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1 "...EU ME NÃO MOLESTO COM OS EPÍTETOS MESTIÇO, MULATO OU NEGRO": TRAJETÓRIA E ESCRITAS DE SI DE UM PROFESSOR NEGRO (O DR. ALCIDES DE FREITAS CRUZ). 1 Vanessa Gomes de Campos 2 Paulo Roberto Staudt Moreira 3 Em setembro de 1916, dois a pedidos foram publicados no Diário do Interior, periódico publicado em Santa Maria (RS). O primeiro, anônimo, denunciava que um mulato, morador na cidade queria por iniciativa própria casar com uma moça, mas a família da mesma se opunha. Dias depois outra nota foi publicada, desta vez assinada por Claudeonor Martins de Souza, que dizia viver de seu trabalho de oficial de alfaiate e que realmente havia tratado casamento, sem sedução alguma e com total acordo da moça. Claudeonor encerrava sua resposta dizendo: “Quanto ao epíteto injurioso de mulato com que me pretendem diminuir, ocorre-me a lembrança de uma frase do ilustre e saudoso dr. Alcides Cruz: ‘Não sei que vantagem há de chamar-se mulato a um homem que não tem vergonha de o ser’” (GRIGIO, 2016: p. 199). Membro do associativismo negro local como a Irmandade do Rosário , Claudeonor usou como argumento a autoafirmação étnico-racial de um indivíduo negro morador da capital do estado, que havia morrido naquele mesmo ano. Alcides Cruz nasceu em Porto Alegre, em 1867, e faleceu na mesma cidade no ano em que Claudeonor assumiu orgulhoso o epíteto de mulato. Agrimensor pela Escola Militar da capital, formado em Direito em São Paulo (1897), Alcides foi promotor em Porto Alegre (1900 a 1905), onde co-editou a Gazeta do Foro (1902/03) com o pardo Aurélio Viríssimo de Bittencourt. Professor da Faculdade de Direito, foi ainda deputado em cinco legislaturas pelo PRR. O pronunciamento público do alfaiate negro Claudenor Martins de Souza mostra as conexões do associativismo negro regional e a identificação de lideranças emblemáticas. Localizamos dois textos do professor Alcides Cruz posicionando-se em embates jornalísticos a respeito de sua cor, item que julgamos geralmente desconsiderado historiograficamente, 1 Texto apresentado no 8º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Porto Alegre (UFRGS), de 24 a 27 de maio de 2017. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ Autorizamos a publicação nos Anais do Evento. 2 Graduada em História (PUCRS) e Arquivologia (UFRGS), historiadora da Cúria Metropolitana de Porto Alegre e arquivista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Contato: [email protected] 3 Professor Unisinos, Doutor em História (UFRGS), Bolsista produtividade CNPq. Contato: [email protected]

EU ME NÃO MOLESTO COM OS EPÍTETOS MESTIÇO, MULATO OU NEGRO … · 9 CRC 1ª Zona de Porto Alegre, Livro de Casamentos, nº 34, folha 12v, reg. 105; GRIJO, 2005: p. 185. 10 CRC

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1

"...EU ME NÃO MOLESTO COM OS EPÍTETOS MESTIÇO, MULATO OU NEGRO": TRAJETÓRIA

E ESCRITAS DE SI DE UM PROFESSOR NEGRO (O DR. ALCIDES DE FREITAS CRUZ).1

Vanessa Gomes de Campos2

Paulo Roberto Staudt Moreira3

Em setembro de 1916, dois a pedidos foram publicados no Diário do Interior, periódico

publicado em Santa Maria (RS). O primeiro, anônimo, denunciava que um mulato, morador na

cidade queria – por iniciativa própria – casar com uma moça, mas a família da mesma se opunha.

Dias depois outra nota foi publicada, desta vez assinada por Claudeonor Martins de Souza, que

dizia viver de seu trabalho de oficial de alfaiate e que realmente havia tratado casamento, sem

sedução alguma e com total acordo da moça. Claudeonor encerrava sua resposta dizendo: “Quanto

ao epíteto injurioso de mulato com que me pretendem diminuir, ocorre-me a lembrança de uma

frase do ilustre e saudoso dr. Alcides Cruz: ‘Não sei que vantagem há de chamar-se mulato a um

homem que não tem vergonha de o ser’” (GRIGIO, 2016: p. 199).

Membro do associativismo negro local – como a Irmandade do Rosário –, Claudeonor usou

como argumento a autoafirmação étnico-racial de um indivíduo negro morador da capital do estado,

que havia morrido naquele mesmo ano. Alcides Cruz nasceu em Porto Alegre, em 1867, e faleceu

na mesma cidade no ano em que Claudeonor assumiu orgulhoso o epíteto de mulato. Agrimensor

pela Escola Militar da capital, formado em Direito em São Paulo (1897), Alcides foi promotor em

Porto Alegre (1900 a 1905), onde co-editou a Gazeta do Foro (1902/03) com o pardo Aurélio

Viríssimo de Bittencourt. Professor da Faculdade de Direito, foi ainda deputado em cinco

legislaturas pelo PRR.

O pronunciamento público do alfaiate negro Claudenor Martins de Souza mostra as

conexões do associativismo negro regional e a identificação de lideranças emblemáticas.

Localizamos dois textos do professor Alcides Cruz posicionando-se em embates jornalísticos a

respeito de sua cor, item que julgamos geralmente desconsiderado historiograficamente,

1 Texto apresentado no 8º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Porto Alegre (UFRGS), de 24 a 27 de maio de

2017. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/

Autorizamos a publicação nos Anais do Evento. 2 Graduada em História (PUCRS) e Arquivologia (UFRGS), historiadora da Cúria Metropolitana de Porto Alegre e arquivista do

Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Contato: [email protected] 3 Professor Unisinos, Doutor em História (UFRGS), Bolsista produtividade CNPq. Contato: [email protected]

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normalmente aparecendo este indivíduo invisibilizado de sua posição étnica e racial. Assim, tem

este texto a intenção de apresentar notas de pesquisa sobre esse indivíduo negro, tratando de

questões como mobilidades sociais negras e pertencimentos étnico e raciais.

A Família Cruz

O professor e advogado Alcides de Freitas Cruz faleceu à meia-noite do dia 23 de março de

1916, em sua casa na rua Coronel Fernando Machado nº 1, no primeiro distrito de Porto Alegre, de

tuberculose. Ele tinha 49 anos, era casado e, segundo o registro de óbito, sua cor era parda.4 Alcides

foi batizado na Catedral de Porto Alegre em 13 de outubro de 1867, no mesmo ano em que nasceu,

aos 14 de março. Era filho legítimo de Manoel Pinto Lacerda da Cruz (natural de PE) e Adelaide

Leopoldina de Freitas (natural desta província), neto paterno de Antônio Pinto Lacerda e Maria da

Conceição dos Prazeres (naturais de PE), neto materno de Joaquim Pedro de Freitas e Maria da

Assunção (naturais desta Província). Foram padrinhos José Constantino da Rocha e Rita Luiza de

Freitas.5

Chama a atenção de que, se notarmos os registros de batismos em torno do de Alcides,

notaremos outras quatro anotações, todas elas assinadas pelo mesmo pároco, o Cônego José

Joaquim da Purificação Teixeira. Três deles, todos “filhos legítimos”, foram descritos na margem

do livro como brancos. Os outros dois não existe menção às suas cores. Um deles era Olímpio,

filho natural da escravizada Maria Rosa, cujo status provavelmente tornou desnecessária a menção a

sua cor. O outro era Alcides. Ou seja, na anotação do batismo de Alcides a sua cor foi invisibilizada

evidenciando um lugar social intermediário e de certa forma privilegiado naquela sociedade ainda

escravista6. Por outro lado, a explicitação na margem do livro eclesiástico da cor branca dos

batizandos localizados na mesma página visibiliza as hierarquias sociais e raciais ali atuantes. O

pároco registra na margem a opinião comunitária sobre os seus paroquianos e o olhar racializado

aqui não se exprime explicitando a cor dos indivíduos negros, mas negando-a comparativamente a

4APERS – Provedoria de Porto Alegre, Inventário nº 46, ano: 1916, inventariado: Dr. Alcides de Freitas Cruz,

Inventariante: Dona Severina Pereira Cruz. CRC 1ª Zona de Porto Alegre, Livro de Óbitos nº 80, folha 179, reg. 631. 5AHCMPA – Livro de Batismos de Pessoas Livres da Igreja N. Sra. Madre de Deus – Catedral de Porto Alegre, nº 17,

folha 148v. 6 GUEDES (2008), MACHADO (2008).

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indivíduos socialmente brancos. O pároco Teixeira eterniza no livro de registros de batismos a

classificação da família Cruz como não-branca. Mas tratando-se da família multirracial (ROSA, p.

199) de Alcides de Cruz e considerando o que sabemos sobre ela até o momento, certamente o

melhor seria tratar as fontes primárias (incluindo aí os registros eclesiásticos) como registros

polifônicos. Sugerimos que a família Cruz concordava com a invisibilidade de sua classificação

étnico-racial, mas isso não nos autoriza a pressupor uma estratégia de embranquecimento, mas

contextos diferenciados historicamente de uso da negritude, que pode ser afirmada, negada,

contemporizada, afinal, negociada (ROSSI, 2015: p. 26)7. A classificação como pardos talvez expresse

o autoreconhecimento desta familiar multirracial, localizada nas camadas intermediárias daquela

sociedade oitocentista, mas com um pretérito pertencimento – não muito distante – no cativeiro

(VIANA, 2007).

Provavelmente sentindo que sua saúde – e de sua esposa – estava precária e pensando em

regularizar a situação familiar e patrimonial, o professor Alcides Cruz legalizou sua relação afetivo-

familiar no mesmo ano em que morreu. O matrimônio ocorreu às 17 horas do dia 9 de março de

1916, na residência dos noivos, na Praça General Osório nº 18. A noiva Severina Pereira dos Santos

tinha 38 anos, era solteira e filha ilegítima de dona Juliana Pereira dos Santos. Os noivos “vivendo

maritalmente há alguns anos” declararam que tinham uma única filha, fruto desta união, de nome

Zoé Cruz Barcelos, nascida em 25.06.1899 e casada com João Inácio de Barcelos. As testemunhas

que assinaram endossando o enlace matrimonial são representantes das ligações político-partidárias

do noivo. Aliás, seu casamento pode ser considerado seu último ato político-partidário. O primeiro

a assinar o registro foi o Dr. José Montaury de Aguiar Leitão (solteiro, do Rio de Janeiro, com 58

anos), que foi o intendente de Porto Alegre entre 1897 e 1924 (BAKOS, 1986), seguido pelo Dr.

Arthur Franco de Souza (casado, do RS, médico, com 42 anos), Dr. Fernando Antunes (solteiro,

nasceu em 1887 em Porto Alegre, onde formou-se na Faculdade de Direito local em 1908,

tornando-se professor da mesma em 1916, onde permaneceu até 1935. Foi ainda Consultor Jurídico

7 Branqueamento: “é uma categoria analítica que vem sendo usada com mais de um sentido. Ora ele é visto como a

interiorização dos modelos culturais brancos pelo segmento negro, implicando a perda do seu ethos de matriz africana;

ora é definido como o processo de ‘clareamento’ concreto da cor da pele da população brasileira, registrado, sobretudo,

pelos censos oficiais e previsões estatísticas do final do século XIX e início do XX”. (DOMINGUES, 2004: p. 253) 8 Esta praça foi assim denominada em 1866, quando o governo provincial desapropriou o terreno de propriedade

privada que ali existia, para que a Cia. Hidráulica ali instalasse um dos chafarizes programados para abastecer a cidade.

Anteriormente, aquele lugar era conhecido, principalmente, por Alto da Bronze (FRANCO, 1980: pps. 86 e 297).

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da prefeitura de Porto Alegre e Membro do Cons. Penitenciário do Estado) e Henrique Bacellar

(solteiro, do RS, funcionário público, 34 anos).9

A viúva do professor Alcides Cruz faleceu em 25 de julho de 1916, às 4:30, na casa da rua

Santo Alfredo nº 8, localizada no arrabalde de São José, o que seria hoje o bairro Parthenon, nas

proximidades da avenida Bento Gonçalves. Ela também foi vitimada pela tuberculose pulmonar,

tinha 40 anos, profissão doméstica e sua cor era descrita como mista.10 O registro de óbito atesta

que Severina Pereira dos Santos ou Severina Cruz tinha três filhas, sendo uma delas fruto do

amasiamento com Alcidez Cruz e outras duas de um relacionamento anterior, também consensual,

com um indivíduo chamado Antério Machado11. Eram suas filhas: Fidelcina, Antelina e Zoé.

Provavelmente, Severina se mudou da rua Cel Fernando Machado, onde morava com seu marido,

para a rua santo Alfredo, passando a morar com sua filha Zoé, que podia atendê-la em sua

enfermidade e confortá-la nos seus últimos momentos.12 Alcides e Severina faleceram da mesma

doença infecto-contagiosa, a tuberculose, que provavelmente contraíram juntos.

Zoé casou com João Inácio Barcelos, filho de Ângelo Inácio de Barcelos e Fermina

Espíndula Barcelos e tiveram uma única filha, a qual recebeu o nome em homenagem ao avô, sendo

batizada como Alcidia Cruz de Barcelos.13 A homenagem nominal certamente foi também causada

pelo fato dela ter nascido no mesmo ano do falecimento do avô Alcides, em 29.04.1916, falecendo

em 1940, de tuberculose, sem descendentes. Alcidia foi casada com João Von Burg.

As filhas da relação consensual de Severina com Antério nasceram em Encruzilhada do Sul

e se mudaram com sua mãe para Porto Alegre. Fidelcina dos Santos, filha de Severina dos Santos,

casou com Arlindo Pereira Nunes em 09.01.1909, matrimônio registrado na igreja do Rosário, a

9 CRC 1ª Zona de Porto Alegre, Livro de Casamentos, nº 34, folha 12v, reg. 105; GRIJO, 2005: p. 185. 10 CRC 1ª Zona de Porto Alegre, Livro de Óbitos nº 81, folha 61, reg. 1758. 11 Supomos que esta relação anterior de Severina tenha se dado em Encruzilhada. Tanto no testamento de Alcides

(quando ele reconhece Zoé como sua filha), como no registro de casamento, Severina aparece como solteira. 12 A coabitação do casal na casa do centro de Porto Alegre é uma dúvida, pois alguns indícios nos levam a crer que

Severina residia com as filhas na casa da Santo Alfredo: Fidelcina e Antelina casaram-se em paróquias daquele bairro,

assim como, a própria Zoé casou-se com um rapaz do mesmo bairro, em vista dos levantamentos genealógicos

realizados até o momento. Além disso, em correspondência com Borges de Medeiros, datada de 13/11/1915, Alcides

escreve ao chefe político desde o “Arraial de São José”, informando-o que retornara de Montevidéu no dia 24 de

setembro, “acometido de um grave derramamento pelural” que começou no Rio de Janeiro (IHGRGS/BM, n° 6149). 13 O marido de Zoé faleceu em Porto Alegre em 09.04.1932, sem testamento, com 35 anos de idade, de peritonite. Ele é

descrito como branco, trabalhava no comércio e o casal possuía três imóveis: dois prédios na Estrada do Mato Grosso,

nºs 1803 e 1809 e uma casinha na rua Santo Alfredo nº 8, arrabalde São José (APERS – 3º Cartório de Órfãos de Porto

Alegre, inventário nº 446, inventariado: João Inácio de Barcelos, inventariante: Zoé Cruz de Barcelos, 1932).

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qual atendia o bairro Partenon naquela época.14 Antelina Pereira Machado, natural de Encruzilhada

e "filha legítima" de Anterio Machado e Severina Pereira casou em 25.11.1914 com Frederico

Bertoldi.15

A duradora relação de amasiamento de Alcides e Severina teve início na cidade de

Encruzilhada, para onde ele se mudou após voltar de São Paulo com o diploma, atuando em causas

diversas como advogado. Aliás, no seu testamento, Alcides Cruz evidencia a permanência dos laços

com aquela cidade, legando:

A Quintina Machado Borges, filha do Coronel Avelino Machado Borges, a quantia de tres contos de reis

(3:000.000) [...]. A fabrica da igreja de Santa Barbara de Encruzilhada, quinhentos mil reis (500.000). Aos

mendigos da vila da Encruzilhada, cem mil reis (100.000), de cuja distribuição se encarregará ou o Intendente

ou o Vigario.

O pai de Alcides de Freitas Cruz, Manoel Pinto Lacerda da Cruz, nasceu na cidade de

Goiana, na província de Pernambuco, filho dos também pernambucanos Antônio Pinto Lacerda e

Maria da Conceição dos Prazeres e faleceu em Porto Alegre em 18.08.1868, com 44 anos, de

consumpção.16 Sua mãe, Adelaide Leopoldina de Freitas, nasceu em Porto Alegre em 16.06.1828,

falecendo na mesma cidade, em 26.01.1909.17

Adelaide era filha do tenente paulista (nascido na cidade de Santos) Joaquim Pedro de

Freitas (filho legítimo de João Nunes de Freitas e Ana Maria de São José) e de Estefânia Maria da

Assunção, nascida em Porto Alegre. Estefânia morreu na mesma cidade em que nasceu em

11.08.1884 com 90 anos de idade, de velhice, descrita como parda. Os avós maternos de Alcides

Cruz casaram na Catedral de Porto Alegre em 30.09.1851, sob as bênçãos do padre Francisco de

Paula Macedo. Tratava-se de uma relação consensual que se estendia há anos e, aproveitando o

matrimônio, os noivos reconheceram como legítimos os filhos Leopoldino Joaquim de Freitas

(então com 32 anos de idade) e Adelaide Leopoldina de Freitas (com 22 anos). Ou seja, pelo menos

14 AHCMPA – Livro de Casamentos da Igreja N. Sra. do Rosário de Porto Alegre, nº 11, folha 93. 15AHCMPA – Livro de Casamentos da Igreja Sto. Antônio do Partenon de Porto Alegre, nº 1, folha 24. 16 AHCMPA – Livro de Óbitos da Igreja N. Sra. Madre de Deus – Catedral de Porto Alegre, nº 10, folha 20.

Consumpção: “Consiste este fenômeno na diminuição lenta das forças e carnes do doente; acompanha quase todas as

moléstias crônicas, principalmente as diferentes moléstias do peito, tidas como tísica, laringite e bronquite crônica,

moléstias do coração, ou muitas outras afecções antigas” (LANGAARD, Vol. 1, 1872: p. 520). 17 AHCMPA – Livro de Batismos da Igreja N. Sra. Madre de Deus – Catedral de Porto Alegre, nº 7, folha 17v; Livro de

Óbitos da mesma igreja, nº 19, folha 61.

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desde 1818 esse casal existia.18 Ambos os noivos assinaram o documento eclesiástico, mostrando

contato com a cultura escrita e serviu de testemunha/padrinho o tio (e futuro Conselheiro do

Império) Leopoldino Joaquim de Freitas e Florisbela Querubina de Sampaio.

Perdendo o pai com apenas um ano de idade, Alcides Cruz teve como referências afetivas

familiares a mãe Adelaide e a vó Estefânia, o tio Conselheiro do Império Leopoldino e os irmãos.19

Sua vó Estefânia, como já dissemos, morreu em 11.08.1884, e sua mãe Adelaide faleceu em 1909.

Em seu testamento, redigido em 11.11.1908, Adelaide informava que possuía a casa em que

morava, na rua Fernando Machado, nº 241 e outra menor na rua da Concórdia, nº 123. Ela deixou a

sua terça da herança, depois de deduzidas as despesas, para a sua neta Léa de Freitas, filha de seu

filho Leopoldo Joaquim de Freitas, naquela época professor da Faculdade de Direito de São Paulo.20

O paulista Joaquim Pedro de Freitas e a porto-alegrense Estefânia Maria da Assunção, avós

maternos de Alcides, tiveram, pelo que sabemos até agora, cinco filhos, sendo que quando do

casamento de 1851 apenas dois ainda viviam (Adelaide e Leopoldino). É provável que Joaquim

Pedro de Freitas tenha se deslocado para o sul integrando a Legião de São Paulo, talvez

acompanhando o tenente Francisco de Paula Soares, compondo as manobras bélicas voltadas a

região do Prata.21 Pelos registros de batismos dos filhos percebe-se que àquele casal demorou para

legitimar a sua relação, quem sabe pensando se a relação com uma mulher negra não prejudicaria a

ascensão daquele paulista – pelo menos socialmente branco –, na hierarquia militar. Joaquim Pedro

de Freitas batizou, solteiro, os seguintes filhos:

18 AHCMPA – Livro de Casamentos da Igreja N. Sra. Madre de Deus – Catedral de Porto Alegre, nº 6, folha 45; Livro

de Óbitos da Catedral, nº 15, folha 40. 19APERS – Juízo de Direito da 2ª Vara Cível de POA, nº do processo: 497, Inventariado: Adelaide Leopoldina de

Freitas, Inventariante: Leopoldino Joaquim de Freitas, 1889; APERS – Juízo Distrital Provedoria de Porto Alegre,

Testamento, Adelaide Leopoldina de Freitas, Albino José Ferreira Coutinho, 1909. 20 Através do jornal republicano A Federação, de 30 de janeiro de 1909 (ano XXVI, nº 26), Alcides e seu irmão

Leopoldino (que estava em São Paulo e não compareceu ao velório), agradecem pelas “demonstrações de pesar

recebidas” pelo falecimento da mãe e convidam as pessoas de suas relações para a missa que ocorreria na Catedral no

dia 1º de fevereiro, às 8 da manhã. 21 Soares nasceu em São Paulo em 1778 e faleceu em Porto Alegre em 1853 ou 1854, com a patente de Brigadeiro.

Comandou o Presídio de Torres e participou, durante a guerra civil farroupilha, da defesa da capital da província

(FRANCO, 2010: p. 195). Através da documentação militar, sabemos que Joaquim Pedro de Freitas assentou praça de

soldado voluntário no regimento de caçadores da praça de Santos em 1809, sendo promovido a alferes em 1814, a

tenente em 1820 e reformado em 1835. (AHE – Pasta IV/23/110) A última notícia sobre Joaquim Pedro, até o momento

localizada, é a carta de alforria concedida por ele, sem ônus ou condição, a sua escravizada Lucrécia, preta, do Congo,

com 50 anos, redigida em 09/12/61 e registrada no cartório no dia seguinte, por servir a seu senhor há mais de 25 anos

com toda a lealdade e zelo (APERS – 2º Tabelionato de Porto Alegre, Livro 17, folha 102).

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Tabela 1 – Filhos do casal Joaquim Pedro de Freitas e Estefânia Maria da Assunção

(avós de Alcides de Freitas Cruz)

NOME NASCIMENTO PADRINHOS

Leopoldino 1818 Ten. Francisco de Paula Soares e N. Sra. da Conceição

Joaquim 25/06/1819 Sarg. Mor Francisco de Paula Soares e Eufrásia Maria da

Conceição

João 17/11/1821 Manoel Joaquim Pires e Eufrásia Maria da Conceição

Adelaide 16/06/1828 Sarg. mor José Luiz de Andrade e esposa D. Henriqueta

Marinha da Silva e Andrade

Leopoldina 21/04/1835 Leopoldino Joaquim de Freitas e Adelaide Leopoldina de

Freitas22

Em nenhum dos registros de batismo acima o nome da mãe foi mencionado, sendo que no

caso de Joaquim e João o padre anotou “mãe incógnita”; em todos, porém, encontramos o nome do

pai, que reconheceu a paternidade nos três primeiros. Nos dois primeiros batizados o pai aparece

acompanhado da patente de alferes e nos seguintes ele consta como tenente, mostrando uma

trajetória positiva na carreira militar. Aliás, a presença de militares entre os padrinhos atesta o

círculo de relações em que esse migrante paulista estava envolvido. Foram, na verdade, dois

movimentos migratórios que confluíram e se encontraram em Porto Alegre: aquela família negra

fugida de Sacramento e alguns militares para o sul deslocados para manter o subimperialismo

brasileiro na Cisplatina. Segundo o cronista Comendador Coruja, que viveu em Porto Alegre no

período, colonistas eram assim chamados os que fugiram da Colônia de Sacramento em razão da

invasão espanhola de 1762: ”Dizer-lhe que alguém era colonista era fazer-lhe o elogio, pois eram

ordinariamente bem considerados” (CORUJA, 1983: p. 57).

Como podemos ver na Tabela 1, em três casos o sobrenome Conceição aparece

amadrinhando rebentos do casal Joaquim Pedro de Freitas e Estefânia Maria da Assunção. Uma das

vezes a madrinha foi Nossa Senhora da Conceição e duas vezes Eufrásia Maria da Conceição.

22 AHCMPA – Livros de Batismos da Igreja N. Sra. Madre de Deus – Catedral de Porto Alegre, nº 5 (folhas 125v e

168), livro 6 (folha 58v), Livro 7 (folha 17v) e livro 9 (folha 50v).

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A presença de Eufrásia nas relações familiares abre um ponto de vista importante para a

identificação da cadeia genealógica de Alcides Cruz. Trata-se, nesse momento, de uma relação de

“parentesco espiritual” que nos conduz a algumas conclusões importantes. No seu testamento,

registrado em 25.01.1842 Eufrásia, com sua “saúde perfeita e claro entendimento” deixa como

herdeiros o afilhado João Pedro de Freitas (que faleceu antes da testadora), Leopoldino e Adelaide

Leopoldina Joaquina de Freitas. No final, Leopoldino assumiu como testamenteiro e também

inventariante.23

Eufrásia nasceu na vila de Rio Grande em 03.12.1779, migrando para Porto Alegre, onde

casou em 27.07.1792 com o carioca Francisco Félix de Souza (filho natural de Inácia Francisca

Xavier). Na habilitação de casamento eles se declararam (ou foram declarados) pardos forros, sendo

filha legítima de Carlos da Costa e outra Eufrásia Maria da Conceição, também alcunhados de

pardos forros.24 Segundo o registro de batismo de Eufrásia anexado na mesma habilitação

confeccionada para o casamento de 1792 na Catedral de Porto Alegre, os pais dela eram naturais da

Colônia do Sacramento. Dentre os registros da Colônia, localizamos o casamento de Carlos da

Costa e Eufrásia Maria, ocorrido a 18.01.1770, sendo ele filho natural da escravizada Maria, de

Domingos Dias, e ela, filha natural da escravizada Ana Maria Joaquina, escrava do Sargento Mor

Manoel Lopes Fernandes.25

Mas voltando à Estefânia Maria da Assunção, percebemos que sua cor tinha relação com a

sua epiderme e também com a sua história familiar, com contatos muito próximos com a

escravidão.

23 Eufrásia faleceu em 10.01.1852, deixando os bens: propriedade de casas da rua da Igreja; propriedade de casas no

Beco do João Coelho; além de móveis e roupas. No testamento, declarou ser católica, natural da vila de Rio Grande,

filha legítima de Carlos da Costa e Eufrásia Maria da Conceição, já falecidos. Casada em primeiras núpcias com

Francisco Félix de Souza, falecido, sem filhos por haverem falecido. Testamenteiros: 1º Leopoldino, 2º João Pedro de

Freitas e 3º Jacinto José Ferreira. É irmã de Nossa Senhora da Conceição. Lega a casa da rua da Igreja para o

testamenteiro Leopoldino e “declaro que o outro meu lance de casas da rua da Igreja e pegado ao lance acima

mencionado o deixo a menor Adelaide Leopoldina Joaquina de Freitas, com a obrigação de também morar na mesma

casa com ela sua mãe Estefânia Maria da Assunção, enquanto viva for ou de ter da mesma casa o usufruto em iguais

partes, ficando porem no todo a propriedade pertencendo a dita Adelaide [...]”.O lance de casas no Beco do João

Coelho, lega a seu afilhado João Pedro. (APERS – Cartório da Provedoria de Porto Alegre, inventário nº 115,

inventariado: Eufrásia Maria da Conceição, inventariante: Leopoldino Joaquim de Freitas, 1852) 24 AHCMPA – Habilitação Matrimonial, caixa 59, ano 1792, nº 23; Livro de Casamentos da Igreja N. Sra. Madre de

Deus – Catedral de Porto Alegre, nº 1, folha 81. 25 O assento do casamento consta no livro 2 da Colônia, a folha 13. Utilizou-se a transcrição publicada por BARROS,

2012: p. 20.

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Na tentativa de encontrar o registro de batismo de Estefânia, uma vez nascida em Porto

Alegre por volta de 1794, constatamos que, no período entre 1773 a 1800 houve o assento de duas

meninas de nome Estefânia, uma nascida em 1794 e a outra, 1796.26 O mais enigmático é o fato de

ambas as meninas terem nascido escravizadas por serem filhas da preta Eva, escrava de Carlos da

Costa.

Em junho de 1798, Carlos da Costa e esposa alforriaram a “hua parda por nome” Estefânia,

de dois anos de idade, filha de Eva, “nação Benguella”.27 Portanto, é bem provável que a Estefânia

nascida em 1794 não tenha sobrevivido, falecendo antes de 1796, quando batizaram a nova filha da

escrava Eva com o mesmo nome de Estefânia, que foi alforriada em 1798. No mesmo ano de 1798,

no mês de outubro, faleceu Carlos da Costa, aos 55 anos de idade, deixando viúva a esposa.28

Estefânia, nascida escravizada e alforriada em 1798: seria a avó de Alcides Cruz? É o que

somos levados a pensar: além do já referido parentesco espiritual, Eufrásia Maria da Conceição,

nascida em 1779, filha de pais colonistas, teria também algum parentesco consanguíneo com Eva?

Por enquanto, as conclusões que chegamos provêm dos indícios encontrados, pois, unindo-se às

falas de Alcides Cruz sobre sua família, assim como à de Leopoldo de Freitas, ao escrever sobre o

tio Conselheiro do Império, as informações confluem às ligações sugeridas.29

A própria trajetória do pai de Alcides, Manoel Pinto de Lacerda Cruz, denuncia estas

migrações interprovinciais militares e de como estes populares fardados acabavam criando raízes e

ficando onde serviam. No processo em que se habilitou ao casamento com Adelaide, ele declarou

que saiu de sua terra natal Pernambuco em 1848, como recruta, indo direto ao Rio de Janeiro, onde

ficou por 3 semanas30. De lá, seguiu para esta província sulina, concluindo o seu tempo de milícia.

Três testemunhas depuseram a seu favor: o Alferes Francisco Xavier Barreto disse conhecê-lo por

ter sido praça em seu batalhão; José Francisco de Assis Campos Cosdem, natural de PE, vivendo de

seu negócio em Porto Alegre, disse conhecê-lo no RS havia 3 anos; e Jacinto José Maria, também

26 AHCMPA – Livro de Batismos da Igreja N. Sra. Madre de Deus – Catedral de Porto Alegre, nº 1, folha 275v e folha

285 (respectivamente). 27 APERS – Tabelionato de Porto Alegre, Livro 2, folha 72. 28 AHCMPA – Livro de Batismos da Igreja N. Sra. Madre de Deus – Catedral de Porto Alegre, n° 2, folha 13v. Em seu

óbito, registrou-se que era natural da Praça da Colônia, pardo forro e que “não fez Testamento por pobre”. 29 Leopoldo de Freitas, ao se referir à avó Estefânia Maria da Assunção, mãe de Leopoldino Joaquim de Freitas, disse

que “descendida de emigrados da Colônia do Sacramento por ocasião da invasão espanhola.” (FREITAS, 1911: p. 4). 30 AHCMPA – Habilitação Matrimonial, caixa 252, nº 171, ano 1861.

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natural de PE, açougueiro em Porto Alegre, conheceu-o na província de origem de ambos e vieram

juntos como recrutas, primeiro ao RJ e depois ao RS, servindo no mesmo batalhão.

Adelaide e Manoel, que eram analfabetos, tiveram a seguinte prole:

NOME NASCIMENTO BATISMO PADRINHOS

Adelina 08/04/1862 8/5/1862 Leopoldino Joaquim de Freitas e Nossa

Senhora

Leopoldo 27/9/1863 2/12/1863 Leopoldino Joaquim de Freitas e Estefânia

Maria da Assunção

Tercilia 17/2/1865 12/4/1865 Joaquim Alves Leite e Nossa Senhora

Alcides 14/5/1867 13/10/1867 José Constantino da Rocha e Rita Luiza de

Freitas31

O filho primogênito do Alferes Joaquim Pedro de Freitas, Leopoldino, segundo consta no

seu registro de seu batismo, foi exposto na casa do Tenente Francisco de Paula Soares em 25 de

maio de 1818, sendo batizado e reconhecido por seu pai biológico em 3 de agosto do mesmo ano. O

motivo dessa passageira exposição pode estar no afastamento do pai de Porto Alegre quando do

nascimento de seu primeiro filho, talvez em missão militar fora da capital. Se o seu filho fosse

registrado apenas pela mãe Estefânia, sem a presença do pai que ostentava uma patente militar

como uma insígnia de prestígio, provavelmente o rebento teria seu nome acompanhado da cor da

mãe e quem sabe do status ancestral de sua família materna forra. Ser enjeitado temporariamente na

casa do seu superior hierárquico deu tempo para que o pai biológico retornasse para casa e

registrasse o rebento em seu nome, invisibilizando a herança social e racial materna. Lembremos

que:

Ter ou não filhos, em quais circunstâncias tê-los, enjeitar alguns eram decisões ligadas aos projetos familiares.

Filhos eram peças importantíssimas para a viabilização de alianças – que começavam no ato do batismo,

através do compadrio, e se estendiam até os enlaces matrimoniais. Mesmo filhos ilegítimos ou expostos

podiam, dependendo das circunstâncias, desempenhar esse tipo de papel. (BRÜGGER, 2007: 217).32

31 AHCMPA – Livros de Batismos da Igreja N. Sra. Madre de Deus – Catedral de Porto Alegre, nº 16 (folhas 115 e

177v) e n° 17 (folhas 31 e 142v). 32 Sobre a exposição em Porto Alegre, ver: SILVA, 2014.

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Leopoldino se tornaria Conselheiro do Império e peça importante na criação e educação de

seu sobrinho Alcides. Como cabia a um Conselheiro do Império, aquela criança exposta, filho da

negra Estefânia, seria no seu óbito registrado como branco. Aliás, sua morte coincidentemente

ocorreria no ocaso do Império, às 2 horas da tarde, em 08.06.1889, com 72 anos de idade, solteiro,

vitimado pela ataxia motora progressiva em sua casa na rua Duque de Caxias.33

Pela cronologia dos registros eclesiásticos da família do professor Alcides Cruz, percebemos

que se configura – parafraseando Sheila de Castro Farias –, uma fronteira negra em movimento, na

qual famílias negras escravizadas, forras e livres procuravam aproveitar as oportunidades daquela

fronteira aberta, tendo seus planos modificados pela invasão castelhana e pelos arranjos e

desarranjos imperialistas.

O professor Alcides fez o seu testamento – “são e em seu estado perfeito de juízo” – em 10

de julho de 1915, e sua então esposa Severina ditou suas últimas vontades – “doente e de cama,

porem em seu perfeito juízo” –, quase um ano depois, em 30 de junho de 1916. Ambas as

disposições finais traziam restrições a um dos genros, Arlindo Pereira Nunes, casado com Fidelcina.

Severina é mais discreta em seu arrazoado, já Alcides Cruz exige que os bens que por ventura

ficarem com Fidelcina “não se comuniquem de forma alguma com o seu marido [...] devido a

irregular conduta do mesmo, mostrando não ter ele a necessária idoneidade para possuir bens de

qualquer natureza”.

Estudante em Porto Alegre no Ginásio São Pedro, Colégio Souza Lobo e Escola Militar,

Alcides Cruz formou-se em direito em São Paulo. Após, dedicou-se à advocacia, foi fundador e

professor da Faculdade de Direito de Porto Alegre entre 1900 e 1916 e deputado estadual pelo PRR

por cinco legislaturas, de 1897 a 1916 (GRIJÓ, 2005).

O patrimônio material acumulado pelo casal Alcides-Severina não era nada desprezível,

localizando-os numa elite intermediária de abastados urbanos. Cotejando o inventário post-mortem

do casal, temos:

Uma chácara no lugar denominado Santo Antônio, 4º e 5º distrito desta capital, com casa de

moradia e mais benfeitorias – avaliada em 28 contos de réis;

33 AHCMPA – Livro de Óbitos da Igreja N. Sra. Madre de Deus – Catedral de Porto Alegre nº 17, folha 8v. Ataxia era

uma denominação “empregada para caracterizar a desordem e irregularidade dos sintomas nas afecções nervosas; este

estado de ataxia se desenvolve principalmente nas inflamações aguda e crônicas do cérebro, e nas das membranas que

lhe servem de invólucro” (LANGAARD, Vol. 1, 1872: p. 232).

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Uma casa na rua Fernando Machado nº 1 – avaliada em 20 contos de réis;

Uma meia-água, na rua José do Patrocínio nº 245 – avaliada em dois contos de reis;

Uma casa no arrabalde S. José, rua S. Alfredo nº 8 – avaliada em seis contos de réis;

50 reses de criar e 50 ovelhas – avaliadas, respectivamente, por dois contos de reis e 250 mil

réis;

Uma biblioteca com 1.837 volumes – avaliada em dois contos de réis;

Uma caderneta no Banco do Comércio com 36:089$400 réis;

Dividas ativas: honorários advocatícios que devia para a herança D. Carolina Correa do

Canto: 12:500.000 réis.

Temos, assim, um patrimônio material de 108:839$400 réis, sendo praticamente 52% dele

concentrado em bens imóveis e 33% em dinheiro. Se somarmos a essa porcentagem de patrimônio

em dinheiro as dívidas ativas, passaremos a 44,6%, recursos provavelmente advindos de honorários

advocatícios que se são irregulares, representam volumes consideráveis34.

Chama a atenção entre os legados do casal Alcides-Severina o sólido capital intelectual e

simbólico consolidado numa biblioteca de 1.837 volumes, doados quase integralmente para a

Faculdade de Direito de Porto Alegre e por isso descrita individualmente no inventário. Norbert

Elias destaca que: “O aumento da demanda de livros numa sociedade constitui bom sinal de um

avanço pronunciado no processo civilizador, porque sempre são consideráveis a transformação e

regulação de paixões necessárias para escreve-los quanto para lê-los”. (ELIAS, 1993: p. 229) No

Brasil, “desde meados do século XIX a posse de livros passou a proporcionar um status aos grupos

médios urbanos, principalmente aquele formado pelos profissionais liberais, tais como médicos,

advogados e jornalistas” (VENANCIO, 2015: p. 156).35

Gisele Venâncio, que elaborou uma biografia intelectual de Oliveira Viana através do seu

acervo privado, que incluía uma sólida biblioteca, usa uma metáfora de Jorge Luiz Borges e indica

estes patrimônios como espelhos e máscaras de seus acumuladores. Similares aos “espelhos” as

bibliotecas refletem heranças intelectuais, habitus, instituições, mas também atuam como máscaras,

funcionando como “uma representação de seu dono, para ele mesmo, para os outros e para a

34 APERS – Petição, Requerido: Carolina Correa do Canto: Requerente: não consta, Comarca de Porto Alegre – para o

ano de 1914 há dois processos (nº 46 e nº 61); para o de 1915, outros dois (n° 276 e nº 277). 35 Ver: FERREIRA, 1999, p. 313-334.

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posteridade” (CHARTIER, apud VENANCIO, 2015: p. 13). Conforme ARTIÉRES (1998: p. 11),

“arquivar a própria vida é pôr-se no espelho”.

Assim, observada com atenção, uma biblioteca denuncia estilos de vida e, considerando que

o seu processo de acumulação decorre durante anos, lega-nos pistas sobre a trajetória de seus

acumuladores (indivíduo e família). Considerando a passagem desses personagens por instituições

de ensino superior, por exemplo, esses livros acumulados estão impregnados de visões de mundo

geracionais e por isso mesmo não necessariamente unívocas. Certamente não concordamos com

todos os autores que acumulamos em nossos acervos literários, mas eles nos descrevem enquanto

leitores. Segundo Venâncio (2015: p. 160):

Colecionar livros era uma etapa importante na formação de um intelectual. Possuir um gabinete de leitura,

estantes cobertas de livros, uma quantidade de raridades ou de livros pertencentes aos cânones literários

nacionais ou estrangeiros simbolizavam para seus pares sua importância intelectual.

No caso específico do professor Alcides de Freitas Cruz ele não era apenas um leitor, mas

um autor envolvido na escrita e na tradução de livros. Sua pujante biblioteca possuía livros em

diversas línguas: latim, espanhol, italiano, francês e português. Se a pensarmos como uma máscara

ou autorepresentação, aquela biblioteca projeta a imagem de um intelectual, um homem de razão

(como diria Norbert Elias), um homo academicus, tradutor, historiador, pensador da área do direito,

leitor de romances de qualidade, desde Machado de Assis, Eça de Queiroz a Mallarmé.

Mas a afeição pelos livros também pode ser encontrada em outras trajetórias de intelectuais

negros. O sociólogo Oracy Nogueira, tratando da trajetória do médico e parlamentar negro Alfredo

Casemiro da Rocha, narra as destruições sofridas pelos bens daquele indivíduo em decorrência da

revolução de 1932, quando a família teve que fugir e a sua casa foi saqueada. Segundo carta de

Alfredo para seu filho Alfredinho toda a residência foi destruída e mesmo os preciosos diplomas

rasurados com dizeres ofensivos, mas na missiva ele se lamentava de um item de seu particular

afeto:

Entretanto, o que me acabrunha por demais é a perda dos melhores livros da minha tão querida biblioteca. Lá

se foram o Labrousse (16 volumes); o dicc. Internacional (24 volumes) e mais e mais. É bem verdade que

ainda me deixaram muitos livros, mas infelizmente souberam fazer a seleção.... (NOGUEIRA, 1992: p. 233).

Este afeto pelas letras acumuladas em uma bela biblioteca também pode ser verificado em

um caso de um intelectual negro local. Segundo José Antônio dos Santos (2011: p. 238/239) Dário

de Bittencourt, neto de Aurélio Viríssimo de Bittencourt:

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Em 1943, quando terminou a edificação da sua casa própria [Dario] reservou uma das maiores salas à sua

Biblioteca Jurídica que denominou Sala Aurélio Júnior, como seu pai assinava na maioria das vezes os poemas

que eram publicados nos jornais da época, Correio do Povo, Jornal do Comércio, Petit-Journal e O Exemplo.

A referida Sala foi formada com livros de Direito, Filosofia, Sociologia e Economia, em homenagem ao pai,

embora, dos livros deste, um único havia restado. Era a obra “Princípios Gerais de Direito Constitucional dos

Estados Unidos da América do Norte”, versão de Alcides Cruz, então professor da Faculdade Livre de Direito

de Porto Alegre. O livro foi editado em 1909, e havia sido dedicado pelo autor ao “dr. Aurélio Júnior”. O livro

havia sido guardado por Tia Zezé desde a morte do seu pai e lhe foi entregue em 1918, quando Dario se

preparava para entrar na Faculdade de Direito. Era mais um reforço para que ele encarasse o caminho

profissional que haviam escolhido, ele deveria ser advogado e juiz como seu pai ou amanuense como seu avô.

Muito embora toda a sua resistência em ser funcionário público, Dario se aposentou, em 1957, como professor

catedrático de Direito Internacional Privado da Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul.

A Tia Zezé era tia-avó materna de Dario, irmã de sua avó Leocádia Bastos de Quilião. Os

pais de Dario, Aurélio Viríssimo de Bittencourt Júnior e Maria da Gloria Quilião se casaram em

06.02.1897 e se divorciaram “por mútuo consentimento” em 26.02.1906, ficando o filho único sob

tutela paterna.36 O divórcio não significou, entretanto, um afastamento de Dario da família de sua

mãe, já que, segundo Santos (2011: p. 216) Tia Zezé foi sua segunda mãe, falecendo em 1922 com

77 anos de idade. Casada com um homem viciado em jogo, provavelmente Zezé recebeu apoio e

abrigo da família Bittencourt, retribuindo com a ajuda na criação do menino Dario.

A intimidade de Tia Zezé com a família Bittencourt fica ainda mais evidente se pensarmos

que a ela foi atribuído (ou ela tomou para si) o encargo de portadora de um objeto da memória

afetiva daquela família negra. O livro em referência foi traduzido pelo professor Alcides de Freitas

Cruz, trata-se de Princípios Gerais de Direito Constitucional dos Estados Unidos da América, de

Thomas Cooley, que foi editado em 1909 pela Editora Carlos Echenique/Livraria Universal37.

Materializar a memória afetiva familiar em um livro não pode ser desprezado, pois evidencia a

valorização de uma trajetória vinculada ao espaço acadêmico e a intelectualidade, onde a titulação e

o ingresso como professor, além da fruição de boa e atualizada literatura (incluindo romances)

servem como símbolos de prestígio e afirmação social.

O legado do professor Alcides Cruz, transmitido através da tia Zezé, mostra como a troca de

presentes em forma de livros era uma forma de consolidar redes interpessoais, sendo usados até

mesmo como objetos de recordação. Os presentes fomentam e consolidam redes de amizade e 36APERS – Superior Tribunal do Estado do RGS – maço 18, auto 183, Relator o Exmo. Senhor Desembargador

Epaminondas, Apelação Civel (Divórcio), Apelante: o Doutor Juiz de Casamentos, Apelados: Doutor Aurélio Viríssimo

de Bittencourt Júnior e Maria da Glória Quilião de Bittencourt. 37ALMEIDA, Vinicius Furquim de. Vida de Raphael Pinto Bandeira: as formas de escrita da história em Alcides Cruz.

[no prelo]

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sócio-familiares, compartilhando o prazer da leitura e o gosto social pela presença de livros nas

casas, com o investimento na montagem de locais próprios para conservá-los, gozá-los e mostrá-los.

Nesse sentido é que podemos compreender o gesto de doar a biblioteca para a faculdade de Direito,

numa espécie de escrita de si póstuma, voltada para a posteridade. O destino dado aos livros mostra

que eles não eram acumulados e preservados apenas ou sobretudo por seu valor financeiro, mas

principalmente pelo seu significado simbólico e mesmo afetivo. Aliás, a única parte da biblioteca

que Alcides Cruz não legou aquela instituição de ensino superior foi a Enciclopédia Britânica,

deixada em testamento ao seu irmão Leopoldo de Freitas Cruz, então professor da Faculdade de

Direito de São Paulo.38

Um republicano negro

As pistas que temos quanto ao republicanismo do professor Alcides de Freitas Cruz

remontam a pelo menos 1885, portanto, antes ainda da proclamação da República, quando participa

da fundação do Club Literário Democrático Vinte de Setembro, cujos membros declararam aceitar e

assinar o Manifesto Republicano de 1871, sendo Alcides designado membro da comissão

encarregada da organização dos Estatutos. Em outubro daquele ano ele foi eleito 2º Secretário desse

mesmo clube, compondo a comissão de redação dos estatutos, junto com Luiz Americano,

Apolinário Porto Alegre, Felicíssimo de Azevedo, João Maia e Cristiano Reis. Tinha na época, 18

anos de idade.

Dois anos depois, em 1886, foi distribuído o segundo número da revista mensal Luta,

consagrado a comemoração do início da revolução francesa em 14 de julho de 1789. Nesse número

Alcides Cruz aparece como autor de um artigo, Bibliografia.

Nas vésperas da abolição da escravatura, em 23 de abril de 1888, o Club Republicano de

Porto Alegre organiza uma sessão solene comemorativa ao 91º aniversário da morte de Tiradentes.

O evento ocorreu às 20 horas, no salão da Soirée, presidio por Luiz Leisegneur, presidente da União

Republicana. Alcides Cruz ocupou a tribuna antes de Ernesto Alves, orador oficial do Club.

38 Para se ter uma ideia do impacto da doação daqueles 1.837 livros, consideremos que a biblioteca da Faculdade de

Direito de Porto Alegre foi inaugurada em 1906 com 774 volumes, possuindo em 1910, 2.200 volumes (GRIJÓ, 2005:

pps. 166, 168).

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Pelo menos desde 1889 (mas provavelmente lá estava em anos anteriores) Alcides Cruz

atuava como escriturário do Escritório da Estrada de Ferro de Porto Alegre a Uruguaiana,

provavelmente sua primeira inserção profissional depois de formado agrimensor pela Escola Militar

de Porto Alegre.39 Esse empreendimento federal foi instalado em 1883, conectando Santo Amaro e

Cachoeira do Sul, sendo a ligação entre Porto Alegre e a primeira estação (Santo Amaro) feita por

via fluvial.

O rápido deslocamento proporcionado pelos trens tornava este setor de transporte parte

essencial das mobilizações militares e político-eleitorais e salientava o papel político dos

trabalhadores ali envolvidos. Eleito em julho de 1892 para presidente do estado do RS, Júlio Prates

de Castilhos foi derrubado por um golpe em 3 de novembro daquele mesmo ano. A tensa situação

política regional naquele período pós-proclamação da república, que levaria a guerra civil

federalista de 1893/1895, fez com que o diretor do escritório dessa linha férrea em Porto Alegre,

Dillermando de Aguiar, passasse ao Engenheiro-Chefe, ainda em abril de 1892, uma “relação dos

empregados que daqui se retiraram acintosamente, para que não os admitais, quando vos forem

pedir ocupação”.40 Nessa relação encontramos Alcides de Freitas Cruz e Vitorino Borges de

Medeiros (irmão do futuro Presidente do estado Antônio Augusto Borges de Medeiros).

Com a eclosão da guerra civil de 1893/1895 encontramos Alcides Cruz envolvido na

resistência republicana contra os federalistas. Em Ordem do Dia de 28 de março de 1894, assinada

pelo Tenente-Coronel Comandante Marcos Alencastro de Andrade, é elogiado o brioso 7º batalhão

da Guarda Nacional, comandado pelo Coronel Thomas Thompson Flores, que havia guarnecido

durante os dias 9 a 27 daquele mês, a ponte sobre o rio Jacuí, em uma “expedição confiada pelo

Governo da República” salientando alguns nomes, entre eles o alferes secretário interino Alcides de

Freitas Cruz. A Ordem do Dia destacava que “ao patriotismo e mérito dos senhores oficiais,

instrutores, inferiores e praças é que devo motivo de orgulho por comandar o 7º batalhão, na sua

39 BNRJ/Heme - A Federação, 22 de abril de 1890, Porto Alegre, ano VII. A notícia relacionava-se a prorrogação de

uma licença de saúde por mais três meses. 40 BNRJ/Heme - A Federação, 11 de agosto de 1892. A notícia é uma resposta dos republicanos do PRR a uma crítica

feita por “um jornal da tarde”, de que o Major Telles, atual diretor daquele escritório, teria dado uma gratificação aos

funcionários “por serviços prestados no período revolucionário de julho último”. Segundo o PRR isto não ocorreu, ao

contrário das ações do ex-diretor Dillermando, energúmeno funcionário, que perseguia os de cor política distinta. A

relação completa de abril de 1892 é: João Carlos Maywald, Augusto Cezar de Medeiros, Henrique C. da Fontoura

Trindade, Leovegildo Velloso da Silveira, Victorino Borges de Medeiros e Alcides de Freitas Cruz.

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totalidade composto de moços criados no conforto da capital, sem a rude experiência dos campos, e

desafeitos ao rigor da vida militar, mas que, entretanto, mostrou-se capaz de competir com os que

mais prezam os salutares princípios da obediência e disciplina. Viva a República! Viva o Marechal

Floriano Peixoto!”.41

Na alvorada do novo século, em outubro de 1900, foi criado o Clube Júlio de Castilhos, em

Porto Alegre, com a finalidade de “estreitar os laços da solidariedade republicana”. Naquele

empreendimento político-partidário que mostra que a construção do mito sobre Júlio de Castilhos se

antecipou a sua morte, ocorrida somente em 1903, encontramos dois indivíduos que defenderam a

capital do Estado do avanço federalista. A diretoria provisória daquele clube era composta de

Marcos Alencastro de Andrade, presidente, e de Alcides de Freitas Cruz, 1º secretário.42

A iniciativa de Alcides Cruz na formação e manutenção deste associativismo político

republicano não tem relação direta com sua residência, mas sim como sua base eleitoral. Naquele

ano ele já estava advogando em Encruzilhada, onde constituiu família e sólidas relações que

duraram até a sua morte.43 Iniciando em 1897 e indo até sua morte em 1916, Alcides Cruz elegeu-se

deputado cinco vezes na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, pelo PRR. Um telegrama

reservado enviado pelo intendente de Montenegro, o Capitão Antônio Maria Vargas, ao Presidente

do Estado Júlio Prates de Castilhos evidencia o papel dessa liderança do PRR na carreira política de

Alcides. Neste telegrama de 9 de fevereiro de 1897, o Capitão Vargas comunicou que alguns

correligionários locais haviam pretendido excluir Alcides Cruz da chapa eleitoral, substituindo-o

por Mostardeiro. Entretanto, a preferência de Castilhos foi mantida, justificando que o intendente

encerrasse o telegrama orgulhoso: “Ficae certo manterei disciplina partidaria”.44

41 BNRJ/Heme - A Federação, 19 de abril de 1894. Nº 90, Ano XI. 42 Os membros restantes daquela diretoria provisória eram: Antônio Soares de Barcellos, vice-presidente, Evaristo

Teixeira do Amaral, 1º secretário e Frederico Augusto Gomes da Silva, tesoureiro. Em 19.10.1910 o Clube convidou a

todos para a romaria que faria ao túmulo de Júlio de Castilhos, no dia 24, aniversário de sua morte: “Fará o discurso

oficial o dr. Alcides de Freitas Cruz”. BNRJ/Heme - A Federação, 20 de outubro de 1900. Ano XVII, nº 242. 43 Até a sua formatura na Faculdade de Direito de São Paulo, Alcides aparecia no alistamento eleitoral como

agrimensor, já a partir de 1899 consta como advogado. BNRJ/Heme - A Federação, 21 de junho de 1895. Ano XII, nº

145; A Federação, 4 de abril de 1900. Ano XVII, nº 78. 44 AHRS/APJC – Série telegramas; BNRJ/Heme - A Federação, 23 de janeiro de 1901. Ano XVIII, nº 20. Ver:

FRANCO, 2010: p. 70-71.

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Alcides de Freitas Cruz cursou a Faculdade de Direito de São Paulo de 1891 a 1897.45

Configurando uma situação de revezamento de oportunidades de estudo – situação normal numa

família socialmente intermediária -, Alcides ingressou na faculdade exatamente no mesmo ano em

que seu irmão Leopoldo lá se formou. Como podemos ver, a sua primeira candidatura para a

Assembleia Legislativa do RS coincide com a sua formatura em direito, o que nos parece configurar

que a trajetória acadêmica tenha sido pensada também como uma espécie como pré-condição às

suas ambições legislativas. Existia uma tendência de sólida presença de bacharéis de direito nos

quadros do PRR: “De 71 membros do PRR a ele agregados nos primeiros anos, 40 possuíam títulos

em escolas superiores. Destes, 29 eram bacharéis em direitos, sendo 27 por São Paulo e apenas dois

por Recife” (GRIJÓ, 2005: p. 129).

Não sabemos como o republicanismo de Alcides dialogava com o monarquismo de seu tio

Conselheiro do Império, falecido em 1889, mas ao contrário de outras trajetórias que temos

estudado – como a de Aurélio Viríssimo de Bittencourt – a opção política deste personagem é

contemporânea à própria estruturação do PRR na ainda província sulina. Ao que parece, no pós-

1889 encontramos um acentuado posicionamento republicano da população negra – principalmente

porto-alegrense, o que já foi verificado por outros autores. SANTOS (2011: p. 128) e ROSA (2014:

p.245) argumentam e exemplificam sobre esta relação ser mediada pelo acesso a empregos públicos

e pelo aumento da esfera pública no período pós-1888. Tratando de um personagem negro que se

elegeu deputado estadual pelo PRR por 4 legislaturas, achamos importante pensar a questão do

eleitorado negro urbano.

Paulino de Souza e o eleitorado negro republicano

Em 2014 o historiador Petrônio Domingues publicou um artigo chamado Cidadania Levada

a Sério: Os republicanos de cor no Brasil. O artigo de Domingues enfoca o ocaso do Império, mas

se considerarmos o período pós-1889 estas “experiências político-culturais da ‘gente de cor’” se

45 Leopoldo depois se tornou professor na mesma instituição. AFDSP – Dossiê nº 3478, ano: 1891, Nome: Alcides de

Freitas Cruz, Filho de Manoel Pinto de Lacerda Cruz, Natural do estado do Rio Grande do Sul, Nascido a 14.03.1867,

matriculado no 1º ano em 1891. Recebeu o grau de Bacharel em Ciências Jurídicas no dia 25.11.1897; AFDSP – Dossiê

nº 3008, ano: 1887, Nome: Leopoldo de Freitas Cruz, Filho de Manoel Pinto de Lacerda Cruz, Natural do estado do Rio

Grande do Sul / Porto Alegre, Nascido a 27.09.1863, matriculado no 1º ano em 1887. Recebeu o grau de Bacharel em

Ciências Jurídicas e Sociais no dia 31.10.1891.

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tornam ainda mais diversas e cambiantes (DOMINGUES, 2014: p. 122). Pelo menos desde a

reforma eleitoral promovida pela lei de 1881, a presença e a força deste eleitorado negro urbano

pode ser verificado nos apelos feitos por alguns jornais a este segmento populacional. Vejamos se

podemos sugerir algumas questões a partir da análise de algumas vicissitudes biográficas de um

indivíduo negro do período, pensando nele como um exemplo das plurais “ambivalências,

motivações e lógicas próprias” da população de cor do período (DOMINGUES, 2014: p. 122).

Paulino de Souza Bastos tinha a matricula nº 22 do controle de sócios da Sociedade negra

Floresta Aurora, criada em Porto Alegre em 1868 (NONNENMACHER, 2015). Ele aparece nas

documentações que compulsamos com variadas denominações profissionais: operário, açougueiro,

agências. Ele foi casado formalmente com Isidora da Silva, falecida em 14.11.1891, em Porto

Alegre. O casal teve apenas uma filha legítima, Paulina, de apenas 2 anos, nascida em 08.05.1889 e

que consta no registro civil como parda. Paulino faleceu em 29.06.1926, com 77 anos, pedreiro,

com a cor mista, morador na rua Venezianos, nº 36. O seu inventário post-mortem traz uma série de

informações relevantes, tendo em vista a briga ocorrida entre Paulina, que se autointitulava a única

filha legítima de Paulino, e seus dois irmãos bastardos. Após o falecimento de Isidora, Paulino

amasiou-se com Maria Luiza Felisberta, que finou em 26.11.1913, com 38 anos, filha de pais

ignorados e cor preta.

Os ditos filhos bastardos – Felisberto Souza Bastos e Cezar Souza Bastos –, reclamaram

judicialmente que sua meia-irmã Paulina usufruía ilegalmente dos rendimentos dos dois prédios

contíguos legados, localizados à rua Venezianos, e provaram que seu pai os reconhecera bem antes

de morrer. O falecido compareceu pessoalmente ao Cartório do Registro Civil e reconheceu os dois,

sendo que o artigo 1605 do Código Civil, para os efeitos de sucessão, equiparava os filhos legítimos

aos legitimados, os naturais reconhecidos e os adotivos. Tal reconhecimento é comprovado por dois

atestados, um de 1898 e outro de 1906, em que Paulino pessoalmente registra o nascimento de seus

filhos ilegítimos e reconhece a paternidade dos mesmos. Nos dois documentos Paulino e seus filhos

são descritos como pardos e sua esposa como preta.

Quando tudo parecia se encaminhar para uma equânime resolução jurídica, o juiz estranhou

que Paulino assinara o termo de nascimento de Cesar (de 1906) e no de Felisberto (de 1898)

constava que ele não sabia escrever, ao que estes herdeiros argumentaram:

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Paulino de Souza Bastos lia mal e não sabia escrever, portanto, quando deu a registro o nascimento dos

requerentes, assinaram a seu rogo.

Posteriormente, desejando ser eleitor, o que conseguiu, tendo votado, muitas vezes, como o Partido

Republicano, como podem atestar os drs. Henrique Pereira Neto, Cristiano Felipe Fischer46, Carlos Leite e

todos os antigos funcionários da Prefeitura Municipal desta Cidade, conseguiu assinar o seu nome, não com

perfeição, pode-se mesmo dizer melhor que desenhava o seu nome.

Estabelecendo uma certa cronologia político-eleitoral da vida de Paulino, de acordo com

estes pequenos registros das memórias de seus filhos Cesar e Felisberto, podemos conjeturar que foi

posterior a 1898 que este homem negro aspirou participar da cidadania política tornando-se eleitor.

Naquele ano solidificava-se o poder republicano no estado, com a posse de Júlio de Castilhos em

1893 na presidência do estado e com o fim da Guerra Civil Federalista em 1895. Além disso,

tomava posse na Intendência de Porto Alegre, no ano anterior (1897), o engenheiro José Montaury,

escolha pessoal de Júlio de Castilhos, consolidando o poder republicano também na esfera da

capital administrativa do estado. Habilitar-se ao voto equivalia exercer a cidadania política,

dialogando com a consolidação e o aumento da influência republicana no estado. Nesse sentido,

talvez políticos negros como Alcides de Freitas Cruz teriam um sensível apelo a esse eleitorado

principalmente urbano.

Escritas de si – o corvo Alcides

Segundo os autores do livro Além da Escravidão. Investigações sobre raça, trabalho e

cidadania em sociedades pós-emancipação o caráter multirracial da população livre – disposta em

uma “grade de categoriais raciais não bipolar” –, teria gerado o que os autores chamam de uma

ética do silêncio em relação a discriminação das cores, no oitocentos:

De um modo ou de outro, ao longo das tumultuadas primeiras décadas da jovem monarquia, as pressões

políticas dos novos cidadãos por igualdade de direitos permitiram que uma ética do silêncio (em relação às

raças ou cores) fosse progressivamente desenvolvida para operar nas situações formais de igualdade. Esta

solução atendia às reivindicações dos que conquistavam alguns espaços de respeitabilidade social, ao mesmo

46 Em 1907 Paulino acionou a justiça contra seus vizinhos Santo Ciulli e sua mulher. Ele alegava ter comprado de

Cândido Antônio Lopes um terreno, em 09.12.1902, na Rua Venezianos, onde edificou algumas casas. Os seus

vizinhos, edificando em terreno contíguo, derrubaram um muro que separava os terrenos e invadiram a propriedade do

suplicante. Paulino apresentou seis testemunhas, entre elas, Cristiano Felipe Fischer, na época com 38 anos, casado,

farmacêutico, brasileiro e que confirmou tudo o que alegava o queixoso (APERS – 2º Cartório do Civil, Superior

Tribunal do estado, 1907. Auto 185, Apelante: Paulino de Souza Bastos, Apelados: Santo Ciulli e sua mulher).

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tempo em que impedia que as identidades de cor pudessem estender-se para além da fronteira da condição

escrava (COOPER; HOLT; SCOTT, 2005: pps. 17 e 25).47

Já o historiador norte-americano James Woddard, em trabalho em que retoma o estudo da

trajetória do médico baiano Alfredo Casemiro da Rocha (analisado, como já dissemos, em obra

clássica do sociólogo Oracy Nogueira), critica a aceitação exagerada da etiqueta racial brasileira, a

qual teria criado um “consenso entre os quadros políticos do país de que referências à cor e/ou

ascendência africana não fossem feitas”. Woodard contesta esse silêncio mencionando pilhérias

publicadas nos jornais sobre o político por ele estudado, evidenciando que a posição étnica e racial

daquele indivíduo foi usada como arma depreciativa de seus desfafetos políticos (WOODARD,

2014: p. 241).

No caso do professor Alcides de Freitas Cruz temos dois momentos em que ele responde

pelos jornais ofensas racistas a ele dirigidas. Como vimos no início desse texto, estas respostas

foram lidas amplamente e consumidas positivamente por indivíduos negros, que politicamente as

ostentaram como respostas coletivas ao racismo vijente. Não podemos esquecer da força da

imprensa escrita naquele momento histórico, sendo lida e ouvida amplamente, além de perpetuada:

”Ao contrário das palavras ditas, que se esvanecem imediatamente, da tinta que se deita em papel

corre-se o risco da perpetuidade” (ROSEMBERG, 2016: p. 642).

A quebra desta etiqueta racial brasileira pelos inimigos políticos de Alcides Cruz criou pelo

menos duas oportunidades em que ele se posicionou explicitamente com relação as suas

autorrepresentações étnicas e raciais. Além disso, tratando-se de um intelectual profundamente

interessado pela história regional, ele nos legou nestas escritas de si visões de sua genealogia.

Assim, tomaremos esses dois artigos assinados por Alcides Cruz como testemunhos pessoais que

significavam suas auto-percepções indivíduais e familiares (FOUCAULT, 2012; GOMES, 2004).

O primeiro artigo foi publicado no dia 12 de janeiro de 1903, numa segunda-feira, no jornal

republicano A Federação. Na página 3, na Seção Livre, Alcides de Freitas Cruz publicou um texto

intitulado “Ao Ilustrado Contemporâneo dr. Pinto da Rocha”. Tratou-se de uma briga entre dois

indivíduos que tinham pelo menos duas características similares: eram ambos republicanos ligados

ao PRR e professores na Faculdade de Direito de Porto Alegre.

47 Imprescindível citar MATTOS DE CASTRO, 1995.

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O mote para o texto de Alcides Cruz foi responder a um ataque de seu confrade Pinto da

Rocha. Comemorando-se naquele mês de janeiro mais um aniversário daquela folha republicana

criada em 1884, Alcides publicou “um ligeiro apanhado geral da honrada vida daquele diário, sem

ter a mão nenhuma coleção antiga ou moderna”. Pinto da Rocha interpretou essa reconstituição

histórica da Federação, feita por Alcides, como uma tentativa proposital de omitir alguns nomes de

correligionários e contestou-o por escrito chamando-o de corvo, ao que aquele neto de pardos forros

contestou:

Para que preferir essa comparação, quando, aliás, eu me não molesto com os epítetos mestiço, mulato ou

negro?

Não dissestes lá, oh! camarada velho! que sou homem sem preconceitos? Como iludir-me, então, com alvas

propriedades que não tenho, nem jamais terei? Corvo só poderia agastar-me, porque é uma ave de rapina, e eu

sou avesso a rapacidade.

Mas, certamente não me deveria ter chocado; pois sobre a imprensa de outros povos menos mestiçados que o

nosso adejam aves muito mais perigosas que o corvo, esse heroico espécime da ornitologia, imortalizado na

poesia por Edgar Poe.

Evitar o circunlóquio e chamar-me pelo que sou, mulato ou negro, à vontade, era maneira mais franca e mais

altiva, sobre ser mais generosa: - dava o que é meu.

Mestiços, mulatos ou negros foram meus avós e pais, e nem por isso vários deles deixaram de acudir às guerras

de então, desembainhando o gládio, tal como os antigos fidalgos de Portugal, avós dos vossos filhos, que

pelejaram na Ásia ou África, “pelo seu rei e pela pátria”.

E mestiços, mulatos ou negros, como eu, legaram-me aquela virtude que Deus, na sua infinda bondade

entendeu dar a todos os descendentes do deserdado e misterioso contingente bíblico, nascidos sob um estigma

que os vinte séculos do cristianismo ainda não puderam apagar, como singela compensação aqueles de quem

tirara a alvinitência epidérmica – o afeto.

Datando de dilatados anos as minhas simpatias pela Federação, tive ensejo de, por motivo de seu recente

aniversário, demonstrar que a gratidão peculiar aos mestiços, mulatos ou negros, ainda me ligava a sobredita

folha, contraditoriamente a brancos que tendo tido com ela relações muito mais chegadas e muito mais

eficazes, apenas tiveram duas avaras palavras para depô-las no regaço.

Artur Pinto da Rocha nasceu na cidade de Rio Grande em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro

em 1930, filho do Visconde Antônio Joaquim Pinto da Rocha, português. Formou-se em direito na

Universidade de Coimbra, em 1890, ingressando nos quadros da Faculdade de Direito de POA em

1900, onde permaneceu por dez anos. Foi eleito para a Assembleia Estadual pelo PRR em 1892/96

e deputado federal de 1894 a 1905. Aderindo ao Partido Federalista foi eleito deputado federal em

1918/20, 1921/23 e 1924/26. Foi diretor do jornal A Federação. (GRIJÓ, 2005: p. 178; FRANCO,

2010: p. 182)

Pinto da Rocha esteve envolvido nas disputas político-eleitorais republicanas de 1906/7, que

ecoaram dentro dos muros da faculdade de direito local. Naqueles anos, o PRR dividiu-se na eleição

regional entre o candidato “oficial” Carlos Barbosa (apoiado por Borges de Medeiros) e o

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“dissidente” Fernando Abott. Pinto da Rocha toma o lado da dissidência e funda a Gazeta do

Comércio, obtendo o apoio de boa parte dos alunos (GRIJÓ, 2005: p. 220). Pela iniciativa de

alguns acadêmicos borgistas, como João Neves da Fontoura, Jacinto Godoy e Maurício Cardoso, foi

criado o Bloco Acadêmico Castilhista que tentaram de todas as maneiras diminuir a influência do

professor Pinto da Rocha entre os alunos, os quais ele acolhia em sua casa, “no recinto de sua

esplendida biblioteca".

Como vimos, esta manifestação de Alcides Cruz ecoou pelo interior do estado, sendo usada

13 anos após, por um indivíduo negro, devoto do Rosário, em Santa Maria. Alcunhá-lo

pejorativamente de corvo permitiu que ele se posicionasse étnica e racialmente, tomando para si

uma identidade representada pelas plurais definições de mestiço, mulato, negro. Reconhecendo-se

como herdeiro da maldição de Cam, Alcides parece contrapor explicitamente um republicanismo

negro/mestiço/mulato a um branco. A retórica racista de Pinto da Rocha permitiu que o professor

Alcides demonstrasse erudição ao associar a ofensa sofrida ao poema de Edgar Allan Poe (aliás,

traduzido para o português pelo romancista negro Machado de Assis) e terminasse o artigo pedindo

que o seu confrade aceitasse a sua mão estendida, “sem embargo da minha cor de corvo”.

Dez anos depois desta primeira manifestação, o professor Alcides de Freitas Cruz voltou

para as páginas do jornal republicano A Federação dialogando com outra manifestação racista que

lhe foi dirigida. Desta vez o artigo por ele assinado foi publicado na primeira página do jornal,

numa quarta-feira, no dia 9 de julho de 1913, com o título “Troco Miúdo”.48 Tratou-se de

desdobramentos da discussão judiciária havida para determinar os limites entre os municípios de

Santo Antônio e Conceição do Arroio, quando o advogado do segundo município, Diogo Velho

Cavalcanti de Albuquerque, esgotado de argumentos tratou de racializar o embate:

Desmuniciado o seu exíguo arsenal de argumentos jurídicos, o sarrafaçal causídico vale-se da injúria e de uma

circunstância por demais eventual, que não depõe senão contra a insuficiência de escrúpulos dos pasquineiros

desaçaimados que, à carência de fatos deprimentos da minha conduta moral e cívica, recaem neste rafado lugar

comum – a cor.

Das suas espojaduras, porém, não me atinge a lama.

Reduz-se, tudo, portanto, em saber se depois da misérrima escrevedura de domingo, esse velho Diogo se

elevou aos olhos da população desta Capital, e se eu desci no conceito da mesma, bem como até que ponto, por

efeito disso, eu desci e ele ascendeu.

Que não sou branco.... Eis a estupenda clava...de sebo com que o paspalhão julgou achatar-me!

48 Tanto este artigo, quanto o de 1903 estão disponíveis integralmente em:

<http://www.ihgrgs.org.br/ebooks/Ebook%20-%20ALCIDES%20CRUZ%20-

%20Mestico,%20mulato%20ou%20negro.pdf>

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Sim, não sou branco; mas não deploro que a natureza tivesse sido avara em dar a minha pele menos

alvinitência que a outros, acidente que afinal não dá para deplorar; pois em nada me há prejudicado na estima

dos homens de bem e na consideração da melhor sociedade.

O que para mim seria de deplorar, reputando mal irreparável, é que os contemporâneos me privassem desta

estima pública prestada por muitas gerações passadas aos meus avós.

Nem outra coisa pretendo e aspiro senão a existimatio, que muitos em vão cobiçam.

Novamente a afirmação convicta e pública do professor Alcides Cruz de que não era

branco, feita em um palco jornalístico onde questões como esta não costumavam ser tratadas. O

segundo artigo em análise é mais extenso que o primeiro e, infelizmente, não poderá ser tratado

exaustivamente como merece. Na sequência de seus argumentos, Alcides esgrima suas armas de

historiador-genealogista, explicando a origem de sua cor:

Não sou branco, porque minha mãe e minha vó e minha bisavó não eram; mas que aqui viveram; como muitas

famílias de cor; que vieram acompanhando outras, a estabelecer-se em São Francisco do Porto dos Casais,

quando foi a famosa corrida, por efeito da lastimável rendição da Colônia do Sacramento, em 1763. Que era

então o Porto Alegre de hoje, que não a mal conhecida póvoa daquele nome, recém provida em freguesia?

Da vinda dessas famílias de cor, cuja descendência perdura, vive honradamente e é de fácil nomeação, há

provas nos arquivos eclesiásticos – assentamentos de óbitos, batizados e casamentos.

Quanto a meu pai, Manoel Pinto Lacerda da Cruz, ignoro se era branco, porque quando faleceu ainda eu não

tinha um ano de idade. Mas como era de Pernambuco, nascido em Goiana, segundo consta no assentamento de

casamento de minha mãe, dirão os de lá.

Sei que veio devido a Revolução Praieira (1848). Diga, porém, quem o souber, quem eram os Lacerdas de

Goiana, que a mim nada importa, porque nunca os procurávamos.

Meu avô materno, Joaquim Pedro de Freitas, oficial da Legião de São Paulo, era dos Freitas daquela Capitania,

referidos em mais de um passo na Nobiliarchia Paulista de Pedro Taques e na Genealogia Paulista de

Almeida Leme.

No trecho citado acima, vemos que Alcides Cruz atribui a sua cor ao lado materno de sua

família. Como um experiente investigador, ele afirma a presença da história de sua família de cor

nos documentos eclesiásticos. A forma como Alcides constrói e expõe a sua genealogia dá-nos a

ideia dele se autorrepresentar como um indivíduo negro, consciente de que era fruto de uma família

multirracial.

A trajetória de Alcides de Freitas Cruz, pelo que pesquisamos até agora, parece

fundamentalmente moldada por figuras familiares femininas, inclusive em seu autorreconhecimento

como não-branco (de cor, mestiço, negro, mulato, pardo). Como vimos no início desse texto, o

sobrenome Conceição acompanha muitas das mulheres daquela família, denunciando

pertencimentos religiosos. Cogitamos que a proximidade destas mulheres com uma religiosidade

racializada fazia os seus filhos apreenderem a sociedade de uma maneira determinada. Talvez o

pertencimento étnico e racial deste personagem – e de outros que temos acompanhado, como

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Aurélio Viríssimo de Bittencourt, por exemplo – tenha se dado pelas vias da sociabilidade religiosa,

já que estas mulheres negras frequentavam devoções negras, como as da Conceição e do Rosário.

Convenções sociais e de gênero marcavam a circulação ativa e desinibida de mulheres negras nos

espaços devocionais, onde também sentiam certas limitações. Os rebentos desses ventres negros,

pardos, mulatos, de cor, construíam suas visões de mundo tendo em suas memórias e sensibilidades

a experiência direta com o protagonismo de suas referências femininas familiares (mães, avós, tias)

e também com a mobilização devocional, sentindo-se de certa forma parte de um plural coletivo

não-branco, apesar de que parte de suas apreciações sócio-culturais percebiam a porosidade

daquelas manifestações religiosas e de suas experiências familiares.

Abreviaturas

AFDSP – Arquivo da Faculdade de Direito de São Paulo;

AHE – Arquivo Histórico do Exército no Rio de Janeiro;

AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre;

AHRS/APJC – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul/ Arquivo Particular Júlio Prates de

Castilhos;

APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul;

BNRJ/Heme – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro / Hemeroteca digital;

CRC – Cartório de Registro Civil;

IHGRGS/BM – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul/ Arquivo Pessoal de Borges

de Medeiros;

PRR – Partido Republicano Rio-Grandense.

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