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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia Campus I Salvador - BA ETNOGRAFAR - UMA ETNOGRAFIA DAS AFETAÇÕES NO ESPETÁCULO TEATRAL AGRESTE Sophia Padilha Menezes 1 Mércia Rejane Rangel Batista 2 Este artigo tem como tema a possibilidade e o desafio de se etnografar uma experiência proporcionada por representações sexuais no âmbito do teatro. Para tal, apresentamos uma proposta metodológica ainda em construção e que recai no espetáculo Agreste. Pretende-se trabalhar a construção e desconstrução dos conceitos de corpo, gênero e sexualidade, utilizando o método da Favret-Saada, uma etnografia de ser afetado, analisando as experiências da espectadora com base nas teorias queers. Palavras-chave: etnografia; corpo; gênero; sexualidade; 1 Introdução Este trabalho tem a finalidade de expor a construção do projeto de mestrado 3 e abrir uma discussão para avaliar os meios exequíveis dessa proposta, cujo tema é a representação sexual nas artes visuais, especificamente no teatro, observando o espetáculo Agreste 4 como objeto a ser investigado. Nesse sentido é importante situarmos que o texto da peça 5 constrói uma rica complexidade das relações humanas, salientando como algumas abordagens - intolerância, preconceito, amor incondicional, sexualidade - são acionadas pela obra como elementos questionadores sobre as noções vistas como naturais sobre corpo, gênero e sexualidade. No tópico a seguir relatamos a experiência 6 ao assistir o espetáculo Agreste. Ocasião em que eu me vi surpreendida e envolvida em uma história de amor numa narrativa aparentemente 1 Jornalista e mestranda no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de Campina Grande / UFCG - PPGCS - email: [email protected] 2 Doutora em Antropologia Social, Professora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de Campina Grande / UFCG - PPGCS - email: [email protected] 3 Realizado pela mestranda Sophia Padilha Menezes no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal de Campina Grande sob orientação da Profª Drª. Mércia Rejane Rangel Batista. 4 Como dado complementar, cabe informar que a peça é produzida pela Companhia Razões Inversas, que nasceu em 1990, pelo diretor Marcio Aurélio e pela primeira turma de formandos do curso de artes cênicas da UNICAMP. 5 Foi inspirado por relatos sobre o “desconhecimento” do corpo no agreste pernambucano, sob os q uais, o autor Newton Moreno, nos traz um drama de amor que ocorre em meio à seca nordestina. 6 Toda experiência como espectadora será tratada em primeira pessoa, pois se refere à mestranda enquanto espectadora.

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES

15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I

Salvador - BA

ETNOGRAFAR - UMA ETNOGRAFIA DAS AFETAÇÕES NO

ESPETÁCULO TEATRAL AGRESTE

Sophia Padilha Menezes1

Mércia Rejane Rangel Batista2

Este artigo tem como tema a possibilidade e o desafio de se etnografar uma experiência

proporcionada por representações sexuais no âmbito do teatro. Para tal, apresentamos uma proposta

metodológica – ainda em construção – e que recai no espetáculo Agreste. Pretende-se trabalhar a

construção e desconstrução dos conceitos de corpo, gênero e sexualidade, utilizando o método da

Favret-Saada, uma etnografia de ser afetado, analisando as experiências da espectadora com base

nas teorias queers.

Palavras-chave: etnografia; corpo; gênero; sexualidade;

1 – Introdução

Este trabalho tem a finalidade de expor a construção do projeto de mestrado3 e abrir uma

discussão para avaliar os meios exequíveis dessa proposta, cujo tema é a representação sexual nas

artes visuais, especificamente no teatro, observando o espetáculo Agreste4 como objeto a ser

investigado. Nesse sentido é importante situarmos que o texto da peça5 constrói uma rica

complexidade das relações humanas, salientando como algumas abordagens - intolerância,

preconceito, amor incondicional, sexualidade - são acionadas pela obra como elementos

questionadores sobre as noções vistas como naturais sobre corpo, gênero e sexualidade.

No tópico a seguir relatamos a experiência6 ao assistir o espetáculo Agreste. Ocasião em que

eu me vi surpreendida e envolvida em uma história de amor numa narrativa aparentemente

1 Jornalista e mestranda no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de Campina Grande / UFCG - PPGCS - email: [email protected] 2 Doutora em Antropologia Social, Professora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na

Universidade Federal de Campina Grande / UFCG - PPGCS - email: [email protected] 3 Realizado pela mestranda Sophia Padilha Menezes no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais, na

Universidade Federal de Campina Grande sob orientação da Profª Drª. Mércia Rejane Rangel Batista. 4 Como dado complementar, cabe informar que a peça é produzida pela Companhia Razões Inversas, que nasceu em

1990, pelo diretor Marcio Aurélio e pela primeira turma de formandos do curso de artes cênicas da UNICAMP. 5 Foi inspirado por relatos sobre o “desconhecimento” do corpo no agreste pernambucano, sob os quais, o autor Newton

Moreno, nos traz um drama de amor que ocorre em meio à seca nordestina. 6 Toda experiência como espectadora será tratada em primeira pessoa, pois se refere à mestranda enquanto espectadora.

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clássica

7. Na posição de espectadora, perguntei-me se as encenações dessa peça insinuariam uma

espécie de “modelo alternativo” às discussões sobre sexualidades que hegemonicamente vem sendo

representadas. Cabe ressaltar que a proposta tem o objetivo de problematizar meios possíveis de

representações sobre corpo e sexualidade que não reproduzam uma visão consensual, mas que

discuta maneiras distintas de desconstrução das dicotomias sexuais e que permita trazer para o

plano da análise como a arte apresenta visões e definições que podem gerar um refinamento do

conhecimento não só intelectual, mas corpóreo, sensorial e afetivo. Neste sentido acionamos as

teorias da antropologia da performance para dar conta das potencialidades de tais aspectos na

apresentação.

A análise dessas representações na arte é de extrema importância, visto que a hegemonia

heteronormativa8 usa de tais meios para gerar discursos homofóbicos de repulsa às diferenças

sexuais, tendo como um dos efeitos a produção de uma sociedade violenta e preconceituosa. Neste

contexto, salientamos que a análise terá um peso significativo na referência teórica queer, fato que

enseja trazer seus desdobramentos, influências e percursos acessados no terceiro tópico.

A seguir e posterior ao entendimento de que a teoria queer trabalha com uma crítica de

dessencialização do sujeito e propõe que a ontologia social seja desconstruída. Considerando as

forças sociais que inventam sujeitos como "naturais" e "normais" produzindo e solidificando as

diferenças sob seu reverso: os "patológicos", os "anormais". Ressaltando também que não são os

sujeitos que constituem experiências, mas as experiências que constituem sujeitos. Logo, essas

experiências devem ser analisadas, ocultá-las possibilitariam mascarar as construções históricas e

sociais (Miskolci, 2009)9. Deste modo, utilizar as ciências sociais sem questionar a construção desse

"Outro", sem refletir sobre as experiências e as forças sociais que gestam diferenças, hierarquias e

exclusões poderia solidificar a ordem social como marcadores de lugares diferenciados. É neste

sentido que, o projeto sendo construído dentro de um programa das ciências sociais, apontando um

7 Um homem, uma mulher, um sentimento - amor - e as dificuldades trazidas pelo mundo, o que aqui chamo de uma

narrativa heteronormativa. Porém, a morte de um dos personagens traz à luz o órgão sexual deste corpo, e diante da

discordância este fato emudece o teatro e muda definitivamente o rumo da história. 8 Termo melhor descrito no tópico três, mas se refere aos mecanismos que impõem a heterossexualidade como norma,

como natural e sob a marca de um ideal/moral. 9 MISKOLCI, R.. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. In: Sociologias. Porto

Alegre: PPGS-UFRGS, 2009.

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método antropológico, irá percorrer, no último tópico, as transformações desta disciplina para

refletir e encontrar os meios exequíveis da pesquisa.

2 – A experiência em Agreste

Em outubro de 2010, na cidade de Natal, imersa em leituras queers10

, recebi um convite

despretensioso para assistir uma peça da qual eu nada sabia. Minutos antes da apresentação li a

sinopse11

, sem muitas informações e sequer tempo de análise ou imaginação, Agreste iniciava-se

contando a história de Maria e Etevaldo e como eles vão, pouco a pouco, se conhecendo. Esse

conhecer é “simplesmente” encontrar-se diariamente e silenciosamente a uma distância exata de

cinco metros entre a cerca de arame farpado que divide as propriedades das terras, por um período

de semanas, meses e anos. A narração poética sopra a frase “eram tímidos feito caramujos”, mas

isso não é tudo. Paira no ar certa aflição, pois “algo” os bloqueiam a tocarem-se, e mesmo a falarem

/entenderem sobre seus sentimentos.

O tempo todo na apresentação os dois atores passam de narrador-personagem, personagem-

narrador, a fala de um sobressai a do outro, o que me deixou um tanto perturbada e ao mesmo

tempo curiosa, mas que me remeteu a um estranhamento de como lidamos com as transitoriedades e

certa dificuldade de lidar com aspectos não fixos, não fechados, com movimentos instáveis e em

construções contínuas, e com um porvir que acaba por nos envolver no romance em que ficamos ali

suspensos sem entender este “algo” e ansiando a consumação de tal. Esses aspectos do “narrando e

sendo o personagem”, o “algo” silenciado, os movimentos, flexibilidades e aflições também farão

sentido no decorrer da peça quando associados ao modo como a sexualidade vai se construindo não

só nos sujeitos como na própria sociedade.

Refletindo sobre as metalinguagens é possível sugerir que a própria cerca de arame farpado

já é por si só uma metáfora, e seguindo-as: eis que em um momento surge um furo na cerca, que

durante anos fingem não ver, porém esse furo só aumentava. Naquele “reino de areia e de sede”

10 Termo melhor discutido no tópico três, mas que pressupõe um conjunto de teóricos que objetivam descentralizar a

sexualidade hegemonicamente aceita na sociedade contemporânea. 11 Sinopse de Agreste: “um casal de lavradores simples que no meio da seca descobre o amor e foge. Pressentem que

‘algo’ de perigoso paira sobre seu amor. Agreste é um expressivo manifesto poético, uma fábula sobre ignorância,

preconceito e amor incondicional” (CIA. RAZÕES INVERSAS convidada para abertura do Festival Agosto de Teatro.

Ler ou não ler: Informativo do Festival Agosto de Teatro, Natal, RN, p.2, 9 out. 2010.)

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aquele buraco era “enorme como o sertão. Eram como rochas velhas secando na espera. Mas o

buraco crescia, como querendo se exibir. Se chegassem muito perto, Deus sabe o que aconteceria”

(Agreste, 2004)12

.

Demorou semanas, meses e anos, mas aconteceu! Maria brincando e pensando estar só

ultrapassa o furo, momento em que Etevaldo aparece. Extasiados fogem para muito, mas muito

longe. Constroem um casebre num vilarejo e fincam-se ali por vinte e dois anos, e como diz a peça

“até hoje”. Os vizinhos os admiravam e os tinham como um casal discreto, honesto e trabalhador,

mas alguns se incomodavam porque Maria ainda não havia “pego bucho”. Enquanto isso um clima

romântico e de alívio surge na plateia. Eu me perguntei olhando para aqueles dois atores: um clima

romântico pede a cena do beijo, não? Neste momento, estruturada nos binarismos sexuais, e em

certos clichês, me vi procurando a referência feminina naquele cenário, não encontrando, e eles

encenando um casal prestes a dar um beijo, pensei: será que eles vão se beijar? Eu confesso que

fiquei na torcida pelo beijo dos dois atores13

, o que não foi consumado, mas serviu para sinalizar a

minha procura dicotômica pela fêmea e valorizar a importância da construção da performance.

Afinal estava enlaçada, entretecida na narrativa, na encenação e por isso mesmo muito disponível à

experiência.

Depois da fase romântica os narradores começam a contar o momento em que Maria

encontra Etevaldo desacordado, e aos poucos, descobre seu falecimento. Ela atordoada pela perda, e

ainda tímida, revela que nunca viu Etevaldo nu, deixa-o para as vestideiras prepararem o corpo do

falecido, e ao tirar-lhe a peça íntima ficam ali olhando, olhando, tentando encontrar o pênis do

falecido. Uma delas exclama: “Tabaco! O marido dela é fêmea!” Imediatamente abandonam o

corpo e saem espalhando a notícia pelos arredores. Essa descoberta tem um efeito profundo não só

no vilarejo, como na própria plateia, considerando que eu também estava nela. A partir daí o clima

romântico deixa a cena, sendo permutado pelo clima de tragédia14

.

12 AGRESTE. Aurélio, Marcio. Apresentação de obra artística teatral, 2004. 13A torcida foi reforçada, pois antes do espetáculo começar presenciei uma cena de censura sexual da própria diretora

do teatro direcionada a uma colega que deu um beijo na boca (selinho) de uma mulher. Conhecendo bem ambas, sei que

foi uma atitude para compartilhar a ideia do “artista descolado”, pois não dizia respeito à abertura delas sobre o tema sexualidade, menos ainda sobre “outras” sexualidades. 14

“Cercaram a casa. Enterravam-nas vivas. Não se sabe quem foi, nem quantos eram, nem quem ascendeu o primeiro

fósforo. Começaram a incendiar o casebre. Mal sabiam que dentro a viúva agradecia a bênção de morrer com

Etevaldo. Temia muito mais viver sem ele, por certo. O fogo já ganhava as paredes, mesmo assim a viúva retirou o

lençol que lhe cobria o corpo, viu ele por inteiro pela primeira vez. Descobriu então que era mulher. Pôs-se ao lado de

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Embora essa obra tenha me surpreendido como uma espectadora heteronormativa e binária,

assumi isso de modo doloroso, mas também prazeroso, pois encontrava ali meu objeto de estudo: o

espetáculo como fio condutor de afetações15

binárias e heteronormativas, na qual Agreste

desconstruiu um olhar hegemonicamente estruturado em dicotomias, desmembrando re-

significações de corpo, gênero e sexualidade, sob a qual a espectadora era seu próprio objeto.

Hoje, em 2013, em processo de maturação das análises, pretende-se fazer uma etnografia

das afetações com base nas experiências daquela espectadora, conforme metodologia sugerida no

tópico quatro. E, promover assim, um encontro entre arte e ciência e as potencialidades do

conhecimento provenientes deste conjunto. Apropriando-se da perspectiva construída por Victor

Turner sobre a performance como complemento da experiência, o que implicaria em dizer que nas

construções sociais os modos pelos quais as enunciações que se fazem também com o corpo,

carregam uma qualidade e potencialidade que devem ser investigadas pela antropologia, em que a

experiência de Agreste implica num exercício no qual a representação teatral é percebida enquanto

uma performance, o que resulta na percepção que não basta analisar o texto/roteiro da peça. Ao

contrário, a encenação, o palco, os atores e, principalmente, os espectadores se constituem no

material a partir do qual julgamos que se produz um processo de desconstrução e reconfiguração de

diversas dicotomias, acrescentando nesse conjunto, a dualidade cartesiana: mente/corpo, que no

processo hegemônico de obtenção do conhecimento, a primeira é privilegiada, já o segundo é

objetivado e menosprezado.

Portanto a obra de arte, com suas características sinestésicas16

predominantes, produzem

múltiplas formas de sentir que não parecem dominantemente funcionar sob as influências da

mentalidade provenientes da célebre frase de Descartes: “penso, logo existo”, mas sugestiona:

experimento, logo estou, estou em algo em construção / desconstrução. Esse tipo de conhecimento é

o que Schechner (2011)17

vai chamar de conhecimento performático, são atividades que respeitam o

Etevaldo. Beijou-o na boca. O que nunca tinha feito antes. Abriu-lhe os olhos no meio do beijo enquanto o fogo já

ganhava a casa inteira. O dia amanhecia e as fagulhas resistiam queimando, por dias, cinzas, silêncio. As fagulhas em

suspenso como um eco pairavam sobre lavouras, varais e gerações. Cruel... a natureza é. Dá o sol na desmedida. Dá o

corpo na desmedida. Dá o amor na desmedida.” (Agreste, 2004). 15 Termo utilizado por Favret-Saada com fins teóricos, descritos melhor no último tópico. 16 São percepções relacionadas às sensações visuais, auditivas, táteis, olfativas, palatáveis, cinestésicas (percepções

sensoriais relacionadas aos movimentos corpóreos), afetivas e imaginárias. 17 SCHECHNER, Richard. Pontos de contato entre o pensamento antropológico e teatral (tradução de Ana Letícia de

Fiori). In: Cadernos do Campo, nº 20, p. 213-236, 2011.

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corpo, como um meio de aprendizado que se distingue do “aprendizado da cabeça”. O autor relata

que aprendeu mais sobre o nô, um estilo estético japonês, usando movimentos corpóreos, que

juntamente com as leituras, reforçaram melhor seu aprendizado.

Logo, a experiência sinestésica vivida no lugar da espectadora reelaborou os conceitos

teóricos queers de um modo, em que a distinção é que, com base nas multiplicidades desse sentir,

utilizando o vetor corpóreo, fez imediatamente emergir-me em inquietações de alguém que está

num lugar de compartilhamento de valores hegemonicamente heteronormativos. Portanto aproxima-

se do que Victor e Edith Turner chamam de etnografia performatizada, uma série de exercícios que

proporcionam uma “visão de dentro” e uma compreensão cinética do “outro”. (Schechner, 2011).

Neste caso, a questão chave é que essa vivência mostrou que o corpo é controlado para além das

condutas sexuais, mas também, como um vetor que é dessensibilizado, domesticado, ao que parece

também para enfraquecer as suas potências cognitivas e sensoriais na obtenção do conhecimento.

Agreste, conforme a experiência, é o resultado de um esforço em conjunto para produzir

uma performance que proporciona uma situação da qual somos deslocados do campo das certezas,

logo, teoria/drama social e estética cultural andam, de alguma maneira, juntas. Sendo assim,

pretende-se compreender as intensidades que envolvem partes do texto performático. Esse conjunto

de reflexões fazem parte de um exercício de olhar para a estética e ver no experimento a questão

social. Para tanto, apresentamos no próximo tópico o aporte teórico que viabilizará a estrutura de

análise.

3 – Desdobramentos Queers

Queer18

foi cunhado teoricamente pela primeira vez, de acordo com Gamson (2006)19

, por

Teresa de Lauretis, em fevereiro de 1990, na Universidade da Califórnia. Essa palavra usada

anteriormente para ofender e insultar àqueles que transgridem as normas consensuais sexuais e de

gênero passa a ser uma expressão que denuncia os efeitos normativos hegemônicos das construções

das identidades sexuadas e “generificadas”.

18 Possíveis traduções: anormal, esquisito, estranho, excêntrico etc. 19 GAMSON, Joshua. As Sexualidades, a Teoria Queer e a pesquisa qualitativa. In: DENZIN, N. O planejamento da

Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2006.

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A teoria queer nasceu nos anos 1980, a partir dos Estudos Culturais norte-americanos, onde

se tinha como prioridade a análise desconstrutivista de obras artísticas e midiáticas. Seu objetivo

emerge para desvendar a centralidade da sexualidade na sociedade contemporânea, fazendo

oposição às normas socialmente aceitas (Miskolci, 2009). Instala-se uma aliança entre as teorias

feministas, pós-estruturalistas e críticas psicanalíticas que investigam a categoria do sujeito.

Enquanto os estudos gays, lésbicos, de gênero e vertentes da teoria feminista essencializam o

sujeito, sob concepções naturalizantes e binárias, por outro lado, a teoria queer emerge para

contrastar e romper com a concepção cartesiana do sujeito como portador de uma base ontológica e

epistemológica (Miskolci, 2009).

Judith Butler pode ser considerada uma teórica feminista, porém sua crítica genealógica das

ontologias de gênero revela concomitantemente com Foucault uma concepção do sujeito como um

processo em construção, em um eterno devir que não supõe identidades fixas e estáveis, logo ela é

por excelência uma teórica queer (Salih, 2012)20

, visto que a referida teoria tem como característica

fundamental dessencializar o sujeito. Para Sedgwick (1990)21

o termo queer pode ser entendido

como algo indefinível, instável, atravessado, estando continuamente em processo. É, portanto, sob

essas influências que a teoria queer recusa-se a catalogar, “enumerar, classificar ou dissecar as

sexualidades disparatadas” (Miskolci e Simões, 2007:10)22

.

Outro aspecto importante, é que entre 1980 e 1990 a maneira enviesada como se via a

epidemia do vírus HIV/Aids reforçava a “cultura hétero” versus condutas gays, empregando ações

violentas como o termo “praga gay”, contexto este que, reforça a importância do que propõe a teoria

queer: investigar e desconstruir categorias, “afirmando a indeterminação e a instabilidade de todas

as identidades sexuadas e ‘generificadas’”[grifo nosso]. Deste modo, a significância da investigação

da construção da “normalidade” sexual serve para revelar que as identidades apresentadas

hegemonicamente como “héteros, legítimas, singulares, e estáveis, têm de queer por debaixo de sua

aparente ‘normalidade’” (Salih, 2012:20).

O que se propõe, com base em teóricos pós-estruturalistas como Michel Foucault e Jacques

Derrida é desconstruir as bases da metafísica ocidental, ao invés de fixarmos nas categorias

homossexual e heterossexual, sugere focar e dissolver a operação do binarismo hétero/homossexual.

20 SALIH, S. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. 21 SEDGWICK, Eve. Epistemology of the Closet. Londres: Penguim, 1990. 22 MISKOLCI, R. e SIMÕES, J. Dossiê Sexualidades Disparatadas In: Cadernos Pagu. Campinas, n° 28 p. 9-18, 2007.

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Evidenciando a necessidade idealista de um centro, ou uma presença essencial articulados para

gestar diferenças. Para Foucault (2005)23

, o sexo é fruto de um efeito do discurso, logo, aquele

discurso que proíbe um tipo de conduta sexual, é certo que o produz. De um modo geral, a teoria

queer tenta entender as estratégias políticas que criam e justificam o uso das diferenças como meios

de hierarquizar e oprimir indivíduos de uma determinada cultura.

É neste sentido que, de acordo com Foucault, foi necessária, no século XIX, a invenção da

homossexualidade e do sujeito homossexual para que os intelectuais especialistas saneassem as

regulações e normalizações sociais com base em distinções. Assim como para Derrida, o

heterossexual só o é em definição daquilo que ele não é, ou seja, seu oposto homossexual, logo é

preciso haver o homossexual para que haja o heterossexual. É preciso haver o subalterno para

existir o hegemônico. É uma dinâmica de construção entre presença e ausência em que, na

suplementariedade os significados são construídos com base nas diferenças, o que aparenta estar

fora já está dentro, e aquilo que se naturaliza é resultado de uma construção social histórica

(Miskolci, 2009).

Derrida traz a linguagem como um sistema de diferença, em que “a significação é

dependente do que está ausente” (Salih, 2012:47). Nesse sentido, os binarismos devem ser

analisados sob o prisma de uma desconstrução crítica, considerando que para esmiuçar a

binariedade deve-se pensar não de modo separado. Foucault (2005) também salienta que não pode

haver dicotomias, como a divisão do que se diz e não se diz, mas analisar a distribuição da fala,

quem tem autorização a falar e quem não tem, qual discurso é permitido e legitimado, ou como são

formados e dirigidos a uns e outros, logo, também é preciso considerar o silêncio como parte

fundamental das estratégias que atravessam os discursos.

Diversos conjuntos de discursos de saberes / poderes solidificam a heterossexualidade como

a ordem social hegemônica, na qual podemos dividir entre dois termos, a heterossexualidade

compulsória, mais apropriada no final do século XIX em que a prática homossexual era considerada

como crime e/ou doença, prendia-se, internava-se e medicalizava-se aqueles que assim se

comportavam. O termo heteronormativo começa aparecer a partir da segunda metade do século XX,

quando acontece a despatologização e descriminalização da prática homossexual, porém emergem

uma série de práticas e discursos regulamentares que objetivam controlar e normalizar as condutas e

23 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 2005.

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os corpos dos homossexuais, não mais para que abandonem suas práticas, mas que se formem e se

comportem como o “tipo ideal” legitimado: os heterossexuais (Miskolci, 2009). Para melhor

compreensão do que são essas práticas regulamentares, acionam-se outros teóricos em conjunto ao

contexto em que Agreste foi apresentado.

É, portanto sob o prisma de uma sociedade hegemonicamente heteronormativa que a peça a

ser analisada foi assistida e encenada, escrita e patrocinada. Autores como Lauren Berlant e Michael

Warner (2002)24

mostram como as instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas

não somente funcionam para que a heterossexualidade se apresente como a sexualidade coerente,

mas objetiva que ela também seja privilegiada, acionam-se assim aspectos sociais, linguísticos e

pessoais para que essa conduta sexual seja percebida como o estado natural, projetando-se como um

ideal/moral. Logo, esse conjunto de ações forma basicamente o conceito de heteronormatividade.

Seguindo esta lógica, deduz-se que todas as pessoas são heterossexuais até que se mostrem

ao contrário, em que as normas sociais vão essencializar as categorias homem/mulher, um opondo-

se ao outro, criando diferenças sexuais, chamada por alguns de gênero, mas que para Butler

(2003)25

é uma invenção social e histórica dos sexos que usa o corpo/genitália como a materialidade

do gênero. Este complexo conjunto de controle - corpo e gênero - só tem sucesso absoluto quando

define/impõe a opção sexual nos termos da heterossexualidade.

Gênero para Butler é uma tecnologia heteronormativa sofisticada instrumentalizada por

diversas instituições sociais que por meio da disseminação dos discursos coercitivos sobre a

diferença entre os sexos cria-se a noção de essência/natureza da mulher/homem, impondo na

sociedade uma binariedade entre sexo e gênero, legitimando normas heterossexuais, controlando

assim a sexualidade (Bento, 200626

; Butler, 2003; Foucault, 1984).

Para tanto sugerimos estudar e contextualizar os conceitos de corpo, gênero e sexualidade,

utilizando os conceitos de autores que venham contribuir para a pesquisa na perspectiva queer, cabe

ainda salientar que essa teoria não será importada sem uma análise contextual adequada.

24 BERLANT, Laurent e WARNER, Michael. Sexo em Público. In: Jiménez, Rafael M. M. (editor) Sexualidades

Transgressoras. Barcelona: Içaria, 2002. 25 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2003. 26 BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro:

Garamond, 2006.

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4 – Afetações metodológicas

A pesquisa é desenvolvida dentro de um Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais, e

tem como desafio metodológico apropriar-se de um viés antropológico. Para apresentar os

caminhos metodológicos faz-se necessário um resgate da disciplina até seus cenários atuais.

Informações diversas sobre o homem e sua cultura em locais distintos eram coletadas por

missionários, viajantes e administradores até o fim do século XIX. A partir desse período Margaret

Mead, A. R. Radcliffe-Brown e Bronislaw Malinowski estabelecem “com sucesso a norma do

scholar treinado na universidade” (Clifford, 1998:23)27

. Este último funda técnicas de coleta de

dados, trabalho de campo, o método da observação participante e uma escrita própria da

antropologia: a etnografia. Assim a antropologia emerge como uma disciplina científica com

autoridade para representar a voz dos outros povos, de outras culturas.

Porém, a partir dos anos 1950, 60 e 70, a disciplina que se tornou dominante no campo

começa a ser questionada: a observação etnográfica, levando em consideração as relações de poder

no âmbito da pesquisa e escrita, pode ser portadora de conhecimento científico sobre o “outro”?

Para Clifford (1998), mesmo o método sendo científico soberano e respaldado por questões éticas

ainda assim não há como garantir a verdade sobre o “outro”. Instala-se uma “crise de consciência

da antropologia em relação a seu status liberal no contexto da ordem imperialista”, momento em

que o Ocidente deixa de ser o único “provedor de conhecimento antropológico sobre o outro”

(Clifford, 1998: 18-19), e passa a ser alvo de reflexões, principalmente dos teóricos, como

Heidegger, Wittgenstein, Gramsci, Sartre, Foucault, Derrida e Bakhtin. Estes, preocupados com a

representação do “Outro” no discurso etnográfico, levantaram questões, como: “Não será toda essa

empreitada apenas uma dominação exercida por outros meios: ‘hegemonia’, ‘monólogo’, ‘vouloir-

savoir’, ‘mauvaise foi’, ‘orientalismo’? ‘Quem somos nós para falar em nome deles?’” (Geertz,

2001: 92)28

. Esse falar sobre “eles” envolve uma escrita etnográfica que irá rearranjar através do

discurso legítimo/etnográfico, tendo como correlato o modo pelo qual o etnógrafo sustenta o seu

discurso e despossui o discurso do outro, sobre o qual ele fala (Clifford, 1998). Outro elemento é

que há entre o pesquisador e seu objeto aquilo que Goffman chama de encenação e performance,

27 CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora

UFRJ, 1998. 28 GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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em que, tais aspectos limitam a representação do “Outro”. E que “Outro” é este em um cenário da

globalização, onde aquele “homem puro e intocado” se é que algum dia existiu, certificam-se que já

não existe mais, isto é, o objeto da antropologia começa a desaparecer. Será?

Oliveira trata o termo crise como algo desgastado e com pouca finalidade prática, usado por

demais para encontrar problemas exteriores à disciplina, em que as auto-representações continuam

intocadas. Assim, ao substituir o termo crise por “mal estar” permite-se outro tipo de abordagem,

como: entender que a ameaça não vem de fora e sim de dentro. “Uma ameaça interior, de um temor

difuso de que alguns comportamentos venham a romper com o consenso estabelecido e conduzam a

uma quebra de unidade na disciplina” (Oliveira, 2004:10)29

. Nesta concepção há uma crítica interna

que se estabelece em verdades operacionais cristalizadas em um habitus da disciplina, cuja violação

incomoda e frustra. Essa herança de técnicas - as “teorias nativas” - são fortemente invioláveis

mesmo no momento em que essa ciência deixa de estudar povos “primitivos” transformando-se em

uma ciência que estuda o “homem na pluralidade de suas manifestações”.

Essa transformação, de acordo com o autor, requer diálogos interdisciplinares. Certa

nostalgia no cenário brasileiro faz, em alguns rituais acadêmicos, que todo objeto nas mãos de

antropólogos “se tornam imediatamente ‘nativos’, independentemente de sua condição social,

horizonte e ideologia”. A proposta que se instala, acionando contribuições teóricas de outras áreas,

como o interacionismo simbólico, a análise dos discursos, e o interpretativismo norte-americano,

não é só de ter novos objetos, mas de reelaborar métodos e objetivos, operando uma “transformação

qualitativa da herança clássica”.

Refletindo sobre o encontro colonial, Oliveira mostra como, naquele contexto, era possível

objetivar o outro. “O nativo é um puro informante”, já o pesquisador é aquele que “exerce a

observação e análise, como se estivesse no mais perfeito dos laboratórios”. Implementa-se um

cenário artificial em que se objetiva o outro e o self, criando assim uma intimidade unilateral e

provisória devido ao poder colonial, instaurando, deste modo, uma produção de conhecimento dessa

relação unilateral, em que a neutralidade científica é um artifício político para a naturalização da

relação de dominação entre colonizadores e colonizados. O autor propõe uma direção contrária a

29 OLIVEIRA, J. P. Pluralizando tradições etnográficas: sobre certo mal-estar na antropologia. In: LANGDON, E.J e

GARNELO, L. (org.). Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre a antropologia participativa. RJ: Contra Capa

Livraria/ABA, 2004.

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essas “verdades operacionais”, “contrária a essa postura normatizante e redutora” (Oliveira,

2004:14-17).

O objeto de estudo desta pesquisa está atravessado por essas transformações na antropologia

e é neste contexto que se possibilita apresentar caminhos metodológicos a se seguir. Caminhos no

plural, pois nesse exercício etnográfico necessariamente não terá uma única base, podendo haver

convergências de métodos e técnicas complementares caso a pluralidade do campo assim solicitar.

Ressaltando que a partida inicial será sob o método de Jeane Favret-Saada, que não se trata da

observação participante ou da participação observante, mas um modo de participar afetando-se.

O que venha a ser isso, ou antes, como a autora sentiu a necessidade de usar/criar tal

método? Seu objeto no momento era a feitiçaria, ela inicia uma pesquisa sobre literatura etnográfica

do tema e descobre as limitações tantos dos folcloristas europeus, etnólogos franceses, como dos

antropólogos anglo-saxões. A palavra nativa, mais uma vez, sob a autoridade do pesquisador é

posta em cheque, a autora critica os métodos da observação participante e participação observante,

que são chamados, por ela, de oximoro, pois se você observa, você não participa, dando-se o

mesmo no caso de se inverter a equação. Logo, essa terminologia da retórica é utilizada para

desqualificar a palavra nativa e promover a do etnógrafo (Favret-Saada, 2005)30

. O levantamento

dessa literatura anglo-saxã também aponta um erro empírico: todos negavam uma feitiçaria rural na

Europa atual. O que de fato não era coerente, pois tanto existia que a própria autora estava dentro

dela: no Bocage, na França, em 1968.

De acordo com a autora, esse erro, apontava para mais uma tentativa de uma “Grande

Divisão”, instaurada em uma relação de forças que enquadra o “outro” enquanto alguém que se

perdeu em um comportamento ultrapassado. Logo, feitiçaria só caberia nos lugares fora da Europa.

No mais, seriam somente resquícios. Parte-se sempre do pressuposto que é uma operação não

racional. Instala-se um jogo de divisão entre “eles” e “nós” que protege o etnólogo “contra qualquer

contaminação pelo seu objeto”.

O trabalho de campo com os camponeses do Bocage, imerso em jogos de poder, começa sob

a égide do mutismo. Não queriam fazer com ela o jogo da “Grande Divisão”. As informações no

campo começam a aparecer quando pensam que autora havia sido “pega” pela feitiçaria. De outro

30 FAVRET-SAADA, J. Ser afetado (tradução de Paula Siqueira Lopes). In: Cadernos do Campo, nº 13, p. 155-161,

2005.

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modo não teriam falado com ela. Logo, afetar-se pelos efeitos reais da feitiçaria diferenciava a

posição dela como etnógrafa, que naquele contexto, não lhe dariam informações, pois eles exigiam

dela um experimentar fora do âmbito da ciência. O que a autora é levada a fazer, sem muita clareza

e intenção, é usar a participação como “um instrumento de conhecimento” (Favret-Saada,

2005:157).

Para evitar mal entendidos ela esclarece que esse vetor de conhecimento não tem nenhuma

semelhança com um conhecimento por empatia, pois este termo supõe distância. É algo como

imaginar estar no lugar do outro, porém, não é isso que implica seu método, pois ela estava

exatamente no lugar do outro. Favret-Saada não podia imaginar sensações do outro, pois

simplesmente vivia as sensações no lugar do nativo, é alguém que ocupa um lugar na feitiçaria. A

autora afirma: “é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de imaginar-se lá”. Este lugar é o lugar das

intensidades, dos afetos, que nem sempre são significáveis, são elementos a serem experimentados,

“é a única maneira de aproximá-los” (Favret-Saada, 2005:159).

A empatia também pode ser traduzida como comunhão afetiva, que tem a ver, de acordo

com a autora, com “instantaneidade da comunicação, na fusão com o outro”, é pela identificação

com ele, que se permite conhecer os afetos do outro. A empatia, portanto, está fora desse participar,

logo que ocupar o lugar do outro ao participar é poder viver o afetar-me, o mobilizar-me, o

modificar-me. A autora defende que esse afetar torna possível o conhecimento, pois “abre uma

comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de

intencionalidade, e que pode ser verbal ou não” (Favret-Saada, 2005:159), esse não verbal está

associado a intensidades compartilhadas nessa experiência, que escapam da comunicação.

Argumentando seu método, Favret-Saada ressalta que: “Aceitar ser afetado, isso não implica

identificar-se com o nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu

narcisismo” (Favret-Saada, 2005:160).

Quatro traços distintos são apontados pela autora: a comunicação etnográfica voluntária e

intencional cujos fins são as representações é uma forma pobre e “imprópria para fornecer

informações sobre aspectos não verbais e involuntários da experiência humana”; é preciso que o

pesquisador tolere viver uma espécie de ruptura naquilo que nele é afetado, maleável, modificado

pela experiência de campo, ou aquilo que nele quer registrar a experiência e fazer dela um objeto da

ciência; o conhecimento é uma relação com o tempo, quando afetados não se pode narrar de modo

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compreensível, “o tempo de análise virá mais tarde”; por último, a densidade do material recolhido

particular desse método caminha para que as certezas científicas estabelecidas sejam quebradas

(Favret-Saada, 2005:160).

Expor a experiência daquela espectadora afetada por Agreste, em 2010, não é nenhum pouco

egocêntrico e narcisista, ao contrário, é um tanto desconfortável. É como diz Favret-Saada, é um

risco, pois, contrariamente, essa vivência faz seu próprio conhecimento sobre os conceitos de corpo,

gênero e sexualidade desfazerem-se, revelando uma espectadora heteronormativa e binária, apesar

de sua imersão em teóricos queers, como Foucault, Derrida e Butler. Contudo, conforme a autora:

“se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é

possível” (Favret-Saada, 2005:160).

Aceitar o convite despretensioso para uma simples peça de teatro foi de fato uma aventura

pessoal que naquele tempo era impossível relatar de modo analítico, porém seguindo o método

indicado, em que o conhecimento é uma relação com o tempo, no qual, estando no momento da

afetação é impossível descrever de modo compressível. Hoje, após três anos de estudo e análises da

vivência, tanto como espectadora e pesquisadora, proporcionam questões que ensejam, neste

momento, ter essa experiência como um objeto da ciência. É sob essas indicações que se pretende

usar a participação como vetor de conhecimento, porém sem uma completa recusa da utilização da

observação participante, entre outros métodos e/ou coletas de dados, se o campo, em algum

momento solicitar. Mesmo que o tema desta pesquisa não seja feitiçaria, que para Favret-Saada foi

um assunto por muito tempo falado por outros, constatando certo silêncio dessas vozes, uma vez

que, na fala, nas enunciações e discursos, há relações de forças, encenações e interpelações, em que

o etnógrafo é aquele que decide como montar sua narrativa, neste sentido, esse silêncio não estaria

em termos de igualdade quando nos referimos aos estudos sobre o tema que Agreste aborda: as

sexualidades “desviantes”?

De qualquer modo assume-se, nesta primeira experiência, o lugar do qual se ocupa a

espectadora, pois, de outro modo as relações de forças estariam imersas e comprometeriam de

alguma maneira a voz do “outro”, muito embora, a pesquisa pretenda, estando em um processo de

construção e desconstrução, mais levantar questões do que responder perguntas. A proposta é fazer

um exercício analítico de olhar para a espectadora como o próprio objeto de estudo, olhar alguém

que habitou esse lugar, alguém que experimentou intensamente. Porém, agora será visto

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analiticamente pela etnógrafa, com a pretensão de descrever a experiência dessa espectadora afetada

pela heteronormatividade, e assim, discorrer sob o prisma da desconstrução, as referências aos

conceitos de corpo, gênero e sexualidade.

Ao rever o espetáculo, se assim for feito, será visto e habitado pelo lugar/posição da

etnógrafa, usando os métodos da antropologia da performance que auxiliarão a compreender

elementos da intensidade da performance, como: a construção da performance; como esta repele ou

atrai participantes; as questões da manipulação do espaço, cenário e roteiro; e a análise das

experiências.

Sugerimos que tais métodos, baseados no aporte teórico apresentado, darão conta de iniciar

a pesquisa e esmiuçar os questionamentos levantados em relação ao conjunto complexo do

espetáculo Agreste, vislumbrando as articulações de quebra de paradigmas da composição dos

conceitos de corpo, gênero e sexualidade nas representações artísticas.

5 – Bibliografia

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