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Revista Eletrônica Correlatio v. 12, n. 24 - Dezembro de 2013 DOI: http://dx.doi.org/10.15603/1677-2644/correlatio.v12n24p117-136 Ética e moral na teologia filosófica de Paul Tillich: Uma Abordagem Geral e Introdutória. Paulo Ronaldo Braga Leal RESUMO A intenção peculiar da pesquisa é apresentar as características funda- mentais da ética e moral tillichianas, desde seu ponto de partida nas origens míticas de Gênesis (a transição da essência à existência) até os trabalhos que acentuam mais as conseqüências das relações humanas com base nas estruturas ontológicas que perfazem estas mesmas relações. Há sempre uma lógica de esbarrar-se em “limites” quando alguém trata do pensamento de Tillich, os limites aqui indicam apenas uma introdução geral, deixando naturalmente algumas inquietações metodológicas e con- sequências de seu pensamento para outros destaques mais específicos. Palavras-chave: ética, ontologia, Queda, pecado, ambiguidade, teologia. ABSTRACT The particular intention of the research is to present the fundamental characteristics of ethical and moral tillichianas from its starting point in the mythic origins of Genesis (the transition from essence to existence) to jobs that emphasize more the consequences of human relations based on ontological structures that comprise these same relationships. There is always a logic to bump into “limits” when someone comes to the thought of Tillich, the limits here indicate only a general introduction, of course leaving some methodological concerns and consequences of their thinking to more specific highlights. Keywords: ethics, ontology, Fall, sin, ambiguity, theology. * O autor é formado em Filosofia (Universidade Federal do Pará) e Teologia, Mestre em Ciências da Religião pela UMESP (Universidade Metodista de São Paulo), vinculado ao grupo de pesquisas Paul Tillich (CNPq) e professor de teologia e filosofia. E-mail: [email protected].

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Paul Tilich ,um tratao exelente sobre ética e suas nuances.

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Ética e moral na teologia filosófica de Paul Tillich:

Uma Abordagem Geral e Introdutória.

Paulo Ronaldo Braga Leal

RESUMOA intenção peculiar da pesquisa é apresentar as características funda-mentais da ética e moral tillichianas, desde seu ponto de partida nas origens míticas de Gênesis (a transição da essência à existência) até os trabalhos que acentuam mais as conseqüências das relações humanas com base nas estruturas ontológicas que perfazem estas mesmas relações. Há sempre uma lógica de esbarrar-se em “limites” quando alguém trata do pensamento de Tillich, os limites aqui indicam apenas uma introdução geral, deixando naturalmente algumas inquietações metodológicas e con-sequências de seu pensamento para outros destaques mais específicos.Palavras-chave: ética, ontologia, Queda, pecado, ambiguidade, teologia.

ABSTRACTThe particular intention of the research is to present the fundamental characteristics of ethical and moral tillichianas from its starting point in the mythic origins of Genesis (the transition from essence to existence) to jobs that emphasize more the consequences of human relations based on ontological structures that comprise these same relationships. There is always a logic to bump into “limits” when someone comes to the thought of Tillich, the limits here indicate only a general introduction, of course leaving some methodological concerns and consequences of their thinking to more specific highlights.Keywords: ethics, ontology, Fall, sin, ambiguity, theology.

* O autor é formado em Filosofia (Universidade Federal do Pará) e Teologia, Mestre em Ciências da Religião pela UMESP (Universidade Metodista de São Paulo), vinculado ao grupo de pesquisas Paul Tillich (CNPq) e professor de teologia e filosofia. E-mail: [email protected].

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Introdução

Falar em ética e moral no pensamento de Tillich faz lembrar as palavras de Roger L. Shinn: “A ética de Tillich como sua teologia e sua filosofia da cultura é massiva, ricamente composta, com pesa-das nuanças.”1 Poderíamos dizer que a ética de Tillich, bem como a moral, são implicações necessárias de seu sistema de pensamento. O caráter ontológico e teológico como sistemas inacabados,2 o método da correlação, a relação entre religião e cultura, fazem da ética e moral em Tillich estruturas dinâmicas de interpretação do homem e da realidade na qual este se encontra inserido. Varias polaridades de sua perspectiva sobre a ética podem ganhar nuanças de interpretação.3 Mas a razão central deste dinamismo reside em duas linhas mestras no pensamento de Tillich. Primeiro, a busca de consistência ontológica em seu pensamento. Quando falamos em “consistência” não pretendemos afirmar uma estrutura de pensar plenamente fechada, isenta de lacu-nas e estabelecida, mas, a perspectiva de totalidade sistemática entre ser, pensar, agir como a Teologia Sistemática e seu pano de fundo teórico-ontológico tentam prever. Tillich “estava profundamente com-penetrado da realidade última de todo o real e pensável.”4 Era trabalho da teologia não afirmar a distinção entre Deus e o mundo na forma dualista, mas como uma dupla relação em Deus mesmo.5 Sendo assim, há uma relação necessária entre ser e Deus. Teologicamente, não se deve proceder simplesmente por força das contraposições, mas por distinções e correlações na estrutura mesma da realidade do finito em

1 CAREY, JOHN J., ed. Being and Doing: Paul Tillich as Ethicist. Macon, Ga.: Mercer University Press, 1987. Citado in: CHICAGO JORNALS Source: The Journal of Religion, Vol. 69, No. 4 (Oct., 1989), pp. 566-567. Published by: The University of Chicago Press. Stable URL: http://www.jstor.org/stable/1204050. Accessed: 26/05/2009 19:26.

2 PAUL TILLICH: trinta anos depois (introdução à Teologia Sistemática). Estudos de Religião. Revista Semestral de Estudos e Pesquisas em Religião. Ano X, n. 10, julho de 1995, p.62.

3 Como acentua a resenha feita por Ronald Stone sobre o livro “Being and Doing: Paul Tillich as Ethicist.”. Opus cit..

4 HIGUET, Etienne Alfred. O Método da Teologia Sistemática de Paul Tillich – A relação da razão e da revelação. In: PAUL TILLICH: trinta anos depois, p. 37.

5 Esta afirmação já fora feita por Tillich em 1908. Cf. Ibidem, p. 37.

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sua participação no infinito.6 Em segundo lugar deve-se atentar para o caráter autônomo da situação e realidade humanas, como um pólo que possui identidade particular mesmo que tenha seu fundamento último no Ser-em-si e esteja alienado desta relação necessária. Um grande exemplo disso pode ser visto na necessidade do método da correla-ção. O método da correlação acentua a interdependência mútua entre “Deus para nós” e “nós para Deus”.7 “O ‘encontro divino-humano’ (Brunner) significa algo real para ambos os lados”.8

2. Fundamentação teológico-ontológica na teologia sistemática.

A Teologia Sistemática de Tillich não é a sua primeira sistemati-zação teológica, mas, nenhuma de suas obras se assemelha a ela por causa de seu escopo, que abarca as implicações mais gerais de seu pensamento e de seus escritos. A ética e a moral em Tillich só podem ser compreendidas a partir da perspectiva teológico-ontológica da TS.9 Os exemplos mais importantes para destacar-se introdutoriamente neste aspecto são: os elementos ontológicos (liberdade e destino); sua inter-pretação do símbolo da “queda” em termos da transição da essência à existência; o problema da ambigüidade da vida em relação à auto--integração da vida na dimensão do espírito.

2.1. A polaridade ontológica: liberdade e destino. Os temas “liberdade e destino” são perpendiculares e indispen-

sáveis nos debates sobre ética e moralidade. “Liberdade e destino” atendem pelos respectivos nomes nas discussões ético-teológicas: “inde-terminismo e determinismo”, “livre-arbítrio e predeterminismo”. Tillich trata precisamente desta relação que é, precisamente, uma das temáticas

6 Na presente pesquisa não é possível desenvolver as influências básicas do pensamento tillichiano. Para efeitos didáticos, basta afirmar que Tillich fora um expoente e um intér-prete de Schelling, o qual aceitava o princípio spinozista da unidade ontológica de todas as coisas na substância eterna. Cf. CALVANI, Carlos Eduardo B. Teologia e MPB. São Bernardo do Campo: UMESP, São Paulo: Ed.Loyola, 1998, p. 26.

7 TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. Tradução Getúlio Bertelli e Geraldo Korndörfer. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 75.

8 Ibidem, p. 75.9 A partir daqui a sigla TS indicará a Teologia Sistemática.

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mais relevantes dos conceitos éticos, considerando-a logo na segunda parte da TS dentro do assunto: Ser e Deus. Os dois elementos são afir-mados e mantidos em correlação necessária, não se excluem mutuamen-te numa interpretação da realidade humana. Ao contrário, a plenitude da estrutura ontológica fundamental alcança seu ponto decisivo na relação “liberdade e destino”. “O ser humano é humano porque tem liberdade, mas só tem liberdade em uma interdependência polar com o destino”.10 Se se pretende compreender a realidade humana e sua participação no ser, esta polaridade conjuga o próprio desenvolvimento daquilo que o ser humano é e se tornará, sempre como uma conseqüência entre ser livre e ter um destino. Tillich, veementemente, rejeita interpretações que coloquem liberdade e destino em contraposições e antagonismo deliberados.11 A fim de interpretar o poder desta relação definitiva e identificadora do ser humano, Tillich retoma a etimologia dos termos deliberação, decisão e responsabilidade enquanto apontam para a ex-periência de ser livre. O conceito de deliberação vem de librare, o ato de pesar argumentos e motivos.12 Este pesar conduz a uma “decisão”. “Decisão” implica em um corte. Decidir significa cortar possibilidades, possibilidades reais.13 A “responsabilidade” por sua vez é a resposta que se dá a partir desta decisão, tal decisão foi tomada por ação do centro do “eu”, sede e órgão da liberdade.14 Após breve análise etimológica, Tillich conceitua “destino”.

Nosso destino é aquilo do qual surgem nossas decisões. É a base inde-finidamente ampla de nosso eu centrado; é a concretude de nosso ser que torna todas as nossas decisões nossas decisões. Quando tomo uma decisão é a totalidade concreta de tudo o que constitui meu ser que deci-de, e não um sujeito epistemológico. Isso se refere à estrutura corporal, aos impulsos psíquicos e ao caráter espiritual. Inclui as comunidades às quais pertenço, o passado que recordo e não recordo, o ambiente que me moldou, o mundo que causou um impacto sobre mim. Refere-se a todas as minhas decisões anteriores. O destino não é um poder estranho que determina aquilo que me irá acontecer. É a minha própria pessoa... .15

10 Teologia Sistemática, opus cit., p. 191.11 Cf. ultimo parágrafo da p.191 e primeiro da página 192 da Teologia Sistemática.12 Ibidem, p. 193.13 Ibidem, p. 193.14 Ibidem, p. 193.15 Ibidem, pp. 193-194.

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A ética e a escatologia andam de mãos dadas, de acordo com a interpretação tillichiana da relação “liberdade e destino”. Sendo assim, todas as coisas participam desta polaridade. A própria natureza orgânica e inorgânica reagem de acordo com sua estrutura individual.16 Lei e es-pontaneidade são interdependentes, pois o caráter estrutural da natureza tem uma relação vital com a estrutura racional. O conceito de liberdade humana, desta feita, pode ser entendida com uma analogia da liberdade que todos os organismos autocentrados (Gestalten) experimentam. Não, há em razão desse conceito de liberdade, determinações absolutas.17

2.2. A transição da essência à existência e o símbolo da “queda”.Ao interpretar o conceito bíblico de “queda”, Tillich relaciona-o

à sabedoria e à intuição universais acerca da auto-análise da experiên-cia humana. Evidentemente, Tillich deconstrói a narrativa de Gênesis e apresenta-a apenas na terceira parte da TS, intitulada “A Existência e Cristo”. Interpretações tradicionais tratam da doutrina da “queda” na parte antropológica ou na doutrina do pecado. Tillich, por sua vez, segue outra configuração. Segue muito de perto a correlação ontologia--teologia, a partir de uma compreensão do homem como comportando uma consciência imediata da estrutura da realidade do ser. O homem é a única criatura capaz de fazer a pergunta ontológica e capaz de responder a esta questão, porque possui a imediatez da experiência da estrutura do ser.18 A auto-experiência de si mesmo está implícita em toda a sua experiência com a realidade deste mundo, ao qual este homem perten-ce.19 É neste sentido que a ontologia tillichiana não se preocupa com a historiografia da realidade humana, mas apenas em suas conotações ontológicas dentro da história.20 A correlação “eu-mundo” se torna o pressuposto da colocação da pergunta pelo significado de nós mesmos. Essa estrutura de significado que é dado ao homem, é a nuança do traba-lho de Heidegger em “Ser e Tempo”, citado como exemplo por Tillich.21

16 Ibidem, p. 194.17 Ibidem, p. 195.18 Ibidem, p. 178.19 INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de Holanda. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002, p.166.20 Teologia Sistemática, opus cit., p. 179.21 Ibidem, p. 179.

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Para Heidegger a distinção entre a relação com o “mundo circundante” (Umwelt) e o “mundo-com” (Mitwelt) é um fato primordial da estrutura do Dasein presente no homem, o qual é afetado por relações de signi-ficado.22 Ser “si mesmo” pode ter uma tríplice configuração (Sein bei, Mitsein, Selbstein) em estar-no-mundo, mas ainda sim se é “si mesmo”.23 Há tremenda implicação ontológica, com prioridade categórica sobre as todas as questões históricas (ou não históricas), afirmar que o homem fora deixado aqui possuindo uma relação de si mesmo com tudo o mais. Sendo assim, Tillich verá que a verdadeira pertinência da questão da “queda” somente será inteligível se correlacionada à manifestação do novo ser, através da experiência de pergunta pelo Cristo. A cristologia recoloca teologicamente a questão da nova criação na perspectiva onto-lógica do novo ser. Como se deve então entender a “queda” em Gênesis? Ela não é entendida por Tillich historicamente, não aconteceu no tempo e no espaço. Deu-se na medida em que existimos e temos de existir, em decorrência da necessidade de nossa finitude e todas as prerrogativas desta. Existir é uma “fatalidade significativa”. Somos o que somos por causa da transição necessária da essência à existência. De acordo com Tillich, o homem “caiu” em decorrência de sua liberdade finita. Pelo menos três citações, em suas respectivas discussões, podem elucidar esta “queda” na simbólica de Tillich.

Em contraste com todas as outras criaturas, o ser humano tem liberdade. Estas possuem analogias com a liberdade, porém, não a liberdade em si. Mas o ser humano é finito, excluído da infinitude à qual pertence. Pode--se dizer que a natureza é necessidade finita, Deus liberdade infinita, e o ser humano liberdade finita. É a liberdade finita que torna possível a transição da essência à existência.24

É a liberdade das atitudes éticas e não a razão que lida com esta transição, aquilo que deveríamos ser com aquilo que nós mesmos nos tornamos. “Desde que a razão lida apenas com possibilidades (Essentiae est possibilitas); só na atitude ética as possibilidades são restringidas

22 INWOOD, Michael. Opus cit., p. 166.23 Ibidem, p. 166.24 Teologia Sistemática, opus cit., p. 326,327,

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e uma possibilidade é especificada; a liberdade faz a transição para a existência, não a razão”.25 Tillich retira o conceito de “queda” da ca-tegoria histórico-temporal e acentua que não existe queda individual.26 Isto nos leva, imediatamente, aos motivos da “queda” ou da transição da essência à existência. Tillich utiliza-se do conceito de “inocência sonhadora”, uma categoria psicológica, para explicar aquilo que é poten-cial na experiência humana, mas que não pode efetivar-se. A realidade humana possui uma potencialidade (inocência) não efetivada.27

O estado de inocência sonhadora conduz para além de si mesmo. A possibilidade de transição à existência é experimentada como tentação. A tentação é inevitável porque o estado de inocência sonhadora não é provado nem decidido. Não é perfeição (...) Mera potencialidade ou inocência sonhadora não é perfeição: Deus é perfeito, porque transcende essência e existência. O símbolo “Adão antes da queda” deve ser enten-dido, pois, como a inocência sonhadora de potencialidades indecididas.28

O conceito de “inocência sonhadora” sofre diluição completa na existência tendo em vista sua peculiar característica de finitude, da mesma forma que um sonho não é real, mas de participa da realidade. Por isso, o ponto alto de interpretação do relato de Gênesis, com pro-fundas implicações na concepção teológico-ética de Tillich é a proi-bição divina, a qual possui, já em sua base afirmativa, o elemento de ruptura presente em todos os homens. Esta proibição “pressupõe um pecado que ainda não é pecado, mas que também já não é inocência. É o desejo de pecar”.29 Liberdade, desta feita, é consciência de fini-tude, no momento em que nos tornamos conscientes desta liberdade, apodera-se de nós a consciência de uma situação perigosa.30 Entre a

25 Tradução e citação de TILLICH, P. Philosophical Writtings/Philosophische Scriften. Paul Tillich Main Works/Hauptwerke, vol.1. Berlin/ New York: De Gruyter, 1989, p. 359 em (Apud): CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de. A Interpretação da Simbólica da Queda em Paul Tillich: Um Estudo em Hermenêutica Teológica. São Bernardo do Campo/ São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo, 2007 (Dissertação de Mestrado), p. 166.

26 Teologia Sistemática, opus cit., p. 327. Embora retire-se o elemento temporal-histórico preserva-se analogicamente a idéia de processo e de transformação. CARVALHO, Guil-herme Vilela Ribeiro de. Opus cit.p.169.

27 Ibidem, p. 329. 28 Ibidem, p. 329.29 Ibidem, p. 330.30 Ibidem, p. 330.

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possibilidade de manter a inocência e o desejo de efetivar a liberdade, sempre recorremos à última opção. O resultado é a experiência da An-gst, a angústia de perder-nos a nós mesmos por não efetivarmos nossas potencialidades.31 A partir disto, a primordial implicação desta perda é o elemento moral e trágico.

O tema do mito da queda transcendente é o caráter trágico-universal da existência. O ato individual da alienação existencial não é o ato isolado de um indivíduo isolado; é um ato de liberdade que, contudo, está enraizado no destino universal da existência. Em todo ato individual, efetiva-se o caráter alienado ou caído do ser. Toda decisão ética é um ato tanto de liberdade individual quanto de destino universal (...) A existência está enraizada tanto na liberdade ética quanto no destino trágico. Se negar-mos um ou outro lado, a situação humana se torna incompreensível. Sua unidade é o grande problema da doutrina do ser humano.32

Descartar o elemento trágico da “queda” é negar a realidade como a experimentamos, bem como aceitar a moralidade como um assunto imperturbável de responsabilidade pessoal é algo alienador. A psicolo-gia e a sociologia analíticas evidenciam “como o destino e liberdade, a tragédia e a responsabilidade estão entrelaçados em todo ser humano desde a primeira infância e em todos os grupos sociais e políticos ao longo da história da humanidade”.33

2.3. A vida e suas ambigüidades (a auto-integração da vida na dimen-são do espírito: moralidade ou a constituição do eu pessoal)

O terceiro e último exemplo extraído da TS é a análise de uma das respostas conjugadas de Tillich ao problema decorrente da “queda”, o problema da ambigüidade. No processo de transição da essência para a existência, Tillich recorre à ontologia para explicar o processo de efetivação da vida enquanto tal. Utilizando-se da distinção aristotélica dynamis e energeia (potencialidade e efetividade) numa perspectiva existencialista, Tillich analisa o conceito ontológico de vida em sua polaridade essencialista tendo em vista uma melhor compreensão da-quilo que ele chamou de “unidade multidimensional da vida”.34 Esta 31 Ibidem, p. 331.32 Ibidem, p. 333.33 Ibidem, p. 334.34 Ibidem, p. 476.

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via descritivo-ontológica das dimensões e âmbitos da vida permitiria a percepção das ambigüidades existenciais de todos os processos da vida. Em uma destas descrições, em correspondência à realidade da dimensão espiritual-humana (dimensão da vida espiritual, vida enquan-to espírito), Tillich procura o restabelecimento da auto-integração da vida contra as forças desintegradoras, da não efetivação das essências na existência. Esta peculiar análise leva-o a considerar a efetivação da vida auto-centrada através do ato moral. O ato moral, para Tillich, é o ato de um “eu” centrado. Todo ato moral indica não a supressão da liberdade, mas a efetivação desta. “Ato moral” indica “a vida que se integra na dimensão do espírito, e isto significa constituir-se como personalidade dentro de uma comunidade”.35 Um “ato moral” é uma necessidade imperativa da liberdade, porque conduz à responsabilidade, e, quem recusa responder a uma exigência válida entrega-se às forças de desintegração moral, age contra o espírito porque jamais pode dei-xar de ser espírito.36 Mas, e, exatamente neste ponto surge a pergunta capital: “como o ser humano se torna consciente do dever-ser em seu encontro com o ser? De que maneira ele experimenta os imperativos morais como exigências de validez incondicional?”.37 A resposta é:

Basicamente experimenta-se o “dever-ser” na relação eu-tu. Também se pode descrever esta situação da seguinte maneira: o ser humano, olhan-do para o seu mundo, possui todo o universo como conteúdo de seu eu centrado (...). Mas existe um limite à tentativa do ser humano de atrair todo o conteúdo a si mesmo – o outro eu. Podemos subjugar e explorar a outra pessoa em sua base orgânica, inclusive em seu eu psicológico, mas não o outro eu na dimensão do espírito (...). Ninguém pode privar uma pessoa de seu direito de ser pessoa e de ser tratada como pessoa. Portanto, o outro é o limite incondicional para o desejo de assimilar a totalidade de nosso mundo, e a experiência deste limite é a experiência do dever-ser, o imperativo moral.38

Tillich, evidentemente, se utiliza, ainda que com reservas, do con-ceito “eu-tu” de Martin Buber. Segundo Guy B. Hammond, Tillich

35 Ibidem, p. 500.36 Ibidem, p. 501.37 Ibidem, p. 501.38 Ibidem, p. 502.

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parece concordar com Buber quanto à compreensão do caráter incon-dicional do imperativo moral ser, de fato, a demanda para reconhecer a personalidade ou “tuidade” do outro.39 Tillich ainda concorda com Buber que o conceito “eu-tu” é uma das maneiras em que a ultimaci-dade é experimentada, ambos concordam que é uma das maneiras que Deus aparece na experiência humana, sem objetivar-se como um ente.40 Esta relação sumariza uma consideração chave para a problemática da ética contemporânea: o ser humano vive entre as polaridades da individuação e participação. O espaço ético na relação “eu-tu” pode perder-se como centro de importância, tanto no reconhecimento do “outro” como possuidor também de um centro espiritual – com todas as implicações do conceito de ser pessoa nesta relação – bem como a perda da efetivação potencial da experiência auto-centrada, como es-pírito isolado da comunidade enquanto tal, jamais poderá experimentar o dever-ser sem uma experiência comunitária.41

3. Fundamentos para uma teoria da moral

Uma das últimas grandes obras de Tillich põe em relevo, peque-nos textos anteriormente escritos com novos insights, o tema “como a moral se relaciona com o religioso” é “Morality and Beyond”.42 Com fins didáticos, um esquema simples de compreensão dos capítulos pode ser descrito da seguinte forma: o primeiro capítulo desenvolve a dimensão religiosa do imperativo moral; o capítulo segundo trata das fontes religiosas das demandas morais; o capítulo seguinte aponta para

39 HAMMOND, Guy B. The Primacy of Ethics: Relationality in Buber, Tillich and Levinas. In: Bulletin of the North American Paul Tillich Society. Vol. XXX, number 3, Summer 2004, Santa Clara, Santa Clara University, p. 24. Stable URL: hhtp:// www.napts.org. Acessado em 28/05/2009. O texto original é “Thouness of the other”. Um evidente neologismo.

40 Ibidem, p. 24.41 Teologia Sistemática, p.502. Embora a relação individuação e participação ocupem

importante poder de penetração na TS tanto na interpretação simbólica da “queda”, na pneumatologia e no conceito de reino de Deus, Tillich se preocupará profundamente com esta relação em A Coragem de Ser: baseado nas Conferências Terry, pronunciadas na Yale University. Tradução de Eglê Malheiros. 3ª. edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp. 67-120 (Coragem e Participação e Coragem e Individuação – caps. 4 e 5 respectivamente).

42 Utilizaremos na pesquisa a versão castellana de Morality and Beyond. TILLICH, Paul. Algo Mas: fundamentos para una teoria de la moral . Traducido por Marcelo Pérez Rivas. Argentina: Editorial La Aurora, 1974.

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o elemento religioso da motivação moral; o quarto capítulo demonstra como se realiza a libertação da consciência moral, por meio da funda-mentação transmoral; o último desenvolve a possibilidade de conquistar o relativismo ético por meio de agape e kairos.43 O mais importante, para o presente momento, será destacarmos alguns elementos de ligação em cada capítulo com a idéia mais geral do assunto. Tillich começa afirmando que há uma dimensão religiosa no imperativo moral.

Do conceito fundamental de religião deriva o conceito tradicional de que a religião é uma expressão particular, em símbolos de pensamento e de ação, daquele interesse último, dentro de um grupo socialmente dado (como, por exemplo, uma igreja). Se o imperativo moral derivasse da religião no sentido tradicional da palavra, a ética secular teria que romper todos os laços que existem com a religião, porque rejeita toda experiência específica com respeito a qualquer religião. Se o elemento religioso, por sua vez, é intrínseco ao imperativo moral, o conflito não é necessário.44

Não é de uma religião no sentido estrito, mas de um sentido amplo – como experiência original e universal – que emana a dimensão reli-giosa do imperativo moral. O que Tillich pretende dizer com imperativo moral? Basicamente o mesmo que vimos quando tratamos da realização do ato moral através de um “eu” centrado, a totalidade da pessoa que se integra em sua dimensão espiritual livre num ato moral. As três funções básicas do espírito humano (moralidade, cultura e religião) se integram, mutuamente, numa autocompreensão que o homem faz de si mesmo e da vida.45 O imperativo moral é a realidade do dever-ser a partir de um “eu” auto-centrado que se manifesta em atos morais. Estes, por sua vez, comportam necessariamente uma dimensão religiosa porque comportam a experiência de uma consciência incondicional, à semelhança do interesse último e infinito da experiência religiosa com

43 Os três primeiros capítulos resultaram das conferências na Universidade de Dartmouth e os dois últimos provém da coletânea de artigos A Era Protestante. Tradução de Jaci Maraschin. São Bernardo do Campo/São Paulo: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1992.

44 Algo Mas: fundamentos para una teoria de la moral ,p. 26.45 Tillich não prentende tratar das relações destas dimensões porque já havia feito isto na

TS. Cf. Algo Mas: fundamentos para una teoria de la moral ,p.10.

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uma preocupação última.46 Surge agora a seguinte questão: qual seria a fonte religiosa das exigências morais?

A fonte religiosa das exigências morais é o amor sob o domínio de sua qualidade agápica, em unidade com o imperativo de justiça que nos obriga a reconhecer a cada ser com potencial pessoal como pessoa, sendo guia-dos pela sabedoria divino-humana que está incorporada nas leis morais do passado, prestando atenção à situação presente e concreta e atuando com coragem com base nestes princípios.47

O amor e a justiça relacionam-se, para Tillich, como resposta ao problema do relativismo ético. Porque o amor, por sua natureza, é ao mesmo tempo relativo e absoluto. Mesmo que a justiça abstrata não possa dar “ouvidos” à situação particular; a justiça unida ao amor agape pode tornar-se “justiça criativa”.48 “O agape atua em relação com as exigências concretas de cada situação (suas condições, suas possíveis conseqüências, o status interior das pessoas implicadas, suas motivações ocultas, os complexos que limitam-nas, seus desejos e ansiedades cons-cientes)”.49 A próxima questão pode ser descrita nos seguintes termos: há algum elemento religioso no processo da motivação moral? Para Tillich, tal questão somente pode ser respondida com o conceito da “graça”. Tillich interpreta o conceito de graça a partir do paradoxo de “aceitar a aceitação”. A pergunta sobre a verdadeira motivação moral recebe grande luz da graça, graça enquanto experiência incondicional de aceitar a aceitação. Em dois momentos no cap.3 Tillich se utilizou, por um lado, das descobertas da psicologia do profundo acerca da dis-tinção entre aceitar aquele que não se aceita no processo psicoterápico, e permitir os tipos de atos que prejudicam o paciente.50 Por outro lado,

46 Ibidem, p.25. 47 Ibidem, p. 46.48 Ibidem, p. 42.49 Ibidem, p. 42.50 Ibidem, p. 51. Tillich muito bebeu da concepção Luterana de aceitar a aceitação, mais ainda,

considerava-o um precursor da psicologia do profundo. “A partir desta ênfase luterana, Tillich travou uma discussão com o psicólogo Carl Rogers acerca das possibilidades de “autoaceitação”. Enquanto para Rogers, haveria somente uma tendência no ser humano – a autoatualização – para Tillich a existência de uma angústia ontológica traria sempre a emergência de tendências destrutivas e de conflitos na psique. Logo, na perspectiva de Tillich, não haveria possibilidade de uma aceitação plena na esfera humana (limitada pelas

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Tillich utilizou-se da pergunta cética e tradicional feita tanto a Paulo quanto a Agostinho, Lutero, Calvino e contra a Reforma Protestante: a graça diminui o poder moral naqueles que são aceitos, mesmo quando são inaceitáveis? Tillich responde a esta questão expondo a raiz de sua contradição principal: “o princípio da pergunta não se justifica, porque demonstra que não se tem compreendido até que ponto a ousadia para aceitar o inaceitável é uma obra da graça, uma criação do poder espi-ritual.”51 Como o conceito de uma pessoa auto-centrada é primordial, Tillich recolocará um elemento aparentemente tardio nas discussões até então enfatizadas, o conceito de consciência. Afirmamos que a consciência, em sua argumentação, parece ter uma colocação tardia apenas de um ponto de vista onde religião e moralidade estão em lados opostos ou dúplices. Na concepção ontológica de Tillich não há, como temos atestado, esta dicotomia plenamente estabelecida. Sendo assim, chega-se ao conceito de consciência enquanto fenômeno complexo na história, na filosofia, sociologia e na tradição teológica. A avaliação do conceito de consciência feita por Tillich – que vai desde uma análise etimológica até as doutrinas filosóficas de Shaftesbury, Hume, Adam Smith, Kant e Hegel – leva-o ao enunciado da necessidade de uma consciência transmoral.

A consciência pode ser chamada de “transmoral” quando julga não em obediência à lei moral, mas segundo sua participação numa realidade que transcende a esfera dos mandamentos morais. A consciência transmoral não nega a esfera moral, mas é levada para além dela pelas insustentáveis tensões da esfera da lei.52

Tillich denominou como “consciência transmoral”, um princípio que pode muito bem ser discernido na experiência da justificação pela

condições da finitude) e, assim, somente seria possível se falar da aceitação completa quando esta se dá a partir de Deus (que suplanta as ambigüidades da finitude).” Cf. a resenha de Gustavo Vieira da Silva de COOPER, T. D. Paul tillich and psychology: historic and contemporary explorations in theology, psychotherapy and ethics. United States: Mercer University Press, 2006. In: Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 1, n. 1, p. 261-264, jan./jun. 2009.

51 Algo Mas: fundamentos para una teoria de la moral ,p.68.52 A partir daqui utilizaremos o mesmo texto de Algo Mas em TIILICH, Paul. A Era

Protestante. Tradução de Jaci Maraschin. São Bernardo do Campo/São Paulo: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1992, p. 167.

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graça em Lutero, enquanto um poder necessário que o fez superar a Anfechtung (ataques tentadores). A consciência é levada para além de si mesma, para além da auto-identidade da vida irreconciliável que coloca--se contra si mesma, todas as vezes que se volta em sua própria direção.

A “justificação pela fé”, segundo Lutero, significa a criação da consci-ência “transmoral”. Enquanto Deus nos acusa na Anfechtung, e nossos corações procuram se desculpar, na “justificação” os nossos corações nos acusam e Deus nos defende dessa acusação. Em termos psicológicos significa o seguinte: na medida que nos voltamos para nós mesmos, a nossa consciência se alegra. Lutamos e vencemos ao lado de Deus não por causa da nossa perfeição moral, mas de nossa imperfeição moral, como no famoso quadro de Duerer, “Cavaleiro, Morte e Diabo”, onde o cavaleiro vai por um caminho estreito na atitude de um desafio vitorioso em face do medo e da tentação.53

Levado ao extremo o argumento sobre os conflitos da existência humana, em termos de uma experiência da consciência que rejeita a si mesma, mesmo em conformidade com a lei no sentido de uma submis-são heterônoma, pode-se citar, ainda que de um outro texto, que Tillich aprendera com seu antigo professor Martin Kaehler que o princípio da justificação pela fé justifica não apenas os que pecam, mas também os que duvidam.54 Após esta digressão, nosso retorno ao texto final de “Morality and Beyond” leva-nos as seguintes questões finais:

Estamos vivendo no meio de uma revolução mundial que afeta todos os aspectos da existência humana e nos força a novas interpretações da vida e do mundo. Que lugar ocupa a ética neste contexto? Estará acima das transformações? Será transcendental em seus fundamentos, valores e exigências? Ou, por outro lado, seguirá a correnteza das transformações históricas ta rapidamente quanto os demais domínios da vida? Se for assim, que restará de seu antigo poder e de sua autoridade para moldar a vida humana? Se o conteúdo de suas exigências for diferente e cada dife-rente período da história, como haverá de manter o caráter incondicional de seu apelo às consciências humanas? Mas se o contrário for o caso – se os princípios éticos estão acima da história, imóveis e impassíveis em face das transformações – como poderão influenciar os seres humanos que vivem na história e são por ela transformados?55

53 Ibidem, p. 168. 54 Texto Introdutório de A Era Protestante, p. 16. 55 Ibidem, p. 171.

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Como resposta a estas questões finais, Tillich considera a im-portância da vitória sobre o relativismo ético a partir da conexão dos princípios agape e kairos. “O amor, o agape, oferece um princípio de ética que mantém o elemento eterno e imutável na mesma medida em que torna a sua realização dependente de atos contínuos de intuição criativa”.56 O amor incondicional é o poder que está por trás de todos os mandamentos e constitui a si mesmo também um mandamento. Nesta perspectiva, o amor é absoluto, mas possui um caráter ambíguo e é esta característica do amor que traz solução às questões éticas para uma so-ciedade em transformação.57 O conceito de kairos significa o momento histórico e a manifestação de algo novo e eternamente importante, nas formas temporais, no contexto de complexidade de cada época. O kai-ros é o momento da aparição do amor, o “algo novo” a que Tillich se refere é novo apenas na medida de sua profundidade absoluta, nunca plenamente alcançável. Apenas nesta conexão entre agape e kairos supera-se o relativismo ético e a complexidade existencial da vida. Duas cruciais afirmações de Tillich podem fechar esplendidamente o assunto: “O amor, ao realizar-se de um kairos a outro, cria uma ética além da alternativa entre ética absoluta e a relativa”58 – pois o sentido de realização da ética na história é: expressar as diferentes maneiras da concretização do amor e da manutenção e salvação da vida”.59

4. Formulação descritiva de uma “ética ontológica”

As mais pertinentes idéias de Tillich já foram apresentadas em decorrência da totalidade de seu pensamento mais geral. A estrutura ontológica da ética e da moralidade fora apresentada em diversos textos e explicações, porém, apenas em dois textos Tillich desenvolve mais de perto uma conceituação, propriamente dita, da ética e sua distinção da moral. A primeira referência está na TS e a segunda em Amor, Poder e Justiça. Enquanto que na TS, Tillich tenta justificar uma distinção se-

56 Ibidem, p. 175.57 Ibidem, p. 175.58 Ibidem, p. 175.59 Ibidem, p. 180.

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mântica entre moral e ética60, em Amor, Poder e Justiça ele detém-se na formulação interpretativo-moral da ética com fundamentos ontológicos.

Ética é a ciência da existência moral do homem, perguntando pelas raízes da moral interpretativa, pelos critérios de sua validade, pelas fontes de seus conteúdos, pelas forças de sua realização. A resposta para cada uma dessas questões está diretamente ou indiretamente dependente de uma doutrina de [sic] ser. As raízes da moral imperativa, dos critérios de sua validade, das fontes de seus conteúdos, das forças de sua realização, tudo isso pode ser elaborado somente em termos de uma análise do ser uni-versal do homem. Não há resposta na ética sem uma afirmação explícita ou implícita sobre a natureza do ser.61

Mas, surge um novo questionamento sobre o método de Tillich sobre esta obra: por que se torna necessária uma descrição dos funda-mentos éticos em termos ontológicos nas relações entre amor, poder e justiça? A resposta está no próprio zeitgeist do autor.62 Tillich estava sob a égide das questões éticas pós-segunda guerra mundial. O “Ser e o Nada” de Jean-Paul Sartre provocou um profundo impacto sobre o seu pensamento. Segundo Jaime dos Reis de Sant`Anna:

Tillich coloca o problema da essência na [sic] natureza humana no centro das discussões teológicas ao eleger os conceitos de amor, justiça e poder amplamente associados às idiossincrasias do ser. Assim, tais idéias devem ser compreendidas em sua relação direta com situações concretas que o

60 “‘Moral’ e seus derivados estão tão onerados de conotações pejorativas que parece impos-sível usá-los em um sentido positivo. Moralidade lembra moralismo, imoralidade com suas conotações sexuais, moral convencional, etc. Por esse motivo, sugeriu-se (especialmente na teologia européia) substituir a palavra ‘moral’ pelo termo ‘ética’. Mas isto não representa uma solução efetiva porque, depois de algum tempo, as conotações negativas de ‘moral’ recairiam também sobre esta palavra. Por isso, prefiro reservar o termo ‘ética’ e seus deriva-dos para designar a ‘ciência da moral’, a teoria da função moral do espírito. Isso pressupõe, porém, que se possa liberar o termo ‘moral’ das conotações negativas que, gradativamente distorcem seu sentido desde o século 18.” Teologia Sistemática, opus cit., p. 501.

61 TILLICH, Paul. Amor, Poder e Justiça. Trad. Sergio Paulo de Oliveira. São Paulo: Fonte Editorial, 2004, p. 75,76.

62 No artigo da Christian Century de 15 de junho de 1949 “Depois do Socialismo” Tilllich chegou a afirmar: “O existencialismo atinge seu significado especial para o nosso tempo a partir do seu insight quanto ao imenso aumento em ansiedade, perigo e conflito pro-duzidos na vida pessoal e social pela atual ‘estrutura destrutiva’ dos afazeres humanos.” In: TILLICH, Paul. Textos Selecionados. São Paulo: Fonte Editorial, 1989, p. 11.

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homem encontra na sociedade, quando é esperado dele um [sic] reação motivada pelas marcas da justiça, poder e amor.63

Pode-se dizer que Tillich tem a época como seu referencial e a necessidade de uma aguda interpretação da realidade. Desta forma, os três conceitos (amor, poder e justiça) reiteram uma necessária estrutura triádica nas relações humanas tendo sua fonte no próprio ser do qual todos participam, mesmo que pareça tão comum a tentativa de separá--las em seu poder e significado intrínsecos e relacionais. Para Tillich:

Ninguém pode trabalhar construtivamente em teologia ou filosofia sem encontrar em cada etapa os conceitos que constituem o assunto dessas conferências. Amor, Poder e Justiça aparecem em lugares decisivos como na antropologia, na psicologia e na sociologia. São conceitos principais em ética e jurisprudência. Eles determinam teoria política e método educacional e não podem ser evitados mesmo na medicina mental e física.64

Amor, Poder e Justiça considera, finalmente, a relação entre ética e ontologia como uma relação tão necessária que todas as questões mais pertinentes em termos das raízes da moral imperativa, dos critérios de sua validade e das fontes de seus conteúdos, dependem de uma doutrina do ser.65 Esta relação é equilibradamente mantida por Tillich em toda a sua obra, e o resultado é pertinente a tudo o que seu pensamento e suas formulações tentaram manter em termos de um sistema de símbolos metafísicos. A guisa de uma conclusão acerca da relação entre elementos éticos e fundamentação ontológica Tillich afirmou certa vez, em seu Das System der Wissenschaften, que três são as questões básicas que devem ser confrontadas por todo sistema metafísico: 1) a questão da relação do Incondicionado à ordem existencial (das Seiendle); 2) a questão da relação entre o Incondicionado e o processo criativo cultural (das schöpferische Geistprozess); e 3) a questão da unidade entre o processo existencial (Seinsprozess) e o processo cultural.66 Não uma análise da

63 Prefácio à edição brasileira de Amor, Poder e Justiça. Opus cit., p. 11.64 Ibidem, p. 19.65 Ibidem, p. 71.66 ADAMS, James Luther. Paul Tillich`s Philosophy of Culture, Science & Religion. New

York: Schocken Books, 1970, p. 164.

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ciência ética por causa da ciência ética, como algo sem implicações e resultados determinantes, mas um conceito da ética em que o homem analise a si mesmo a partir do seu próprio ser e do ser propriamente dito. Tillich insistia desta feita que os problemas do amor, poder e justiça exigiam um fundamento ontológico e uma visão teológica afim de não cair num discurso vazio e sem sentido.67

5. Conclusão: implicações da formulação tillichiana e críticas.

A ética e a moralidade em Tillich são definidas por sua ontologia. Desta maneira, podemos, logicamente, concluir que as estruturas a priori para uma interpretação da realidade repousam num dinamismo ontológico, incluindo nesse dinamismo os princípios fundamentais de leis particulares bem como a própria natureza humana, em sua existen-cialidade, em meio às nuanças históricas. James Reiner bem conceituou esse dinamismo da seguinte maneira:

Os conceitos de direto e lei em Paul Tillich são interessantes porque ele fundamenta-os na ontologia, os quais sugerem que ele, de fato, acredita e a lei concreta (Gesetz) está fundamentada em princípios universais de direito (Recht), i.é, nas muitas estruturas do ser. Contudo, como no resto de seu pensamento, Tillich sempre trabalhou com ambigüidades (Zweideutigkeiten) e fez isto com sua concepção de direito bem como de lei. Sua compreensão de ambos, ser e verdade, é dinâmica e sua visão dos princípios fundamentais universais de todas as leis particulares tam-bém é dinâmica. Nada é estático no sistema de Tillich, o que torna uma análise de sua visão legal especialmente desafiadora quando comparada com a visão revolucionária da lei que prevalecia no período inicial do Nacional Socialismo.68

Sistemas ontológicos, com a magnitude e estatura do sistema tilli-chiano, mais parecem tentativas de definir de antemão a realidade e o nível das experiências imediatas, mesmo que tentem revelar apenas polaridades e conseqüências lógicas. Porém, Tillich nunca deixou de

67 Amor, Poder e Justiça. Opus cit., p. 120.68 REIMER, James. Tillich on Right and Law. In: SCHÜβLER, Werner, STURM, Erdmann.

Tillich-Studien. Münster: Lit Verlag, 2005. Étique Sociale et Socialisme Religieux. Actes du XVe Colloque International Paul Tillich, Toloose, 2003 (Édité par Marc Boss, Doris Lax ET Jean Richard, avec la collaboration de Mireille Hébert), p. 48.

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fora tanto uma relação da ontologia com a teologia em termos de uma “queda”, isto é, uma necessidade essencial que não se efetiva na exis-tência; bem como, jamais negou a auto-identidade e a autonomia da liberdade humana, mesmo limitada pela alienação existencial e pelas ambigüidades decorrentes. Sua concepção teológico-ontológica da ética e moral também jamais se limitou a descrições naturalistas, como as interpretações sobre direito natural vistas em Rousseau, Locke e Hume. Tillich não participava de interpretações dualistas, onde o ser humano está plenamente desvinculado do fundamento do ser e pode fazer leis de tal maneira que haveria apenas uma ética ou moralidade “natural”. Para Tillich, só podemos falar de um homem “caído” porque podemos também falar de uma natureza ou mundo também “caído”. Não há uma natureza inocente. “Ambos (homem e natureza) participam um do outro e não podem ser separados um do outro. Isso torna possível e até ne-cessário usar o termo ‘mundo caído’ e aplicar o conceito de existência (em contraposição à essência) tanto no universo como ao ser humano.”69 Tillich também possuía um incrível senso de que a ontologia, como ele a entendia, não poderia responder definitivamente o problema da finitude humana e a instauração de um novo mundo ético. No texto de 1933, The Socialism Decision, falava em ir para além da ontologia, a partir de uma expectativa profética:

A expectativa de “um novo céu e uma nova terra” significa a expectativa de uma realidade que não está sujeita as estruturas da existência, não pode ser alcançada ontologicamente. A velha e a nova existência não podem estar submetidas ao mesmo ao mesmo conceito de existência. A nova existência é intrinsecamente não-ontológica. Ela não pode ser derivada do estado original.70

O esquema ontológico é fundamental e decisivo para esta “era” e Tillich interpreta, desta feita, uma realidade que é definida, mas que está se definindo. Esta realidade é imanente, mas também é transcendente.

69 Teologia Sistemática, opus cit., 338. 70 Paul Tillich, The Socialist Decision (New York: Harper and Row, 1977), 20. Apud:

HAMMOND, Guy B. The Primacy of Ethics: Relationality in Buber, Tillich and Levinas. In: Bulletin of the North American Paul Tillich Society. Vol. XXX, number 3, Summer 2004, Santa Clara, Santa Clara University, p. 30. Stable URL: hhtp:// www.napts.org. Acessado em 28/05/2009.

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Mas a relação homem e fundamento último não possui o status de per-muta. Uma relação necessária com a ultimacidade do ser não está imune a dar ouvidos à má consciência, e isto significa dizer que, para Tillich, o fato mais decisivo e básico é o choque do não-ser.71 Algumas perti-nentes questões críticas serão sugeridas aqui para fomentar discussões posteriores sobre a ética e a moralidade em Tillich. Primeiro, se Tillich jamais advoga uma quebra total com os poderes de origem, isto é, com o ser; como podemos entender a plena autonomia humana ou divina sem cairmos em formas dualistas ou contradições lógicas nos símbolos do ser e não-ser em termos de decisões ético-morais? Em segundo lugar, o que realmente impede que as ambigüidades suplantem toda forma de apropriação do ser e confirmação da existência ético-moral autêntica? Em terceiro, não haveria a necessidade de redimensionar a ontologia de Tillich para o espaço de relações entre self e o outro, recuperando assim as aberturas e incompletudes de seu pensamento quanto às ques-tões éticas acerca da relacionalidade ambíguo-pessoal?72

71 Ibidem, p. 28. 72 Há um importante trabalho de Jonathan Rothchild acerca disto. Rothchild se utiliza do

trabalho de Oliver Davies (A Theology of Compassion Metaphysics of Difference and the Renewal of Tradition) que levanta questões acerca de uma retomada da linguagem ontológica como necessária para interpretar o espaço ético, a relacionalidade com o outro. In: ROTHCHILD, J. Self, Otherness, Theology, and Ontology: a critical engagement between Tillich and Kristeva, Levinas, and Bataille. Bulletin of the North American Paul Tillich Society. Vol. XXX, number 3, Summer 2004, Santa Clara, Santa Clara University, pp. 31 – 42. Stable URL: hhtp:// www.napts.org. Acessado em 28/05/2009.