo e as crianas que so objetos do estudo; esse quase-discurso tem como substrato uma questo normativa; so debatidas questes de legitimao, como ocorre com os discursos prticos, e visam-se fins cientficos, como ocorre com os discursos tericos (4).Voltando tica, guisa de concluso, ela duplamente determinante da objetividade do saber antropolgico, porque ela que fornece as regras de argumentao tanto para o discurso terico entre pares como para o quase-discurso que se estabelece com a cultura a ser estudada. Alm de aparecer como pressuposto pragmtico-transcendental de saber antropolgico, a tica aparece como objeto desse saber, pois o sistema normativo e valorativo da cultura precisamente um dos temas a serem investigados pelo quase-discurso.IV

Abordarei agora a tica em sua relao com a antropologia aplicada, e mais especificamente com a ao antropolgica em processos de mudana social induzida.

A primeira questo tica que se coloca saber se a mudana em si desejvel. Para alguns, seria anti-tico promover a mudana; para outros, seria anti-tico tomar partido pelo status quo.

Supondo afirmativa a resposta a essa questo, a segunda definir eticamente o tipo de mudana que se deseja: qual seria a estratgia mais tica, a baseada na importao de modelos internos ou a que tenha como foco a autonomia e auto-determinao dos interessados?O antroplogo comunicativo responde afirmativamente primeira questo e escolhe na outra o segundo termo da disjuntiva. Sim, a mudana necessria, desde que se observe o principio da autonomia dos interessados.A resposta afirmativa o coloca contra todas as concepes conservadoras, e em particular contra o tipo de conservadorismo que se manifesta em sua prpria disciplina: o relativismo cultural. A opo pelo segundo termo da disjuntiva o coloca contra todas as formas de etnocentrismo. Contra os relativistas, ele diz sim mudana, e contra a perspectiva atnocntrica ele diz que a mudana tem que ser co-determinada pelos grupos envolvidos. Sua rota clara, mas difcil: ele tem que se mover na passagem estreita que se estende entre os dois escolhos do relativismo e do etnocentrismo.Nem todos os conservadores so relativistas, mas apesar de discrepncias individuais podemos dizer que todo relativismo tende a posies conservadoras. A afirmao de que no h princpios ticos universais, de que o que vlido numa cultura no vlido em outras, de que no h padres de medida que permitam a uma cultura julgar outra, e outros itens da vulgata relativista, derivam em linha reta do historismo alemo inspirado em Herder (5). Para o historismo, toda moral finca suas razes no Volksgeist, e como cada povo tem o seu Geist, os valores so necessariamente mltiplos, nicos e incomensurveis. Ora, esse historismo foi uma reao ideolgica conservadora contra o tufo universalista que soprava da Frana. Afirmando os valores da particularidade, os historistas estavam se defendendo da razo subversiva do Iluminismo, que queria refazer em toda parte a cidade dos homens, luz de princpios universais de justia.Foi o mesmo esquema historista que levou Burke a repudiar a Revoluo Francesa, invocando "the rights of the Englishman", produzidos pela historia e portanto legtimos, em contraposio aos "droits de l'homme", universais e portanto abstratos (6). Foi o esquema que presidiu ao pensamento ultra-legitimista que se seguiu Revoluo, para o qual s existem homens particulares, e no o homem em geral, com a conseqncia de que a Declarao dos Direitos do Homem era vazia, porque no tinha destinatrios concretos (7). Foi o esquema que impregnou a escola histrica alem, para a qual s contam os valores "orgnicos", inseridos na particularidade da famlia e da nao. Foi o esquema do nazismo, que opunha a particularidade do "sangue e do solo" ao universalismo aptrida dos judeus cosmopolitas. E o esquema dos autoritarismos latino-americanos, que repudiam as "doutrinas exticas", em nome da realidade nacional.Ora, tambm esse historismo que est na base do relativismo cultural. Tambm para ele todos os valores so situados e tambm o genius loci que determina tudo o que a comunidade pensa e sente, com a diferena de que esse gnio no mais o Volksgeist, mas o Kulturgeist. Agora a cultura, e no a raa ou a nao, que define o horizonte do que pode ser visto e fornece todos os critrios de conhecimento e avaliao. O substrato romntico o mesmo, e a carga conservadora no muito diferente. preciso evitar mal-entendidos. Quando chamo de conservador o relativismo, no estou negando a imensa contribuio dessa teoria para desmoralizar a arrogncia etnocntrica dos pases avanados em seus contactos com outras culturas. Com isso, os relativistas contriburam para solapar uma das bases ideolgicas do imperialismo.Talvez Kipling no tivesse criado o conceito do "white man's burden" se tivesse lido Boas. E possvel que os franceses no tivessem tido tanta boa conscincia em sua misso auto-imposta de civilizar a Arglia se tivessem aprendido com os antroplogos relativistas, que se os rabes eram menos avanados materialmente que os franceses, era porque o "cultural focus" da cultura francesa privilegiava o progresso material, e o da cultura rabe preferia outros valores, e o que nesse sentido nenhuma das duas culturas era mais civilizada que a outra. Talvez os ingleses no tivessem massacrado os aborgenes australianos se tivessem refletido, com os relativistas, que a sofisticao do sistema do parentesco dessa cultura tal, que desse ponto de vista so os ingleses que devem ser considerados povos primitivos. Se tivessem lido Malinowski e Radcliffe-Brown, possvel (ainda que pouco provvel) que os missionrios vitorianos, deslumbrados com a funcionalidade da poligamia e da poliandria, tivessem se abstido de impor aos povos que as praticavam os ritos matrimoniais da Igreja anglicana. No posso assegurar que no apogeu da influncia relativista, por volta dos anos vinte, os pases metropolitanos tenham tido um comportamento mais virtuoso que no passado, mas pelo menos j no podiam ser imperialistas com boa conscincia, o que no pouco. Esvaziado pelos relativistas o argumento da superioridade das culturas Ocidentais, o colonialismo tinha ficado mais nu que o proverbial imperador de Andersen.Se insisto, apesar de tudo, no vis conservador do relativismo, porque seu ponto de vista favorece, de modo geral, o status quo social nas culturas no Ocidentais, e isso por duas vias, ambas radicadas no solo historista de onde deriva o relativismo cultural: a noo de que todos os critrios de julgamento moral se enraizam na cultura, e a noo correlata de que no h possibilidade de avaliao inter-cultural.Se no h princpios ticos que transcendam os preceitos sedimentados na cultura, difcil imaginar a hiptese de um julgamento moral dos valores dessa cultura, luz de princpios ticos que a ultrapassem. Com isso, todo o projeto iluminista de descentramento com relao aos valores da coletividade que est sendo questionado. O privilgio mximo da modernidade, o de julgar criticamente a prpria cultura, privado de sua base terica. Nisso, como em tudo mais, o relativismo revela suas razes historistas e anti-iluministas, porque essa posio corresponde, ponto por ponto, mais representativa das ticas historistas contemporneas: a tica comunitria.Para essa tica, no h princpios morais que ultrapassem os embutidos na comunidade. Como tantas outras variantes do pensamento conservador, essa tica surgiu como reao ao perigosssimo universalismo tico da Ilustrao, com sua noo de que o individuo podia julgar sua prpria sociedade luz de critrios universais. A tica comunitria se defende dessa ameaa, regredindo a posies pr-iluministas semelhantes s da Antigidade, para as quais a validade da moral no ia alm dos limites do cl ou da polis.O paradigma a crtica de Hegel filosofia prtica de Kant. Hegel ope ao ponto de vista da Moralitaet, representado por Kant com sua teoria do imperativo categrico, e que supe o distanciamento crtico do indivduo com relao s normas de sua sociedade, o ponto de vista da Sittlichkeit, que designa o lugar em que a razo tica j se realizou, no na interioridade de um sujeito tico mas em hbitos, costumes, instituies, que fornecem critrios concretos, objetivos e durveis para a fundamentao do comportamento moral (8).Todas as verses subsequentes do pensamento moral conservador so variaes desse paradigma, de Comte, Durkheim e Parsons aos "neo-aristotlicos" alemes, para os quais o ponto de vista universalista da Moralitaet anrquico e destrutivo de toda vida social (9).Comum a todas essas variantes o repdio aos princpios universais da moralidade, e a idia de que s a comunidade pode proporcionar princpios de julgamento moral. Substitua-se cultura por comunidade, e teremos, sem grandes alteraes, o esquema historista bsico subjacente ao pensamento moral dos antroplogos relativistas.O mesmo esquema transparece na segunda tese relativista. No somente todos os valores e normas so exaustivamente determinados pela cultura, como eles s valem nela, e no podem ser estendidos a outras culturas. A conseqncia que uma cultura no pode avaliar outra, porque no h padres de medida comuns a ambas.Essa tese fundamental para o relativismo inspirado em Boas. Cada cultura uma configurao nica, resultante da confluncia de dois fatores - a difuso, pela qual certos traos culturais se disseminam de um ponto para outro, e a seletividade, pela qual a cultura integra essas contribuies luz de sua estrutura dominante de valores, rejeitando alguns elementos, acolhendo e re-elaborando outros. Esses dois fatores operam de maneira em grande parte aleatria, imprevisvel, e portanto s por mero acaso uma cultura se parecer com outra. Cada uma um universo parte, impenetrvel aos outros (10).A tese menos rigorosa para os funcionalistas, porque h apesar de tudo um padro de avaliao: a funcionalidade, medida por certos critrios que variam de autor para autor. Para Radcliffe-Brown o critrio a coeso e a estabilidade social: a religio funcional porque sacraliza aqueles elementos da estrutura social sobre os quais se organiza a cultura, promovendo assim a coeso do grupo (11). Para Malinowski a "reduo da ansiedade": a mgica funcional porque protege contra a angstia (12). Para Harris, a adaptao ao meio fsico - a guerra funcional porque ajusta a populao s possibilidades oferecidas pelo meio (13). Mas como essa funcionalidade no aparente para os membros de outras culturas, pelo menos at que ela seja descoberta pelos especialistas, na prtica a impenetrabilidade mtua das culturas a mesma que para os boasianos.Mas essa "suspenso de julgamento" se converte subrepticiamente em aprovao apriorstica. Em boa lgica, os boasianos teriam que limitar-se a dizer que no tm elementos para dizerem se uma cultura ou no vlida. Em vez disso, dizem que todas as culturas so igualmente vlidas. Os funcionalistas poderiam julgar culturas ou traos culturais luz de sua funcionalidade, mas em vez disso usam esse critrio para justificar a posteriori o julgamento a priori de que essas culturas e esses traos so vlidos. Para eles, qualquer aspecto da cultura, por mais estranho que seja, tem sempre uma funo. O infanticdio, a vingana de sangue, a tortura, so sempre julgados funcionais, ou porque promovem a coeso social, ou porque reduzem a ansiedade ou porque tm conseqncias adaptativas. O pressuposto invarivel que h sempre boas razoes para tudo o que existe. No h muitos exemplos de algum trao da cultura que tenha sido declarado disfuncional.A metamorfose da suspenso de julgamento num julgamento positivo confirma a filiao historista e traz tona o parti-pris conservador. Nos dois casos, cada elemento da cultura valido precisamente por ser um elemento da cultura. E a reformulao, em linguagem antropolgica, da frase hegeliana de que todo real racional, que para qualquer conservador um artigo de f: o que existe provou seu direito a existir pelo mero fato de existir.Esse a priori conservador leva a uma formulao conservadora do conceito de tolerncia intercultural.Para os funcionalistas, a tolerncia se impe porque se qualquer costume em ltima anlise, funcional, toda avaliao externa s poderia perturbar esse belo equilbrio.Para os boasianos, se todas as percepes, normas e instituies so culturalmente condicionados, no h padres comuns de valor que autorizem uma cultura a criticar outra.Assim, o relativismo nos leva a aceitar "as new bases for tolerance the coexisting and equally valid patterns of life which mankind has created for itself from the raw materials of existence (14) (meus itlicos).Para outro autor, "cultural relativism is a philosophy that recognizes the values set up by every society to guide its own life and that understands their worth to those who live by them, though they may differ from one's own. Instead of underscoring differences from absolute norms that... are the product of a given time or place, the relativistic point of view brings into relief the validity of every set of norms for the people who have them, and the value these represent" (15) (meus itlicos).As duas teses relativistas - a da determinao integral pela cultura e a incomensurabilidade das culturas - bloqueiam todas as vias para a mudana. A via endgena bloqueada pela noo de que nenhum indivduo, "culturalizado" por todos os poros e at a medula dos ossos, pode erguer-se contra os valores de sua cultura, por mais irracionais que sejam; a via externa obstruda por um conceito de "tolerncia" que impede qualquer dilogo transformador com essa cultura, por um lado impossvel, porque a incompreensibilidade mtua impede qualquer acordo quanto ao que deva ser mudado, e por outro lado desnecessrio, porque todas as normas existentes so perfeitas ab initio. bvio que h um forte elemento de caricatura nessa descrio, porque a mudana social endgena um fato emprico que no pode ser negado por ningum - todos ns, relativistas ou no, temos que reconhecer que at as sociedades ditas "sem histria" tm se modificado ao longo dos sculos - e porque os aportes externos so pressupostos pela prpria lgica da difuso, sustentada pelos boasianos. Mas espero que meus amigos relativistas me concedam que a caricatura suficientemente prxima da realidade para ter algum valor descritivo.Depois da segunda guerra mundial, teve incio uma forte reao anti-relativista dentro da antropologia. Autores como Ralph Linton, Clyde Kluckhohn, Robert Redfield e Alfred Kroeber tm assinalado a falta de base emprica para a idia de uma variedade infinita das normas e valores. Ao contrrio, a observao etnogrfica mostra a existncia de um certo nmero de invariantes culturais: atrs da multiplicidade aparente, existe uma uniformidade fundamental(16).Em geral, as crticas ao relativismo tm se concentrado em suas dificuldades tericas. Por exemplo, assinala-se que o relativismo cultural no escapa ao dilema que est na raiz de todo relativismo: afirmar o relativismo negar o relativismo, porque significa dizer que pelo menos uma tese - a relativista - no relativa. E um argumento clssico, muitas vezes usado contra os cticos da variedade de Gorgias, Parmnides, Pirro, Bayle (17). No caso especfico da antropologia, o paradoxo est em que o relativismo uma atitude epistemolgica tpica da cultura Ocidental, pelo menos desde os sofistas, e que de modo algum existem nas prprias culturas primitivas, que em geral rejeitam os valores das outras culturas: ou seja, o etnocentrismo na verdade um "universal", porque partilhado por todas as culturas, e a atitude anti-etnocntrica, advogada pelos relativistas, ela prpria etnocntrica. Esses paradoxos so banais, e entediam com razo os filsofos profissionais. Mais sria a crtica de que os relativistas operam em seu trabalho de campo com uma prtica que contradiz sua teoria. Por mais que acreditem na singularidade absoluta de cada cultura, todos os antroplogos, relativistas ou no, partem da premissa tcita de que existe um hard core de traos invariantes, comuns a todos os homens, pois do contrrio no conseguiriam traduzir nas categorias de sua cultura as caractersticas da outra. Sem o pressuposto desse ncleo universal mnimo, os antroplogos no comeariam sequer a sua pesquisa, resignados de antemo a no compreenderem uma alteridade indecifrvel. Ora, no h notcia na histria de um pesquisador que depois de ter recebido um "grant" da instituio financiadora competente, tenha voltado de mos vazias, alegando que a cultura que ele fora observar era to nica que no pudera compreend-la (18).Mas no tm faltado, tambm, as crticas polticas. Logo depois da guerra, por exemplo, a guinada universalista foi alimentada pela indignao moral provocada pelos crimes do nazismo: um padro no-relativo de julgamento foi considerado necessrio para condenar essas atrocidades, qualquer que fosse o seu condicionamento cultural. Mas foi preciso esperar os anos 70 para que essa crtica poltica assumisse a forma que nos interessa agora: a de que o relativismo era intrinsecamente conservador.Foi esse o foco da " radical anthropology". Embora marcada por uma atmosfera que hoje consideramos pouco atual - a da "new Left" -vale a pena ainda ler a coletnea de ensaios contida no livro " Reinventing Anthropology", bem representativa dessa corrente. Para esses antroplogos, os relativistas partem de uma ideologia romntica, nostlgica, que idealiza, rousseauisticamente, os valores idlicos das culturas no-contaminadas pela civilizao Ocidental. Ora, muitas dessas culturas, longe de serem parasos buclicos, so sociedades miserveis e repressivas. Para preservar a pureza dessas culturas, o relativista se ope mudana social, muitas vezes contra o desejo expresso dos seus membros, que desejam, precisamente, aquelas inovaes detestadas pelos relativistas. Em nome da tolerncia, estes acabam propondo, autoritariamente, um modelo que no desejado pelos prprios interessados, e em nome do respeito dignidade de todas as culturas, recomendam sua prpria verso do apartheid: guetos e reservas, longe da infeco civilizada. Como diz um dos autores: "there is now some recognition that cultural relativism is logically incompatible with advocacy of socio-cultural change... Since relativism is applied only to aboriginal customs... relativism defines the good life for colored people differently than for white people, and the good colored man is the man of the bush" (19).Posso ser mais sinttico no que diz respeito ao segundo risco a ser evitado pela antropologia comunicativa - o etnocentrismo. Pois se essa atitude sobrevive entre alguns funcionrios governamentais e internacionais, ela virtualemtne desapareceu da antropologia. Em grande parte, foi o mrito dos autores relativistas, como assinalei. Poucos se atreveriam, hoje em dia, a sustentar as teses evolucionistas de um Spencer, de um Taylor ou de um Morgan, para os quais a civilizao Ocidental a fase mais avanada do processo evolutivo, e portanto um modelo s ser visado por todos os outros povos. A hierarquizao entre superior e inferior portanto da essncia do evolucionismo. Para ele, tanto no mundo fsico como no biolgico a tendncia geral a diferenciao do simples no complexo, do homogneo no heterogneo, o que implica a gradao na escala das coisas e dos seres. No reino animal, o homo sapiens superior aos outros seres vivos, e na espcie humana o europeu superior s demais culturas: ele mais inteligente, mais tico, mais apto a sobreviver segundo as exigncias da seleo natural.A mudana social perfeitamente consistente com essas premissas eurocntricas. Mas a lgica da superioridade europia determina o tipo de mundana considerado desejvel: intrinsecamente inferior, a cultura extica deve ser modificada segundo padres materiais e intelectuais vlidos na Europa, a partir de uma ao induzida do exterior. A mudana introduzida de fora, a partir de critrios exgenos, atravs de agentes externos, e no interesse da cultura hegemnica.Diante da Cila do relativismo e da Caribdes do etnocentrismo, a antropologia comunicativa afirma duas coisas: (a) a mudana necessria no caso de grupos materialmente carentes ou regidos por normas e instituies de carter repressivo, e (b) ela deve ser conduzida de modo a levar plenamente em conta a autonomia das populaes interessadas.A primeira afirmao a leva a contestar as premissas que esto na base da atitude relativista com relao mudana.A primeira dessas premissas, como vimos, a do determinismo cultural, a tese de que o homem de tal maneira impregnado pela cultura que no pode descentrar-se, constestanto os seus valores de base. Ora, do ponto de vista comunicativo o descentramento uma conseqncia necessria da prpria interao, cuja problematizao requer a entrada no discurso. A argumentao moral suspende a validade dos contextos espontneos de ao e submete crtica o sistema normativo e institucional. As evidncias comunitrias so postas entre parnteses. O que era inquestionado se torna hipottico, as certezas culturais se tornam problemticas. Com que direito, entretanto, o homem se julga habilitado a examinar criticamente a sua Lebenswelt - a sua "cultura" ? Com o direito que lhe concedido pela prpria forma de estrututrao da Lebenswelt. Ela atravessada por processos comunicativos que repousam em pretenses de validade, entre as quais a de carter normativo. Quando pratico um ato lingstico de carter regulativo - ordem, proibio, recomendao -estou pronto a justificar meu direito de praticar esse ato, se questionado por meu interlocutor. Na comunicao normal, se essa situao ocorrer farei essa justificao alegando que estou obedecendo a uma norma intersubjetivamente aceita. Mas se a prpria norma for contestada, esse argumento deixar de ser suficiente. Terei que ingressar num discurso prtico, no qual todos os interessados poro prova a validade da norma: uma argumentao de segundo grau, em que a norma no serve mais como justificao, pois ela prpria que precisa ser justificada. Mas se assim, ao descentrar-se o homem no est contrariando a lgica da comunicao espontnea, mas levando-a s ltimas conseqncias. Vale dizer que a prpria Lebenswelt que aponta alm dos seus limites; obedecendo forma de organizao comunicativa que rege a cultura que o homem se arroga o direito de avali-la. Em termos hegelianos, a prpria Sittlichkeit que me obriga a assumir o ponto de vista da Momlitaet - o do discurso. Argumentando sobre a cultura, no estou fazendo mais que atender, num grau mais alto de reflexividade, exigncia de justificao racional que permeia a argumentao dentro da cultura. A teoria comunicativa no est afirmando, evidentemente, que todas as sociedades j alcanaram um estgio em que esse descentramento j esteja rotinizado. No Ocidente, ele s se iniciou com a Ilustrao. O que ela sustenta que em toda parte essa virtualidade existe, pois no se trata de uma caracterstica prpria apenas cultura Ocidental, e sim de um trao invariante que adere s estruturas universais da comunicao pela linguagem. No me parece, como leigo, que a lgica argumentativa seja diversa em culturas "primitivas". As razes invocadas para justificar um ato podem ser diferentes, mas so razes. Quando um indgena alega que matou sua irm porque ela violou um norma que prescreve a exogamia, est usando um argumento que talvez no fosse aceito no Ocidente, mas est usando um argumento, que por sua vez suscita contra-argumentos por parte do interlocutor, por exemplo argumentos de fato de que segundo certas testemunhas a moa teria sido violentada, em vez de unir-se voluntariamente ao cnjuge proibido pela cultura. Se a exigncia da justificao racional se impe dentro da comunicao espontnea, admitida por todos a vigncia da norma no caso, a norma da exogamia - podemos dizer que a cultura j contm, virtualmente, a possibilidade do passo seguinte, o uso da razo comunicativa para argumentar sobre a validade da prpria norma - o discurso. Se em algumas culturas esse passo no dado, no e porque ele seja excludo pelo "cultural focus" da cultura em questo, que ao contrario do Ocidente no privilegia o valor do entendimento argumentativo, mas simplesmente porque no amadureceram ainda nessa sociedade as condies sociais que permitam o pleno desdobramento da competncia discursiva. No Ocidente, por exemplo, a atualizao dessa competncia e facilitada por instituies democrticas e regras asseguradoras da liberdade de expresso que no existem necessariamente em toda parte. Mas em todas as culturas o discurso o horizonte virtual dentro do qual se realiza a comunicao quotidiana, em que a exigncia estrutural da justificao das pretenses de validade j prev, virtualiter, a possibilidade de que essa justificao no possa fazer-se dentro do sistema normativo existente. Mas nesse caso a submisso integral do homem sua cultura, se ela realmente existe em certos casos, uma situao de fato, no de jure. Se em certas culturas o descentramento impossvel, por razes contigentes, que devem e podem ser modificadas, e no por razes necessrias. A psicologia j demonstrou h muito tempo o que ainda no claro para muitos antroplogos: que em todos os indivduos existe uma progresso, condicionada pela faixa etria, que o leva de um estgio em que a moral comunitria aceita como fundamento ltimo do julgamento tico, para um ltimo estgio, em que o homem julga segundo critrios gerais e abstratos que transcendem de todo a ordem social. As pesquisas inter-culturais provaram a validade dessa tese em todas as culturas, mas mostraram tambm que em algumas os valores culturais impem uma regresso a estgios psicogeneticamente j ultrapassados. A cultura bloqueia aquelas estruturas de personalidade exigidas pela situao discursiva (20). Mas nesse caso prestar um pssimo servio s foras renovadoras que existem potencialmente dentro de cada cultura reforar, pela absteno ou pela aprovao tcita, como fazem os relativistas, as foras que inibem a atualizao dessa competncia. O homem no pode viver fora da cultura, mas ela no o seu destino, e sim um meio para sua liberdade. Levar a srio a cultura no significa sacraliz-la e sim permitir que a exigncia de problematizao inerente comunicao que se d na cultura se desenvolva at o telos do descentramento. No somos humanos fora da cultura, mas no seremos homens libres se no pudermos sempre que necessrio assumir uma posio de exterioridade com relao ao mundo social.

Alm de no permitir pensar a mudana por vias endgenas, o relativismo no permite pens-la atravs dos encontros interculturais. A antropologia comunicativa no enfrenta a mesma dificuldade.Uma das justificativas para essa atitude relativista que no h padres comuns que permitam um acordo quanto ao contedo da mudana. A antropologia comunicativa afirma, pelo contrrio, que a comunicao visando o entendimento mtuo sempre possvel entre os homens, porque ela inerente s prprias estruturas da linguagem. E evidente que o consenso mais fcil entre interlocutores da mesma cultura, mas o ncleo mnimo de valores e traos invariantes capazes de facilitar esse consenso comum a todos os homens, ainda que implicitamente: o prprio valor do entendimento mtuo, sem o qual no se abririam processos dialgicos, e os intrnsecos a cada pretenso de validade - o da verdade, o da justia e o da veracidade. Uma vez ingressando na relao comunicativa, graas a esses valores comuns, os interlocutores podem por sua vez acercar-se cada vez mais, porque inerente comunicao o processo que George Herbert Mead (21) chamava o role taking, a capacidade de cada participante de colocar-se na situao de vida e constelao de interesses de todos os outros. Universalista, a tica comunicativa filia-se conscientemente ao universalismo da Ilustrao, e portanto acentua mais os fatores que unem os homens que os que os separam, e entre esses fatores est justamente a disposio universal para o entendimento lingisticamente mediatizado. Os homens podem compreender-se, por maiores que sejam suas diferenas culturais, porque o telos da compreenso mutua o princpio estruturador da comunicao lingstica, e porque o prprio processo comunicativo poder remover os obstculos culturais a essa compreenso. Os homens se comunicam porque so iguais e se tornam iguais porque se comunicam: nessa circularidade que se funda a teoria comunicativa para refutar a noo historista de que existem trincheiras e barricadas culturais segregando os homens em universos autrquicos.Outra justificativa para recusar a mudana pela via do confronto inter-cultural que todas as culturas, e portanto tambm a que se pretende mudar, j so vlidas a priori. A tentativa de mudana s poderia pertubar a soluo dada espontaneamente pela cultura para responder aos seus desafios de sobrevivncia. estranho que os antroplogos que dizem que todas as culturas so igualmente legtimas so em geral cidados liberais, que contraditoriamente com suas premissas no hesitam em criticar sua cultura de origem (com que direito, se todas as prticas dessa cultura, inclusive a que eles mais detestam, a do etnocentrismo, deveriam ser consideradas legtimas luz dos postulados relativistas?) mas silenciam, pudicamente, diante de aberraes nas culturas alheias que deveriam chocar sua conscincia de eleitores do Partido Democrtico ou Labour Party.A antropologia comunicativa nao tem essas inibies. Como ela dispe de uma reserva de valores que no so culturalmente condicionados, que no so especficos da cultural Ocidental, que no so impenetrveis s diferentes culturas, ela no hesita em dizer que o conceito de tolerncia que implica em considerar " igualmente vlidas" as culturas que asseguram a sobrevivncia material dos seus membros e aquelas em que grandes parcelas da populao vivem em estado de pauperismo crnico um conceito fraudulento de tolerncia. Do mesmo modo, considerar "igualmente vlidos" o parricdio e a benevolncia com os mais velhos, a mutilao clitoridiana e a emancipao da mulher, o sacrifcio ritual e o respeito aos direitos humanos, no suspender o julgamento - aprovar a prtica injusta. No uma absteno, e sim um voto a favor do status quo.A outra deformao combatida pela antropologia comunicativa - o etnocentrismo - ainda mais intolervel. O relativismo, pelo menos, adere ao valor humanista da tolerncia, por mais que ela seja vista de um modo equivocado. O etnocentrismo nega, de todo, ao povo "primitivo" a condio de sujeito. Em vez de reforar o status quo pela absteno, ele o refora pela interveno. Em vez de idealizar a cultura alheia, ele a despreza. Em vez de ajudar a promover uma mudana emancipatria, refora as heteronomias j existentes. Todo etnocentrismo um particularismo. E a agresso de uma cultura por outra, violando padres universais de justia.Por isso, o antroplogo comunicativo critica, do mesmo modo que os relativistas, a arrogncia dos evolucionistas do sculo 19 e o imperialismo que usou como libi a teoria evolucionista. Mas o foco de sua crtica outro. Os ingleses no eram universalistas demais, e sim de menos. Por no serem universalistas, exportaram para outros povos suas particularidades culturais, transformando num pseudo-universal o que na verdade se enraizava em caractersiticas de tempo e lugar. o esquema de todos os imperialismos: os valores metropolitanos so transformados, ideologicamente, em valores universais. Ora, o que h de errado nessa operao no propor o universal como quadro de referncia, e sim apresentar como universal o que de fato particular, do mesmo modo que falso, na ideologia, no afirmar a validade universal de valores como a liberdade e a igualdade - eles so de fato universalmente vlidos - e sim afirmar que esses valores j se tornaram universalmente vigentes. Contra essa agresso particularista, a resposta a liberatao pelo universal. O etnocentrismo fere o valor universal do respeito autonomia e autodeterminao do homem, ou seja, viola o princpio bsico de que todos os homens so sujeitos livres e iguais, condio universal, em qualquer tempo e em qualquer lugar, para que os indivduos possam se comunicar, dentro da cultura e entre as culturas. O relativista no tem esse recurso. Se membro da cultura agredida, s pode defender-se invocando um saber prprio, uma normatividade local. A batalha se torna indecidvel, porque so duas particularidades em conflito, sem arbitragem possvel, pois no h escalas comuns s duas. A cultura agredida, se tambm relativista, s tem como recurso entricheirar-se em sua individualidade. Ela se torna etnocntrica, do mesmo modo que o agressor, opondo ao particularismo outro particularismo, ou seja move-se em crculos, sem sada possvel, no espao particularista inventado pela cultura agressora.Feita a partir desses pressupostos, a mudana eticamente inaceitvel. Ela no se faz com base num acordo, e sim com base na imposio de modelos que no foram objeto de qualquer argumentao igualitria entre a cultura mudada e a que impe a mudana.Diante do mal-entendido relativista e da perverso etnocntrica, o antroplogo comunicativo sente-se qualificado para julgar todas as prticas que violem a tica material subjacente s estruturas formais da comunicao pela linguagem: os valores universais do entendimento mtuo, da concrdia, da igualdade, da ausncia de coao, dentro da prpria cultura e fora dela. Pois ele nem idealiza o Ocidente nem o critica a priori, nem transforma as culturas alheias em jardins do den nem as diaboliza.Em conseqncia, ele denuncia como etnocntricos tanto os missionrios europeus que queriam evangelizar os chineses como os letrados confucianos que consideravam brbara a cultura de onde vinham esses missionrios. Ele d razo aos ingleses quando proibiram a prtica indiana de queimar as vivas na fogueira e os condena quando massacraram as populaes indgenas.Em cada um desses exemplos, a crtica se faz a partir dos valores trans-culturais de tolerncia, de liberdade, de ausncia de discriminao: a imparcialidade do julgamento garantida pelo carter no-particularista do padro de medida. verdade que opinies desse tipo tm pouco valor se se limitam ao foro ntimo de quem formula esses juzos. Ora, o quadro comunicativo nos impe a intersubjetividade da argumentao. Todas essas opinies so provisrias, enquanto no forem postas prova na relao argumentativa. Elas so, num sentido etimolgico, sem inteno pejorativa, "preconceitos" - opinies preliminares.Esses pr-julgamentos no so arbitrrios, porque se baseiam em valores no-arbitrrios, ao contrrio dos preconceitos relativistas e eurocntricos. Mas s deixaro de ser pr-julgamentos quando se converterem em julgamentos validados pela argumentao. essa exigncia que distingue a perspectiva comunicativa tanto da relativista como da etnocntrica.Esse o nervo da questo: essas duas perspectivas excluem de todo a moldura comunicativa.O etnocentrismo desqualifica ab initio, enquanto interlocutores, os membros da cultura considerada, porque eles so definidos de sada como inferiores e portanto incapazes de argumentao. O relativismo opera a mesma desqualificao, seja porque o dialogo impossvel (no podemos compreender as culturas alheias) seja porque ele redundante (j sabemos, antes de qualquer argumentao, que tais culturas so vlidas).Na origem da atitude etnocntrica est a intolerncia. Ela torna o dilogo impossvel. Na origem da atitude relativista est uma certa concepo de tolerncia. Ela torna o dilogo suprfluo. Nos dois casos, nega-se o valor de base tica comunicativa, fixado por Kant para seu tempo e o nosso: o atingimento da maioridade (Muendigkeit), o uso da prpria razo sem tutelas alheias (22). Em outras palavras, o ideal da maioridade substitudo pela estratgia da infantilizao.O etnocentrismo infantiliza os homens quando os declara intrinsecamente incapazes de argumentao.O relativismo os infantiliza por uma concepo de tolerncia que o oposto da que foi recomendada pela Ilustrao e que nessa forma um dos valores bsicos da conscincia civilizada. A frase atribuda (incorretamente) a Voltaire, de que ele no concordava com uma nica palavra do interlocutor mas defenderia at a morte o seu direito de diz-la, ilustra bem uma concepo de tolerncia fundada em premissas comunicativas. O autor da frase no dizia que todas as opinies eram igualmente vlidas; ele discordava das opinies do interlocutor, acreditava pronfundamente que as suas eram mais verdadeiras, e estava disposto a defend-las pela argumentao, o que supunha, como corolrio, a liberdade de expresso integral para os dois participantes do processo comunicativo. A tolerncia comunicativa supe tratar todos os homens como adultos, com opinies que eles tm o direito de defender pela argumentao; a tolerncia relativista implica em excluir do mbito argumentativo os membros de certas culturas, infantilizando-os. Dizer a priori que todos os aspectos de uma cultura so legtimos dispensa seus integrantes de argumentarem a favor dessa legitimidade. Os "nativos "so elogiados - sua cultura vlida a priori - e em seguida convidados a brincar em sua reserva ecolgica.Entre uma infantilizao baseada no a priori de que certas culturas so inferiores e a baseada no a priori de que elas so portadoras de uma sabedoria espotnea (o mito da criana no-pervertida pelo mundo adulto o correlato rigoroso do mito rousseauista do primitivo no-contaminado pela civilizao) o antroplogo comunicativo recusa, de todo, a estratgia da infantilizao. Todos os homens so ou devem tornar-se iguais, sim - alle Menschen werden Bureder - mas so iguais por serem dotados do atributo comunicativo por excelncia, a Muendigkeit, que supe o direito a capacidade de apresentar argumentos e de refut-los.Essas consideraes permitem compreender a atitude da antropologia comunicativa com relao mudana social induzida. Opondo-se ao relativismo puro, ela acredita que a mudana atravs do contacto inter-cultural possvel e desejvel. A partir de suas premissas anti-etnocntricas, ela s aceita esse contacto sob uma forma dialgica. exatamente a posio de Roberto Cardoso. Para ele, a mudana deve ser definida no interior de uma comunidade inter-cultural de argumentao. Sua inspirao o conceito de etnodesenvolvimento, concebido como uma alternativa aos modelos ortodoxos de desenvolvimento elaborados por tcnicos e funcionrios governamentais e internacionais. Segundo a Declarao de San Jos, de 1981, o etnodesenvolvimento envolve o "fortalecimento da capacidade autnoma de deciso de uma sociedade culturalmente diferenciada para orientar seu prprio desenvolvimento e o exerccio da autodeterminao". J , implicitamente, a noo de comunidade argumentativa, pois s pelo dilogo podero os "etnodesenvolvimentistas" compatibilizar seus objetivos profissionais com os princpios da autonomia e autodeterminao dos grupos interessados. E perfeita, portanto, a concluso de Roberto Cardoso de que " o conceito de etnodesenvolvimento contm, ainda que subjacente, a idia da existncia de uma comunidade de argumentao, no mais inter-pares, porm entre grupos e indivduos portadores de culturas distintas... inseridos em situao inter-cultural". (23)

Qual o objetivo da mudana a ser promovida atravs dessa comunidade de argumentao? De novo, o conceito de etnodesenvolvimento d uma resposta clara: o atendimento das necessidades sociais bsicas. A comunidade inter-cultural definiria programas concretos para a melhoria das condies materiais de vida da populao.

Mas esse objetivo, por crucial que seja, no pode ser nico. A mudana deve visar o atendimento das necessidades materiais bsicas, sem dvida. Mas tambm visa aumentar os espaos de liberdade dentro da cultura, o que pode exigir, ainda que no necessariamente, a transformao da esfera normativa. Ora, a aparece a primeira dificuldade com o conceito de etnodesenvolvimento. Pelo menos na formulao de Stavenhagen, o etnodesenvolvimento implica uma tomada de posio prvia a favor da normatividade existente. A melhoria das condies de vida deve ser promovida sempre que possvel no interior da tradio. Como princpio geral, ele recomenda o uso e aproveitamento "das tradies culturais existentes". A hiptese de que essa tradio contenha momentos fundamentalmente repressivos, e que portanto eles estejam entre aqueles aspectos do sistema social que precisam ser mudados, no parece ter ocorrido a Stavenhagen. Como hispano-americano, a posio de Stavenhagen compreeensvel. Sua angstia com a descaracterizao da cultura pr-colombiana pelos colonizadores espanhis legtima, mas esse exemplo precisamente o paradigma tpico-ideal daquela mudana heternoma que a teoria comunicativa rejeita. Qual a objeo possvel a uma mudana autnoma, determinada pelos prprios interessados, em dilogo, e no em competio, com representantes de outras culturas?

Racionalmente, nenhuma. A objeo feita por muitos autores, mas ela no racional, porque deriva de uma ideologia e no de um argumento: a ideologia historista.

O historismo inverteu o vnculo do Iluminismo com a tradio. Para o Iluminismo, a tradio era a esfera por excelncia da heteronomia, que submetia o homem tutela do sagrado, impedindo-o de pensar por si mesmo. A bandeira mais alta do Iluminismo, o supere aude kantiano, era um grito de guerra contra todos os elementos de poder ilegtimo encrustados na tradio. Essa era a essncia da Idelogiekritik iluminista: desmascarar os dogmas e mitos pelos quais a tradio perpetuava a minoridade dos homens, sujeitando sua razo tutela da autoridade. Pensar por si mesmo libertar-se do prjug - opinio sem julgamento, na definio de Voltaire - e a tarefa da tradio justamente a de fornecer opinies j prontas, que dispensem o homem da difcil tarefa de reflexo autnoma. O hostorismo reabilita a tradio, e ao faz-lo re-sacraliza o mundo que o Iluminismo tinha secularizado. A tradio no mai aquilo do que devemos nos libertar, mas a matriz uterina que nos envolve do nascimento morte e que no podemos descartar sem riscos individuais e coletivos. Somente dentro da tradio o homem plenamente humano.

a anttese da atitude comunicativa. Sem dvida, nos contedos semnticos da tradio que nos abastecemos das interpretaes necessrias para a comunicao quotidiana, mas sua validade est permanentemente sub judice, e a todo momento est sujeita investigao discursiva. Para a teoria comunicativa, a proposio de que como princpio geral devemos respeitar a tradio vazia de significado. Virtualmente, a ao comunicativa j crtica da tradio, e essa virtualidade se atualiza sempre que ingressamos no discurso. Por outro lado, ela no se atualiza quando a fora da tradio to desptica que no permite a abertura de discursos problematizadores.

Ela pode ser to hegemnica em determinadas sociedades que bloqueia a prpria percepo de que existe algo a problematizar. Foi a situao que prevaleceu antes da Ilustrao e continua prevalecendo hoje em muitas sociedades. E nisso, tecnicamente, que consiste a ideologia: um sistema monoltico de representaes, cuja funo inibir, pela falsa conscincia que elas induzem, a instaurao de processos discursivos. O discurso, cuja funo criticar a tradio, obstrudo pela prpria tradio. Longe de combater a Entzauberung iluminista, portanto, como fazem todos os historistas, a teoria comunicativa reivindica a Entzauberung como objeto do discurso e como condio bsica para a atualizao da competncia discursiva. Ela no levou a nenhuma "perda de sentido", Sinnverlust, como afirma Weber. Ao contrrio, tendo emancipado o homem de um "sentido"imposto heteronomamente, a de-sacralizao habilitou-o a fundar, em confronto dialgico com seus semelhantes, um novo horizonte de significaes.

Por isso no h por que no incluir, como segunda funo da comunidade argumentativa, a crtica da tradio normativa. Crtica no significa rejeio a priori: significa exame, e possivelmente validao da norma. Inserida numa comunidade inter-cultural, essa instncia crtica ter carter tambm inter-cultural. Mas pode contribuir para acelerar processos argumentativos internos cultura a ser mudada, que dispensem com o tempo a cooperao da outra cultura, ela pode facilitar a emergncia e institucionalizao dos processos discursivos que at ento tinham permanecido embrionrios por falta de estmulos externos. Um dos efeitos da mudana normativa inter-cultural seria ento o de ajudar a cultura a atingir mais rapidamente o estgio em que a crtica interna da tradio se rotinize, passando da argumentao dentro do sistema normativo existente argumentao tendo esse sistema por objeto.

Nada disso assusta o antroplogo comunicativo. Tendo se libertado da autoridade do sagrado, ele no considera sacrlego o exame das normas e valores - ele escreve monografias sobre o tabu, mas no o pratica - e tendo concludo seu dipo com relativo sucesso, no investe a esfera da tradio com atributos maternos que a tornem invulnervel crtica.

Isso posto, a comunidade argumentativa inter-cultural teria duas funes: a satisfao das necessidades bsicas da populao e a crtica seletiva das normas e valores. Conceitualmente separveis, as duas funes se imbricam na mesma prtica dialgica. Dialogando sobre os programas destinados melhoria das condies materiais de vida, os antroplogos (ou autores com uma viso antropolgica) dialogariam tambm sobre o contedo e a validade das normas. Esse quadro dialgico nico com duas funes entrelaadas estaria sujeito aos princpios gerais da tica argumentativa: participao livre e igualitria de todos os interessados e livre exame por todos de todos os argumentos. Quando se discutissem especificamente questes de legitimao, as regras do princpio U serviriam como critrios pragmticos para avaliar a validade de normas.

Recordo o enunciado do princpio U: "Todas as normas vlidas precisam atender condio de que as conseqncias e efeitos colaterais que presumivelmente resultaro da observncia geral dessas normas para a satisfao dos interesses de cada indivduo possam ser aceitos no-coercitivamente por todos os interessados".

O grande mrito dessa regra, no caso dos confrontos inter-culturais, que ela d a palavra aos indivduos concretos que compem a cultura, em vez de consider-la como um bloco, que como tal sempre "vlido" ou "funcional" . Estariam as vtimas de certas normas repressivas de acordo com esse julgamento?

As normas que maltratam a mulher, por exemplo, tm como todas as outras uma razo de ser para os relativistas. Quando os rabes do Jordo matam uma mulher que ficou grvida fora do casamento, mesmo quando a gravidez se deve ao estupro, quando a mulher adltera assassinada pelo marido em certas regies (a Calbria, digamos, para no ofender nossas susceptibilidades nacionais) ou quando a mulher indgena, na Vezenuela, violada periodicamente por parte da tribo, o relativista diria que todas essas prticas so vlidas, porque correspondem aos valores da cultura, e abster-se delas seria expor os indivduos desonra. A concluso implcita, e s vezes explcita, que a prpria mulher se sentiria infeliz se um bom samaritano tivesse tido a idia etnocntrica de acudi-la, como aquela personagem de Molire, que espancada pelo marido insulta seu salvador, indignada: " Et moi je veux qu'il me batte, moi!" Perfeito. O uso do princpio U poderia elucidar a questo. Pois essas normas s sero consideradas vlidas se todos os interessados (e interessadas) participarem da argumentao; se nenhum deles (sem excetuar as mulheres) fr coagido; e se nenhum participante (inclusive do sexo feminino ) rejeitar os efeitos da observncia dessa norma para os interesses de cada um (e cada uma). Pessoalmente, acho improvvel que o relativista encontre entre essas mulheres aliadas para a tese de que todas as solues normativas encontradas pela cultura so igualmente vlidas. Confesso que ficaria um pouco atnito se visse uma das participantes da argumentao reinvindicar seu direito cultural a ser espancada, brandindo convulsivamente um exemplar de Man and his Works, de Herskovits. Pode acontecer. Nesse caso, eu teria que imitar o benfeitor desastrado da comdia de Molire, depois que a mulher diz que faz questo de ser surrada pelo marido: "Ah! j'y consens de tout mon coeur!" (24).

Ingressando na argumentao normativa, o antroplogo no est proibido de ter um pr-julgamento, baseado em seus pressupostos universalistas, sobre o contedo e a natureza da transformao a ser estimulada. Ele no est proibido de achar indesejvel um estado de coisas em que uma parte da populao aterroriza a outra, por mais que seu treinamento funcionalista anterior o predisponha a admirar a sabedoria da cultura que resolveu de modo to eficiente os seus problemas adaptativos.

Mas estaria sendo infiel aos seus pressupostos no-etnocntricos se participasse de processos de transformao com base exclusiva nesses pr-julgamentos. Eles s sero julgamentos vlidos se no forem refutados por contra-argumentos convincentes por parte dos membros da cultura. O pr-julgamento se situa no incio, no no fim do processo argumentativo.

Assim, o antroplogo apresentar argumentos contra uma norma que ele considere injusta - o infanticdio, por exemplo - e ouvir contra-argumentos. Talvez alguns deles sejam apresentados por "funcionalista" indgenas: sem essa norma, a sobrevivncia material do grupo ficaria comprometida pelo excesso de populao. Outros, mais bem informados sobre o que se passa na cultura "civilizada", comparariam o infanticdio prtica do aborto, tolerada no Ocidente ou reivindicada como direito legal. Como o encontro inter-cultural tem duas mos, esses argumentos podem impressionar o antroplogo, levando-o a matizar seu pr-julgamento. Sem abdicar de sua convico universalista do valor supremo da vida, em todas as latitudes, ele pode achar razovel, exatamente em nome do respeito vida, o argumento de que a suspenso da norma criaria situaes de escassez que vitimariam milhares de pessoas. E claro que apesar disso ele alegaria que o primeiro vetor da comunidade argumentativa voltada para a mudana - o destinado a melhorar as condies materiais de vida -atenderia mais eficazmente a esse problema aumentando a produtividade da agricultura. Mas no deixaria de considerar racional o argumento do interlocutor. De resto, o prprio enunciado do princpio U o levaria a pesar as repercusses a longo prazo da eliminao da norma; a clusula de que os participantes precisam aceitar "as conseqncias e efeitos colaterais" da observncia da norma, introduzida por Habermas para deixar claro que a tica discursiva uma tica da responsabilidade, no sentido de Weber, e no uma tica da convico, o foraria a considerar a hiptese de que a norma em questo pode ser efetivamente funcional, medida por certos parmetros.

S resta lembrar, em concluso, que por sua prpria natureza a relao argumentativa exclui solues impostas. Se a cultura no se convencer, de todo, dos argumentos apresentados, s cabe registrar a ausncia de consenso e encerrar o exerccio inter-cultural. Em qualquer hiptese, ele no ter sido intil: a argumentao inter-cultural pode contribuir para desencadear processos argumentativos internos cultura, levando-a a promover por seus prprios meios as mudanas materiais e normativas que ela considere apropriadas.

V

Subjacente a tudo o que foi dito at agora existe um leitmotiv incmodo, que certamente ter provocado no leitor um certo desconforto: o carter parcialmente assimtrico da relao argumentativa. Por mais que se diga que todos os participantes so sujeitos da argumentao, a mesma igualdade de estatuto no se verifica quanto matria da argumentao, que unilateral. Tanto na argumentao terica como na que visa a mudana, o objetivo conhecer ou transformar uma das culturas, e no as duas. Nos dois casos, se todos so sujeitos - por isso a relao simtrica - s alguns so objetos - por isso ela assimtrica.

Sem dvida, essa assimetria atenuada pelo prprio carter dialgico da relao. Deixando-se permear pelos argumentos do interlocutor no quase-discurso terico, o antroplogo aprende a conhecer melhor sua prpria cultura, e ouvindo argumentos convincentes a favor da legitimidade das normas alheias, ele se d conta do que precisa ser revisto em suas prprias normas.

Mas dito isto, continua sendo verdade que no tipo de confronto inter-cultural que examinamos at aqui, a inteno o conhecimento e a transformao do outro e no dos dois plos da relao.

uma situao indesejvel. O encontro inter-cultural deveria ser capaz de funcionar nas duas direes. Presumivelmente o que ocorre quando as duas culturas so equivalentes em poder e influncia. Pode-se conceber que num encontro entre a cultura flamenga e a francfona, na Blgica, o objetivo da reversibilidade no seja inacessvel. O mesmo no acontece no gnero de confronto que estamos investigando. Pois aqui as duas culturas no so, simplesmente, iguais em poder.

A tica comunicativa no pode se esquecer dessa verdade elementar. Limitando-se a proclamar o princpio abstrato da igualdade de todos os sujeitos da argumentao, ela estaria cometendo a mesma ingenuidade dos liberais, que depois de dizerem que todos os homens tm os direito de fundar um banco, se esquecem de que esse direito tem um sentido prtico muito diferente para um bia-fria e para um membro de famlia Rotschild. Um antroplogo pode estudar a cultura Navajo porque recebeu um financiamento da Fundao Ford, mas a cultura Navajo no tem como financiar um pesquisador nativo que deseje estudar a sub-cultura dos antroplogos da Universidade de Harvard. Nisso, importa pouco que a antropologia seja ou no comunicativa. Nosso indgena poderia ter lido Habermas e estar disposto a ser paciente com seus objetos de estudo, evitando todo etnocentrismo, compreeendendo com grande delicadeza de sentimentos os dramas e ansiedades dos universitrios americanoss; ouvindo com muita abertura os argumentos dos seus interlocutores sobre a Validade de normas exticas como as que reagem a ascenso acadmica e a competio entre os pares, nada disso adiantaria muito: no basta querer ser dialgico para ter a oportunidade efetiva de exercer uma tica dialgica.

Mas na falta de soluo mais satisfatria; essa dificuldade poderia ser mitigada se o antroplogo dedicasse maior ateno a estudar sua prpria cultura. De alguma maneira, ele estaria assim contribuindo para compensar a unilateralidade de sua maneira habitual de conceber o encontro entre as culturas, na qual s a indgena objeto de investigao. Sabemos que no h grande novidade nisso, porqu o foco "indigenista" h muito deixou de ser exclusivo na antropologia. Mas no estou me referindo aqui aplicao de tcnicas antropolgicas para o estudo das favelas, por exemplo/porque embora estas estejam inseridas num meio urbano, a relao entre essas comunidades " atrasadas" o investigador no seria muito diferente da que este mantm com uma cultura primitiva. Penso no exame das prprias instituies "civilizadas", que agora seriam tratadas como se fossem as de uma Sociedade indgena, com seus mitos, seus rituais, suas prticas econmicas e polticas, e seus sistemas de valores, muitos dos quais parecem pouco defensveis luz de princpios universais de justia.

Mais uma vez o quadro comunicativo seria apropriado. De novo o antroplogo seria o plo ativo da relao, com a diferena de que agora o " indgena" seria O prprio membro da cultura que pertence o pesquisador. De novo, seria instaurado um quase-discurso terico, ao cabo do qual seria obtido um saber vlido. De novo, haveria uma argumentao prtica visando validao das normas. De novo, a relao seria simtrica e assimtrica ao mesmo tempo, porque se por um lado todos seriam regidos pelos princpios da tica discursiva, por outro lado o objetivo seria conhecer e transformar um dos plos e no ambos.

Qual seria o grupo a ser objeto dessa argumentao?

No excluo que seja a prpria sociedade global, considerada como um macro-agrupamento. H um estudo antropolgico clssico sobre o Japo que mostra a viablidade desse projeto (25). claro que nesse caso o dilogo no poderia se dar no mesmo nvel que p que se realiza com uma comunidade pequena e pouco diferenciada,mas exatamente o que se passa no discurso terico entre pares. O discurso terico no uma assemblia de sbios que se rene para discutir uma teoria em torno de uma garrafa de skerry, como nas universidades inglesas. uma comunidade sem contornos pessoais definidos, a raesonnierende Oeffentlichkeit de Kant, cujos membros no conhecemos obrigatoriamente e com que trocamos argumentos atravs de artigos, livros e conferncias, e no necessariamente atravs de uma relao dialgica face a face. Seria essa a "outra cultura" com a qual estabeleceramos a relao argumentativa, objeto de saber e avaliao, e no mais co-participante de um exerccio simtrico de validao.

Mas reconheo que a relao com interlocutores to difusos teria algo de fantasmagrico. Seria menos inslito, luz dos mtodos de trabalhos habituais dos antroplogos, se a relao argumentativa se estabelecesse com grupos definidos dentro da sociedade moderna, pertencentes a subculturas especficas, como a dos tcnicos, dos polticos, dos burocratas (como o autor deste artigo) e os cientistas, entre os quais os prprios antroplogos. Deve ser fascinante estudar os ritos de passagem desses grupos, seu sistema de representaes simblicas, e sobretudo o seu repertrio de mitos, entre os quais o mito da neutralidade do investigador e o da igual validade de todas as culturas.

Em suma, alm de estabelecer uma relao comunicativa em que a cultura alheia figurasse como objeto, o antroplogo estabeleceria uma relao cujo objeto seria sua prpria cultura.

No primeiro caso, ele um estrangeiro, que quer conhecer e avaliar a cultura alheia. Depois dos argumentos e contra-argumentos, haveria uma fuso tendencial de horizontes, nos dois nveis, graas qual ele concluiria o julgamento terico e a avaliao normativa.

No segundo caso, a posio do "estrangeiro" est vazia, e o antroplogo a ocupa. Ele se transforma num forasteiro em sua cultura. Aliena-se, no sentido positivo da Verfremdung brechtiana, convertendo-se num aliengena, capaz de se surpreender com o que no assombra ningum, de fazer perguntas que ningum faz, de perceber o que as evidencias locais impedem que seja percebido. Ele o estrangeiro de Kafka, que decifra no mais familiar a presena do mais enigmtico.

Nesse mundo invertido em que "indgena", representado pelo antroplogo, que conhece e avalia civilizado, aquele assume o ponto de vista cultural do Outro e faz-se Outro em sua prpria casa. Terminada a argumentao, h tambm uma aproximao de horizontes,como ocorreu no primeiro dilogo. Neste, o antroplogo era realmente um estrangeiro, qu termina por "compreender" o nativo, assimilando-se parcialmente a ele; aqui, ele era um falso estrangeiro, que no final da argumentao reencontra, modificada, sua identidade como cidado da cultura de que ele tinha se alienado.

So duas maneiras de descentrar-se. Ele sai de si para conhecer o outro e sai de si para conhecer a si mesmo.

Com isso, ele ajuda as duas cultura a se descentrarem tambm. Ele se descentra nelas e elas nele. Terminada a argumentao, cada uma das culturas fica menos particularista e mais aberta compreenso recproca:

Isto evidente quanto cultura alheia. O antroplogo se abriu ao ponto de vista dessa cultura, mas o role taking funciona rias duas direes. Ouvindo os argumentos do antroplogo em defesa de suas convices, a cultura tambm se modifica. O antroplogo deixou em parte de ser estrangeiro, mas a cultura deixou em parte de ser nativa.

No caso da cultura Ocidental, o descentramento duplo. Atravs do primeiro processo dialgico - o que tem por objeto a cultura alheia -ela s expatria, n sentido geogrfico. Ela viaja para outro solo e desfaz-se em parte de suas certezas. Atravs do segundo processo dialgico - aquele em que ela objeto - ela viaja dentro de si mesma. Ela se cinde em dois, desdobra-se numa instncia que v, dotada de um olhar estrangeiro - o olhar etnogrfico - e outra instncia que Vista, objeto de saber, de crtica e de desmascaramento. Graas a isso, ela se percebe em toda a sua contigncia, em toda a pobreza do seu particularismo. Ela acede perspectiva do Outro e de todos os Outros que integram a comunidade inter-cultural do gnero humano.

So as duas modalidades clssicas de descentramento adotadas pela Europa desde o incio dos tempos modernos. O europeu se descentra quando viaja para outros pases e quando representantes de outras culturas viajam Europa. Ele aprende quando vai ao Outro e quando o Outro vem at ele. Nesse aprendizado, ele se desprende dos seus preconceitos locais e ascende ao plano universal.

O mais belo exemplo do descentramento do primeiro tipo o proposto por Rousseau. Numa nota do Discours sur l 'Ingalit, ele recomenda que em vez de permanecerem confinados em seu pas natal, os homens viajam ao encontro de outros povos, "secoulant le joug de leurs prjugs nationaux", a fim de "apprendre connatre les hommes par leurs conformits et leur diffrences, et acqurir ces connaissances universelles qui ne sont point celles d'un sicle et d'un pays exclusivemment, mais qui, tant de tous les temps et de tous les lieux, sont pour ainsi dire la science commune des sages" (26). O sbio no viaja para comprovar a tese relativista de que suas opinies e as alheias so todas igualmente vlidas, mas para alcanar, "sacudindo o jugo dos seus preconceitos nacionais", um saber que no seja o de "um sculo e de um pas exclusivamente", mas que pertence " a todos os tempos e todos os lugares".

O segundo descentramento ocorre quando o estrangeiro visita a Europa. Desde Montaigne, um tema clssico da literatura Ocidental.

Em seu famoso captulo dos Cannibales, nos Ensaios, Montaigne descreve um ndio brasileiro que visitara a Frana no tempo de Henrique IV. Montaigne se deslumbra com a lucidez desse selvagem, com a justeza do seu julgamento, com sua alta moralidade. O ndio observa tudo e comenta tudo o que v, relativizando todas as instituies europias luz dos critiros universais do direito da natureza, que o de sua cultura. Marxista avant la lettre, esse contemporneo de Villegaignon declara que em toda parte tinha "apperue qu'il y avait parmi nous des hommes pleins te gorgez de toutes sortes de commoditez, et que leurs moitiez estoient meddinas leurs portes, dcharnez de faim et de pauvret; et trouvoient estrange como ces moitiez icy necessiteuses pouvoint souffrir une telle injustice, qu'ils ne prinsent les autres la gorge, ou missent le feu leur maison" (27).

Montesquieu usa a mesma tcnica nas Cartas Persas. Dois persas, Rica e Usbek, visitam a Frana da Regncia, e zombam das normas e costumes da Europa, reiativizando-as e mostrando seu lado particularista, luz das normas invariveis do direito natural (28).

Voltaire tratou em pelo menos duas ocasies o topos do estrangeiro lcido, em Micromgas, quando um habitante de Sirius visita a Terra, e no Ingnu, em que um huro norte-americano viaja para a Frana. Tambm aqui perspectiva a universalista. No se trata de mostrar que franceses e hures tinham escalas de valor prprias e incomensurveis, mas de ilustrar a validade, para franceses e hures, de padres universais de moralidade, transgredidos pelos franceses, e dos quais os hures estavam mais prximos (29).

Todos esses exemplos sao fictcios, e incluo nessa categoria o ndio de Montaigne, embora seja um fato histrico que depois da fundao da Frana Antrtica vrios indgenas brasileiros foram levados Frana. Todos eles so falsos estrangeiros, persas e hures de opereta, na verdade mscaras do europeu quando ele se pe em postura auto-reflexiva. So artifcios pela qual a cultura europia assume uma posio de excentricidade com relao a si mesma, vendo-se de fora.

O antroplogo comunicativo herda essas duas formas de descentramento e graas a elas contribui para o descentramento da cultura alheia e da prpria.

Na primeira, ela viaja ao estrangeiro. o sbio de Rousseau. Ele se descentra, assumindo em parte a perspectiva de cultura alheia; ajuda essa cultura a descentrar-se, confrontando-a com uma escala de valores diferente da sua; e favorece a descentrao da cultura prpria, mostrando o particularismo das suas opinies.

Na segunda, ele se expatria em sua prpria casa. O antroplogo se descentra, transformando-se em estrageiro. o persa de Montesquieu. E ajuda a descentrar-se a cultura da qual se alienou, submetendo-a a um olhar crtico que a priva de suas iluses etnocntricas.

Com isso, a antropologia comunicativa no atingiu ainda a meta da reversibilidade, que s poder ser alcanada quando as duas comunidades forem suficientemente iguais em poder para que qualquer uma delas possa tomar a iniciativa de estabelecer com a outra um encontro inter-cultural e para que ambas possam ser objetos de saber e de avaliao.

Mas ele pode contribuir para isso estabelecendo relaes argumentativas em sua cultura, de modo que tambm ela, e no apenas a primitiva, seja investigada e julgada. Os dois processos dialgicos se completariam, e a mediao seria dada pelo plo comum a ambos, o antroplogo, cidado dos dois mundos, exilado nos dois, que por no ser mais puramente Ocidental representaria em sua cultura o ponto de vista indgena, e por no poder tornar-se de fato um verdadeiro indgena representaria junto a ele o ponto de vista Ocidental. Descentradas graas aos dois circuitos argumentativos, as duas culturas se aproximariam, porque deixaram de ser estanques uma para a outra.

Estariam assim criadas condies necessrias para a reversibilidade, embora no sejam condies suficientes, porque a remoo da assimetria estrutural exige medidas polticas que transcendem em parte o mbito argumentativo.

Quando isso acontecesse, a argumentao cognitiva inter-cultural teria o carter de um verdadeiro discurso, e no de um quase-discurso, e a argumentao prtica incidiria sobre a estrutura normativa das duas culturas, e no apenas de uma.

Generalizada essa reversibilidade para todos os encontros entre culturas, estaria atingido o grande ideal tico da concepo comunicativa: estabelecimento efetivo, e no somente pressuposto, de uma comunidade argumentativa universal.

VI

Em resumo, a tica est na origem do saber antropolgico, tanto no nvel da interao quase-discursiva entre o etnlogo e a outra cultura, como no nvel do discurso entre pares.

Est na origem do processo de transformao social induzida: a tica que leva a antropologia a participar de processos de mudana social, pois em nome de princpios morais que ela recusa o status quo em certas culturas; a tica que condiciona uma certa concepo de mudana, baseada na autonomia das populaes interessadas; a tica que fornece o quadro para organizar a comunidade argumentativa com fins transformadores, tanto no plano da argumentao em geral como no caso especfico da mudaa normativo-institucional.

Enfim, a tica argumentativa que rege o estabelecimento de processos dialgicos tendo por objeto a cultura Ocidental, e o ideal tico da reversibilidade plena que impulsiona em direo a uma comunidade argumentativa universal, em que todas as culturas possam se enriquecer com as formas especficas encontradas por cada uma para realizar os valores universais em que se enraiza a comunicao humana.

Vinculada a uma tica universal e visando uma comunicao universal, a antropologia passaria a ser o que Rousseau queria que ela fosse: a science communme des sages.

(1) De Juergen Habermas, cf. principalmente Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kommunikative Kompeunz, em Theorie des Gesellschaft oder Soziakechnologie (Suhrkamp, 1971); Theorie der Kotnmunikative Handelns (Suhrkamp, 1981); Vorstudien und Ergaenzungen zur Theorie des Kommunikative Handeln (Suhrkamp, 1984); e Moralbeweusstesein und Kommunikative Handeln (Surhkamp, 1983). De Karl-Otto Apel, cf. Transformation des Philosophie (Surhkamp, 1976) e Diskurs und Verantwortung (Suhrkamp, 1988). Vide tambm, do autor, tica iluminista e tica discursiva (Tempo Br