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ETNOGASTRONOMIA CAIÇARA:
A CULTURA ALIMENTAR DA COMUNIDADE DE PRAIA MANSA - ILHABELA
GONÇALVES, Tiago Felipe Cerri – NEFEF/UFSCar
GONÇALVES JUNIOR, Luiz – DEFMH e PPGE/UFSCar; NEFEF; SPQMH [email protected]
Eixo Temático: Diversidade e Inclusão
Agência Financiadora: Não contou com financiamento
Resumo
Observamos no meio da chamada alta gastronomia no Brasil certa valorização da cultura alimentar européia e pouca informação sobre a africana, afro-brasileira, indígena e caiçara. No sentido de colocar em pauta essas importantes raízes, objetivamos identificar a etnogastronomia caiçara, em particular a da comunidade de Praia Mansa e comunidades adjacentes com foco em suas práticas alimentares. Como procedimento básico na coleta de dados, utilizamos o registro sistemático de notas em diários de campo, as quais possibilitaram posterior análise inspirada na fenomenologia. Como resultados, percebemos que, devido a sentimento de desrespeito a sua cultura da parte de outros pesquisadores em contatos anteriores, os colaboradores da pesquisa demoraram um pouco para dialogarem conosco com confiabilidade. Favoravelmente, conforme fomos nos mostrando à eles, eles também foram se mostrando à nós, solidariamente nos ensinando: suas formas de produzir pratos a base de peixe; uso de ervas e plantas medicinais; maneira como pescam; modos peculiares de preparar caipirinha; entre outros ensinamentos. Quanto ao turismo, entendemos que este tem causado mais problemas as comunidades tradicionais do que benefícios e se faz necessária maior fiscalização para evitar prejuízos a flora, fauna e o modo de vida caiçara. Esperamos com os resultados apresentados poder contribuir para o fortalecimento da cultura caiçara, em particular da etnogastronomia, na perspectiva de promover o conhecimento, a valorização, o respeito e o reconhecimento da mesma na gastronomia em geral. Palavras-chave: Etnogastronomia. Cultura Alimentar. Caiçara. Introdução
Durante o decorrer do curso de Tecnologia em Gastronomia, observamos certa
valorização da cultura alimentar européia e pouca informação sobre a africana, afro-brasileira,
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indígena e caiçara. Embora sejam estudados alguns pratos indígenas e diversos pratos afro-
brasileiros, pouco efetivamente se estudou sobre a cultura que os envolve.
A influência africana, apesar de frequentemente citada na culinária brasileira, e mesmo
na de outros países do continente americano, não houve qualquer estudo sobre as suas
origens, possivelmente de países da África subsaariana, uma de nossas principais raízes
étnicas, já que de lá vieram a maior parte dos negros escravizados.
A influência indígena foi um pouco mais destacada, particularmente no que diz
respeito ao uso de ingredientes e modos de preparo que foram incorporados a culinária
brasileira, por exemplo, as técnicas para produção da farinha de mandioca, o tucupi e a
tapioca. Porém, sem identificação das etnias específicas que desenvolveram um ou outro prato
ou ainda técnica de produção.
Sobre o descaso que ocorre com nossa própria gastronomia no meio da chamada “alta
gastronomia”, vale destacar que, comumente, quando comemos “paella” ou “bacalhau a
Gomes de Sá”, queremos saber sua origem, e mesmo que não, essa nos é mostrada e
comercializada em forma de livros, restaurantes especializados, cursos específicos, folhetos
de viagens, informações que vem sempre em associação com a palavra cultura.
No entanto, pouco é mostrado sobre a culinária indígena, africana, afro-brasileira e
caiçara, as quais foram intencionalmente encobertas pelos colonizadores, que para
assegurarem o monopólio cultural proibiram e desestimularam as diversas práticas culturais
(lúdicas, religiosas, gastronômicas, entre outras) desses povos oprimidos.
O que não impediu a resistência cultural dos mesmos, sobre os quais devemos nos
aprofundar, mesmo “diante das discriminações e preconceitos que visam levá-los, bem como
nos levar, ao esquecimento de nossas raízes multiculturais” (GONÇALVES JUNIOR, 2010,
p.63).
Compreendemos, com Freire (2005), que não se trata o multiculturalismo da
“justaposição de culturas, muito menos no poder exacerbado de uma sobre as outras, mas na
liberdade conquistada, no direito assegurado de mover-se cada cultura no respeito uma da
outra, correndo risco livremente de ser diferente, de ser cada uma “para si” (p.156).
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Nesse sentido, propomos o estudo da etnogastronomia, entendendo-a como práticas
alimentares com características próprias de um povo/comunidade desenvolvidas com
intencionalidade1 relacionada a processos educativos de tradição e resistência.
Objetivo
No presente estudo, objetivamos identificar a etnogastronomia caiçara, em particular a
da comunidade de Praia Mansa e adjacências (Praia de Castelhanos e Praia Vermelha), em
Ilhabela, atentando para a compreensão da cultura alimentar de tal comunidade tradicional
caiçara e os processos educativos envolvidos em sua prática.
O arquipélago de Ilhabela
Localizado no litoral norte paulista, a 230 quilômetros da cidade de São Paulo, o
arquipélago de Ilhabela é composto pelas Ilhas: de São Sebastião, de Vitória, de Búzios, das
Cabras, Sumítica e da Serraria, tendo a maior concentração populacional na área urbanizada
da Ilha de São Sebastião, na qual se localizam as praias mais frequentadas pelos turistas:
Curral, Armação e Feiticeira (CAMPOS, 2008).
Até a década de 1940, o município arquipélago teve sua economia pautada na
atividade agrícola e pesqueira. A partir de 1960, em decorrência do município ser recoberto,
em grande parte, pela mata atlântica, ter clima quente e diversas praias em sua encosta, sua
economia foi voltando-se para o turismo (CAMPOS, 2008).
De acordo com Diegues (2005), a população caiçara é intimamente ligada à mata
Atlântica, pois é dela que retiram a madeira utilizada na construção de canoas e outros
artefatos, também praticam o extrativismo de frutas e ervas, bem como o plantio de roças para
alimentação e remédios.
Atualmente, no entanto, com o crescimento do turismo, afastamento dos caiçaras da
orla das praias para o interior da ilha, bem como leis ambientais que impedem a derrubada de
árvores para produção de canoas ou a delimitação de uma horta, ao mesmo tempo em que
grandes extensões são desmatadas para construções de mansões de veraneio, o caiçara tem
tido dificuldade para manter seu modo de vida original, especialmente nas regiões mais
urbanizadas do arquipélago (CAMPOS, 2008).
1 Trata-se a intencionalidade de comportamento corpóreo-mundano (existencial), no qual se constitui e reconstitui o mundo significado, já que o encontro de consciência e mundo é a origem de ambos (FIORI, 1986).
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Procurando estudar a cultura alimentar caiçara de raiz, realizamos inserção na
comunidade de Praia Mansa e adjacências (Praia de Castelhanos e Praia Vermelha),
localizada na parte não urbanizada de Ilhabela e tida como uma comunidade tradicional.
Procedimentos Metodológicos
No desenvolvimento desta pesquisa, a inserção dos pesquisadores junto a comunidade
caiçara de Praia Mansa e adjacências (Praia de Castelhanos e Praia Vermelha) se deu
realizando cuidadosa interação com seus membros, os quais autorizaram, em Termos de
Consentimento Livre e Esclarecido, a realização da pesquisa e publicação dos dados,
alterando seus nomes reais para nomes fictícios.
Como procedimento básico na coleta de dados, utilizamos o registro sistemático de
notas em diários de campo, particularmente sobre a cultura alimentar caiçara, as quais
possibilitaram posterior análise das anotações.
Segundo Bogdan e Biklen (1994) diário de campo “é o relato escrito daquilo que o
investigador ouve, vê, experiência e pensa no decurso da recolha e refletindo sobre os dados
de um estudo qualitativo” (p.150).
Após várias leituras dos registros do diário de campo, ao percebermos unidades
significativas, estas foram agrupadas em categorias temáticas, organizadas a posteriori na
matriz nomotética, de inspiração fenomenológica (MARTINS; BICUDO, 1989; BICUDO;
ESPÓSITO, 1997; GONÇALVES JUNIOR, 2008), objetivando movimento intencional em
busca da essência do fenômeno pesquisado.
A matriz é um movimento do individual para o geral, no qual há uma compreensão das
proposições individuais e suas possíveis convergências, divergências e idiossincrasias
(asserção eventualmente encontrada em apenas uma das descrições) com as proposições dos
demais sujeitos (GONÇALVES JUNIOR, 2008).
A construção dos resultados foi elaborada com base nos dados da matriz nomotética.
Construção dos Resultados
Nesta fase da pesquisa, conforme recomendam Gonçalves Junior (2008), Martins e
Bicudo (1989), Bicudo e Espósito (1997) buscamos uma compreensão dos possíveis
processos educativos diretamente extraídos dos diários de campo (identificados por
algarismos romanos) em unidades de significado levantadas pelos pesquisadores a partir das
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notas das observações. Tais unidades de significado são identificadas na matriz nomotética
por números arábicos e originam categorias temáticas identificadas pelas letras maiúsculas de
nosso alfabeto, após observação de convergências, poderia também ter revelado posições
divergentes e idiossincrasias (individualidade de proposições), porém não ocorreram nesse
estudo.
Os resultados apresentados, a seguir, foram construídos a partir da intersubjetividade
estabelecida pelos pesquisadores com os colaboradores desta pesquisa.
Quadro 1: Matriz Nomotética
Diário Categoria
I II III IV V VI VII VIII IX X
A – Solidariedade em transmitir suas tradições alimentares
1 1, 3, 5
1, 2, 4
1 1, 2, 3, 8, 9, 11
1 1, 2, 3, 4, 5
1 1, 2
B - Alimentos de qualidade especial
1 2 4 3, 5 4, 5, 7
C - Sentimento de desrespeito a cultura caiçara
2 6, 10 2
Categoria A – Solidariedade em transmitir suas tradições alimentares
Durante o transcorrer da pesquisa pudemos sentir solidariedade da comunidade em nós
transmitir sua cultura de forma geral, incluindo uma grande quantia de informações referentes
à sua alimentação, como receitas, métodos de produção e informações nutricionais dos
alimentos.
Maria e João nos ensinaram a preparar um dos mais típicos pratos caiçaras, o azul
marinho, conforme segue descrição:
(...) colocar os temperos (alho, cebola) para dourar no óleo e na sequência colocar as bananas verdes para refogá-las levemente e pegar o gosto dos temperos. Depois disso, colocar água para pré-cozinhar as bananas. Na sequência retiram-se as bananas da panela e coloca-se o peixe pirajica, cortado em postas, já tendo marinado (permanecido por algum tempo em tempero de limão e sal). Sobre as postas foram colocadas as bananas verdes pré-cozidas e deixou-se completar o cozimento das mesmas e do peixe. Poucos minutos antes do prato ficar pronto, adicionaram farta porção de coentro do mato (VI-2)
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Um detalhe que nos chamou muito a atenção nesse prato foi o tom azulado, decorrente
de reações químicas entre o tanino da banana verde com a oxidação do ferro da panela, bem
como dos tons verdes do coentro do mato e da banana verde, dando origem a um caldo azul
arroxeado bem escuro que lembra a cor do mar profundo.
O peixe que nos foi recomendado por diversos colaboradores da pesquisa (Maria,
João, Antônio e José) para produção desse prato foi o Pirajica, que é um peixe médio, de
textura firme e sabor peculiar. Salientaram, entretanto, que também podem ser utilizados
outros peixes para o preparo do azul marinho, como o espada e o vermelho.
Uma importante recomendação dada pela Maria foi a de descascar as bananas verdes
depois de passar óleo nas mãos, pois essas soltam um leite que gruda muito nas mãos.
No mesmo dia, os irmãos João e Maria nos descreveram o preparo do pirão com
bananas verdes: “(...) coloca-se primeiro a banana verde cozida no prato, amassando-a e
coloca-se sobre ela o caldo do azul marinho e a farinha da terra, misturando e originando o
pirão (deixar em consistência cremosa).” (VI-3)
Em outra ocasião, quando comprávamos peixes recém pescados com o caiçara José
(irmão de João e Maria), este nos orientou a fazer o peixe assado na folha de bananeira,
inclusive nos ajudou a pegá-las. Segue descrição extraída de nosso diário de campo VIII:
(...) em primeiro lugar pegamos as folhas de bananeira e as recortamos a mão de forma a retirar a estrutura central, depois estendemos as folhas em forma de cruz em uma grande assadeira retangular de alumínio, cobrindo com cebolas em rodelas e anéis de lula o peixe inteiro limpo e com cortes na pele para que o tempero (a base de limão, sal e coentro do mato) penetrasse melhor na carne dele, bem como nos anéis de lula. Em seguida fechamos as folhas de bananeira de forma a garantir que o líquido da cocção juntamente com seu sabor não escapasse e o peixe assasse melhor no forno. José (...) nos disse que as folhas de bananeira tem um efeito similar ao do papel alumínio, porém aquelas são naturais e de graça. Todos pesquisadores gostaram muito e aprovaram a receita, além de ficar muito saboroso o uso da folha de bananeira deu beleza ao prato. (VIII-1)
Também aprendemos com os colaboradores da pesquisa modos de preparo de duas
caipirinhas típicas entre os caiçaras das comunidades de Praia Mansa e Castelhanos, a
caipirinha de folha de mexerica e a de gengibre.
Maria, em conversa na escola da comunidade em que ficamos alojados:
(...) comentou sobre a caipirinha de gengibre e nos falou como fazê-la: em um copo coloque rodelas de limão e gengibre laminado, com um pouco de cachaça e açúcar. Amasse levemente para que o limão solte seu suco bem como o gengibre. Depois adicione mais cachaça e complete o copo com gelo. (III-3)
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Maria, no entanto, não revelou nesse dia como fazer a caipirinha de folhas de
mexerica. Disse-nos que era segredo.
O mesmo nos disse a colaboradora Mônica, de Castelhanos, “(...) o modo de extrair o
sumo das folhas e obter a cor típica é segredo”. (III-1)
Somente alguns dias depois, em uma conversa realizada na escola da comunidade
onde estávamos alojados, Maria “(...) revelou o segredo da caipirinha de folha de mexerica, a
saber: macera-se um pouco mais de meio copo de folha de mexerica com um pouco de
cachaça e açúcar, até extrair o sumo das folhas (é isso que dá a cor característica à bebida),
acrescentando-se depois mais cachaça e gelo, podendo-se coar”. (VI-11)
No dia seguinte, sentados em um bar e restaurante da Praia de Castelhanos, onde
Mônica trabalha, esta nos ouvindo falar com Maria sobre a caipirinha de folhas de mexerica:
(...) pediu para uma menina da comunidade que fosse buscar folhas de mexerica para que ela fizesse a famosa bebida. Logo a menina retornou com algumas poucas folhas, dizendo que havia um cacho de abelhas no pé de mexerica, o que dificultava a coleta das folhas. Mônica disse que daria para fazer apenas um copo e se pôs a prepará-lo. Logo trouxe a caipirinha pronta e todos provaram da mesma e elogiaram o sabor. (VII-1)
Em diversas conversas que tivemos com Maria e Mônica, estas nos incentivaram a
fazer cocada branca com os cocos de Praia Vermelha, segundo elas os melhores da região.
Fomos juntos com Maria até a Praia Vermelha pegar cocos, a comunidade de lá nos recebeu
muito bem, nos mostrando a casa da farinha, a horta e os famosos coqueiros, inclusive nos
ajudando a apanhar os cocos.
Depois retornamos para a escola onde ficamos alojados e começamos o preparo da
cocada:
(...) alguns quebravam os cocos com um martelo que estava guardado em caixa de ferramenta da escola, outros retiravam com facas e colheres a polpa do coco da casca, sendo que Maria, ao perceber como fazíamos, nos corrigiu dizendo que só podia ficar a parte branca do coco, ou seja, que devíamos raspar bem para não vir com partes escuras da casca. Após retirarmos adequadamente a polpa dos cocos, ralamos a mesma e demos início ao preparo das cocadas, derretendo açúcar em uma panela e depois acrescentando o coco ralado, cozinhando e mexendo sempre. Depois colocamos o conteúdo em uma grande forma retangular e levamos ao forno em fogo brando. (VI-8)
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No seio de uma cultura gastronômica além dos alimentos corriqueiros do dia a dia,
também há aqueles que não são indicados pela comunidade como adequados ao consumo ou
restringidos em determinadas ocasiões quer seja por costume, quer seja por motivos de saúde
ou religiosidade.
Durante a pesquisa encontramos algumas dessas restrições: Maria, por exemplo, disse
ser a carne de arraia “muito forte, podendo acentuar ou provocar feridas em quem está com
baixa imunidade”. (III-5) Manuel, durante a travessia que fizemos juntos até o cerco caiçara,
comentou que é:
(...) importante se fazer com alguma frequência, jejuns para que o corpo se adapte a períodos mais longos sem se alimentar, o que é de grande importância para quem navega no mar, podendo ter contratempos nas viagens como tempestades, ou a quebra do motor, dessa forma sendo obrigado a ficar um tempo muito maior sem se alimentar o que causa tontura em pessoas que não estejam acostumadas e isso pode ser perigoso no mar. (VIII-2)
Outra coisa observada e que nos chamou a atenção era que as pessoas dessa
comunidade não comiam camarão apesar da quantidade e qualidade disponível, o motivo era
a associação com a memória de camarões agindo como decompositores de animais mortos
que iam parar na praia levados pela maré alta e em alguns casos, como nos contou Chico, até
de cadáveres humanos “(...)a deriva e que seus corpos quando vinham parar na praia estavam
sendo comidos por camarões que entravam e saiam da carne como vermes”. (X-1)
Outra restrição, essa de cunho religioso, é a proibição da alimentação com carne na
sexta-feira da paixão, sendo que seus antepassados lhes contavam uma história em “(...) que a
praia ficou vermelha porque ocorreu desrespeito numa sexta-feira da paixão quando os
moradores de lá jogaram futebol e depois fizeram um churrasco.” (VIII-5) Daí o nome da
comunidade: Praia Vermelha.
Outros processos educativos identificados na comunidade de Praia Mansa e
adjacências dizem respeito a modos de produção, como: técnicas de pesca e de obtenção de
farinha de mandioca, sendo a primeira para comércio e uso próprio e a segunda, atualmente,
apenas para consumo próprio. Nesse sentido seguem algumas descrições:
O modo de pesca mais utilizado é o cerco caiçara, no qual eles colocam redes amarradas a bambus para que flutue e fique de fácil visualização, fechando um determinado trecho no mar, e funciona como uma armadilha na qual os peixes entram por um local, mas não conseguem sair mantendo-se vivos. Em geral o cerco fica próximo a uma encosta e uma das partes da rede é fixada lá com uma espia (similar a um grande prego fincado à rocha) (VI-2)
7436
Maria nos relatou “Que os pescadores costumam ir ao cerco duas ou três vezes por dia
para retirar os peixes em canoas.” (VI-4) Depois os peixes são levados até Praia Mansa e
colocados na câmara fria, onde são conservados até a distribuição.
A confecção das redes do cerco caiçara também é feita na comunidade, vimos senhor
Chico trabalhando em uma e ele nos contou que “o tempo de confecção de uma rede é de um
ano, pois existem outras tarefas diárias para serem cumpridas (acrescentando que se utiliza
de) uma linha mais macia porque os peixes que possuem dentes tem bem mais dificuldade
para cortar.” (IX-1)
Já a produção de farinha de mandioca na atualidade encontra-se bastante reduzida,
havendo uma casa de tráfico, como chamam, na comunidade de Praia Vermelha. Nela a
mandioca é triturada em uma roda transformando a em uma massa que é desidratada e
levemente tostada em um forno à lenha dando origem a um produto de sabor e textura
diferenciado.
Quanto à nutrição da alimentação caiçara podemos afirmar ser bem balanceada, com
alto teor de proteínas, principalmente dos peixes. Os carboidratos são garantidos pela farinha
de mandioca. E os lipídios vêm dos peixes, óleos vegetais e cocos. Tal alimentação garante
aos caiçaras vigor para suas tarefas rotineiras e, quando ficam adoentados, solucionam muitos
de seus problemas com o uso de remédios naturais: chás (melissa e gengibre, por exemplo),
pomadas (como de sete ervas) e unguentos (de citronela) que preparam a partir de ervas e
plantas encontradas na mata ou plantadas em suas hortas, conforme registramos em diversas
passagens no diário de campo VI.
Categoria B – Alimentos de qualidade especial
Tivemos contato durante a pesquisa com alimentos diferenciados dessa localidade com
qualidades especiais que compreendemos como decorrência do que chamamos de
“gastronomia da terra”, que é a dinâmica inseparável entre aspectos geográficos e humanos
que torna cada região capaz de produzir alimentos únicos, entre esses aspectos estão o clima,
relevo, biodiversidade, cultura, formas de produção e extração. Dos quais destacamos:
- Peixes extremamente frescos: por serem pescados pelo método do cerco caiçara que mantém
o peixe vivo até o momento de serem retirados da água, e por estarmos no local em que esses
peixes eram trazidos, podendo utilizá-los sem que fosse necessário congelarmos para o
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armazenamento o que já faria com que esse perdesse muita qualidade (várias passagens nos
diários de campo III, IV, VI, VIII);
- Cocos de Praia Vermelha: os quais tinham o sabor diferenciado e aparentavam ter um maior
teor de gordura, sendo reconhecidos como os melhores da região (várias passagens no diário
de campo VI);
- Farinha da Terra: que é a farinha de mandioca artesanal feita na Praia Vermelha com sabor e
textura muito superior as industriais, menos seca e com granulação semelhante a um farelo,
importante para a produção do pirão de peixe que acompanha o azul marinho, entre outros
pratos caiçaras (várias passagens nos diários de campo V, VI, VIII);
- Coentro do Mato: tempero de sabor e aroma semelhante ao coentro português, porém suas
folhas são mais largas e compridas, de formato ovalado, o mesmo é utilizado em diversos
pratos típicos caiçaras, especialmente quando a base de peixe. Caso, inclusive, do azul
marinho (várias passagens nos diários de campo IV, VI, VIII, X).
Categoria C – Sentimento de desrespeito a cultura caiçara
Os colaboradores da pesquisa, no entanto, comentaram conosco, sentimento de
desrespeito a sua cultura, em como falta de respeito a seu território, destacadamente da parte
de turistas, mas também da parte de alguns pesquisadores.
Sobre sentimento de desrespeito da parte de pesquisadores, Francisca afirmou em
diálogo na casa de tráfico de farinha: “(...) que muita gente vai lá, não pede licença, não tem
educação e que não a respeitam, só porque ela não tem muito estudo.” (VI-6)
Quanto a tal sentimento em relação aos turistas, Manuel e Marcos falaram sobre o não
interesse da comunidade de Praia Mansa em trabalhar com o turismo, pois apesar do mesmo
trazer coisas boas:
(...) também traz muitas ruins. Comentou que aproximadamente em 1996 solicitaram a Prefeitura que fizesse uma barreira com mourões de madeiras na trilha que liga Praia Mansa a Praia de Castelhanos para evitar a vinda de jipes e motos. A Prefeitura atendeu e com o tempo e a diminuição do trânsito na citada trilha, a mata foi crescendo nas laterais e atualmente, a trilha se destina apenas ao trânsito de pessoas. (IX-2)
Observamos também em nossos deslocamentos na Praia de Castelhanos tráfego de
jipes, quadriciclos e motos andando em velocidade imprópria para o local, colocando em risco
crianças e adultos, tanto caiçaras como turistas, que se encontravam na praia.
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Considerações
Durante o transcorrer da pesquisa pudemos sentir expressão de solidariedade da
comunidade em nós transmitir sua cultura de forma geral, incluindo uma grande quantia de
informações referentes à sua alimentação, como receitas, métodos de produção e informações
nutricionais dos alimentos.
Percebemos que, devido a sentimento de desrespeito a sua cultura da parte de outros
pesquisadores em contatos anteriores, os colaboradores da pesquisa demoraram um pouco
para dialogarem conosco com confiabilidade. Favoravelmente, conforme fomos nos
mostrando à eles, eles também foram se mostrando à nós.
Com a confiança estabelecida foram-nos ensinadas solidariamente e com destacada
generosidade alguns de seus “saberes de experiência feitos” (FREIRE, 2005): suas formas de
produzir pratos a base de peixe; recomendações de como fazer cocada branca; uso de ervas e
plantas medicinais, inclusive usando citronela para nos defender dos borrachudos; maneira
como pescam, nos permitindo acompanhá-los até o cerco caiçara; modos peculiares de
preparar caipirinha, mesmo a secreta receita da caipirinha de folha de mexerica, a qual,
gentilmente, prepararam para nós.
Compartilhamos, com Freire (1988, 2001, 2005), que o ato de educar envolve
necessariamente o de educar-se, sendo necessária a afetividade, a humildade, o gosto pelo
ensinar e pelo aprender, a busca incansável pela competência e pela esperança engajada na
nossa transformação: somos seres inconclusos.
No que diz respeito ao turismo, entendemos que este tem causado mais problemas as
comunidades tradicionais do que benefícios e se faz necessária maior fiscalização de
construções nas encostas, uso de veículos automotores nas trilhas e praias, lançamento de
objetos e dejetos, prejudicando a flora, fauna e o modo de vida caiçara.
Esperamos com os resultados apresentados nesse estudo poder contribuir para o
fortalecimento da cultura caiçara, em particular da etnogastronomia, na perspectiva de
promover o conhecimento, a valorização, o respeito e o reconhecimento da mesma na
gastronomia em geral.
REFERÊNCIAS BICUDO, Maria A. V.; ESPÓSITO, Vitória H. C. Pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: UNIMEP, 1997.
7439
BOGDAN, Roberto; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994. CAMPOS, Silmara E. de. Ser caiçara em Ilhabela: as construções de identidades nas tensões entre o passado e o presente. Dissertação (Mestrado em Educação) - PPGE/UFSCar, São Carlos, 2008. DIEGUES, Antonio C. Esboço de história ecológica e social caiçara. In: Diegues Antonio Carlos (org.). Enciclopédia caiçara - história e memória caiçara. São Paulo: editora Hucitec – NUPAUB-CEC/USP, 2005. vol. IV. p. 273-319. FIORI, Ernani M. Conscientização e educação. Educação e Realidade, v. 11, n. 1, 1986, p.3-10. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 19ªed. São Paulo:
Paz e Terra, 2001.
______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 12ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. GONÇALVES JUNIOR, Luiz. Lazer e trabalho: a perspectiva dos líderes das centrais sindicais do Brasil e de Portugal em tempos de globalização. In: GONÇALVES JUNIOR, Luiz (org.). Interfaces do lazer: educação, trabalho e urbanização. São Paulo: Casa do Novo Autor, 2008, p. 54-108. ______. Etnomotricidade: multiculturalismo e educação física escolar. In: CARREIRA FILHO, Daniel; CORREIA, Walter R. (Org.). Educação física escolar: docência e cotidiano. Curitiba: CRV, 2010. p.49-67. MARTINS, Joel; BICUDO, Maria A.V. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo: Moraes/EDUC, 1989.