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ETNOGASTRONOMIA CAIÇARA: A CULTURA ALIMENTAR DA COMUNIDADE DE PRAIA MANSA - ILHABELA GONÇALVES, Tiago Felipe Cerri – NEFEF/UFSCar [email protected] GONÇALVES JUNIOR, Luiz – DEFMH e PPGE/UFSCar; NEFEF; SPQMH [email protected] Eixo Temático: Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Observamos no meio da chamada alta gastronomia no Brasil certa valorização da cultura alimentar européia e pouca informação sobre a africana, afro-brasileira, indígena e caiçara. No sentido de colocar em pauta essas importantes raízes, objetivamos identificar a etnogastronomia caiçara, em particular a da comunidade de Praia Mansa e comunidades adjacentes com foco em suas práticas alimentares. Como procedimento básico na coleta de dados, utilizamos o registro sistemático de notas em diários de campo, as quais possibilitaram posterior análise inspirada na fenomenologia. Como resultados, percebemos que, devido a sentimento de desrespeito a sua cultura da parte de outros pesquisadores em contatos anteriores, os colaboradores da pesquisa demoraram um pouco para dialogarem conosco com confiabilidade. Favoravelmente, conforme fomos nos mostrando à eles, eles também foram se mostrando à nós, solidariamente nos ensinando: suas formas de produzir pratos a base de peixe; uso de ervas e plantas medicinais; maneira como pescam; modos peculiares de preparar caipirinha; entre outros ensinamentos. Quanto ao turismo, entendemos que este tem causado mais problemas as comunidades tradicionais do que benefícios e se faz necessária maior fiscalização para evitar prejuízos a flora, fauna e o modo de vida caiçara. Esperamos com os resultados apresentados poder contribuir para o fortalecimento da cultura caiçara, em particular da etnogastronomia, na perspectiva de promover o conhecimento, a valorização, o respeito e o reconhecimento da mesma na gastronomia em geral. Palavras-chave: Etnogastronomia. Cultura Alimentar. Caiçara. Introdução Durante o decorrer do curso de Tecnologia em Gastronomia, observamos certa valorização da cultura alimentar européia e pouca informação sobre a africana, afro-brasileira,

ETNOGASTRONOMIA CAIÇARA: A CULTURA …defmh/spqmh/pdf/2011/Educere2011Etnogastronomia.… · étnicas, já que de lá vieram a maior parte dos negros escravizados. A influência

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ETNOGASTRONOMIA CAIÇARA:

A CULTURA ALIMENTAR DA COMUNIDADE DE PRAIA MANSA - ILHABELA

GONÇALVES, Tiago Felipe Cerri – NEFEF/UFSCar

[email protected]

GONÇALVES JUNIOR, Luiz – DEFMH e PPGE/UFSCar; NEFEF; SPQMH [email protected]

Eixo Temático: Diversidade e Inclusão

Agência Financiadora: Não contou com financiamento

Resumo

Observamos no meio da chamada alta gastronomia no Brasil certa valorização da cultura alimentar européia e pouca informação sobre a africana, afro-brasileira, indígena e caiçara. No sentido de colocar em pauta essas importantes raízes, objetivamos identificar a etnogastronomia caiçara, em particular a da comunidade de Praia Mansa e comunidades adjacentes com foco em suas práticas alimentares. Como procedimento básico na coleta de dados, utilizamos o registro sistemático de notas em diários de campo, as quais possibilitaram posterior análise inspirada na fenomenologia. Como resultados, percebemos que, devido a sentimento de desrespeito a sua cultura da parte de outros pesquisadores em contatos anteriores, os colaboradores da pesquisa demoraram um pouco para dialogarem conosco com confiabilidade. Favoravelmente, conforme fomos nos mostrando à eles, eles também foram se mostrando à nós, solidariamente nos ensinando: suas formas de produzir pratos a base de peixe; uso de ervas e plantas medicinais; maneira como pescam; modos peculiares de preparar caipirinha; entre outros ensinamentos. Quanto ao turismo, entendemos que este tem causado mais problemas as comunidades tradicionais do que benefícios e se faz necessária maior fiscalização para evitar prejuízos a flora, fauna e o modo de vida caiçara. Esperamos com os resultados apresentados poder contribuir para o fortalecimento da cultura caiçara, em particular da etnogastronomia, na perspectiva de promover o conhecimento, a valorização, o respeito e o reconhecimento da mesma na gastronomia em geral. Palavras-chave: Etnogastronomia. Cultura Alimentar. Caiçara. Introdução

Durante o decorrer do curso de Tecnologia em Gastronomia, observamos certa

valorização da cultura alimentar européia e pouca informação sobre a africana, afro-brasileira,

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indígena e caiçara. Embora sejam estudados alguns pratos indígenas e diversos pratos afro-

brasileiros, pouco efetivamente se estudou sobre a cultura que os envolve.

A influência africana, apesar de frequentemente citada na culinária brasileira, e mesmo

na de outros países do continente americano, não houve qualquer estudo sobre as suas

origens, possivelmente de países da África subsaariana, uma de nossas principais raízes

étnicas, já que de lá vieram a maior parte dos negros escravizados.

A influência indígena foi um pouco mais destacada, particularmente no que diz

respeito ao uso de ingredientes e modos de preparo que foram incorporados a culinária

brasileira, por exemplo, as técnicas para produção da farinha de mandioca, o tucupi e a

tapioca. Porém, sem identificação das etnias específicas que desenvolveram um ou outro prato

ou ainda técnica de produção.

Sobre o descaso que ocorre com nossa própria gastronomia no meio da chamada “alta

gastronomia”, vale destacar que, comumente, quando comemos “paella” ou “bacalhau a

Gomes de Sá”, queremos saber sua origem, e mesmo que não, essa nos é mostrada e

comercializada em forma de livros, restaurantes especializados, cursos específicos, folhetos

de viagens, informações que vem sempre em associação com a palavra cultura.

No entanto, pouco é mostrado sobre a culinária indígena, africana, afro-brasileira e

caiçara, as quais foram intencionalmente encobertas pelos colonizadores, que para

assegurarem o monopólio cultural proibiram e desestimularam as diversas práticas culturais

(lúdicas, religiosas, gastronômicas, entre outras) desses povos oprimidos.

O que não impediu a resistência cultural dos mesmos, sobre os quais devemos nos

aprofundar, mesmo “diante das discriminações e preconceitos que visam levá-los, bem como

nos levar, ao esquecimento de nossas raízes multiculturais” (GONÇALVES JUNIOR, 2010,

p.63).

Compreendemos, com Freire (2005), que não se trata o multiculturalismo da

“justaposição de culturas, muito menos no poder exacerbado de uma sobre as outras, mas na

liberdade conquistada, no direito assegurado de mover-se cada cultura no respeito uma da

outra, correndo risco livremente de ser diferente, de ser cada uma “para si” (p.156).

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Nesse sentido, propomos o estudo da etnogastronomia, entendendo-a como práticas

alimentares com características próprias de um povo/comunidade desenvolvidas com

intencionalidade1 relacionada a processos educativos de tradição e resistência.

Objetivo

No presente estudo, objetivamos identificar a etnogastronomia caiçara, em particular a

da comunidade de Praia Mansa e adjacências (Praia de Castelhanos e Praia Vermelha), em

Ilhabela, atentando para a compreensão da cultura alimentar de tal comunidade tradicional

caiçara e os processos educativos envolvidos em sua prática.

O arquipélago de Ilhabela

Localizado no litoral norte paulista, a 230 quilômetros da cidade de São Paulo, o

arquipélago de Ilhabela é composto pelas Ilhas: de São Sebastião, de Vitória, de Búzios, das

Cabras, Sumítica e da Serraria, tendo a maior concentração populacional na área urbanizada

da Ilha de São Sebastião, na qual se localizam as praias mais frequentadas pelos turistas:

Curral, Armação e Feiticeira (CAMPOS, 2008).

Até a década de 1940, o município arquipélago teve sua economia pautada na

atividade agrícola e pesqueira. A partir de 1960, em decorrência do município ser recoberto,

em grande parte, pela mata atlântica, ter clima quente e diversas praias em sua encosta, sua

economia foi voltando-se para o turismo (CAMPOS, 2008).

De acordo com Diegues (2005), a população caiçara é intimamente ligada à mata

Atlântica, pois é dela que retiram a madeira utilizada na construção de canoas e outros

artefatos, também praticam o extrativismo de frutas e ervas, bem como o plantio de roças para

alimentação e remédios.

Atualmente, no entanto, com o crescimento do turismo, afastamento dos caiçaras da

orla das praias para o interior da ilha, bem como leis ambientais que impedem a derrubada de

árvores para produção de canoas ou a delimitação de uma horta, ao mesmo tempo em que

grandes extensões são desmatadas para construções de mansões de veraneio, o caiçara tem

tido dificuldade para manter seu modo de vida original, especialmente nas regiões mais

urbanizadas do arquipélago (CAMPOS, 2008).

1 Trata-se a intencionalidade de comportamento corpóreo-mundano (existencial), no qual se constitui e reconstitui o mundo significado, já que o encontro de consciência e mundo é a origem de ambos (FIORI, 1986).

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Procurando estudar a cultura alimentar caiçara de raiz, realizamos inserção na

comunidade de Praia Mansa e adjacências (Praia de Castelhanos e Praia Vermelha),

localizada na parte não urbanizada de Ilhabela e tida como uma comunidade tradicional.

Procedimentos Metodológicos

No desenvolvimento desta pesquisa, a inserção dos pesquisadores junto a comunidade

caiçara de Praia Mansa e adjacências (Praia de Castelhanos e Praia Vermelha) se deu

realizando cuidadosa interação com seus membros, os quais autorizaram, em Termos de

Consentimento Livre e Esclarecido, a realização da pesquisa e publicação dos dados,

alterando seus nomes reais para nomes fictícios.

Como procedimento básico na coleta de dados, utilizamos o registro sistemático de

notas em diários de campo, particularmente sobre a cultura alimentar caiçara, as quais

possibilitaram posterior análise das anotações.

Segundo Bogdan e Biklen (1994) diário de campo “é o relato escrito daquilo que o

investigador ouve, vê, experiência e pensa no decurso da recolha e refletindo sobre os dados

de um estudo qualitativo” (p.150).

Após várias leituras dos registros do diário de campo, ao percebermos unidades

significativas, estas foram agrupadas em categorias temáticas, organizadas a posteriori na

matriz nomotética, de inspiração fenomenológica (MARTINS; BICUDO, 1989; BICUDO;

ESPÓSITO, 1997; GONÇALVES JUNIOR, 2008), objetivando movimento intencional em

busca da essência do fenômeno pesquisado.

A matriz é um movimento do individual para o geral, no qual há uma compreensão das

proposições individuais e suas possíveis convergências, divergências e idiossincrasias

(asserção eventualmente encontrada em apenas uma das descrições) com as proposições dos

demais sujeitos (GONÇALVES JUNIOR, 2008).

A construção dos resultados foi elaborada com base nos dados da matriz nomotética.

Construção dos Resultados

Nesta fase da pesquisa, conforme recomendam Gonçalves Junior (2008), Martins e

Bicudo (1989), Bicudo e Espósito (1997) buscamos uma compreensão dos possíveis

processos educativos diretamente extraídos dos diários de campo (identificados por

algarismos romanos) em unidades de significado levantadas pelos pesquisadores a partir das

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notas das observações. Tais unidades de significado são identificadas na matriz nomotética

por números arábicos e originam categorias temáticas identificadas pelas letras maiúsculas de

nosso alfabeto, após observação de convergências, poderia também ter revelado posições

divergentes e idiossincrasias (individualidade de proposições), porém não ocorreram nesse

estudo.

Os resultados apresentados, a seguir, foram construídos a partir da intersubjetividade

estabelecida pelos pesquisadores com os colaboradores desta pesquisa.

Quadro 1: Matriz Nomotética

Diário Categoria

I II III IV V VI VII VIII IX X

A – Solidariedade em transmitir suas tradições alimentares

1 1, 3, 5

1, 2, 4

1 1, 2, 3, 8, 9, 11

1 1, 2, 3, 4, 5

1 1, 2

B - Alimentos de qualidade especial

1 2 4 3, 5 4, 5, 7

C - Sentimento de desrespeito a cultura caiçara

2 6, 10 2

Categoria A – Solidariedade em transmitir suas tradições alimentares

Durante o transcorrer da pesquisa pudemos sentir solidariedade da comunidade em nós

transmitir sua cultura de forma geral, incluindo uma grande quantia de informações referentes

à sua alimentação, como receitas, métodos de produção e informações nutricionais dos

alimentos.

Maria e João nos ensinaram a preparar um dos mais típicos pratos caiçaras, o azul

marinho, conforme segue descrição:

(...) colocar os temperos (alho, cebola) para dourar no óleo e na sequência colocar as bananas verdes para refogá-las levemente e pegar o gosto dos temperos. Depois disso, colocar água para pré-cozinhar as bananas. Na sequência retiram-se as bananas da panela e coloca-se o peixe pirajica, cortado em postas, já tendo marinado (permanecido por algum tempo em tempero de limão e sal). Sobre as postas foram colocadas as bananas verdes pré-cozidas e deixou-se completar o cozimento das mesmas e do peixe. Poucos minutos antes do prato ficar pronto, adicionaram farta porção de coentro do mato (VI-2)

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Um detalhe que nos chamou muito a atenção nesse prato foi o tom azulado, decorrente

de reações químicas entre o tanino da banana verde com a oxidação do ferro da panela, bem

como dos tons verdes do coentro do mato e da banana verde, dando origem a um caldo azul

arroxeado bem escuro que lembra a cor do mar profundo.

O peixe que nos foi recomendado por diversos colaboradores da pesquisa (Maria,

João, Antônio e José) para produção desse prato foi o Pirajica, que é um peixe médio, de

textura firme e sabor peculiar. Salientaram, entretanto, que também podem ser utilizados

outros peixes para o preparo do azul marinho, como o espada e o vermelho.

Uma importante recomendação dada pela Maria foi a de descascar as bananas verdes

depois de passar óleo nas mãos, pois essas soltam um leite que gruda muito nas mãos.

No mesmo dia, os irmãos João e Maria nos descreveram o preparo do pirão com

bananas verdes: “(...) coloca-se primeiro a banana verde cozida no prato, amassando-a e

coloca-se sobre ela o caldo do azul marinho e a farinha da terra, misturando e originando o

pirão (deixar em consistência cremosa).” (VI-3)

Em outra ocasião, quando comprávamos peixes recém pescados com o caiçara José

(irmão de João e Maria), este nos orientou a fazer o peixe assado na folha de bananeira,

inclusive nos ajudou a pegá-las. Segue descrição extraída de nosso diário de campo VIII:

(...) em primeiro lugar pegamos as folhas de bananeira e as recortamos a mão de forma a retirar a estrutura central, depois estendemos as folhas em forma de cruz em uma grande assadeira retangular de alumínio, cobrindo com cebolas em rodelas e anéis de lula o peixe inteiro limpo e com cortes na pele para que o tempero (a base de limão, sal e coentro do mato) penetrasse melhor na carne dele, bem como nos anéis de lula. Em seguida fechamos as folhas de bananeira de forma a garantir que o líquido da cocção juntamente com seu sabor não escapasse e o peixe assasse melhor no forno. José (...) nos disse que as folhas de bananeira tem um efeito similar ao do papel alumínio, porém aquelas são naturais e de graça. Todos pesquisadores gostaram muito e aprovaram a receita, além de ficar muito saboroso o uso da folha de bananeira deu beleza ao prato. (VIII-1)

Também aprendemos com os colaboradores da pesquisa modos de preparo de duas

caipirinhas típicas entre os caiçaras das comunidades de Praia Mansa e Castelhanos, a

caipirinha de folha de mexerica e a de gengibre.

Maria, em conversa na escola da comunidade em que ficamos alojados:

(...) comentou sobre a caipirinha de gengibre e nos falou como fazê-la: em um copo coloque rodelas de limão e gengibre laminado, com um pouco de cachaça e açúcar. Amasse levemente para que o limão solte seu suco bem como o gengibre. Depois adicione mais cachaça e complete o copo com gelo. (III-3)

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Maria, no entanto, não revelou nesse dia como fazer a caipirinha de folhas de

mexerica. Disse-nos que era segredo.

O mesmo nos disse a colaboradora Mônica, de Castelhanos, “(...) o modo de extrair o

sumo das folhas e obter a cor típica é segredo”. (III-1)

Somente alguns dias depois, em uma conversa realizada na escola da comunidade

onde estávamos alojados, Maria “(...) revelou o segredo da caipirinha de folha de mexerica, a

saber: macera-se um pouco mais de meio copo de folha de mexerica com um pouco de

cachaça e açúcar, até extrair o sumo das folhas (é isso que dá a cor característica à bebida),

acrescentando-se depois mais cachaça e gelo, podendo-se coar”. (VI-11)

No dia seguinte, sentados em um bar e restaurante da Praia de Castelhanos, onde

Mônica trabalha, esta nos ouvindo falar com Maria sobre a caipirinha de folhas de mexerica:

(...) pediu para uma menina da comunidade que fosse buscar folhas de mexerica para que ela fizesse a famosa bebida. Logo a menina retornou com algumas poucas folhas, dizendo que havia um cacho de abelhas no pé de mexerica, o que dificultava a coleta das folhas. Mônica disse que daria para fazer apenas um copo e se pôs a prepará-lo. Logo trouxe a caipirinha pronta e todos provaram da mesma e elogiaram o sabor. (VII-1)

Em diversas conversas que tivemos com Maria e Mônica, estas nos incentivaram a

fazer cocada branca com os cocos de Praia Vermelha, segundo elas os melhores da região.

Fomos juntos com Maria até a Praia Vermelha pegar cocos, a comunidade de lá nos recebeu

muito bem, nos mostrando a casa da farinha, a horta e os famosos coqueiros, inclusive nos

ajudando a apanhar os cocos.

Depois retornamos para a escola onde ficamos alojados e começamos o preparo da

cocada:

(...) alguns quebravam os cocos com um martelo que estava guardado em caixa de ferramenta da escola, outros retiravam com facas e colheres a polpa do coco da casca, sendo que Maria, ao perceber como fazíamos, nos corrigiu dizendo que só podia ficar a parte branca do coco, ou seja, que devíamos raspar bem para não vir com partes escuras da casca. Após retirarmos adequadamente a polpa dos cocos, ralamos a mesma e demos início ao preparo das cocadas, derretendo açúcar em uma panela e depois acrescentando o coco ralado, cozinhando e mexendo sempre. Depois colocamos o conteúdo em uma grande forma retangular e levamos ao forno em fogo brando. (VI-8)

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No seio de uma cultura gastronômica além dos alimentos corriqueiros do dia a dia,

também há aqueles que não são indicados pela comunidade como adequados ao consumo ou

restringidos em determinadas ocasiões quer seja por costume, quer seja por motivos de saúde

ou religiosidade.

Durante a pesquisa encontramos algumas dessas restrições: Maria, por exemplo, disse

ser a carne de arraia “muito forte, podendo acentuar ou provocar feridas em quem está com

baixa imunidade”. (III-5) Manuel, durante a travessia que fizemos juntos até o cerco caiçara,

comentou que é:

(...) importante se fazer com alguma frequência, jejuns para que o corpo se adapte a períodos mais longos sem se alimentar, o que é de grande importância para quem navega no mar, podendo ter contratempos nas viagens como tempestades, ou a quebra do motor, dessa forma sendo obrigado a ficar um tempo muito maior sem se alimentar o que causa tontura em pessoas que não estejam acostumadas e isso pode ser perigoso no mar. (VIII-2)

Outra coisa observada e que nos chamou a atenção era que as pessoas dessa

comunidade não comiam camarão apesar da quantidade e qualidade disponível, o motivo era

a associação com a memória de camarões agindo como decompositores de animais mortos

que iam parar na praia levados pela maré alta e em alguns casos, como nos contou Chico, até

de cadáveres humanos “(...)a deriva e que seus corpos quando vinham parar na praia estavam

sendo comidos por camarões que entravam e saiam da carne como vermes”. (X-1)

Outra restrição, essa de cunho religioso, é a proibição da alimentação com carne na

sexta-feira da paixão, sendo que seus antepassados lhes contavam uma história em “(...) que a

praia ficou vermelha porque ocorreu desrespeito numa sexta-feira da paixão quando os

moradores de lá jogaram futebol e depois fizeram um churrasco.” (VIII-5) Daí o nome da

comunidade: Praia Vermelha.

Outros processos educativos identificados na comunidade de Praia Mansa e

adjacências dizem respeito a modos de produção, como: técnicas de pesca e de obtenção de

farinha de mandioca, sendo a primeira para comércio e uso próprio e a segunda, atualmente,

apenas para consumo próprio. Nesse sentido seguem algumas descrições:

O modo de pesca mais utilizado é o cerco caiçara, no qual eles colocam redes amarradas a bambus para que flutue e fique de fácil visualização, fechando um determinado trecho no mar, e funciona como uma armadilha na qual os peixes entram por um local, mas não conseguem sair mantendo-se vivos. Em geral o cerco fica próximo a uma encosta e uma das partes da rede é fixada lá com uma espia (similar a um grande prego fincado à rocha) (VI-2)

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Maria nos relatou “Que os pescadores costumam ir ao cerco duas ou três vezes por dia

para retirar os peixes em canoas.” (VI-4) Depois os peixes são levados até Praia Mansa e

colocados na câmara fria, onde são conservados até a distribuição.

A confecção das redes do cerco caiçara também é feita na comunidade, vimos senhor

Chico trabalhando em uma e ele nos contou que “o tempo de confecção de uma rede é de um

ano, pois existem outras tarefas diárias para serem cumpridas (acrescentando que se utiliza

de) uma linha mais macia porque os peixes que possuem dentes tem bem mais dificuldade

para cortar.” (IX-1)

Já a produção de farinha de mandioca na atualidade encontra-se bastante reduzida,

havendo uma casa de tráfico, como chamam, na comunidade de Praia Vermelha. Nela a

mandioca é triturada em uma roda transformando a em uma massa que é desidratada e

levemente tostada em um forno à lenha dando origem a um produto de sabor e textura

diferenciado.

Quanto à nutrição da alimentação caiçara podemos afirmar ser bem balanceada, com

alto teor de proteínas, principalmente dos peixes. Os carboidratos são garantidos pela farinha

de mandioca. E os lipídios vêm dos peixes, óleos vegetais e cocos. Tal alimentação garante

aos caiçaras vigor para suas tarefas rotineiras e, quando ficam adoentados, solucionam muitos

de seus problemas com o uso de remédios naturais: chás (melissa e gengibre, por exemplo),

pomadas (como de sete ervas) e unguentos (de citronela) que preparam a partir de ervas e

plantas encontradas na mata ou plantadas em suas hortas, conforme registramos em diversas

passagens no diário de campo VI.

Categoria B – Alimentos de qualidade especial

Tivemos contato durante a pesquisa com alimentos diferenciados dessa localidade com

qualidades especiais que compreendemos como decorrência do que chamamos de

“gastronomia da terra”, que é a dinâmica inseparável entre aspectos geográficos e humanos

que torna cada região capaz de produzir alimentos únicos, entre esses aspectos estão o clima,

relevo, biodiversidade, cultura, formas de produção e extração. Dos quais destacamos:

- Peixes extremamente frescos: por serem pescados pelo método do cerco caiçara que mantém

o peixe vivo até o momento de serem retirados da água, e por estarmos no local em que esses

peixes eram trazidos, podendo utilizá-los sem que fosse necessário congelarmos para o

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armazenamento o que já faria com que esse perdesse muita qualidade (várias passagens nos

diários de campo III, IV, VI, VIII);

- Cocos de Praia Vermelha: os quais tinham o sabor diferenciado e aparentavam ter um maior

teor de gordura, sendo reconhecidos como os melhores da região (várias passagens no diário

de campo VI);

- Farinha da Terra: que é a farinha de mandioca artesanal feita na Praia Vermelha com sabor e

textura muito superior as industriais, menos seca e com granulação semelhante a um farelo,

importante para a produção do pirão de peixe que acompanha o azul marinho, entre outros

pratos caiçaras (várias passagens nos diários de campo V, VI, VIII);

- Coentro do Mato: tempero de sabor e aroma semelhante ao coentro português, porém suas

folhas são mais largas e compridas, de formato ovalado, o mesmo é utilizado em diversos

pratos típicos caiçaras, especialmente quando a base de peixe. Caso, inclusive, do azul

marinho (várias passagens nos diários de campo IV, VI, VIII, X).

Categoria C – Sentimento de desrespeito a cultura caiçara

Os colaboradores da pesquisa, no entanto, comentaram conosco, sentimento de

desrespeito a sua cultura, em como falta de respeito a seu território, destacadamente da parte

de turistas, mas também da parte de alguns pesquisadores.

Sobre sentimento de desrespeito da parte de pesquisadores, Francisca afirmou em

diálogo na casa de tráfico de farinha: “(...) que muita gente vai lá, não pede licença, não tem

educação e que não a respeitam, só porque ela não tem muito estudo.” (VI-6)

Quanto a tal sentimento em relação aos turistas, Manuel e Marcos falaram sobre o não

interesse da comunidade de Praia Mansa em trabalhar com o turismo, pois apesar do mesmo

trazer coisas boas:

(...) também traz muitas ruins. Comentou que aproximadamente em 1996 solicitaram a Prefeitura que fizesse uma barreira com mourões de madeiras na trilha que liga Praia Mansa a Praia de Castelhanos para evitar a vinda de jipes e motos. A Prefeitura atendeu e com o tempo e a diminuição do trânsito na citada trilha, a mata foi crescendo nas laterais e atualmente, a trilha se destina apenas ao trânsito de pessoas. (IX-2)

Observamos também em nossos deslocamentos na Praia de Castelhanos tráfego de

jipes, quadriciclos e motos andando em velocidade imprópria para o local, colocando em risco

crianças e adultos, tanto caiçaras como turistas, que se encontravam na praia.

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Considerações

Durante o transcorrer da pesquisa pudemos sentir expressão de solidariedade da

comunidade em nós transmitir sua cultura de forma geral, incluindo uma grande quantia de

informações referentes à sua alimentação, como receitas, métodos de produção e informações

nutricionais dos alimentos.

Percebemos que, devido a sentimento de desrespeito a sua cultura da parte de outros

pesquisadores em contatos anteriores, os colaboradores da pesquisa demoraram um pouco

para dialogarem conosco com confiabilidade. Favoravelmente, conforme fomos nos

mostrando à eles, eles também foram se mostrando à nós.

Com a confiança estabelecida foram-nos ensinadas solidariamente e com destacada

generosidade alguns de seus “saberes de experiência feitos” (FREIRE, 2005): suas formas de

produzir pratos a base de peixe; recomendações de como fazer cocada branca; uso de ervas e

plantas medicinais, inclusive usando citronela para nos defender dos borrachudos; maneira

como pescam, nos permitindo acompanhá-los até o cerco caiçara; modos peculiares de

preparar caipirinha, mesmo a secreta receita da caipirinha de folha de mexerica, a qual,

gentilmente, prepararam para nós.

Compartilhamos, com Freire (1988, 2001, 2005), que o ato de educar envolve

necessariamente o de educar-se, sendo necessária a afetividade, a humildade, o gosto pelo

ensinar e pelo aprender, a busca incansável pela competência e pela esperança engajada na

nossa transformação: somos seres inconclusos.

No que diz respeito ao turismo, entendemos que este tem causado mais problemas as

comunidades tradicionais do que benefícios e se faz necessária maior fiscalização de

construções nas encostas, uso de veículos automotores nas trilhas e praias, lançamento de

objetos e dejetos, prejudicando a flora, fauna e o modo de vida caiçara.

Esperamos com os resultados apresentados nesse estudo poder contribuir para o

fortalecimento da cultura caiçara, em particular da etnogastronomia, na perspectiva de

promover o conhecimento, a valorização, o respeito e o reconhecimento da mesma na

gastronomia em geral.

REFERÊNCIAS BICUDO, Maria A. V.; ESPÓSITO, Vitória H. C. Pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: UNIMEP, 1997.

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BOGDAN, Roberto; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994. CAMPOS, Silmara E. de. Ser caiçara em Ilhabela: as construções de identidades nas tensões entre o passado e o presente. Dissertação (Mestrado em Educação) - PPGE/UFSCar, São Carlos, 2008. DIEGUES, Antonio C. Esboço de história ecológica e social caiçara. In: Diegues Antonio Carlos (org.). Enciclopédia caiçara - história e memória caiçara. São Paulo: editora Hucitec – NUPAUB-CEC/USP, 2005. vol. IV. p. 273-319. FIORI, Ernani M. Conscientização e educação. Educação e Realidade, v. 11, n. 1, 1986, p.3-10. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 12ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. GONÇALVES JUNIOR, Luiz. Lazer e trabalho: a perspectiva dos líderes das centrais sindicais do Brasil e de Portugal em tempos de globalização. In: GONÇALVES JUNIOR, Luiz (org.). Interfaces do lazer: educação, trabalho e urbanização. São Paulo: Casa do Novo Autor, 2008, p. 54-108. ______. Etnomotricidade: multiculturalismo e educação física escolar. In: CARREIRA FILHO, Daniel; CORREIA, Walter R. (Org.). Educação física escolar: docência e cotidiano. Curitiba: CRV, 2010. p.49-67. MARTINS, Joel; BICUDO, Maria A.V. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo: Moraes/EDUC, 1989.