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José Morais 2010 Eu e Minhas Facetas

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José Morais

2010

Eu e Minhas Facetas

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Eu e as Minhas Facetas

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As Origens

Passados oitenta e cinco anos de vida, ainda no uso de plenas faculdades,

sinto-me, diria, sobrevivente de lutas e peripécias que recaíram na minha existência

desde criança. Nasci em 1925, em condições humildes, necessariamente integrado

nas carências habituais do meio em que as pessoas sobrevieram também vindas do

desenrolar de uma história antiga muito dolorosa e que, em verdade, nem mesmo

escassas melhorias que tenha havido ao longo dos tempos, os tira da sisudez de

quem vive mal e tantos são os motivos por que sofre aquela gente. Diria que não

está muito “à flor da pele” a ideia de descontracções sociais. De outro lado são

pessoas sérias (quando são), e meticulosas no que respeita ao dever do cumprimento

de preceitos religiosos; também estes aconselham submissão ao poder dos que

dominam e ao pregado temor a Deus.

Mas, é também o clima forte que por ali se faz sentir. Uma pujança a partir da

Primavera, em que se sente a vida brotar da terra ao ponto de nos emocionar

(palavras de um lavador); daí até ao tempo das castanhas há uma mesa farta para toda

a gente, ao ponto de esquecerem o rigor do inverno que passou. Aí houve, como

sempre, miséria, fome e grandes acabrunhamentos dos pobres sem trabalho e sem

direitos. No dizer de Miguel Torga, o clima duriense divide-se em “Nove meses de

Inverno e três de inferno”.

Já não circula entre as pessoas a memória da gravidade e o sofrimento de

sangue e morte que antepassados seus tiveram, ao longo dos trezentos anos de

história, para implantar a região do Alto Douro cuja escuridão dos tempos, de modo

nenhum, deixavam antever que aquele inferno viria a ter uma beleza tal, ao ponto de

ser qualificado de “Património da Humanidade”.

Não resisto em transcrever dois extractos de obras de Jaime Cortesão e de

Orlando Ribeiro:

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Jaime Cortesão: “ E quem hoje sobe à mais alta das capelas que escalam até o cume do

caótico montão de penedias e de cima contempla a sombria voragem, onde se engolfa o rio, sente, se é

cristão e lhe dói a dor alheia, vir do fundo e trespassá-lo um desespero de dor e perdição”

Orlando Ribeiro: “Uma Obra de Três Séculos. Na paisagem ondulante do Douro nada

apareceu ao acaso. Para a entendermos é obrigatório viajar no tempo e recordar o esforço humano

que transformou uma área deserta num “jardim suspenso”. “Para se fazer a vinha e o vinho, houve

necessidade de se fabricar a terra a partir do xisto, e o retrato do Douro actual é por isso o espelho

de um esforço humano levado aos limites do sacrifício, um esforço que decorreu ao longo de três

séculos, até que a força dos tractores e dos bulldozers terminasse a tormenta”. “A mais vasta e

imponente obra humana no território português”.

Vertente virada ao Norte de Terras de Celeirós do Douro. Paredes e socalcos erigidos sobre a terra, parte dela fabricada da pedra esmagada à marretada. Das profundidades dos montes obscuros os homens fizeram um jardim, hoje Património Mundial.

A história do vinho é longa e diversificada. A vinha está feita, há uvas e

folhagens de videira tornando num jardim o que foram lugares tenebrosos. Mas tal

beleza nasce e morre ano a ano e a sua manutenção propicia a continuação de

sofrimentos e de muita injustiça. São componentes que, não tendo a amargura dos

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antigos acima referidos, determinam contradições e precariedades de vária ordem

que naturalmente me marcaram também.

Recordando o meio em que vivi até aos vinte anos de idade, onde nem sequer

se invocavam as palavras “direitos” e “cidadania”, vejo a inexistência total dos

poderes públicos que nada tinham a ver com humanismo e protecção social, nem

qualquer disciplina regulamentar específica que mexesse com o livre arbítrio dos

senhores sobre os trabalhadores.

E se pouco antes houve por lá manifestações políticas próprias das revoluções

republicanas, o que nada significava para a miséria e dificuldades dos pobres, no

meu tempo havia disciplina da ordem social, contudo mantida através da repressão e

do medo da Guarda Republicana de Sabrosa que reprimia, indiscriminadamente,

quer fosse por algum roubo, por uma bicicleta ou um carro de bois sem luz,

tabernas denunciadas que não fechassem à hora, camuflando no seu interior

jogadores de cartas – trabalhadores que desbaratavam parte da sua mísera jorna, etc.

Mas, nunca vi ninguém a queixar-se de regras governamentais que haveriam

de manter a ordem, fosse qual fosse a sua noção de justiça.

O patrão armazena, ano após ano, o famoso vinho de Porto; o cavador que

preparou a vinha, sem qualquer acesso nem sequer a um tostãozinho extraído

daquela riqueza sempre maior e mais avolumada em cubas e tonéis distribuída, é-lhe

vedada a simples contemplação da sua obra…

Porém, num lugar onde os poderes dominam, em que a autoridade estatal não

é sensível à justiça fundamentada no amor, observo agora à distância que, em

momento algum, ouvi a Igreja daquelas paragens denunciar a imoralidade que há no

comportamento dos senhores para com os pobres escravizados – sabendo nós que

são exactamente esses infelizes e suas famílias que lhes mantêm e aumentam as suas

riquezas.

De duas, e uma: ou a Igreja, ela mesma, se tornou em mais um dos poderes

sobre os pobres e vive de alma e coração identificando-se com eles, ou se coloca

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uma posição indefinida entre os pobres e as outras duas componentes sociais: o

sistema político e os ricos. Desde já digo que não é essa a maneira de estar neste

mundo de Cristo; um mundo livre, independente, em que Jesus chega mesmo a

dizer “Quem não é por Mim é contra Mim” ou, “Que o vosso falar seja sim,

sim; não, não”. Na verdade Jesus tinha uma missão que começava em Si próprio –

cumprir a vontade do Pai – e tudo o mais haveria de ser continuado Nele e o seu

exemplo. A doutrina de Jesus é resposta a todas as necessidades humanas, quando

vividas como Ele as viveu. Quem O seguir no apostolado, a sua acção há-de ser

também exclusiva e não dividida. “Onde estiver o teu tesouro aí estará também o teu coração”

(Mateus 6:21) e “Ninguém que lança mão do arado e olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lucas

9:61). E também que vomita os que não são quentes nem frios.

Com estas citações apenas quero dizer que a Doutrina de Jesus é exigente,

poderosa, exclusiva, independente de qualquer combinação material e é possível.

Que o digam os santos. Por mim só quero justificar o que penso. A análise sábia e

justa só Deus a pode fazer.

Ainda que a palavra de Cristo fosse pronunciada sem qualquer alteração até

ao fim dos tempos, o erro sempre estará connosco, quero dizer que este meu

raciocínio reporta-se ao panorama social em que vivi, entre os anos de 1925 a 1946.

Direi ainda que, para além do atraso social em que se vivia, a guerra de

Espanha e a segunda guerra mundial vieram contribuir para levar a miséria a

extremos muito dolorosos.

Dou testemunho de tudo que digo. Sobre a história desses dias, escrevi um

livro que não é mais que um retrato da minha própria história. Intitulei o trabalho:

“DOS TENEBROSOS INVERNOS, AO TEMPO DAS FLORES”

Celeirós do Douro é uma terra de artistas, onde ainda senti o som das

bigornas dos serralheiros, o martelar dos pedreiros, o labor de várias profissões

como cesteiros, tanoeiros, latoeiros, sapateiros, alfaiates, costureiras, ferreiros, o

movimento comercial; tudo vi desaparecer, com excepção do trabalho das vinhas.

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Fora como se o chão nos fugisse debaixo dos pés. Eu, por exemplo, depois da

quarta classe, comecei, feliz, a aprendizagem da arte de serralheiro civil, passei por

trolha, parti pedra em roteamentos na construção de vinhas novas e acabei também,

sem êxito, na profissão de alfaiate. Muitas foram as peripécias que teceram este meu

caminho, até que, em Janeiro de 1946, saí de Celeirós para a Marinha de Guerra.

A sorte que tive não é possível explicá-la; mas creio que nunca, em tempo

algum, tenha havido alguém daquela terra que experimentasse tamanha ventura,

cheia de tanto bem.

Parti, e lá ficaram os cavadores e alguns artistas sujeitos à míngua de tudo que

edifica a vida de um ser humano. Principalmente a vida destes cavadores piorava de

sobremaneira quando atravessavam os longos invernos sem trabalho e a pobre

alimentação familiar, ou, igualmente, quando abrasados pelo calor do sol. Recordo

vê-los chegar ajoujados de enxada ao ombro, de semblante ensombrado quando

regressavam.

Haverá muitas circunstâncias relativas à minha família que poderia relatar;

mas o que não pode ficar sem referência é uma abordagem sobre o carácter e perfil

de meus pais. Ainda hoje ocupam o meu pensamento gostosamente vendo que

foram eles quem, mais de perto, testemunharam o meu percurso da vida.

O meu pai, Horácio Morais, e a minha mãe, Helena Assunção Monteiro, eram

católicos convictos e defensores de uma grande rectidão, apoiados na sua fé. Não

poderei deixar de me referir, com muito amor, também, aos meus cinco irmãos.

O meu pai era pedreiro e minha mãe era padeira. Não tiveram êxito na vida,

antes sofreram toda a vida enleados na pobreza. Regra geral, o meu pai passava

muito tempo do ano sem ganhar dinheiro devido em parte aos longos Invernos, a

chover e mau tempo, não podia andar sobre os telhados. Foi um dia convidado para

sacristão o que o levou a interessar-se profundamente pela igreja um belo templo

datado de 1777, ao qual deu um esplendor que ninguém se lembrava ter visto antes.

Não exagero na palavra “esplendor” porque eu mesmo ajudei a tirar montes de

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terriça, cascalhos e enegrecimentos ali acumulados há vários anos. Esse bolor,

penso, significa bem o sinal que perpassava pela igreja no meu tempo. O esmero e

carinho do Sr. Horácio pelo templo mantiveram-se, com a ajuda da família inteira,

ao longo de muitos anos.

Em dado tempo, tudo mudou para meu pai.

Ao nascer do sol de cada domingo, era da tradição sem data conhecida

repenicar os sinos, o que o Sr. Horácio fazia obviamente com fé, respeito e alegria

pelo dia – o Dia do Senhor. Porém, certo dia, um rico lá da terra combinou com

padre da altura acabar como o toque àquela hora – ao nascer do sol. Achando ele

que tal acto significava não só um rompimento com simbólica tradição e, mais que

tudo, que era um desrespeito pelo Dia do Senhor, quis saber quem levantou tal

questão. O padre disse que tinha sido um senhor de uma terra distante (S.

Cristóvão). O meu pai, percebendo que o padre queria esconder o nome de alguém

lá da terra, não fez mais do que abandonar tudo e todos; não voltou mais aquela

igreja, passando a ir a pé a outra terra (Vilarinho de S. Romão) cumprir a obrigação

sagrada de assistir à missa ao domingo. Mais tarde constou que tinha sido uma

senhora rica lá de Celeirós que morava bem perto da igreja.

Devo dizer que meu pai não era para mimos e, no meu próprio parecer, era

uma pessoa que amava a rectidão ainda que, em muito o fazia com grande dureza no

trato com os outros. Porém toda a gente tinha grande respeito pelo senhor Horácio.

Ainda hoje sinto orgulho do gesto do meu pai ao deixar a igreja de Celeirós.

O Zé Damas dizia que quando se levantava diariamente para ir trabalhar – de

sol a sol –, o seu casaco ainda bandeava no cabide em que o tinha pendurado ao deitar. Como o

Zé Damas, é o povo que dorme pouco. O sino, a repicar, dizia-lhes que não iriam

trabalhar nesse dia; embora já acordados, como todos os dias, sempre poderiam ficar

mais um bocadinho na cama. Além de tudo, para quem tivesse fé, o repicar dos

sinos alegrava-os, porque era o anúncio do Dia do Senhor.

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Não era um disparate sem sentido o gesto de meu pai, abandonando a igreja

de Celeirós, afastando-se da mentira camuflada pelo padre da terra em favor de

pessoas ricas, bem instaladas e ignorando os trabalhadores, aqueles que trabalham e

produzem para ricos e pobres sem distinção.

Dada esta explicação, voltemos ao dia-a-dia de meu pai. Com os filhos, por

exemplo, nada tinha de suave e a palavra “carinho” – uma réstia longe a longe –, não

fazia parte do seu relacionamento connosco. Mas essa frieza e esse afastamento

eram o modo de estar da generalidade das pessoas. Em Trás-os-Montes, pelo menos

até ao meu tempo inclusive, não havia lugar para grandes mesuras.

Digo ainda que o meu pai, apesar da sua constante preponderância para fazer

prevalecer a justiça, não discernia com a clareza necessária o que por sua vez o

levava a tomar atitudes incoerentes de mais, o que o levava a verdadeiras injustiças.

Alguns são os sinais da sua dureza sobre os filhos e, até mesmo em alguns

momentos, em relação à minha mãe.

Devido à dureza de um pai daqueles tempos, recordo uma cena concreta:

estava eu em casa de um vizinho e o dono da casa tinha saído. Passados alguns

momentos ouviram-se, na escada de pedra exterior, o calcorrear dos socos pesados

do dono da casa a regressar. As duas filhas e a mãe, fazendo um gesto rápido

disseram entre si “calem-se que vem ali o pai”.

Na minha casa não se desenhava uma violência de forma tão repressiva, ainda

que vigorasse um respeitoso silêncio. Relativamente à minha mãe, tínhamos todo o à

vontade. Devo dizer que sinto pelo meu pai amor igual ao que tenho pela minha

mãe – amor imenso – ainda que eu sinta particular admiração e ternura pela minha

mãe; decerto pelo carinho e compreensão com que ela tratava os filhos; talvez pela

forma voluntariosa com que encarava a vida; talvez pela sua paciência e resignação

perante as dificuldades que matizaram fortemente toda a sua existência; talvez pelo

ânimo que me incutia; talvez devido a afinidades que sinto entre mim e ela.

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Uma das grandes alegrias que sempre senti e que ainda hoje me emociona

reside na recordação do carácter forte e doce da minha mãe.

Não está em mim falar dela para dizer como toda a gente diz e com toda a

razão: “a minha mãe era a melhor mãe do mundo”; antes invoco qualidades dela baseadas

nos gestos de persistência e coragem tantas vezes demonstrada e em inúmeras

adversidades.

Amorosa e destemida, rodeada pelos sete filhos1 que teve, constantemente

ficava sem dinheiro para comprar a farinha que ao menos chegasse para dar

continuidade à fornada do dia seguinte. Competente, sim, par um movimento

normal de uma padaria, via-a obrigada a prestar serviço a quem fosse ao seu forno

levando a própria farinha para que dessa farinha lhes fizesse uma fornada de pão.

O pagamento era ficar com uma das broas do pão cozido. Só que, para

ganhar essa broa a minha mãe tinha de pôr a lenha para aquecimento do forno.

Tinha então de ir ao monte várias vezes para arranjar quatro molhos de lenha, os

necessários para cada fornada.

Por aqueles lados não há ocasião para os familiares conversarem entre si.

Diria que não há lugar nem paciência para contar histórias dos pais aos filhos. Fiquei

contudo a saber alguns pormenores através das minhas irmãs. Afinal sabiam algo

mais que eu.

Sei que ficou sem pai aos de 12 anos, meu avô, o qual morreu vitimado pela

peste pneumónica. Tempos terríveis em que muita gente morria no lugar, enquanto

outros recorriam à emigração. Meu avô emigrou para o Brasil e passado um ano,

morreu naquele país e porque ninguém o conhecesse foi para a cova classificado de

“indigente, português”.

A minha mãe, sendo a mais velha dos seus cinco irmãos, desde logo partiu

para ganhar a vida, decerto ajudando a sua mãe que era padeira e trabalhando nos

campos. Tendo vendido as terras que possuíam para arranjar dinheiro para a viagem

1 José (falecido), José, Maria da Conceição, António, Mário, Maria de Jesus e Maria da Graça

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de meu avô, ficaram sem qualquer haver. A pneumónica continuava a devastação e

minha mãe terá colaborado ajudando “muita gente”, como ela própria dissera a uma

das minhas irmãs.

Segundo uma amiga e companheira – a senhora Dores –, com quem ainda

tive a oportunidade de falar já depois da morte de minha mãe, lembrou que ambas

tinham sido massacradas no trabalho dos campos até que, a dada altura, a minha

mãe foi servir para uma casa rica da freguesia de Passos, povoação relativamente

perto de Celeirós do Douro e, igualmente, freguesia do Concelho de Sabrosa. Passos

era a terra do meu pai e daí o conhecimento entre eles.

Como era próprio dessas casas senhoriais, as criadas e os motoristas dão nas

vistas pelas suas fardas e estes, por sua vez, assumiam, mais ou menos

ostensivamente, aquela sua “promoção”. Como é próprio de quem trabalha nas

terras e em certas profissões, as referidas criadas brilhavam mais no meio ambiente.

Talvez por isso, a minha mãe era vista, pejorativamente, pela senhora Narcisa,

que viria a ser a minha avó, como uma menina fina.

Meu pai exercia a profissão de pedreiro e a senhora Narcisa achava que aquela

criada vistosa que passava, era sinal de má sorte para seu do filho Horácio.

Não sei como as coisas entretanto se passaram, mas o casamento aconteceu,

sem que se tenha desvanecido uma forte inimizade entre elas.

E digo que essa inimizade não durou tão pouco, a avaliar por um episódio

que aconteceu entre as duas.

A minha mãe um dia adoeceu e a minha avó foi levar-lhe a casa um molho de

cavacos para a lareira. Deixou a lenha no cimo da escada.

A minha mãe, dando pelo movimento, levantou-se como pode e veio pôr-lhe

o molho pela escada a baixo.

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No que me diz respeito, eu e os meus irmãos, naturalmente, sempre sentimos

nela doçura e compreensão. Se as dificuldades surgiam e eram muitas, lá estava ela a

aconselhar, a agir e a animar, falando de confiança em melhores dias. E tinha razão.

Para mim esse futuro aconteceu recheado de coisas muito boas e que se

mantêm até aos dias de hoje. Nesse tempo martirizavam-me duas otites, purgando

noite e dia, de que resultava um cheiro nauseabundo, chegando à surdez total.

Quando penso na situação, admiro como me foi possível tirar a 4ª classe. Mas penso

também, com profundo desagrado, no sacrifício que causei ao meu colega de

carteira, o Zé Videira, já falecido.

Sem terem posses económicas para me mandarem para qualquer lado que

tratassem o “mal” dos meus ouvidos, recordo a minha mãe dizer: “Deixa lá Zé,

ainda hás-de ser um grande homem”.

Paro por aqui de falar do carácter da minha mãe, ficando sem referência

outros sinais bem expressivos da sua interessante postura.

Porque pretendo recordar algumas das “minhas facetas” – Apontamentos do

Passado, resolvi agora, aos oitenta e cinco anos de idade, escrever algumas dessas

passagens, se calhar, até porque escrever me dá grande prazer.

Nasci em Sabrosa – Sede de Concelho –, e vivi em Celeirós do Douro, sita ali

perto, cerca de 5 km. Vivi, como toda a gente, entre alegrias e tristezas, peripécias de

toda a ordem, até sair de Celeirós, aos vinte anos de idade, após percalços e baldões

que descrevo no livro atrás referido.

Era alegre por natureza e dava lugar a muitos momentos de festa a toda a

gente. Conjuntamente com alguns amigos, formámos um conjunto de instrumentos

de cordas, composto da seguinte forma: O Zé António, violão; o Raul, bandolim; o

Zé Videira, bandolim; e eu, violão ou violino. Havia um outro, de quem não recordo

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o nome, que tocava violão, além de outros que, vindos de fora, se uniam a nós,

principalmente nos bailes e arruadas.

5 de Janeiro de 1946, saída de Celeirós para a Marinha de Guerra

Decorria o ano de 1945 e com ele a altura da minha inspecção para a tropa.

Era o tempo das inspecções para a tropa. Quem quisesse, podia inscrever-se

para a Marinha de Guerra; o que fiz de imediato. Tentei e consegui ludibriar um

tanto o inspector, pois ouvia mal, mas estava habituado a socorrer-me do

movimento dos lábios das pessoas e passei.

Decorria o mês de Novembro de 1945. Um certo dia triste e chuvoso, andava

eu no interior de uma chaminé a raspar crosta velha para caiar de novo, oiço a voz

de meu pai chamando: José, o teu nome está na porta do regedor para ires para a marinha.

Está o teu nome e o do Pires.

Desci, como que voando, e lá estava o meu nome, juntamente com o do

Pires, o outro rapaz da terra que também tinha concorrido.

Mas, a convocação era apenas para servir na tropa. O apuramento para a

MARINHA seria sujeito a outras formalidades, depois de ficarmos apurados para a

tropa. Contudo, estávamos numa pauta indicando a nossa inscrição voluntária para

aquela arma. Eram, pois, os dois nomes da lista colocada na porta do regedor.

A possibilidade de ir para a Marinha era muito remota, pois que os inscritos

teriam de fazer provas no Alfeite, em Lisboa, e só aí se definia o seu futuro. Era esta

a requisição afixada na porta do regedor. Os dois teriam de estar no Alfeite no dia 6

de Janeiro de 1946.

Não era certeza nenhuma, ainda mais agravada pelo meu problema auditivo.

Mas, o facto de o meu nome estar mencionada naquela porta desencadeou em mim

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um furor de libertação e um enorme encantamento que, só por si, fazia nascer em

mim um homem novo. O ser mais feliz do mundo a quem nada falta.

A partir daquele momento, o meu falar com os meus amigos, alguns bem de

vida porque possuíam terras, não podia ser outro senão o de delinear sonhos que

alternadamente arrefeciam entre momentos de euforia e de incerteza. No entanto,

comecei a sentir-me tão afortunado como eles, não tendo nada na mão sentia-me

“rico como eles”, feliz. Toda essa esperança poderia não passar de um sonho que,

por si só, já valia a pena.

Como me sentia confortável com aquela camisola verde que a minha mãe

mandara fazer. Pormenor que nunca esqueci.

Chegou, pois, a data da inspecção no Alfeite. O Pires e eu saímos de Celeirós

do Douro, andámos os 10 km que separa Celeirós do Pinhão, para apanhar o

comboio.

Já no comboio, sentia que partia para um mundo novo. Se eu era

naturalmente alegre, o Pires era um bonacheirão bem-disposto e não virava a cara a

mais um copo de vinho. Sentíamos enorme alegria com peripécias à mistura.

Era suposto estar alguém, no Porto, à nossa espera, mas não estava ninguém.

O mesmo aconteceu em Lisboa. Estas e muitíssimas peripécias deram lugar ao livro

que escrevi e intitulei: “A IDA DO ZÉ PARA A MARINHA”

Chegados ao Alfeite, fizemos as provas de inspecção e, para enorme tristeza

minha, o Pires foi dado como incapaz. Foi uma grande desilusão; contudo, para

minha surpresa, o Pires não se mostrou assim tão desanimado; “deixa lá”, dizia ele,

descontraído. Quem sabe se raciocinava assim com a ajuda de um copo a mais,

bebido daquilo que tinha escondido na mala.

Lá se foi para Celeirós e iria cumprir o serviço militar em Lamego. Era o que

me aconteceria se não tivesse ficado apurado para a Marinha. Retornaria à miséria de

sempre, pois Lamego é relativamente próximo de Celeirós.

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Mas fui apurado! Com esse apuramento removeram-se todos os meus males.

Ali se abriram caminhos inimagináveis rumo à minha felicidade.

Um dos benefícios fundamentais, que desde logo me fizeram, foi o

tratamento aos ouvidos. A minha audição foi recuperada em cerca de 80% a 90%.

Os meus ouvidos secaram, o que me tornou apto a enfrentar todas as circunstâncias

com normalidade, tanto na Marinha, como fora dela. Trabalhei e venci.

Alguns Apontamentos

Permaneci na Marinha de Guerra os quatro anos da ordem, começando pela

recruta em Vila Franca de Xira, onde fui um dia considerado por um dos instrutores

um dos melhores atletas daquele ano. Era, de facto, um homem novo

completamente desligado do passado.

Acabada a recruta, fui destacado para a Escola de Aviação Naval Almirante

Gago Coutinho, em S. Jacinto - Aveiro.

Deixarei o caso de Aveiro para registar em ponto mais adequado, porque foi

em Aveiro que começou a minha vida amorosa e familiar o que carece de um espaço

alargado.

Após a estadia de um ano naquela Unidade da Marinha, a Aviação Naval, teria

de voltar a Lisboa, ponto de partida para um longo caminho carregado de aventuras

e peripécias variadas, espaço que engloba uma boa parte da minha história.

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Viagem à América do Norte em 1948

Tudo o que tenho começou, como já disse, na Marinha, de onde saí, depois

de ter cumprido o tempo regulamentar de quatro anos.

Foram quatro anos de peripécias gostosas, aqui e ali, mundo além, coisas

interessantes que recolhi em livro a que dei o título: “Ida do Zé para Marinha”.

Façanhas interessantes muito próprias da marujada e da juventude em geral.

Talvez, nessas andanças marinheiras, o ponto mais relevante esteja na minha

ida à América do Norte a bordo do “Navio Escola Sagres” e as peripécias relativas a

essa viagem. Duzentos marinheiros, entre oficiais, cadetes sargentos e praças, a

velejar entre Lisboa e a América do Norte.

Aí, não fossem os meus dias de grande enjoo, todas as horas seriam de festa,

alegria e descontracção, graças às paródias e gestos de companheirismo sem

distinção, entre todos.

Bom… eu era um músico de bordo, tocava guitarra portuguesa em serenatas

no convés ou no castelo, e fazia parte do grupo de Jazz tocando Viola.

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E, se difícil é fazer um quarto de noite no convés enrolados numa manta e

muito atentos ao som do estridente apito que pudesse assinalar “homem ao mar”, o

que levaria logo a correr para um salva-vidas sempre a jeito, já subir aos mastros

com 48 metros de altura causa uma sensação de aventura e grande leveza.

É uma aventura empolgante, enquanto a nossa estrutura psíquica tenta

enganar os medos e aguçar os sentidos quanto ao cuidado que temos de ter em cada

gesto. Todavia, é impressionante quando, depois de sairmos do cesto de gávea para

as vergas suportados por um cabo – estribo – que dança ao sabor dos gestos de

qualquer outro marinheiro, e, ainda por cima, sobre nós pairam nuvens ameaçando

tempestade; a minha sensação era de que estava em outro lugar, algures noutro

planeta.

Saímos de Lisboa, nesse maravilhoso Navio Escola Sagres rumo à América,

passando Porto Santo, Madeira, Cabo Verde, Mar das Bermudas, até chegar a

Boston. Aportámos, depois, em New Bedford, New Wark e, finalmente, New York.

Saímos de Nova Iorque a três de Agosto de 1948, viajando 28 dias seguidos

até Lisboa. Passei ao Corpo de Marinheiros e, faltando-me ainda cumprir mais dois

anos, fui destacado de novo para a Escola de Alunos de Vila Franca de Xira,

Unidade onde decorreram bastantes peripécias, provocadas pelo meu sentir cristão.

O despertar para uma nova realidade

Era um tempo de muita fome e miséria; era situação geral do país, para mim

bem visível em Vila Franca de Xira. Repito que foi o meio onde aconteceram muitos

gestos de cristianismo e onde mais demoradamente me debrucei sobre a doutrina do

evangelho, durante dois anos, passados na qualidade de grumete mais antigo da

Escola. De recordar que foi ainda em Vila Franca que dei início a um curso de

guarda-livros por correspondência e, já a partir do Navio João de Lisboa, tinha feito

um curso de dactilografia, em Lisboa, na rua Eugénio dos Santos. O facto era que

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tinha vindo de Celeirós somente com a 4ª classe, o que não me tornava apto a passar

em provas dos cursos da Marinha.

Lembrado da minha realidade que se circunscrevia ao conteúdo de Celeirós,

que era nada de nada, agora tinha um curso de dactilografia e outro de guarda-livros

tirado por correspondência. Apesar de tudo, não achava o emprego de escritório que

tanto deseja.

A minha aspiração era uma profissão que condissesse com o nível da minha

namorada, Telefonista dos C.T.T. A crise tocava a toda a gente e a mim faltava-me a

prática que os escritórios exigiam. Preenchia requerimentos para um advogado, até

que surgiu num jornal anunciado que a Quinta de Senhora das Dores em

Verdemilho -Aveiro, precisava de um dactilógrafo. Estive nessa Quinta até que o

Domingos Moreira me arranjou um lugar de assalariado na Companhia Portuguesa

de Celulose, em Cacia. Era um serviço de armazém de todos os materiais necessários

à Empresa, ainda em construção. Muito a custo, até porque a organização em geral

era caótica, aprendi os nomes das centenas e centenas de materiais, rapidamente.

Um dia foi aberto um concurso interno para o serviço administrativo e o meu chefe

D. Francisco Castelo Branco, aconselhou-me a concorrer; foi o que fiz. O concurso

era essencialmente para dactilógrafos para a Secretaria Central e, ainda que fosse

para dactilografia como os outros concorrentes, nunca soube porquê, fui classificado

como 3º escriturário.

Aí comecei a dar um tanto nas vistas pelo empenho que punha no trabalho.

Considerando que as minutas dos engenheiros eram gatafunhos, levava a melhor na

equipa, pois conhecia todos os materiais da fábrica, o que mais facilmente me levava

a descobrir as palavras arrevesadas das minutas. Depois, ainda que fizesse três ou

quatro tentativas a minha dactilografia, primava pela perfeição. Daí, foi sempre em

frente.

Eis como surgiu o lugar ao sol que, em tempo, muito tinha desejado para

enquadrar a minha mulher e, mais tarde, todos os amores que de nós nasceram.

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Fazendo um pouco a retrospectiva sobre a andança difícil que percorri,

lembro que vim de Celeirós sem nada na mão, ou dito de outra maneira, trazia

comigo um esboço de cada uma das várias profissões que ali frequentei.

Uma dessas profissões seria a de “trolha”- profissão semelhante à do meu pai

– que, aqui, chamavam de “pintor”.

Nesse tempo, confuso e sem futuro, bailava no pensamento uma procuração

que me entristecia particularmente, quando sentia a diferença social que havia entre

mim e a minha namorada, naqueles momentos em que aqueles rapazes

engravatados, bem vestidos, esperavam as suas namoradas, colegas da minha, à saída

do trabalho.

Um momento que fez uma vida a dois para sempre.

A certa altura propus à minha namorada terminar o namoro, devido a tantas

incompatibilidades. Ela respondeu com prontidão: “se achas que queres acabar,

acabamos; mas, por tu seres pobre!? Isso não!”

A Ventura mais Alta da Minha Vida

Como já se percebeu, a minha vinda de Celeirós do Douro para a Marinha de

Guerra, foi uma aventura em liberdade; tenho, talvez, por melhor imagem a

sensação empolgante de trepar aos mastros da Sagres, a 45 metros de altura.

Leves, saindo do cesto de gávea para as vergas com o arrojo que o meio exige

da nossa mocidade. Também já disse que não conheci mais ninguém dos meus

amigos e vizinhos daqueles sítios transmontanos que superasse o peso das

dificuldades para tanta felicidade.

Porém, apesar de tudo, não foi a Marinha que constituiu o cume da minha

enorme sorte.

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Andava eu torturando-me lá por essa terra transmontana sem rei nem roque,

e lá muito longe, existia uma família singular, precisamente o berço da minha Amiga.

Sem desfazer nas boas criaturas que vivem por esse mundo além, creio que mais

ninguém, poderia ser o que ela foi e é, para mim. A minha namorada, a minha

mulher. O retrato dela é este: linda, uma beleza à transparência como se provou.

Alegre e confiante, responsável também, acarinhada pela mãe, pelo pai e pelos

irmãos, sempre rodeada de mimos.

Mas passaria por cima de coisas muito profundas se não invocasse a Senhora

Gracinda, minha sogra, e o meu sogro, Sr. José Silva.

A Senhora Gracinda viveu, como toda gente, com o coração e a oração, a vida

dos seus filhos.

Teve seis filhos. Vivia acomodada com eles e com o marido numa casita que,

embora desconheça o motivo e a forma como se deu, lhe coube como recurso;

todavia, ficou-me uma frase da Senhora Gracinda que, para mim, se afigura como de

desagrado ou mesmo desgosto, apesar de pessoas amigas lhe terem oferecido uma

casa melhor por uma renda barata e ela não aceitou: “Daqui, só para o cemitério…”

Não sei qual o motivo; embora reconheça que é uma lacuna na pesquisa que tentei

fazer para perceber quais as razões que levaram a minha sogra a abdicar de

condições melhores para o casal e para os filhos. Ninguém me deu o menor sinal

para esta sua opção.

A casita era um rés-do-chão, teria cerca de 3 metros de frente, cerca de 15 de

fundo, dois de pé direito, um patiozito de cerca de 3 metros da mesma largura da

casa, emparedado por adobes apodrecidos. Uma fossa, que era despejada, de quando

em onde, pela câmara, e deixava na casa um cheiro nauseabundo.

Só nos anos cinquenta do século passado foi instalada, naquela casita, a luz

eléctrica.

A senhora Gracinda era de um irrepreensível aprumo e primava pela limpeza

e pelo esmero que punha na sua casita e nos seus filhos. Dizia-se, como conta a

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minha mulher, que as pessoas conhecidas comentavam: “os filhos da „Gracindinha‟

andam sempre limpos e impecáveis…” “Anda cá minha menina, dá cá um beijinho… andas

sempre tão limpinha”.

No pequeno pátio da casa, a Senhora Gracinda mandou fazer, dentro das suas

possibilidades, um tanque em cimento. A principal razão desta obra deve-se ao seu

recolhimento; não suportava ouvir as mulheres a falar da vida alheia, enquanto lavavam

a roupa no tanque público. Era, sem dúvida alguma, uma pessoa de princípios que

defendia escrupulosamente a sua privacidade, garantindo a sua verticalidade moral.

Naquela casa havia paz e disciplina, sem ser necessárias grandes altercações de voz –

bastaria abrir os olhes e os filhos se lhe submeteriam com mansidão e muito respeito –, como

conta a minha mulher.

Nunca faltou o alimento naquela casa, como a broa, a sopa, os “escoados”, a

fruta como mimo mais saboroso. Carne, uma vez por outra e o leite sempre que

possível. Estou a remeter-me principalmente aos tempos difíceis que toda a gente

passava e por todo o país. No entanto, as regiões diferem entre si. Enquanto no

Douro a fome entrava livre porta a dentro. A agricultura era quase exclusivamente a

vinha – uma monocultura –, onde apenas se colhe o vinho e pouco mais; o valor da

novidade ficava sempre aumentado na mão dos senhores das terras, para além do

rigor dos invernos, o frio, a neve, a chuva, etc. Na região de Aveiro as pessoas

tinham a possibilidade de tirar directamente do mar e do campo o peixe, as

hortaliças, o pão, a carne, o leite, o queijo, a manteiga, o sal, etc. Poder-se-ia

considerar uma verdadeira terra prometida. Refiro apenas dados superficiais, alguns

deles próprios da natureza e das diferenças geográficas.

Mas, em todos os lados há pobre e ricos, opressores e justos, gente ciosa e

gente perdulária, também em Aveiro, evidentemente.

Com isto já vimos que a Senhora Gracinda, o Senhor José Silva e os filhos,

eram pobres mas dentro de uma harmonia comovente.

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Se há pessoas muito marcantes por esse mundo além, a Senhora Gracinda era

uma delas, uma pessoa maravilhosa. Nunca dialogámos, fosse acerca do que fosse. E

se observo à distância a Senhora Gracinda, com olhos da alma, foi porque só mais

tarde pude perceber por mim próprio o que é e o que faz a acção do Espírito entre

os anónimos e anónimas que passam por este mundo sem expressão social a

caminho da eternidade.

A Senhora Gracinda criou ainda uma criança – o Tono – cujos pais partiram

para a África e lha terão deixado entregue aos seus cuidados.

Com este escrito quero dizer-lhe “Olá, Senhora Gracinda! bendita seja!”

As referências que podemos fazer ao Senhor José Silva, o meu sogro, são bem

mais habituais entre nós. No entanto sempre me impressionou aquela pessoa de paz

e silenciosa, tão bem enquadrado naquele meio familiar já referido. Não se lhe

notava profundidade intelectual, mas era uma pessoa escrupulosamente cumpridora,

segundo se diz, nomeadamente na entrega da féria à esposa, única fonte de

rendimento que a família tinha. Era um profissional muito considerado na arte de

carpinteiro.

Era com a féria da actividade profissional do marido que a mulher geria o

sustento da família. Tinha brio em ter sido fundador de clubes de furor aveirense

como é o Clube do Galitos e o Recreio Artístico. Segundo contavam, era um dos

animadores diários dos grupos de trabalhadores que se reuniam nos Arcos antes de

partirem para o trabalho.

“O meu pai nunca me bateu; nem a mim, nem aos meus irmãos” – palavras da minha

mulher.

Fosse qual fosse a origem, o que sei é que foi nesta família que nasceu

e cresceu aquela companheira linda e amiga – a minha mulher – que

constitui a maior aventura e sorte da minha vida.

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A Acção Católica e Eu

Era militante, desde os meus 22 anos, da Juventude Operária Católica (JOC)

quando casei aos 29 anos; desde o casamento, por ter alterado o meu estado civil,

passei a militar na Liga Operária Católica (LOC).

Convém, antes de mais, apreciar a visão doutrinária e a concordância do bom

senso de Monsenhor Cardijn, fundador da Juventude Operária Católica. Faço-o

principalmente porque é nele que encontro a liberdade, a isenção e a justiça do

Evangelho. O contraste em que se processa a toada da minha vida está no tipo de

cristianismo que descrevo desde Celeirós do Douro. Transcrevo a visão de justiça de

Monsenhor Cardijn, referido por Marguerite FIEVEZ e Jacques MEERT2: “Depois

de ter de ter ouvido e falado; depois de conhecer tantas situações e países diversos, Cardijn está

deveras preocupado com a atitude que possam vir a tomar os cristãos a Igreja face ao pensamento

incisivo de Karl Max. Contrariamente aos meios católicos tradicionais, ele rejeita uma atitude

puramente negativa para com o marxismo.”

“O anti-socialismo e o anti-comunismo, repete Cardijn, não bastam para salvar a classe

operária nem para trazer de novo á Igreja as massas populares. Há no marxismo „uma alma de

verdade‟ que é formidável e que não tem sido suficientemente considerada; é que Marx dá á classe

operária uma missão redentora a cumprir, um destino messiânico. Está aí a força do marxismo!

Na encíclica “Divini Redemptoris”, consagrada ao comunismo, fica-se no aspecto das coisas. A

maior parte da mesma é dedicada àquilo que é preciso fazer para ultrapassar, para substituir o

comunismo… Mas quanto à missão divina das classes operária nada se diz aí”.

Nada, nem ninguém me dirá o contrário de que a edificação mental e

espiritual do homem não gera o mais alto dos títulos e o maior dos objectivos

humanos que não resulte da sabedoria da verdade e da grandiosidade de Deus. Nada

há na terra que se compare a essa “ciência” divina. Faça o que fizer, o homem

íntegro agirá submetido a essa condição, SERVINDO. A autoridade é Deus e nós os

2 Cardijn, pag. 194

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servidores. Ninguém fica fora desta condição: servir o Deus e Senhor de plena

sabedoria.

Nem os bons nem os maus poderão afastar-se desta condição submissa.

Ainda que, para muitos, Cardijn fosse uma pessoa duvidosa, tenho a certeza de que

o seu espírito era daqueles homens livres e servo da doutrina por excelência – a

Justiça do Evangelho. Digo isto porque essa mesquinhez religiosa e subalterna de

muitos católicos chegou até mim próprio. Consequentemente, isso obrigou-me,

naturalmente, a algum isolamento, lamentado o epíteto de “comunista”. A confusão

é monstruosa seja pelo nível de onde parte a dúvida, seja pelo disparate que circula

na cristandade ignorante e subalterna.

Se temos de lutar é porque alguém nos está a subjugar. É um direito normal

entre opressores e vítimas. Assim sendo, em que pomos a razão de ser das nossas

lutas: pelos homens do grupo organizado com interesses corporativos, ou pela

marca que recebemos proveniente do evangelho? E quem é que está autorizado a

aconselhar e a submeter os humildes, humilhando-os e estimulando-os com

promessas espirituais que um dia lhes serão concedidos no céu, mas em nada se

confrontam no terreno com as injustiças? Por mim e pelo evangelho sempre tive na

mente e no espírito essa missão divina na JOC e na LOC, de que fala Cardijn.

Sei que o que penso e sinto pela Igreja está situado na comparação que faço

entre a subserviência e o infantilismo dos cristãos que, por imagem, situo em

Celeirós do Douro e o espírito libertador que encontrei em Cardijn. É nesse espaço

que se encontra toda a minha andança cristã.

Assim aconteceu. Apenas isso. De resto, o lugar em que os homens bracejam

e se confrontam, fica, como é natural, à consideração de Deus. Deus é, entretanto,

Pai de todos nós.

O âmbito do trabalho era a Diocese de Aveiro e o Movimento coordenado

por uma Direcção Geral sedeada em Lisboa. Os contactos a nível nacional

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aumentaram a partir da fundação de um Centro de Cultura Operária também com

sede em Lisboa.

A maioria desses meus mais chegados amigos, e eram muitos, já morreu, o

que, para mim, além da frieza natural da morte, imagino-os simplesmente integrados

no reino de Cristo. Este é o meu sentido de vida. Sei que o mundo não entende

muito bem esta disposição em que a morte se esbate, na medida em que se fala de

Vida.

Jesus disse: “Virei buscá-lo”. Bom seria que as pessoas, pelo menos as que têm

fé, soubessem planear o seu curso de vida na sequência que ela tem face à transição

que há entre esta e a outra vida.

A Verdade e a firmeza de Jesus que está em todos os seus ensinamentos; cito,

apenas, alguns que julgo de importância nuclear:

Quem, depois de deitar a mão ao arado, olha para trás, não é apto para o Reino de

Deus (Lucas 9:62).

Deixa que os mortos enterrem os seus mortos, vai e anuncia o reino de Deus

(Lucas 9:60).

Mas, onde quer que não vos receberem, saindo daquela cidade, sacudi o pó dos

vossos pés, em testemunho contra eles. (Mateus 9:5).

Deus é Espírito e o Espírito não tem dimensão. Podemos adorá-Lo do mar,

da terra, das estrelas, do recanto mais longínquo do Universo porque Ele é a própria

Vida. Também, segundo nos diz Jesus, Deus é Espírito e é em espírito que O devem adorar

os que O adoram em verdade e em justiça.

Nós, homens, somos o alvo do seu amor, obviamente. Não conhecemos

nada, além de nós, que tenha esta sensibilidade espiritual de O sentir e de O amar.

Quem escuta a sua palavra rodeia-se naturalmente de um sem fim de segredos e

mistérios. Só Ele pode ser o Norte correcto.

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As pessoas não poderão fazer das palavras de Jesus uma espécie de “cantiga

rotineira” a embelezar discursos ou sermões, mas terão de descobrir e depois

assumir que Jesus é Deus. Que é alimento da fé e da inteligência humana. Temos

que saber e acreditar efectivamente que Jesus é o Salvador descido do céu.

“Eu sou o pão vivo descido do céu. Disse Ele."

“Declarou-lhes Jesus. Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim, de modo algum terá

fome, e quem crê em mim jamais terá sede. Mas como já vos disse, vós me tendes visto, e contudo

não credes. Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o

lançarei fora. Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que

me enviou” (João 6:35,38). E, ainda: “Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por

Deus. Portanto todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim. Não que alguém tenha visto

o Pai, senão aquele que é vindo de Deus; só ele tem visto o Pai. Em verdade, em verdade vos digo:

Aquele que crê tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto e

morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra. Eu sou o pão vivo

que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu darei pela vida do

mundo é a minha carne” (Jo.6: 45,51).

Isto fez parte da minha aprendizagem aos vinte e dois anos de idade e foi com

esse “apetrechamento que apareci na Juventude Operária Católica e depois na

Liga Operária Católica em que os problemas do mundo do trabalho exigiam o

nosso apostolado. As nossas fontes eram as encíclicas do trabalho como a Rerum

Novarum, Pax In Terris, Mater et Magistra e outras. A isso juntou-se o ânimo e o

dinamismo de Cardijn, mais a sabedoria que adquirimos em esboços de Sociologia

vindos da Universidade de Luvaina, por intermédio do locista Dr. Calos Augusto

Fernandes de Almeida.

Importa dizer que já em 1932 tinha estado em Portugal a dar formação aos

sacerdotes e jovens portugueses um homem extraordinário da Igreja e do mundo,

precisamente o Fundador da J.O.C., Juventude Operária Católica, Monsenhor

Cardjin, também sociólogo, formado naquela Universidade.

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A avaliar pela obra de Marguerit Fiévez e de Jacques Meert, em 1932 foram

lançadas as bases da Acção Católica e no ano seguinte – 1933 – voltou Cardijn para

dirigir um curso de Assistentes, no Seminário dos Olivais.

Dizem os referidos a escritores: “Indirectamente pelo menos, Cardijn estava com esta

actividade a preparar o lançamento da JOC em boas condições que, por vezes, não era dos leigos

que vinham as maiores dificuldades na construção do movimento jocista, mas – quem diria – do

próprio clero”.

Mas, o que agora quero referir é que o fechar os olhos à eventual solução do

problema que enfrentamos com diplomacias e meias verdades, agíamos até mais

adiante, de facto, de modo que nem tudo fique como dantes. Ser cristão é um risco.

O método de Monsenhor Cardijn é que é: Ver Julgar e Agir.

Ver, Julgar e Agir proporciona evangelização, porque agimos numa

perspectiva da fé. Porque o que vemos são problemas de pessoas que não tiveram

acesso à liberdade e ao pão de cada dia – gente sujeita a poderes mais ou menos

escravizantes do “próximo” Gente ignorante que não sabe defender-se dos

opressores, muitos deles que até pagam o “dízimo da hortelã”3 e de “consciência limpa”,

são aceites como cristãos cumpridores. Porque nos debruçamos a analisar os

problemas e julgamos as causas e as consequências que poderão ter no terreno

concreto. Porque agimos por amor a Deus e ao Próximo com o nosso saber ou a

nossa formação específica, profissional, e sem dúvida através dos carismas que cada

qual possui.

Ninguém pode mudar a Justiça do Evangelho, mas o facto havia

desencontros fundamentais entre este tipo de apostolado e as orientações da Igreja.

Para muitos era temeroso levar longe de mais a justiça ainda que detectada à

luz das próprias encíclicas como, por exemplo, a Rerum Novarum, Pax in Terra e

mesmo a Mater et Magistra, de João XXIII.

3 Referência de Jesus ao falar da hipocrisia de um doutor da Lei: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque dais o dízimo da hortelã, do

endro e do cominho, e tendes omitido o que há de mais importante na lei, a saber, a justiça, a misericórdia e a fé; estas coisas, porém, devíeis fazer, sem omitir aquelas.” (Mateus 23:23)

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Um exemplo: nesse meu tempo de acção, no fim de um trabalho locista que

deu brado na área do sócio/político, na cidade de Aveiro, exactamente um trabalho

sobre a Mater et Magistra, um sacerdote concluía numa conversa de roda: “esta

Encíclica, Mater et Magistra, após a sua saída, fez, desde logo, cem mil comunistas, na Itália.

Outros diziam: bom as encíclicas “não constituem matéria de fé”.

Lá que o sistema político desconfiasse de nós e nos vigiasse, seria muito mais

coerente, mas a grande estranheza era a classificação que nos vinha da parte de

católicos, só porque não agíamos segundo o seu modo de estar.

Recordo do evangelho. Um dia os Apóstolos encontraram no seu caminho

um indivíduo a fazer milagres e que os fazia em nome de Cristo. Ora os apóstolos,

supondo que só eles tinham o “monopólio dos bens de Deus” mandaram calar o

fazedor de milagres e, de seguida, foram relatar a Jesus o insólito acontecimento.

Jesus disse: “Deixai, porque quem não é contra nós é por nós” (Marcos 9:40). Mas a

formação não ajudava na verdade e na amplitude da Acção universal de Deus.

O Locista, Dr. Carlos Augusto Fernandes de Almeida.

Se tenho amigos e companheiros de apostolado e não podendo menciona-los

a todos, lembro dois o Manuel Alpiarça, que foi o rapaz que ouvi primeiramente

falar em Lisboa e me revelou o Movimento da JOC; foi um companheiro idóneo e

competente durante toda a vida e por quem dou graças a Deus, pela sua afabilidade

entre nós. Recordo, igualmente, o Carlos Augusto. Importante base dos nossos

conhecimentos de sociologia.

Também formado, como Cardijn, em Sociologia, na Universidade de Luvaina,

ao Carlos Augusto devemos um passo de gigante na aplicação no terreno do nosso

apostolado. Já falecido, foi um elemento da LOC que me conheceu como ninguém.

Desapareceu novo desta vida e, também, por ele louvo a Deus que nos une.

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Teve ocasião de me escrever, já perto do seu desaparecimento, a propósito de

dois livros que publiquei: “CAPELAS DE AVEIRO” e “DOS TENEBROSOS

INVERNOS AO TEMPO DAS FLORES”.

Disse ele:

Cópia:

“Lx 8.7.2002

Caro Morais,

Foi com grande alegria que recebi o teu livro „Capelas de Aveiro‟ que muito apreciei e

também o livro que te preparas para publicar „Dos Tenebrosos Invernos ao Tempo das flores‟.

Ambos li com o maior interesse. O primeiro permitiu-me descobrir uma faceta da tua

personalidade que desconhecia quase por completo, isto é, as tuas qualidades artísticas. O segundo

porque descobri através do mesmo o teu percurso de vida que ajuda a compreender o teu espírito

cristão e a tua revolta […].

Sempre me impressionou a tua fé e o teu militantismo operário e Cristão que ambos temos,

como pontos comuns na nossa vida o grande amor à classe trabalhadora e um grande desconforto

pela forma como a Igreja, com raras excepções, enfrenta e olha pelos problemas sociais.

Desde que te conheço que considero que és um exemplo de vida tanto na tua vida social

como na tua vida de cristão e, certamente, que muitas das tuas qualidades se explicam pela tua

vivência de infância em Celeirós e por todas as situações que testemunhaste nessa aldeia de

„Tenebrosos Invernos‟.

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Felicito-te por teres a ideia de publicar „Dos Tenebrosos Invernos ao Tempo das Flores‟ e,

por isso, desejo-te um grande sucesso editorial e social.

Quando programar uma nova viagem ao Norte tentarei visitar-te em Aveiro, juntamente

com outros companheiros de lides passadas.

Um grande abraço para ti e para a tua família.

Carlos”

Reproduzo a carta fac-similada, nas páginas seguintes.

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Obrigado, Carlos Augusto, pela tua amizade.

O meu amigo Conde

E, como tudo se liga, aproveito para recordar o meu amigo Bartolomeu

Conde, colega de profissão o qual fez a apresentação do livro “Dos Tenebrosos Invernos

ao Tempo das flores”. Trabalhámos 15 anos na mesma empresa e participou em

diversos trabalhos de formação sindical na LOC.

O que diz o Conde, no lançamento do livro “Capelas de Aveiro”:

“Falar em público de um Amigo ou da sua Obra, é sempre um Acto que traz restrições ao orador, pois, por ser Amigo, só devemos falar dos traços positivos do seu carácter e da perfeição da sua Obra, omitindo qualquer ponto menos positivo.

No caso do Zé Morais estou à vontade, pois conheço-lhe as virtudes – e tantas são! – e um só defeito lhe aponto: a frontalidade!

Este defeito, - que nalguns casos é tido como virtude - nota-se no seu modo estar na Vida, na maneira como se comporta com os outros, na verdade nua-e-crua com que trata qualquer situação onde esteja envolvido ou desta seja mero espectador.

É um feitio que não se dá para a bajulação, nem para vénias de vassalagem.

O Zé encara a Vida com frontalidade – talvez por Ter sido criado entre os penhascos da sua terra natal, Celeirós de Trás-os-Montes, circunstâncias muito diferentes das que, como nós, beneficiaram deste consolador vai-e-vem das marés que nos permite balançar nas ondas...

Lembro-me de uma vez, era já noite, quando estávamos os dois a pintar cenários para uma Festa de Natal da Celulose – já lá vão 40 anos! –, eu ter criticado um azul numa das bambinelas pintadas pelo Zé Morais.

Critiquei... critiquei... fartei-me de dizer mal daquele azul. O Zé defendia com unhas-e-dentes aquela cor: oh pá, está bem... está bem pá! Para lá com isso... disse-me, a olhar-me fixamente.

Amuei. Quando a carrinha da Empresa nos levou para casa, já passava da meia-noite, não me despedi dele. Eu estava profundamente amuado, com o azul e com o Zé.

Ao outro dia, o Zé agarrou-me num braço e levou-me aos cenários: olha bem pá, achas o azul mal? Olha bem...

Olhei: o azul, afinal, estava correcto! Tive vergonha.

Ainda procurei um motivo, - mas nada. Arranjei uma desculpa: oh Zé, eu ontem devia estar com fome!

Isto que contei é um exemplo da persistência com que o Zé Morais defende aquilo que faz ou aquilo em que crê. É homem de “antes quebrar que torcer”.

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Nós – ou alguns de nós – recebemos influências deste clima do litoral: de manhã nevoeiro, sol ao meio-dia, vento p‟rá noite! Em Trás-os-Montes, o clima não sofre tantas alterações: ou é frio de estarrecer, ou calor de abrasar.

Um dia, aqui em Aveiro, estava eu num café a conversar com três amigos, hoje do outro lado: o Dr. Luis Regala, o Juiz Dr. Maya Gabriel e o artista Carbaty.

Este, o Carbaty, depois de tomar o café, foi à sua vida, vida que eu critiquei, pois andava numa vida nocturna um pouco relaxada.

O Dr. Maya Gabriel, lamentou as minhas críticas: - Vocês, os de Aveiro, são cá uns patuscos!

Ora eu, sabia o significado de patuscos, mas dito por aquele Amigo, transmontano-beirão, crítico muito subtil e incisivo, - que significado teria? E perguntei:

– O que é isso de patusco?

– Vocês muito gostam de mordiscar uns nos outros!

– E lá para as suas bandas, não mordiscam?

(Demorou uns segundos)

– Não!... Não!... Mas, quando temos de morder, vem carne agarrada!

Ora o Zé, é transmontano, e embora tenha sofrido uma certa osmose temperamental nos seus quarenta anos de Aveiro... ainda as suas mordeduras não perderam de todo a sua força quando, mesmo que raramente, as aplica.

O seu livro demonstra isso.

Ele recorda com ênfase a vida dura dos transmontanos, a dele e a dos outros, uma escola dura onde se fez homem.

Descreve no livro a sua Celeirós; canta no livro as flores campestres que embelezavam a mesa para a visita pascal; canta chorando o martírio dos que mourejavam, por uma côdea-rilhada, sob o sol ardente, com a camisa colada às costas, os trabalhadores das vinhas que carregavam aos ombros os cestos com quatro arrobas de peso, tiradas lá dos fundos quase inacessíveis, rumo ao lagar. Recorda a severidade da Escola primária e a austeridade patriarcal!

E fixa o que em criança ouviu a um padre: os homens têm a sorte dos paus: uns vão ser pintados de ouro, outros vão pró forno ou para a lareira, para serem queimados.

Quis, aos doze anos, ir para Padre; mas porque o seu casaquito tinha uma nódoa na lapela, foi o motivo invocado para a sua rejeição de entrar no seminário!

Foi então aprender serralharia, mas pouco tempo durou essa rodagem, pois a oficina entrou em falência; teve guarida na alfaiataria de um vizinho, onde aprendeu bastante desse ofício, mas o mestre adoeceu e o Zé ficou com a agulha e as linhas na mão; mas como era tempo de guerra, o volfrâmio era então o rei, o Zé foi para esse eldorado; mas a guerra acabou e o volfrâmio foi às malvas. Que fazer, agora?!... foi apanhar azeitona, e vá-que-não-vá, tomou gosto e até aprendeu a arte de podador de oliveiras, em curso que mereceu um diploma!

Mas a poda de oliveiras é trabalho sazonal, acaba logo.

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E lá vamos ver o Zé a partir, à marretada, matacões de xisto! O Zé queria trabalhar, tudo servia, até andou a limpar chaminés!

Mas o dia chegou. Oh nossa Senhora dos Aflitos! À porta da regedoria de Celeirós, numa lista de recrutamento para a Marinha, lá estava escarrapachado o nome do Zé, completo e em letra de forma: José Monteiro Morais!

“Um mundo novo se abriu na minha frente – diz o Zé – tão amplo que viajei por esse mundo inteiro”! Conheceu o mar largo, os continentes, os povos de cor e costumes diferentes! Outros conhecimentos, outros modos de viver; tudo isso sacudiu o nosso herói e ei-lo, sem nunca deixar a guitarra, sua companheira nas horas de solidão ou de lazer, a raciocinar e a ponderar sobre os problemas sociais, religiosos e políticos que afectam a comunidade humana, já não centrada em Celeirós do Douro, mas neste mundo universal onde abunda tanta desumanidade.

Bem! Mas a Marinha acabou! O Zé, sempre activo, já sem farda, aprende dactilografia, tira um curso de guarda-livros... e vamos encontrá-lo como dactilógrafo numa empresa de Verdemilho; mas o cheiro de Cacia despertava-lhe os sentidos e daí a pouco as portas da Celulose estão abertas. Aí o vamos encontrar; aí vamos ter como escriturário, como companheiro, como homem de Cultura... enfim, como Amigo!

Fora das horas de trabalho ou das que dedicava à família, lá está o Zé – aquele que em miúdo queria ser padre – metido na Liga Operária Católica, trabalhando pela Cultura do trabalhador, através de um modelar sindicalismo cristão, na organização de Festas Natalícias, do Teatro recreativo, deixando nestes campos um excelente exemplo de promotor da Cultura operária. Ele sente que o mundo precisa de Servidores e apela no seu livro aos que têm especificamente essa missão; que basta de discursos literários, que promovam a construção de um Mundo melhor, que dêem testemunho da Verdade, que apregoem a Boa Nova – NASCER DE NOVO em Amor e em Justiça.

Em conclusão: o livro do Zé Morais abre amplas janelas para um panorama rico de Humanidade.

Vale a pena ler este livro do Zé Morais – “Dos Tenebrosos Invernos ao Tempo das Flores” – Este transmontano, que salpicou com o sal-de-Aveiro a sua vida de bom cristão, de alegre companheiro e de bom Amigo – que toca guitarra, que pinta quadros – mostra no livro que é um Homem bom ao serviço do mundo

E não digo mais nada. Leiam o livro, não se arrependerão. Mas desde já aviso os eventuais leitores: o livro dá muito para pensar.

Parabéns ao Zé.

Setembro/2002

Bartolomeu Conde

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Transcrição, fac-similada, do recorte do Jornal que noticia o lançamento do livro

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Concurso da Cruz no Mundo do Trabalho

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Lembranças

O testemunho do Carlos Augusto, acima referido, representa para mim um

grande alimento espiritual, por ser a verdade e a confirmação dos valores que

sempre me sustentaram a vida.

Agora, nesta idade (aos 85 anos), parece-me que da minha parte está tudo

feito; no entanto vivo e reajo ainda que muito longe do vigor de outrora. Ando mais

devagar mas consciente e animado. Entendo que Deus há-de estar sempre comigo.

Falo de mim e até parece que não tenho mais ninguém. Mas não é assim; tenho uma

família a quem muito amo e que me ama muito. Penso que todos estamos no

mesmo caminho e que só Deus conhece o futuro. Confio.

Vejo que, em grande parte, a vida é uma luta composta de interesses

saudáveis, perpassando por uma enorme mancha de frivolidades, até mesmo

incluindo actos criminosos.

Cada qual terá que penalizá-la à sua maneira, face ao Alvo comum a todos

nós: Deus. Para muitos, a sua consciência ou a conveniência do partido sujeitos à

disciplina de voto faz deles um produto de ser humano sem liberdade, aventureiro,

sem definição de personalidade íntima, tornando-os peças do consumismo

incaracterístico da matéria. Mas a liberdade está no espírito e este vive das leis da

Verdade. É, contudo, neste meio sócio/político que eu também tenho de viver,

libertando-me, quanto possível, particularizando: Ninguém pode mentir a Deus.

Obviamente que é uma questão de fé, primeiramente; mas a inteligência

humana deveria perceber que são os valores da justiça e do amor, expressos na

Doutrina de Jesus Cristo, que deveriam fazer um mundo generoso e bom.

Note-se que não falo de religião, mas sim da garantia da sabedoria e da justiça

da doutrina que inspira os nossos actos.

Mas, não é assim, restando tal doutrina para os homens de boa vontade.

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Agora olho e não vejo, escuto e não oiço, apuro todos os meus sentidos e

nada se torna claro e definitivo na minha racionalidade. Penso, contudo, por via da

fé e concluo que esta minha condição humana feita de corpo e espírito tem de

esperar por Alguém que, a seu tempo, nada deixará por explicar.

Não invento nada e consola-me a alma fazer parte dos homens que, lá de

muito longe, ao longo da História, se dispuseram, como eu, a procurar Deus.

Transcrevo do Livro de Eclesiástico o seguinte:

“Filho, leva a cabo as tuas obras com mansidão, e atrairás não só a estima, mas também o

amor dos homens. Quanto maior és, mais te deve humilhar em todas as coisas, e acharás graça

diante de Deus; porque só o poder de Deus é que é grande, e é pelos humildes que ele é honrado”.

Não procures saber o que excede a tua capacidade, e não especules o que ultrapassa as tuas

forças (intelectuais), mas pensa sempre no que Deus te mandou, e nas muitas obras suas não sejas

curioso. Porque não te é necessário ver com os teus olhos o que está escondido. Não te apliques a

esquadrinhar com ânsia as coisas supérfluas, e não indagues com curiosidade as diversas coisas de

Deus. Porque muitas coisas te foram reveladas que excedem a inteligência humana. A muitos

enganou a falsa opinião que formavam delas, e as suas conjecturas sobre tais coisas conservaram-nos

no erro” (Eclesiástico 3:19,26).

A VERDADE DE DEUS tem custos. Insurgi-me recentemente contra a

prática do aborto humano e isso causou dissensões e contendas muito próximas de

mim.

A minha questão era simplesmente. O aborto mata uma criatura ainda em gestação que se

lhe interrompermos o percurso não haverá a pessoa que aí viria. Creio que aqueles que planificam a

sua vida, apoiados nesse crime, ficam com uma enorme dívida à justiça divina Mas, penso também

que o crime terá incidência altamente perniciosa no equilíbrio da sociedade. O crime foi instituído na

lei em Portugal, com já é em outros países ditos civilizados, através de referendo em que metade do

país ganhou pela negativa e por pouco, à outra metade, o que os políticos e materialistas conscientes

ou inconscientes feito por políticos governantes arvorando em arco como se fora uma grande façanha

da sua governação. Entretanto, senti como foi insidiosa a campanha, como por exemplo, dizer-se

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que o feto é motivo de análise metafísica. Alguém contrário lhes dizia: “não; o feto é o ser vivo que

se sente fisicamente no ventre materno. Entendo que só um aventureiro e arauto de um

futuro vazio, não entendem que a lei é criminosa.

Hoje, com 85 anos de idade ocorre no meu espírito uma paz semelhante

àquela paz doce e benfazeja para o corpo e para o espírito que sentimos, por

exemplo, em Noite de Natal.

Mas ainda está em mim uma ânsia de questionar sobre a pureza da Doutrina

dos evangelhos e continuar a dizer que a VERDADE que realmente interessa está

no respeito pela pessoa de Jesus Cristo e da sua doutrina.

“Então aproximou-se um dos escribas que os tinha ouvido discutir e vendo que Jesus lhes

tinha respondido bem, perguntou-lhe qual era o primeiro de todos os mandamentos. Jesus respondeu-

lhe: o primeiro de todos os mandamentos é este: ouve Israel: o Senhor teu Deus é um só Deus; e

amarás o Senhor teu Deus com rodo o teu coração, e com toda a tua alma e com todo o teu

entendimento, e com todas as tuas forças Este é o primeiro mandamento. E o segundo é semelhante

e o primeiro: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que

estes” (Marcos 12: 28,31)

Eis a súmula do cristianismo sem sofismas:

“Se estiveres apresentando ao altar a tua oferenda e aí te lembrares de que teu irmão tem

alguma coisa contra ti, deixa a tua oferenda lá diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com teu

irmão e vem então apresentar e tua oferenda” (Mateus 5:23,24).

Fora disto, tudo é tecido entre farsas e mentiras.

Reafirmo que o cristianismo segundo Jesus Cristo, é de compreensão simples

e directa: Amar a Deus e ao Próximo, ponto final. Reafirmo que se a Igreja Católica

se perde em mirabolâncias e não estrutura favoravelmente a implantação desta

condição cristã, simplesmente não evangeliza. A luz de Cristo é outra que não as

velas e os dourados das igrejas, nem tão pouco o culto árido em que põe o seu

empenho. Sabedoria e Verdade são a Luz de Cristo.

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Acomodados na sua estagnação, outras doutrinas e teses filosóficas invadem o

terreno inculto dos que haveriam de ser católicos por Jesus Cristo.

Zacarias Sarrazola Andias

Deixei para o fim um testemunho de vida de um militante da LOC, o Zacarias

Sarrazola Andias. É um testemunho simples que enuncia uma actividade admirável,

como se verá.

Numa das Secções de Militantes da Liga Operária Católica, em Aveiro, era do

programa irem os locistas rezar em conjunto à Sé. Nessa altura, eu era um dos mais

antigos, embora houvesse outros ainda mais antigos que, ao fim e ao cabo, não

deixavam de ser daqueles que, indo à missa do preceito, cumpriam todo o bem que

esse cristianismo sugeria. Muito dificilmente cumpríamos o que combinávamos em

cada reunião. A desculpa era “bem, não pude”… e o assunto ficava sempre para a

semana seguinte e dessa para a outra.

Começava a surgir uma tentativa de animação, onde essa oração na Sé era já

coisa nova.

Em determinada altura, rezámos em conjunto, pedindo a Deus, compungidos,

com pena de uns carpinteiros da Beira-Mar que tinham sido atingidos gravemente

por um incêndio. A casa, ferramentas e as máquinas tinham sido devoradas pelo

fogo, o que causou grande consternação.

Rezámos, pois, em grupo pelos infelizes e viemos embora. De notar que eu

era presidente diocesano. Ainda subordinado ao modo antigo de ver as coisas, e

talvez em jeito de transição para olhar com justiça humanista e espiritual muito

própria do cristianismo, saímos da Sé. Chegados ao adro, um dos mais novatos

locistas, de nome Zacarias Sarrazola Andias, disse em tom repreensivo: “Então

como é; rezámos e não vamos fazer nada?”

Estranhei o insólito reparo, pois estávamos habituados a rezar como toda a

gente da Igreja, para que Deus se compadecesse dos nossos problemas, fossem eles

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quais fossem, mas também estranhei porque, quanto a dinheiro, não há na L.O.C.

gente de grandes posses económicas. Perguntei:

– Que achas que devemos fazer? (também perguntei na qualidade de

responsável da secção em que o grupo se inseria).

– Temos de arranjar forma de lhes cobrir a oficina, arranjar algumas

ferramentas e máquinas que, minimamente, lhes permita trabalharem – respondeu-

me.

– Muito bem – disse eu – E onde havemos de arranjar o dinheiro para tudo

isso?

Ao que ele me retorquiu:

– Pedimo-lo pela cidade, nos bancos, no comércio, nas empresas, etc.

Deus me livre de minimizar a importâncias de tais palavras e disse:

– Muito bem, é isso mesmo que vamos fazer.

Este episódio ensinou-me muito. Foi mais uma ocasião que deu sentido a um

cristianismo objectivo aplicado á vida concreta.

Ficou determinado. Imediatamente, os cinco ou seis militantes que éramos,

demos, desde logo, provimento à actividade combinada.

Pedimos ajuda nos bancos, nas firmas, às pessoas e não tardou que os

carpinteiros tivessem um telhado novo, algumas máquinas e ferramentas para

retomarem o seu labor.

Tudo partia da formação e da acção objectiva, segundo a doutrina do

evangelho.

As coisas não ficaram circunscritas ao exemplo aqui apontado. Continuámos,

obviamente, nas nossas actividades e, bastante mais adiante, o Zacarias voltou a ser

figura exemplar de grande monta.

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É justo e consolador distinguir este meu amigo Zacarias pela sua vontade

férrea e a fé que o levam a uma acção contínua com os olhos no Próximo.

Anos e anos já passaram e sua obra ainda não terminou. Juntamente com a

sua esposa Maria de Lourdes, eis que se dedicam a vida inteira a uma azáfama

contínua e de uma forma totalmente gratuita. Confesso que já não é só pelo meu

amigo locista, mas a sua obra e dedicação atingem um relevo tal que não pode ser

ignorado.

O Zacarias é um indivíduo forte. Foi remador olímpico do clube dos Galitos,

foi maroto, empregado dos C.T.T, empregado de um banco e, perto da reforma, fez

uma moradia interessante, também porque os pais lhe deixaram herança. Mas a força

do Zacarias é de ordem moral, justiça e amor ao próximo. Conheço-o muito por

esse lado, porque sempre me envolveu na sua conduta cristã, ainda que a minha

prestação não passasse de um conselho aqui e ali.

Há uma longa história a seu respeito; mas, para facilitar, resumo tudo ao

seguinte.

Um dia este meu amigo concorreu a Presidente da Junta e perdeu. Houve

uma notícia de um jornal, O Litoral, que descreve o perfil da sua figura, que me

escuso de enumerar. É que a sua estadia da freguesia de Santa Joana tem meandros

longos e complexos ante a forma de ser cristão e ser ou não aceite pela Igreja local e

Diocesana.

Diz pois o Litoral, de 30 de Outubro de 1997:

“Zacarias Sarrazola Andias

Um candidato à Presidência da Junta de Freguesia de Santa Joana

Zacarias, nome de guerra do tempo dos gloriosos feitos alcançados pelo remo português nos

campeonatos internacionais, não é um aveirense qualquer.

Remador Olímpico do Clube dos Galitos e representante de Portugal no Campeonato de

Remo da Europa é um aveirense vencedor.

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Maroto das Tanoeiras sabe que o sal, são muitas vezes lágrimas de sacrifício e de trabalho

árduo debaixo de sol escaldante. É um aveirense sofredor.

Presidente Diocesano da Liga Católica e Presidente do CENTRO SOCIAL DE

SANTA JOANA, é um homem habituado a ouvir todos aqueles que sofrem, os pobres e os

doentes.

Quem o conhece sabe que Zacarias Sarrazola Andias assim é: vencedor, sofredor amigo do

seu amigo, que luta pelo bem-estar do seu semelhante.”

Seguem-se perguntas do Jornal:

Litoral - Por que concorre à Presidência da Junta de Freguesia de Santa Joana?

Zacarias - O que me move é contribuir para o engrandecimento da freguesia em que vivo,

através de serviços em que porei todo o meu empenho e saber.

As prioridades serão tidas em conta, a seu tempo segundo uma gestão criteriosa de uma

equipa que eu considero idónea e capaz.

(a pergunta seguinte refere o saneamento e águas fluviais)

No ensino (pergunta o Jornal)

Zacarias - Para além do amor e dos carinhos que nos merecem as crianças, elas são ou

devem ser a causa das nossas maiores responsabilidades, em termos de futuro, visto serem,

competentes ou não, os homens de amanhã.

Um agradecimento ao Jornal pela preciosa ajuda.

A Obra do Zacarias e da Sua Equipa

Como já se viu nesse tempo de concurso à Presidência da Junta, já tinha sido

edificado o Centro Social de S. Joana que recolhia e alimentava 230 crianças, na sua

maioria provenientes de famílias de baixos recursos económicos. Uma boa parte do

sustento era ainda compensada com ajudas particulares. Recordo, por exemplo, uma

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firma amiga do Zacarias que contribuía com pão diário para a totalidade daquelas

crianças.

Animado e decidido como é, ele e a sua equipa erigiram:

Creche e jardim Infantil, onde se recolhem 230 crianças;

Lar de Terceira Idade, onde recolhem 30 utentes;

Centro de Dia, vindo a servir 30 utentes;

Assistência Domiciliária, com transporte próprio;

Todo o empreendimento dá emprego a 56 pessoas.

Agosto de 2010 – Nesta data o Zacarias afastou-se.

Nota: O Lar de 3ª Idade foi inaugurado pelo Ministro de Trabalho, O

Presidente da Câmara de Aveiro e diversas individualidades, destacando-se, entre

eles, anteriores presidentes de Câmara (também eles colaboradores de primeira

linha) que muito honraram as pessoas que, ao longo do tempo, lutaram pela obra

concluída.

Conheci os meandros das lutas que houve e a obra, perante Deus e os

homens. É mérito de quem a levou a bom termo e o grande agrado e devoção do

Zacarias é que Deus e o Próximo vejam e sintam, porque foi o prisma que sempre

emoldurou os seus trabalhos.

Tenho dito neste trabalho que o cristianismo não é estático e só tem sentido

enquanto dinâmico e edificante. Esta é maneira visível desse cristianismo. O

Próximo e Deus são o motivo de todos os cuidados e de todos os projectos, sendo

que tudo o mais é secundário.

Sei que as pessoas vêem nestas palavras algo piedosa e, meramente, religiosa;

se o fazem é porque não estão habituadas a olhar a verticalidade da doutrina de Jesus

Cristo. Habituamo-nos a olhar a doutrina como simples religião de preceitos e

ancestrais acomodações supérfluas e secundárias, quando o cristianismo de Cristo é

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o cumprir actos de verdade e de amor no meio que nos rodeia. É mesmo uma

vergonha desenquadrar o cristianismo de Cristo, desta verdade exigente do Primeiro

Mandamento.

Na inauguração acima referida aconteceu um momento insólito e inesperado:

o Zacarias abriu a sessão com a oração do Pai Nosso! Todos, incluindo o ministro,

se puseram de pé perante a oração. Eu mesmo fiquei estupefacto e pensei, cá para

comigo, que eu não faria tal. Não obstante, pude constatar que aquela assistência tão

heterogénea, de pessoas tão desligadas da fé e do cristianismo activo e perspicaz

como é o cristianismo do Evangelho, respeitaram tal solicitação. Esta oração do

Zacarias, no dia da inauguração, significa um acto de imensa coragem a todos os

títulos.

Finalmente o Zacarias pôs termo à sua presença nas lides, da obra pois a

idade já lhe pesa sobre os ombros.

Também porque ninguém acaba nesta obra universal, pelo que todos nós

esperamos o termo final que só a Deus pertence.

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Mudanças radicais

Neste meu trabalho tento focar a minha análise da Doutrina que leio nos

próprios evangelhos e relatá-la. Gostaria de o fazer da forma mais eloquente;

contudo, fá-lo-ei da melhor maneira que souber.

Tenho consciência de que só Deus tem direito a ser o alvo da nossa adoração,

desejando eu que ninguém se atreva, fazendo de si próprio luz que não tem nem

pode ter, como também tenho consciência de que só com Ele, através d’ Ele,

acharemos a solução efectiva dos problemas e ansiedades que nos enleiam.

Fosse devido à formação cristã católica que recebi dos meus pais e da Igreja,

em Celeirós desde criança (não fui praticante que se recomendasse); fosse pela

libertinagem – enquanto novidade – que, ao tempo, via na marujada; fosse por

eventual vocação escondida, o facto é que, aos vinte e dois anos de idade, achei que

devia ler e estudar, conscientemente, a doutrina dos evangelhos. Não me movia

qualquer objectivo que não fosse conhecer a doutrina que, afinal, seria um potencial

que me vinha da infância. Isto é, agora, adulto, acreditando em Deus como me foi

incutido pelo meu pai e pela minha mãe (cada um à sua maneira), pensei em

conhecer por mim próprio o que diziam os evangelhos.

Devido ao conhecimento que ia adquirindo, em face do valor racional que se

descobre nas palavras rigorosas e claras e propostas de Cristo, ia-se desfazendo em

mim a vertente religiosa comum, que pratiquei até aos vinte anos, na minha terra.

Achei que ali se confundia o rigor da verdade da doutrina de Jesus com gestos

e costumes tradicionais, preceitos obrigatórios, estes mesmos mal cumpridos, e do

ponto de vista o amor ao próximo, nem um sinal que visualizasse, ainda que muito

tenuemente, confrontar os fiéis com a mística cristã a nível paroquial que é a prática

do amor de Deus e do próximo. O amor a Deus e ao Próximo não se enquadra em

sentimentalismos, devoções particulares em “esmolas caridosas”e ainda numa série

de superficialidades em que os cristãos se apoiam. Explicando melhor: quando um

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pároco enveredar por um apostolado que visa o amor do próximo, acontecem duas

coisas além do efeito geral da comunidade: Uma é a consciência deste valor

fundamental, a outra, o padre desperta ou implica com algum Zaqueu4 que por lá

exista na comunidade.

De nada servem as palavras do pregador, as festas de Igreja, as velas, as

procissões, etc., que nada dizem da Verdade da Justiça em Jesus Cristo. Daí a

ignorância de tanta gente que a própria Igreja se recusa a não ver, muito menos a

perceber que essa ignorância é resultado da sua própria forma amorfa de evangelizar.

Acho que qualquer paróquia deveria ser considerada terra de missão.

Depois é o comportamento dos “apóstolos” os padres, mesmo o mais

responsáveis, instalados no conforto que lhes garante a própria Instituição – um

poder e um céu para muitos cristãos –, ninguém consegue ver neles o Apóstolo

convicto que serve no terreno, apenas impulsionado espontânea e habilmente

movido pela chama do amor e pela imitação de Quem lhes dá o ser: Jesus Cristo.

Lá, pelas terras transmontanas de onde sou oriundo, nunca ouvi tecer, no

terreno apostólico, qualquer reparo frontal nem mesmo a menor esboço de denúncia,

sobre problemas de justiça e tantos eram, essencialmente sobre as injustiças e

desumanidades dos senhores das vinhas e da riqueza que delas resulta, sobre os seus

trabalhadores.

Não se pense que sou contra os ricos, ou contra quem quer que seja. Nem

sequer preciso da sua ajuda para sobreviver. O que está na minha ideia é o desejo de

que nos convertamos à exactidão da Verdade da doutrina de Jesus Cristo.

Visto que não se criam estruturas e normas exigidas pelo Primeiro

Mandamento, acredito que de nada vale o que fazemos, se esse Mandamento não

for a chave exacta do tesouro que procuramos; não será uma missa dominical que se

oferece ao paroquiano que o vai despertar para o seu crescimento na autenticidade

da doutrina de Cristo. Sem o nosso investimento no rigor daquele Mandamento, o

4 Homem rico que, tendo vivido roubando grande parte riqueza que possuía, arrependeu-se, quando elucidado Jesus Cristo.

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meio degrada-se mais e mais, anarquiza-se, desinteressa, individualiza e nós vemos

que recai sobre as pessoas o véu da ignorância sobre a Verdade que Jesus veio trazer.

A Verdade de Deus não responsabilizará os ignorantes. Vejo que Jesus Cristo

só nos responsabilizou depois de termos aprendido d’ Ele a sabedoria da salvação.

Será pois de temer as culpas que tivermos nessa ignorância. Deus é Vida, Vida que

se nos dirigiu, para sermos como Jesus, vivos conscientes e responsáveis.

Na verdade, estive no meio dos acontecimentos, ignorante como toda a gente

da terra e, aos 22 anos de idade, tive ocasião de estudar, observar e meditar na

precisão da palavra de Jesus Cristo. A lógica que apuro é esta: Deus desceu dos céus

para entrar na nossa dimensão e daí sermos ensinados, à luz da razão e da

inteligência, tornando-nos, assim, filhos de Deus conscientes e livres.

No meu decurso de vida, tive ocasião de ser um militante Acção Católica,

essencialmente ligado com o mundo do trabalho, o que me trouxe promoção seja

no sentido espiritual, seja na aplicação concreta do cristianismo neste sector. Estou a

falar de conhecimentos sociais que me eram totalmente desconhecidos e que me

serviram de orientação para toda a vida.

O cristianismo, vertente fundamental em que se delineou toda a minha vida até aos dias

de hoje, depois dos vinte e dois anos de idade.

Sinto-me uma pessoa normal como o comprovam os actos da minha vida

entre toda a gente, também normal; mas há diferenças especiais que, de há muitos

anos, me permitem recusar a vulgaridade ou a superficialidade disto ou daquilo, o

que me permite ser eu próprio na sociedade de consumo.

Olhando simplesmente para a justiça que, transversalmente passa pela

Doutrina de Cristo, e interpretada como sustentação da sociedade, por exemplo, dar

seu a seu dono, jamais virar as costas a que têm dificuldades, proporcionar ensino

para que ninguém seja ignorante, distribuir a riqueza produzida com equidade, a paz,

a tolerância e, ainda, muitas outras regras, a Doutrina de Jesus Cristo seria a medida

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como não há outra para fazer uma sociedade feliz. Uma sociedade de sonho que

poucos entendem e de todo impossível de implantar entre poderosos que,

brandindo as suas ideias de Norte a Sul, de Este a Oeste, matam e destroem a seu

belo prazer, pelo estabelecimento do domínio a que chamam paz.

A Doutrina de Jesus não passa de um sonho na construção desta sociedade.

Repare-se: como pode vingar uma doutrina que, apesar de ter em si todas a normas

próprias fundadas na Verdade, na Justiça e no Amor, num mundo governado por

mentes tenebrosas como as de “A” que decide matar milhões de pessoas para impor

a sua lógica. Outros que, fabricando e vendendo armas assassinas sorrateiramente a

países paupérrimos em vez de os ajudar a matar a fome e a sede, eis os poderosos.

Senhores da guerra e da ordem mundial. E tudo em nome da paz… Depois há uma

multidão de candidatos á escala sempre superior, que são os ditadorezinhos

traficando em vários patamares a justiça os direitos e a paz devidas ao Próximo.

Quem for pela paz com sentido da verdade há-de, forçosamente, estar atento e à

altura de perceber que o cristianismo deveria ser uma força contrária à agressividade

do mundo em que vive. Mesmo que pareça impossível, Cristo vive num reino

terreno e ainda que sejamos homens iguais podemos ter estabilidade. Quem é cristão

conta com um espaço no seu Corpo Místico. Os seus escudos de defesa são a fé, a

verdade e o amor. A questão é infinitamente grave e exige muito mais verdade e

definição do que é ser-se cristão.

Entenda-me quem quiser; mas o meu brado vai para o Senhor do Céu e da

terra, por intermédio de Jesus Cristo. Os meus argumentos são originados, por um

lado, do estado feroz que o mundo me sugere, do outro, pela ineficácia do

cristianismo em que estagnámos. A Igreja que Cristo nos deixou está incapaz de

incutir nos cristãos a consciência da própria acção de Cristo, que, como se viu, é

bem a testemunha da situação. Não é com pobres panaceias que a Igreja se revê;

fazer igrejas, turismos, cantigas, discursos, autoridade duvidosa, ilusões das douradas

procissões, velas, sentimentos, simbolismos, etc. Por fim, um poder próprio,

também, força organizada e fechada em si própria, da qual saem “autoridades”

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com estatuto tal que os desliga do trabalho efectivo daqueles de quem vivem

desligados.

Na verdade esses, os ditos ministros das Igreja, não estão capazes de fazer

entender que os cristãos não podem dormir à beira do abismo ingloriamente, ou

mesmo estupidamente. Eles têm que perceber que foi a este mundo de trevas que

Jesus veio, segundo os desígnios de Deus Pai, e que o grau exacto dos nossos

comportamentos está na necessidade de alinhar as nossas consciências pelos

sofrimentos que este mundo causou a Jesus Cristo. “Veio ao que era seu e os seus não o

receberam” (João 1,11).

“O meu reino não é deste mundo” Diz Jesus. (os filhos das trevas são mais

espertos…

O que quero dizer é que não é com vida flauteada, nem com artefactos, nem

mesmo com artes de orador que enfrentamos o mundo onde Jesus se exprimiu e

morreu.

Dispa a Igreja todos os adornos materiais em que se apoia e Evangelize!

A toada é de estagnação, oferendo aos crentes uma religião de preceitos

obrigatórios e altar, sabendo-se claramente que o cristão há-de promover-se para vir

a entender quem é Jesus Cristo e porque motivos O seguem. Mas há um outro

aspecto fundamental que o lembrarei aos que têm a responsabilidade de ensinar e de

dar o exemplo. Não vou deixar passar o momento sem referir o que é o cristianismo

da Doutrina. Amar a Deus com todas as forças que tivermos, apoiados numa

consciência responsável e de onde resulte uma aprendizagem e uma formação básica

do que é amar o próximo como a nós mesmo, numa paróquia.

Esta questão do Primeiro Mandamento encerra todo o conteúdo do

cristianismo e não pode ser molestado com filosofias de letrados e puristas

religiosos, doutores e tantos debruçados sobre o ponto a ponto mais alto da

perfeição humana. O amor do Evangelho é, por condição, espontâneo. Por

exemplo, é diferente um padre que só reza de um outro que dá conta que andam na

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rua rapazes e raparigas á deriva e resolve tirar tempo à oração e vai atrás deles, como

fez o conhecidíssimo Padre Américo. O primeiro padre, não passa de um

funcionário, que se limita a rezar uma missa ou presidir a um funeral, ou passar a sua

vida no culto e na pregação da ordem.

Levar a Igreja de Cristo a ser considerada uma simples Entidade a respeitar

entre outras, em nada se identifica com o perfil de Jesus Cristo.

“Pai, não te peço que os tires do mundo, mas que se convertam e vivam” Oração de Jesus

por nós. Mas a conversão que se pede em Jesus, é sem dúvida à altura da sua

postura.

Desde os vinte anos de idade, achei que o cristianismo deveria ser o caminho

das sociedades, atendendo a que a Doutrina de Jesus tem todos os dados para

satisfazer à ciência pacífica deste nosso convívio humano. A sua Verdade e a sua

Justiça seriam a garantia da sustentação humana e limpeza de que o mundo precisa.

Essa verdade e essa justiça não são, ainda, o tesouro que os cristãos venerem

diante de Deus. Não será por seremos ou parecermos muitos e não creio em

vanglórias extraídas de estatísticas – isso pode interessar apenas à Hierarquia

Católica, por questões do ponto de vista sócio/político –; mas, o cristianismo de

Cristo nunca pode servir como bandeira ou alienação de massas, pois tem uma

mística própria. Até porque “São muitos os que rezam e poucos os escolhidos” “Nem todo o

que diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus” ou se temos de conhecer alguém,

“conhecê-los-eis pelas suas obras”.

Não andará porventura a Igreja a pensar e a agir em moldes de sobrevivência?

Um dia Jesus Cristo considerou que poderia ficar só, em que Ele se manteria

firme na sua (fé) em Deus Pai e achou que todos poderiam ir embora, até mesmo os

apóstolos, se estes mesmos não acreditassem na profundidade do rigor da sua

palavra. Então, a igreja que vale é aquela que põe todo o seu empenho na qualidade

(através da evangelização) e não na quantidade. Homens livres e descomprometidos,

homens que não mintam a Deus nem aos outros homens, e que se afirmem através

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da verdade que pratiquem. Isto que penso poderá ser apenas uma visão ingénua,

louca, para muitos, talvez.

Mas isso mesmo se pode dizer da pessoa de Cristo que veio à terra sabendo

que vinha para sofrer e que muito poucos O seguiriam.

Mas veio, no cumprimento da vontade do Pai, e feito Salvador e Caminho

nosso, para estar connosco até ao fim dos tempos.

Nessa data, nada nem ninguém turvará as palavras que os homens agora não

escutam. Então, a grande importância da sua vinda foi anunciar e ensinar ao mundo

uma sabedoria que o mundo não conhecia e que foi ouvida ao nível da nossa

inteligência, ainda que se trate da sabedoria divina. A voz do Pai, a voz do Senhor, o

único alvo válido como nenhum outro que o homem sensato ficou a saber. Ficamos

a saber que somos filhos dilectos de Deus, mas também que, com Cristo, seremos

colaboradores seus, ao continuar, no tempo, a missão redentora de seu Filho. Em

verdade, ensinou-nos e disse como servir os planos do Deus Altíssimo – nascendo

de novo.

Isto traz à minha mente a verdadeira dimensão do cristianismo: ser

colaborador, sem que o materialismo nos absorva ou contamine.

É nesta prospectiva que dirijo a minha visão das coisas.

De algum modo considero que consegui incluir na vida o cristianismo de que

falo. Penso que venci!

Aveiro, 27/8/2010

J. Morais

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Índice

As Origens .................................................................................................................................... 2

5 de Janeiro de 1946, saída de Celeirós para a Marinha de Guerra ....................................... 12

Alguns Apontamentos ................................................................................................................ 14

Viagem à América do Norte em 1948 .................................................................................... 15

O despertar para uma nova realidade ..................................................................................... 16

Um momento que fez uma vida a dois para sempre. ................................................................. 18

A Ventura mais Alta da Minha Vida ...................................................................................... 18

A Acção Católica e Eu ............................................................................................................... 22

O Locista, Dr. Carlos Augusto Fernandes de Almeida. ......................................................... 27

O meu amigo Conde ............................................................................................................... 32

O que diz o Conde, no lançamento do livro “Capelas de Aveiro”: .................................... 32

Concurso da Cruz no Mundo do Trabalho ............................................................................. 36

Lembranças ............................................................................................................................ 37

Zacarias Sarrazola Andias ...................................................................................................... 40

A Obra do Zacarias e da Sua Equipa ................................................................................. 43

Mudanças radicais ...................................................................................................................... 46

O cristianismo, vertente fundamental em que se delineou toda a minha vida até aos dias de

hoje, depois dos vinte e dois anos de idade. ....................................................................... 48