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EUFORIA E PESSIMISMO Marcos Antonio Cintra e Rafael Cagnin RESUMO A partir da década de 1980, as finanças americanas passaram por profundas transformações com o predomínio crescente dos mercados de capitais (market led finance). A forma de gestão da riqueza e do sistema de crédito infligiu dinâmica específica ao preço dos ativos, com repercussões nas deci- sões de gasto (consumo e investimento) dos agentes econômicos. Busca-se, aqui, discutir a evolução patrimonial des- ses agentes nos últimos três ciclos de crescimento da economia americana, sob o comando dos ciclos de ativos e de cré- dito, chamados financial led. PALAVRAS-CHAVE: Ciclo de ativos; financial led; economia americana. ABSTRACT The US finance underwent deep changes as from the 1980s when market led finance increasingly prevailed. The wealth and credit management forced a specific dynamics upon asset prices and reverberated throughout spending decisions (consumption and investment) of economic agents. This paper deals with the net worth evolution of these agents in the recent three growth cycles of the US economy under the command of asset and credit cycles, the so-called financial-led cycles. KEYWORDS: Asset cycles; financial-led cycle; US economy. 23 NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙ NOVEMBRO 2007 [1] Sobre os fundos de riqueza soberana, ver Cagnin, Rafael F.; Cin- tra, Marcos Antonio M. & Farhi, Maryse. Fundos cambiais e estratégias de intervenção no mercado brasileiro de câmbio. São Paulo: Instituto de Estu- dos para o Desenvolvimento Indus- trial (Iedi),2007. A partir da década de 1980, as finanças americanas passaram por profundas transformações com o predomínio crescente dos mercados de capitais. Essa forma americana de gestão da riqueza se espraiou para o resto do mundo,mediante a liberalização dos fluxos de capitais e a desregulamentação financeira dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Nesses sistemas, os ativos (cambiais, mobiliá- rios, commodities, derivativos e imobiliários) adquiridos diretamente ou pelo intermédio de fundos de investimento, fundos de pensão, companhias de seguro, hedge funds ou fundo de investimento em parti- cipação acionária (private equity) passaram a representar parcela signi- ficativa do patrimônio das famílias, das corporações, dos agentes financeiros e dos governos (sovereign wealth funds) 1 . Os ciclos de ativos, crédito e investimento da economia americana após 1982

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EUFORIA E PESSIMISMO

Marcos Antonio Cintra e

Rafael Cagnin

RESUMO

A partir da década de 1980, as finanças americanas passaram

por profundas transformações com o predomínio crescente dos mercados de capitais (market led finance). A forma de

gestão da riqueza e do sistema de crédito infligiu dinâmica específica ao preço dos ativos, com repercussões nas deci-

sões de gasto (consumo e investimento) dos agentes econômicos. Busca-se, aqui, discutir a evolução patrimonial des-

ses agentes nos últimos três ciclos de crescimento da economia americana, sob o comando dos ciclos de ativos e de cré-

dito, chamados financial led.

PALAVRAS-CHAVE: Ciclo de ativos; financial led; economia americana.

ABSTRACT

The US finance underwent deep changes as from the 1980s

when market led finance increasingly prevailed. The wealth and credit management forced a specific dynamics upon

asset prices and reverberated throughout spending decisions (consumption and investment) of economic agents. This

paper deals with the net worth evolution of these agents in the recent three growth cycles of the US economy under the

command of asset and credit cycles, the so-called financial-led cycles.

KEYWORDS: Asset cycles; financial-led cycle; US economy.

23NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙ NOVEMBRO 2007

[1] Sobre os fundos de riquezasoberana, ver Cagnin, Rafael F.; Cin-tra, Marcos Antonio M. & Farhi,Maryse. Fundos cambiais e estratégiasde intervenção no mercado brasileiro decâmbio. São Paulo: Instituto de Estu-dos para o Desenvolvimento Indus-trial (Iedi), 2007.

A partir da década de 1980, as finanças americanaspassaram por profundas transformações com o predomínio crescentedos mercados de capitais. Essa forma americana de gestão da riquezase espraiou para o resto do mundo,mediante a liberalização dos fluxosde capitais e a desregulamentação financeira dos países desenvolvidose em desenvolvimento.Nesses sistemas,os ativos (cambiais,mobiliá-rios, commodities, derivativos e imobiliários) adquiridos diretamenteou pelo intermédio de fundos de investimento, fundos de pensão,companhias de seguro,hedge funds ou fundo de investimento em parti-cipação acionária (private equity) passaram a representar parcela signi-ficativa do patrimônio das famílias, das corporações, dos agentesfinanceiros e dos governos (sovereign wealth funds)1.

Os ciclos de ativos, crédito e investimento

da economia americana após 1982

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[2] Para uma discussão mais geralsobre os ciclos financeiros, ver Couti-nho,Luciano G.& Belluzzo,Luiz Gon-zaga de M.“Desenvolvimento e estabi-lização sob finanças globalizadas”.Economia e Sociedade, n. 7, 1996, pp.129-54. Braga, José Carlos S. “Finan-ceirização global: o padrão sistêmicode riqueza do capitalismo contempo-râneo”. In: Tavares, M.C. & Fiori, J.L.(orgs.). Poder e dinheiro: uma economiapolítica da globalização. Petrópolis:Vozes, 1997, pp. 195-242; Chesnais,François.“Notes sur la portée et le che-minement de la crise financière”.<http://netx.u-paris10. fr/actuel-marx/cm5/com/ MI5_Eco_Ches-nais.pdf>. Acesso em 1/10/2007.Borio, Claudio e Lowe, Philip. “Assetprices, financial and monetary stabi-lity:exploring the nexus”.BIS WorkingPapers, n. 114. Basle: Bank for Interna-tional Settlements, 2002, Aglietta,Michel. Macroeconomia financeira. 2vols.São Paulo:Edições Loyola,2004.Braga,José Carlos de S.& Cintra,Mar-cos Antonio M.“Finanças dolarizadase capital financeiro: exasperação sobcomando americano”. In: Fiori, J. L.(org.). O poder americano. Petrópolis:Vozes, 2004, pp. 253-307. Aglietta,Michel & Rebérioux, Antoine. Corpo-rate governance adrift: a critique of share-holder value. Cheltenham: EdwardElgar,2005.

[3] Trata-se de operações de compraou venda de ativos (ações,bônus,moe-das etc.) realizadas por meio de compu-tador, por especialista em arbitragemde índices ou investidores institucio-nais. A palavra “programa” refere-seaos programas de computador quemonitoram constantemente os merca-dos de ações, futuros e opções, emi-tindo sinais de compra e venda quandohá oportunidade de lucros com arbitra-gem e quando as condições de mercadogarantem acúmulo em carteira ou ope-rações de liquidação.

[4] Em 1988, foi introduzido o sis-tema chamado circuit breaker parainterromper temporariamente as ope-rações com ações, índices futuros deações, preços de securities, opções etc.quando o mercado recuasse até umdeterminado ponto, em um períodoespecífico (150 pontos em relação aopregão anterior). O objetivo dessessistemas é evitar a queda livre do mer-cado e permitir reavaliação das or-dens de compra e venda programadasde forma automática nos sistemas decomputação.

A forma de gestão da riqueza e do crédito característica desses mer-cados de capitais globais — pautada por movimentos erráticos decor-rentes das expectativas dos investidores e de arbitragem e, portanto,guiados pela obtenção do lucro financeiro de curtíssimo prazo — pro-piciou o aumento da volatilidade dos preços dos ativos e o fomento deprocessos especulativos recorrentes.Essa dinâmica elevou a instabili-dade financeira e favoreceu a disseminação, além das fronteiras e dossegmentos de mercados, de disfunções e crises inicialmente localiza-das. Com isso, as modificações acentuadas nos níveis de preços dosativos — inflação e deflação — passaram a desencadear fortes reper-cussões macroeconômicas. O presente artigo tem por objetivo discu-tir a evolução patrimonial dos agentes econômicos (corporações,famílias, setor financeiro e setor público) nos últimos três ciclos decrescimento da economia americana,sob o comando dos ciclos de ati-vos e de crédito, chamado financial led2.

UM PANORAMA DOS CICLOS DE ATIVOS E DE CRÉDITO DA ECONOMIA AMERICANA

Desde o início dos anos 1980,os Estados Unidos experimentaramtrês ciclos de crescimento,sob a liderança de seus ativos financeiros:oprimeiro entre 1983 e 1991, o segundo entre 1992 e 2002, o terceiro apartir de meados de 2002.Com o segundo choque do petróleo (1978),o choque de juros (1979) desencadeado por Paul Volcker, então presi-dente do Federal Reserve (FED), e a crise da dívida externa dos paísesem desenvolvimento,a economia mundial mergulhou em forte reces-são. Paralelamente, o governo Reagan implementou medidas antide-pressivas (política fiscal expansionista mediante a ampliação do gastomilitar — “Guerra nas Estrelas”). A ampliação da dívida pública nosportfólios privados, as políticas de desregulamentação monetário-financeira e de liberalização dos fluxos de capitais criaram as condi-ções para o aperfeiçoamento dessas novas formas de intermediaçãofinanceira e o desenvolvimento da chamada globalização financeira.

A partir de 1983,a queda dos juros,mais a valorização expressiva dodólar e a entrada de capitais externos, fomentaram a recuperação dosativos financeiros e a retomada da trajetória de crescimento da econo-mia americana. A valorização das Bolsas de Valores enfrentou umaacentuada reversão; na verdade, um crash em 19 de outubro de 1987. ABolsa de Nova York caiu 22,6%, e a responsabilidade recaiu sobre umfenômeno da era da informática conhecido como “operações adminis-tradas por programas de computação” (program trading)3. A acentuadadesvalorização dos ativos na “segunda-feira negra” exigiu a expansão daliquidez sistêmica pelo FED.Dois anos mais tarde,o Índice Dow Jonesjá havia se recuperado4. O crescimento econômico se sustentou até acrise do mercado imobiliário sob a liderança das Saving & Loans em 1991,

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[5] John K. Galbraith (1929: ocolapso da Bolsa. São Paulo: Pioneira,[1954] 1988) descreve processossemelhantes de euforia em 1929 e1987: “nos anos que antecederam aambos os períodos o mercado acioná-rio vinha em crescente alta,aparente-mente sem limite. Houvera interrup-ções, algumas delas consideradaspreocupantes,mas tinham sido supe-radas. Influências subjacentes queafetavam os valores do mercado —perspectivas de ganho, crescimentoeconômico geral, taxas de juro emperspectiva — tinham em ambos oscasos cedido lugar à crença de que oaumento de valores, por mais afas-tado que estivesse da realidade, con-tinuaria. Os dissidentes ou céticoseram considerados alheios ao estadode espírito da época”.

quando os Estados Unidos entraram em nova recessão.Em 1992,a eco-nomia americana iniciou outro ciclo de expansão (1992-2000),o qualapresentou um fôlego ainda maior que o anterior, e cuja desaceleraçãoocorreu apenas em 2001, de modo relativamente mais tênue que asduas anteriores (1980-82 e 1990-91). Nesse período, certamente aexpansão mais prolongada (120 meses, de acordo com o NationalBureau of Economic Research — NBER), a introdução de inovaçõestecnológicas nos segmentos de informática e telecomunicações levou acrer na possibilidade de obter crescimento econômico com taxas deemprego elevadas abaixo da Nairu (non-accelerating inflation rate of unem-ployment), sem pressões inflacionárias.

Nesse período, a economia americana foi marcada por forte e con-tínua elevação nos preços das ações, ancorada em um excepcionalperíodo de crescimento das inovações tecnológicas que levaram aaumento na produtividade do trabalho,nos gastos dos consumidorese no investimento empresarial. Do lado da situação patrimonial dosagentes,a fase ascendente do ciclo foi caracterizada por crescente endi-vidamento privado, tanto das famílias como das corporações, e redu-ção da dívida pública por meio de geração de superávits fiscais.Algunschegaram a cunhar a expressão “nova economia” para descrever aexpansão das empresas de alta tecnologia,que abriam espaço para umcrescimento econômico contínuo e, conseqüentemente, para a elimi-nação da oscilação característica dos ciclos produtivos. Os preços dasações em geral e,em particular,das empresas de alta tecnologia,passa-ram a refletir expectativas de permanente alta, embutindo múltiplosextremamente elevados da relação preço-lucro das corporações ouatribuindo valores de bilhões de dólares a empresas que apenas dispu-nham de “boas” idéias como patrimônio (a Amazon, por exemplo),mas que jamais tinham gerado lucro. Alan Greenspan, presidente doFED, alertou já em meados de 1996 que os preços das ações america-nas padeciam de “exuberância irracional”5. Seus sinais, entretanto,não tiveram efeitos práticos nas Bolsas de Valores, que perseguiramuma irresistível ascensão, brevemente entrecortada pelas crises dospaíses do Sudeste Asiático (1997), da Rússia e do hedge fund Long-Term Capital Management (LTCM) em 1998 e pela desvalorização damoeda brasileira em janeiro de 1999.

Entretanto, a partir de março de 2000, os ventos viraram de bull(altista) para bear (baixista),ampliando muito a volatilidade nos mer-cados de ações dos Estados Unidos, com influência nas Bolsas deValores de todo o mundo. Em resposta aos aumentos nas taxas dejuros básicas — federal funds rate — que o FED vinha realizando desdemeados de 1999,as ações que compõem os índices Dow Jones e Stan-dard & Poor’s (S&P), consideradas representantes da “velha econo-mia”, sofreram quedas acentuadas. Em seguida, o movimento se

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[6] Ver Kindleberger, Charles P.Manias, pânico e crashes: um histórico dascrises financeiras. Porto Alegre: Ortiz/-Gazeta Mercantil, 1992. Sobre issoGalbraith escreveu (op cit.,p.119):“emum determinado momento existe umrosário de desfalques não-descobertos,nas empresas e bancos do país — aindaque não precisamente fora deles.Essesdesfalques — talvez melhor denomi-nados desvios — atingem,em qualquerinstante, a muitos milhões de dólares.Seu montante varia de conformidadecom o ciclo econômico. Em épocas deprosperidade todo mundo se sentetranqüilo, confiante, e há dinheiro arodo. Mesmo, porém, com dinheiroabundante há sempre quem precise demais um pouco.Nessas circunstâncias,o ritmo dos desfalques se acelera,o dasdescobertas se desacelera e o desvioaumenta rapidamente. Na depressão,tudo se inverte”.

[7] “Uma bolha pode ser definida demodo pouco preciso como o aumentopronunciado do preço de um ativo ougama de ativos em um processo contí-nuo, com o aumento inicial gerandoexpectativas de mais aumentos eatraindo novos compradores — geral-mente especuladores interessados emlucrar com sua negociação em vez desua utilização ou de sua capacidade degerar rendimento (ou dividendos).Em geral, esse aumento súbito éacompanhado por reversão das expec-tativas e queda acentuada do preço doativo,resultando em crise financeira”.Kindleberger, Charles. “Bubbles”. In:Eatwell, J. & Milgate, M. (orgs.). TheNew Palgrave Dictionary of Money andFinance, 1992,p.199.

[8] Ver http://www.fibv.com.

inverteu com os preços das ações da “velha economia” se estabili-zando,enquanto os da “nova economia”,representados pelo índice daNational Association of Securities Dealers Automated QuotationsSystem (Nasdaq — Associação Nacional de Corretoras de Valores)padeciam de grandes perdas.

Esses movimentos assimétricos dos diversos índices correspon-deram ao esvaziamento de uma bolha especulativa decorrente da per-cepção de que os preços das ações,em particular as do setor de alta tec-nologia, eram injustificáveis. Posteriormente, a queda renitente nonível dos investimentos das corporações americanas e, portanto, doslucros,instaurou uma tendência de baixa nas cotações.Essa tendênciaatingiu particularmente as empresas de alta tecnologia.Mas,apesar dereduções agressivas das taxas de juros pelo FED,ela afetou igualmenteaquelas com um alto nível de endividamento contraído para financiarnovos investimentos e/ou fusões e aquisições, como as do setor detelefonia. Nessa tendência de baixa, os índices evoluíram de formamais sincrônica.

A tendência de baixa parecia ter se esgotado quando,após os aten-tados de 11 de Setembro de 2001, as cotações das ações voltaram asubir. Predominava a percepção de que a economia americana tinhasaindo da recessão e estava se recuperando com força. Entretanto, assucessivas quedas nas cotações nos mercados de ações levantaraminúmeros problemas que haviam passado despercebidos na euforiados lucros corporativos, durante o longo ciclo de valorização dos ati-vos produtivos e financeiros dos anos 1990. Quando a maré baixou,apareceram falcatruas que acabaram provocando novas e acentuadasquedas dos preços das ações, suscetíveis de profundas repercussõesmacroeconômicas, entre elas a de prejudicar a incipiente retomada docrescimento e provocar novo processo recessivo.

Não terá sido a primeira vez na história que revelações de falcatruascometidas em períodos de euforia determinam uma reviravolta nossentimentos dos investidores e a ocorrência de um crash6. Mas o inu-sitado é essa ocorrência após um longo período de quedas dos preçose, portanto, de correção dos excessos cometidos durante a fase da for-mação da “bolha”7. Tal peculiaridade aprofundou e intensificou omovimento de queda dos preços das ações. A crise de confiança dosinvestidores nas ações americanas repercutiu nas Bolsas de Valoresmundiais, configurando momentos de extrema tensão. De acordocom os dados divulgados pela Federação Internacional de Bolsas deValores, as perdas nas Bolsas mundiais ultrapassaram US$ 11,5 tri-lhões, sendo mais de US$ 5,4 trilhões apenas nos Estados Unidos8,entre março de 2000 e junho de 2002. A crise de confiança originou-se da convergência de diversos escândalos e disfunções no funciona-mento dos mercados de capitais dos Estados Unidos, tais como as

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avaliações das empresas de classificação de riscos de crédito, as reco-mendações dos analistas de valores, problemas contábeis nos balan-ços das empresas e o papel das empresas de auditoria e de consultoria.

Em suma, as causas da reversão estiveram associadas ao rompi-mento do circuito expansivo composto pela valorização dos ativosfinanceiro, crédito, consumo e investimento. O acúmulo de capaci-dade instalada em excesso em alguns setores tecnologicamente dinâ-micos (o núcleo duro da “nova economia” e os responsáveis por valo-rizações sem precedentes nos mercados acionários) e a revisão deretorno dos ativos financeiros subjacentes se traduziu em queda dosíndices de Bolsa e contenção dos projetos de investimentos.O ataqueterrorista de 11 de Setembro de 2001 e os escândalos envolvendo prá-ticas contábeis agressivas em 2002 colaboraram para aprofundar astendências deflacionistas nos preços dos ativos e as tendências reces-sivas da economia americana.

As políticas monetária e fiscal das três principais áreas econômicas— Estados Unidos,Eurolândia e Japão — atuaram de forma anticíclica,entre 2001 e 2004,suavizando a recessão nos países industrializados.As autoridades monetárias reduziram as taxas de juros e garantiram ademanda dos agentes econômicos por papéis mais líquidos e seguros.Simultaneamente, os tesouros nacionais ampliaram seus gastos, quepassaram a apresentar déficits fiscais elevados (no Japão o movimentofoi anterior em função da tentativa de contar a estagnação e a deflação).A ampliação da dívida pública facilitou a recomposição dos portfóliosprivados. Nos Estados Unidos, a redução da taxa básica de juros (fede-ral funds rate) pelo FED ao longo de 2001 (queda de 70%) possibilitoutambém que o nível de endividamento público fosse mantido ao longoda expansão fiscal. O superávit fiscal, vigente entre 1998 e 2001, foirevertido num déficit de quase US$ 400 bilhões em 2002. Assim, ataxa de crescimento negativa registrada no primeiro e no terceiro tri-mestre de 2001 não foi capaz de impor um resultado negativo no acu-mulado do ano (os quatro trimestres). A taxa de crescimento do Pro-duto Interno Bruto (PIB), em 2001, ficou em 0,8%; recuperou para1,6% em 2002 e 2,5% em 2003. A queda nos juros e a expansão dosgastos fiscais garantiram a preservação dos gastos em consumo,essen-ciais na dinâmica da recuperação. O consumo contou ainda com aampliação do endividamento das famílias. Lastreado pelo patrimônioimobiliário em ascensão e pela redução das taxas de juros,a capacidadede alavancagem das famílias não foi prejudicada pelo desaquecimentoeconômico. As corporações, por seu turno, reduziram rapidamenteseus níveis de endividamento.

Essas políticas monetárias e fiscais lassas nos países centrais,combinadas com as políticas de acumulação de reservas e contençãodo processo de valorização cambial nas economias asiáticas,fomenta-

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[9] O ambiente de elevado cresci-mento econômico, com baixas taxasde inflação e de juros, possibilitou aredução do estoque de dívidas e aampliação dos ativos financeiros dasgrandes corporações. Segundo esti-mativa do FMI (IMF. Global financialstability report. Washington: Interna-tional Monetary Fund, abr. 2006.Disponível em: http://www.imf.org),as empresas do G7 (Estados Unidos,Japão, Alemanha, Reino Unido,França, Itália e Canadá) detinhamUS$ 1,3 trilhão em caixa. As corpora-ções americanas foram beneficiadastambém por reduções de impostos,asmaiores responsáveis pelo enxuga-mento das dívidas corporativas e acu-mulação de ativos financeiros, a par-tir de 2000.

ram a expansão da liquidez internacional e impulsionaram um novociclo de inflação de ativos em âmbito global, bem como novas opera-ções de fusões e aquisições.Um dos combustíveis desse ciclo de ativosforam as operações de carry trade, isto é,a captação de recursos em umadeterminada moeda (dólar, iene, franco suíço) com taxas de juros bai-xas para aplicá-los em ativos de outros mercados (bônus corporativos,commodities, moedas, ações e títulos de dívida pública e privada dosmercados emergentes, Nova Zelândia, Austrália, Islândia, imóveisetc.), com rendimentos mais elevados.

CRESCIMENTO DO ENDIVIDAMENTO AMERICANO

O FED divulga regularmente o Flow of Funds Accounts of the UnitedStates (http://www.federalreserve.gov). Nessa publicação trimestralsão registrados os fluxos gerados pelas distintas instituições provedo-ras de crédito e apontados os principais tomadores de recursos. Oestudo apresenta também os dados sobre o estoque de dívida acumu-lado no fim de cada período, bem como a situação o balanço patrimo-nial (ativo, passivo e patrimônio líquido) dos tomadores finais de cré-dito (famílias e corporações). A expansão dos mercados de créditobancário e de capitais resultou em um crescimento espetacular do esto-que de dívida nos Estados Unidos. Essa cifra inclui o endividamentoprivado — corporações,setor financeiro e famílias —,o débito públicototal,federal,estadual e municipal e o passivo financeiro com o exterior.No final de 1980, o estoque de dívida totalizava US$ 4,7 trilhões, cor-respondendo a 169,3% do PIB. No segundo trimestre de 2007, o esto-que de dívida foi ampliado em mais de oito vezes,chegando a US$ 46,6trilhões,representando 338,6% do PIB (ver Tabela 1).

O rápido crescimento do estoque de dívida como participação doPIB indica claramente um risco maior de a desaceleração da taxa de cres-cimento da renda dificultar o pagamento dos serviços das dívidas. Operigo inerente a esse processo pode ser alto,dadas as mudanças na com-posição, bem como na dimensão dos tomadores. A dívida dos setoresnão-financeiros (corporações, famílias e governos) ampliou de 141,6%do PIB para 217,1% do PIB entre 1980 e 2007 (ver Tabela 1). Todavia,deve-se salientar que o peso do endividamento mudou drasticamentedo governo federal para as famílias e corporações.

A dívida das famílias aumentou ininterruptamente de 50% do PIBem 1980 para 96,8% do PIB no segundo trimestre de 2007; a dívidadas corporações pulou de 32,5% para 68,9% do PIB no mesmoperíodo. Nesse último período, as corporações trataram de reduzir oritmo de endividamento, buscando uma rápida “desalavancagem”para estabilizar a relação entre o estoque de dívida e o patrimôniolíquido9. Por sua vez, a dívida do governo federal cresceu de 26,3% do

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[10] Government-Sponsored Enter-prises (GSEs) são empresas privadasque contam com garantias implícitasdo governo federal devido ao impor-tante papel no funcionamento domercado secundário de hipotecas nosEstados Unidos. As principais agên-cias são Federal National MortgageAssociation (Fannie Mae) e FederalHome Loan Mortgage Corporation(Freddie Mac).

PIB em 1980 para 50,2% do PIB em 1993. Mas, durante o longo ciclode crescimento dos anos 1990, a dívida federal em mercado caiu para32,9% do PIB no primeiro trimestre de 2002,quando novas políticasde estímulo fiscal voltaram a aumentar a dívida pública em mercado,que passou a sinalizar tendência de crescimento. Atingiu 35,9% doPIB no segundo trimestre de 2007.

No segundo trimestre de 2007, o estoque de dívida das famílias(US$ 13,3 trilhões) equivalia a 135,5% da renda pessoal disponível(US$ 10,1 trilhões); em 1980 (US$ 1,4 trilhão), correspondia a 72,1%da renda pessoal disponível (US$ 2 trilhões). O peso do serviço dadívida das famílias — a taxa de pagamento mensal de dívida em hipo-tecas e crédito ao consumidor em relação à renda pessoal disponível —superou em muito o antigo recorde estabelecido no quarto trimestrede 1986 (14,34%) e atingiu 19,29% no segundo trimestre de 2007(ver Gráfico 1). A relação entre as dívidas e o patrimônio líquido dascorporações aumentou muito ao longo do primeiro ciclo de expansão,saltando de 28,9% em 1980 para 56% em 1992, mas decresceu nosdois ciclos posteriores, com um breve crescimento durante a deflaçãodos ativos e a desaceleração econômica durante 2001 e 2002. Nosegundo trimestre de 2007, registrou 40,1% (ver Gráfico 2).

O setor financeiro também experimentou extraordinário cresci-mento no endividamento, o que reflete as dramáticas mudanças emseus produtos, práticas e estruturas. Entre 1980 e 2007, o estoque dedívida das instituições financeiras aumentou de US$ 578,1 bilhões, oequivalente a 20,7% do PIB,para US$ 14,9 trilhões,ou 108,1% do PIB.As agências encarregadas de financiar a aquisição de imóveis residen-ciais (GSEs10) lideraram as emissões de novos títulos de dívida no

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TABELA 1

Estoque total de dívida nos Estados Unidos, por setor

Fonte: Federal Reserve System, Flow of Funds Accounts of the United States, September 2007. Table D.3.

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[11] Ver Borio, C. & Lowe, P., op. cit.

final da década de 1990 e absorveram grande parte do dinheiro estran-geiro que fluiu para os Estados Unidos, mantendo a sobrevalorizaçãodo dólar, uma vez que a dívida das agências era garantida implicita-mente pelo governo americano e o Tesouro havia reduzido o fluxo deemissões em virtude do superávit fiscal.

Retrospectivamente, parece evidente que o expressivo ciclo de cré-dito desempenhou papel crucial no inflar das “bolhas” especulativas domercado de ações americano11. A expansão de novos setores econômi-cos,associada à explosão do volume de dívidas,elevou o preço das açõespara níveis sem precedentes e descolados de quaisquer “fundamentoseconômicos” (relação entre preço e lucro, por exemplo). A sinergiaentre acumulação produtiva, expansão do crédito e inflação de ativosnum primeiro momento reforçava os lucros.Os lucros projetados comavaliações otimistas sobre o futuro permitiam que se admitissem rela-

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20,0%

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19,0%

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GRÁFICO 1

Peso do serviço da dívida das famílias em relação à renda pessoal disponível (em %)

Fonte: Federal Reserve System (http://www.federalreserve.gov).

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GRÁFICO 2

Relação entre a dívida líquida e o patrimônio líquido das corporações

Fonte: Federal Reserve System, Flow of Funds Accounts of the United States, September 2007.

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[12] Ver Greenspan, Alan. “Testimo-ny before the Committee on Ban-king, Housing and Urban Affairs”.U.S. Senate, mar. 2002 (Disponívelem http://www.federalreserve.gov).

ções cada vez mais elevadas entre preço e lucro.À medida que os preçosdas ações aumentavam e “inflavam” o patrimônio líquido das corpora-ções e das famílias, tornava-se irresistível a utilização do endivida-mento como forma de alavancar mais ganhos de capital.

O longo ciclo de expansão do investimento produtivo e do créditoresultou em crescimento da renda pessoal disponível e do patrimôniolíquido das famílias americanas. A renda pessoal disponível atingiuUS$ 10,1 trilhões no segundo trimestre de 2007. O patrimôniolíquido das famílias cresceu continuamente até 1999, quando atingiuo auge de US$ 42,3 trilhões. Nos três anos seguintes, amargou perdasde US$ 3,5 trilhões;recuperando a partir de 2003.No segundo trimes-tre de 2007, o patrimônio líquido das famílias ultrapassou em muitoo patamar alcançado em 1999, atingindo US$ 57,8 trilhões. Todavia, apoupança familiar caiu persistentemente de 10% da renda disponívelem 1980 para 1,8% em 2001.Entre 2002 e 2004,a poupança familiarensaiou uma leve recuperação, atingindo 2,16% da renda disponível.Nos dois anos seguintes voltou a cair,chegando a US$ 64,4 bilhões ou0,6% da renda disponível no segundo trimestre de 2007.

As perdas patrimoniais associadas com a desvalorização dos mer-cados acionários foram suavizadas pela valorização nos preços dosimóveis. O valor dos imóveis no conjunto dos ativos das famílias sal-tou de US$ 11,5 trilhões em 1999 para US$ 23,1 trilhões no segundo tri-mestre de 2007 (ver Tabela 2). Estima-se valorização de 36,3% nospreços dos imóveis residenciais entre 1995-2001 e de 56,1% entre2001 e 2006. Esse aquecimento no mercado imobiliário foi, emgrande medida, resultado do crescimento do mercado de hipotecas,apoiado pela queda nas taxas de juros promovidas pelo FED e pelaação das agências federais (GSEs) nos mercados secundários de secu-ritização de hipotecas.

No agregado,a valorização imobiliária compensou as fortes perdasdas famílias com a desvalorização dos ativos financeiros, em cotas defundos mútuos e fundos de pensão e no valor das carteiras de açõespossuídas individualmente. Isso porque o ativo financeiro de maiorvalorização ao longo da década de 1990, as ações, estava concentradonas parcelas mais ricas;no entanto,a posse do ativo mobiliário é maisdifundida pela sociedade12. Entre 2000 e o segundo trimestre de2007, o valor das ações no balanço das famílias caiu de US$ 8,2 tri-lhões para US$ 6,1 trilhões; as cotas dos fundos de investimento,depois de terem caído de US$ 2,7 trilhões para US$ 2,2 trilhões, em2002, atingiram o valor de US$ 5,1 trilhões no segundo trimestre de2007. Assim como os fundos de investimento, os fundos de pensãotiveram seu valor reduzido entre 2000 e 2002, a partir de então pas-saram por recuperação, atingindo, em 2007, o valor de US$ 12,6 tri-lhões.Esses dados parecem evidenciar que as principais perdas desen-

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cadeadas pela deflação de ativos foram assumidas pelas famílias,detentores em última instância dos ativos dos investidores institucio-nais.Afinal,as famílias passaram a deter ativos financeiros em propor-ções crescentes de seus patrimônios. Os ativos financeiros chegarama atingir 68,6% dos ativos totais das famílias em 2000.

A partir de 2002, no entanto, a concorrência entre os agentesfinanceiros atuantes no mercado de hipotecas levou à proliferação douso de diferentes tipos de contrato de maneira a atrair os tomadores demaior risco.Dessa forma,reduziram os padrões de subscrição e ofere-ceram uma série de contratos, tais como as balloon mortgage ou interest-only loan (neste, ao longo da vigência do interest-only period, são pagosapenas os juros, após esse período, além dos juros deverá tambémocorrer a amortização do principal), além das hipotecas híbridas, quecombinam o pagamento de taxas prefixadas no início do contrato edepois se tornam contratos pós-fixados. Grande parte das hipotecassubprime emitidas entre 2004 e 2006 era risk-layered,usando a combi-nação de vários atrativos para tornar a hipoteca mais interessante e,conseqüentemente, mais arriscada.

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TABELA 2

Balanço das famílias e organizações não-lucrativas (US$ bilhões)

Fonte: Federal Reserve System, Flows of Fund Accounts of the United States, September 2007.

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[13] Segundo The Economist (“Mer-cado de dívida apresenta a conta dostempos de bonança” [republicado emValor Econômico, 6/8/2007), no am-biente de euforia expandiram-se osempréstimos para clientes ninja ( si-gla informal para a condição de noincome, no job or assets, ou seja, pes-soas sem renda, sem emprego oupatrimônio).

[14] Estima-se que 50% dos lucrosdas agências americanas de rating(Standard & Poor’s e Moody’s) tive-ram origem nas notas emitidas aosCDOs e instrumentos financeirossemelhantes.

Os tomadores de maior risco de crédito, por meio desses contra-tos, chegaram a uma participação de cerca de 30% das hipotecas con-traídas em 2006.Em 2002,sua participação era em torno de 6%.Ade-mais, as hipotecas contraídas com documentos incompletos sobrecomprovação de renda do tomador,conhecidas como “Alt A” mortgages,também cresceram rapidamente. Em 2006 representaram cerca de13% do fluxo de novas hipotecas13.

Simultaneamente,os investidores passam a comprar e vender deri-vativos associados a esses novos títulos,tais como os derivativos de cré-dito (credit default swap,total return swap,credit-linked notes etc.) e securiti-zação de recebíveis. A securitização das carteiras de crédito imobiliário(mortgage-backed secutiries ou collateralized mortgage obligation) dos agen-tes foi um dos fatores que impulsionaram o mercado de hipotecasdesde a década de 1980. Proliferaram também transações com instru-mentos financeiros lastreados em um conjunto diversificado de ativos.As Collateralized Debt Obligation (CDO) agregam hipotecas de diferen-tes riscos, recebíveis de cartão de crédito, recebíveis de crédito para acompra de automóveis etc.Esses papéis são estruturados por bancos deinvestimento e compostos de várias tranches,com distintos graus de ris-cos (Sênior representa o risco mais baixo [A a AAA],Mezzanine o inter-mediário [BB a BBB] e Equity o mais elevado) classificados pelas agên-cias de risco de crédito (Moody’s, Standard & Poor’s e Fitch)14. Dessaforma, vários instrumentos envolvendo hipotecas de diferentes riscos— collateralized debt obligation — foram combinados pelas agências derating e pelos emissores, de acordo com o risco dos ativos incluídos emsua composição. Todavia, as combinações foram realizadas de modoque alguns desses ativos lastreados em hipotecas subprime acabaram

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HPI Taxa de uros convencionais mortgage - 30 anos

GRÁFICO 3

Índice de preço dos imóveis residenciais (HPI) e taxas de juros de hipotecas *

Fonte: Federal Reserve e OFHEO.* Refere-se à taxa de juros cobrada nas hipotecas convencionais (conventional mortgages),isto é,aquelas cuja secu-ritização pela Fannie Mae,Freddie Mac e Ginnie Mae é permitida e que não possui garantias explícitas do governo.

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[15] IMF. Global financial stabilityreport. Washington: InternationalMonetary Fund, set. 2007 (Disponí-vel em http://www.imf.org).

classificados como de excelente risco ou com grau de investimento. Oreempacotamento de hipotecas de alto risco,com a anuência das agên-cias de classificação de risco de crédito,viabilizou suas aquisições pelosinvestidores com menor aversão ao risco,mas também pelos investido-res institucionais que observam regras de prudência,tais como os fun-dos de pensão e as companhias de seguros.

Assim, as tranches de menor risco (Sênior e Mezzanine) foramadquiridas pelos investidores institucionais e hedge funds, sendo queuma parte importante foi exportada para fundos de investimento devárias partes do mundo (Coréia, Tawain, China, Austrália, Alemanha,França,Reino Unido,entre outros).As tranches de maior risco (Equity)foram transferidas para os veículos especiais de investimento (SpecialPurpose Vehicle, SPV), entidades segregadas contabilmente de seuscontroladores, contornando as regras de capital ponderado pelos ris-cos do Acordo de Basiléia (1988)15. Para carregar esses papéis, os veí-culos estruturados de investimento (Structured Investment Vehicle, SIV)emitiram Asset-Backed Commercial Paper (ABCP),dívida de curto prazolastreada em ativos (empréstimos classificados com rating muitobaixo, portanto, de recuperação duvidosa), contando com uma linhade crédito contingente fornecida pela instituição financeira controla-dora para garantir a liquidez.

Foi criada também uma enorme diversidade de contratos futurosdas hipotecas de alto risco, como os contratos referenciados em umíndice dos créditos de difícil recebimento (chamados índices ABX).Apenas na Chicago Mercantile Exchange (CME) que se fundiu à Chi-cago Board of Trade (CBOT), formando a maior Bolsa de futuros domundo,foram negociados US$ 400 milhões em derivativos com baseem hipotecas, desde o lançamento desses instrumentos, em meadosde 2006.Nesse volume não está incluído o mercado de balcão (over thecounter, OTC), em que comprador e vendedor realizam negócios dire-tamente, sem a intermediação das Bolsas, cujos contratos com crédi-tos imobiliários de alto risco foram estimados em US$ 500 bilhõesdurante o ano de 2006.

Entretanto, a partir de meados de 2006, o mercado imobiliárioamericano passou a emitir sinais de encolhimento, nos preços e nasquantidades.A valorização dos imóveis perdeu força desde o segundotrimestre de 2006,quando os preços cresceram cerca de 10% em rela-ção ao mesmo período do ano anterior. As taxas de crescimento dostrimestres seguintes foram menores: 7,88% no terceiro e 6,10% noquarto, sempre em relação ao mesmo período de 2005. No segundotrimestre de 2007,a desaceleração dos preços dos imóveis foi aprofun-dada; em relação ao mesmo período de 2006 o crescimento foi de3,19%. Desde o terceiro trimestre de 1997 não ocorria uma taxa decrescimento tão baixa para essa comparação.Os dados de preços refe-

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[16] Segundo The Economist, “‘Pirâ-mide’ das hipotecas subprime começaa ruir” (republicado no Valor Econô-mico, 12/3/2007): “Quase três dúziasde bancos quebraram ou foram vendi-dos nos últimos meses devido aempréstimos não recebidos. Paga-mentos em atraso aumentaram decerca de 7% no fim de 2003 para cercade 12,6% no fim de 2006, segundo oMorgan Stanley. Em 2 de março, oFremont General, um banco da Cali-fórnia, anunciou que não vai maisoperar com empréstimos subprime.Autoridades reguladoras o forçaram aisso. [...] A General Motors, maiorfabricante de automóveis do mundo,poderá ter de lançar no balanço umadespesa de quase US$ 1 bilhão paracobrir empréstimos imobiliáriosruins de sua subsidiária ResidentialCapital,segundo o Lehman Brothers.O HSBC,maior banco da Europa,viuos custos de suas dívidas ruins subi-rem 36% para mais de US$ 10 bilhõesem 2006, devido a empréstimosruins”.Além disso,o aumento da ina-dimplência das hipotecas subprime(estimada em 13% do estoque) levou asaída dos hedge funds que vinhamfinanciando parte dessas operações.

[17] Vale notar que as operações pormeio de contratos flexíveis com ostomadores de risco mais elevado ge-ralmente não se enquadram nos re-quisitos das agências (Fannie Mae,Freddie Mac,Ginnie Mae e FHA),porisso não contam com as garantiasdessas instituições.

rem-se ao índice elaborado pelo Office of Federal Housing EnterpriseOversight (OFHEO).Segundo o Departamento de Comércio (http://www.bea.gov), o número de unidades residenciais construídas caiu12,9% e as vendas de novas residências retraíram 17,3% em 2006. Oencolhimento do mercado imobiliário revelou aumento da inadim-plência dos devedores de maior risco,com repercussões em todo o sis-tema financeiro global, dada suas amplas ramificações16.

Os impactos da desaceleração dos preços dos imóveis foram senti-dos mais expressivamente nos segmentos mais arriscados do mer-cado de financiamento habitacional.Os contratos mais flexíveis,con-traídos principalmente pelos tomadores de maior risco (subprime eAlt-A), contavam justamente com a hipótese de que os tomadorespudessem ao longo de alguns anos melhorar seus riscos de crédito e,assim,renegociar suas hipotecas.Entretanto,ante taxas de juros maiselevadas e o receio dos agentes financeiros de uma desaceleração maisintensa da economia americana,as condições de refinanciamento des-ses contratos tornaram-se mais difíceis.

A partir de fevereiro de 2007, surgiram perdas provocadas aosagentes geradores desses contratos (HSBC, American Home Mort-gage Investment Corp., Countrywide Financial Corp., por exemplo).Em junho, as agências de classificação de risco de crédito começarama rebaixar as notas de Asset-Backed Securities (ABS — securities garanti-das por hipotecas subprimes) e de Collateralized Debt Obligation (CDO).Alguns hedge funds geridos por bancos australianos e pelo Bear Stearnsapresentaram perdas com ativos imobiliários e suspenderam os resga-tes das aplicações. Em 30 de julho, o banco de investimento alemãoIKB relevou perdas com aplicações no mercado imobiliário americano(subprime) e no mercado de asset-backed commercial paper (ABCP).Em 9de agosto,o BNP Paribas,maior banco da França,suspendeu os resga-tes de três fundos de investimento com problemas no mercado hipo-tecário de alto risco dos Estados Unidos. Nesse momento, a liquideznesses segmentos de maior risco (instrumentos securitizados e emderivativos de crédito) se evaporou, tornando impossível avaliar opreço de alguns ativos.

A dificuldade de prever o quanto alguns agentes estariam com-prometidos com papéis cujo colateral são hipotecas subprime (cujoestoque tem sido estimado em US$ 1,3 trilhão) contaminou tambémoutros mercados de títulos17, quando ocorreram declarações dequeda de rentabilidade de grandes bancos e investidores institucio-nais, assim como a suspensão dos saques de alguns fundos de inves-timento. Vale dizer, os investidores passaram a se afastar dos títulosgarantidos por hipotecas prime e outros ativos — não apenas os sub-prime —,reduzindo a liquidez do mercado.Em alguns casos,o prêmiode risco explodiu.

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[18] Lucchesi, Cristiane P. “Injeçãode liquidez soma US$ 3,2 tri’. ValorEconômico, 24/9/2007.

[19] Bernanke, Ben. “Subprimemortgage lending and mitigatingforeclosures”. Testimony before theCommittee on Financial Services,U.S. House of Representatives,20/9/2007.

[20] Fisher, Irving. “The debt-defla-tion theory of Great Depressions”Econometrica, vol. 1. Menasha, Wis-consin: George Bauta PublishingCompany, 1933, pp. 337-357.

A tensão estabelecida nos mercados financeiros globais exigiu aintervenção agressiva das autoridades monetárias de maneira a garan-tir a liquidez dos mercados interbancários.Calcula-se que o FED inje-tou US$ 430,25 bilhões e o Banco Central da Europa,US$ 2,9 trilhões,perfazendo um total de US$ 3,3 trilhões nos mercados monetáriosentre 27 de julho e 12 de setembro,a fim de evitar uma subida abruptadas taxas de juros de curto prazo e permitir a reorganização dos port-fólios dos investidores18.Mervy King,o presidente do Banco da Ingla-terra, argumentou que as operações de redesconto com hipotecascomo garantia eram o equivalente a resgatar bancos que se arriscaramdemais e a plantar “as sementes de uma futura crise financeira”. Apósa quebra da financeira Northern Rock, com direito à corrida bancária,a primeira desde 1866 na Inglaterra, King foi obrigado a intervir pararestaurar a liquidez no interbancário. O Banco do Japão, por sua vez,injetou US$ 3,3 bilhões em 16 de agosto e US$ 6,95 bilhões em 21 deagosto.Outros bancos centrais, tais como do Canadá,da Austrália,daNoruega e de Taiwan, também foram forçados a injetar liquidez emseus mercados financeiros.

Em 17 de agosto,o FED reduziu a taxa de redesconto em 0,5 pontopercentual.A taxa de juros básica (federal funds rate) foi reduzida em 0,5ponto percentual em 18 de setembro,e 0,25 ponto percentual em 31 deoutubro. Em 31 de agosto, o Poder Executivo americano anunciou umconjunto de medidas para o setor de crédito imobiliário.Foi criado umprograma — FHA-Secure — para facilitar o refinanciamento das dívi-das.Procura-se garantir o imóvel aos mutuários com bom crédito,masque podem deixar de honrar os pagamentos devido ao aumento dasprestações. Estima-se que 2,2 milhões de hipotecas terão suas taxasde juros reajustadas nos próximos dois anos. Delineou-se ainda umprojeto para modernizar a agência Federal Housing Administration,criada em 1934 para regular o mercado imobiliário e fornecer seguropara os empréstimos de maior risco, beneficiando populações demenor renda. Dessa forma, a Casa Branca auxiliou a montagem deuma rede de segurança, ao ajudar os mutuários a refinanciar suasdívidas, evitando a execução judicial e a perda do imóvel, bem comoao facilitar o acesso dos americanos mais pobres à casa própria. Ade-mais, o secretário do Tesouro Americano, Henry Paulson, está consi-derando permitir que as empresas de crédito imobiliário Fannie Maee Freddie Mac, que têm garantias do governo, comprem, empacoteme vendam empréstimos de valor elevado, conhecidos como “emprés-timos-jumbo”19.

Segundo Fisher20, que detalhou as repercussões dos processos deendividamento elevado conjugados com deflação dos preços dos ati-vos durante a Grande Depressão (1929-33), a crise sistêmica é defla-grada quando as instituições financeiras,sobretudo os bancos,sofrem

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[21] IMF, 2007.

[22] Parte dos asset-backed commer-cial paper (ABCP) não-rolados foiparar no balanço de bancos, quederam garantias para os papéis. Obalanço do Citigroup no terceiro tri-mestre de 2007 trouxe lucro deUS$ 2,38 bilhões, queda de 57% emrelação ao mesmo período de 2006(US$ 5,51 bilhões). As quedas nostítulos ancorados em hipotecas resul-taram em perdas de US$ 1,56 bilhão.As operações de renda fixa, com ala-vancagem excessiva, impuseram pre-juízo de US$ 636 milhões. A cotaçãodas ações do Citigroup caiu 17% entrejaneiro e outubro. Diante disso, oCitigroup, o Bank of America e o JPMorgan/Chase, com o estímulo doTesouro e do Federal Reserve,criaramum fundo de US$ 75 bilhões,denomi-nado Master Liquidity EnhancementConduit, que tem sido chamado deSuperSIV. O fundo deverá adquirirpapéis lastreados por hipotecas e evi-tar que as instituições com títulosinvendáveis ou com valor de mercadoabaixo do valor de face tenham dedesfazer dos títulos a qualquer preço ede uma só vez, registrando o prejuízo(decorrente das imprudências come-tidas durante a farra do crédito imo-biliário) nos balanços.

[23] Braga, op. cit.

[24] Os acionistas, livres da necessi-dade de supervisionar as operaçõesrotineiras das empresas, se transfor-mam em investidores especializados,cujo interesse precípuo é aplicar ocapital e receber os dividendos oulucrar com a valorização das ações.

perdas suficientes para induzir uma forte contração do crédito, comefeitos cumulativos sobre o consumo das famílias e os investimentosdas empresas. Assim, as autoridades econômicas procuraram evitarexatamente a reversão das expectativas e as restrições aos emprésti-mos de boa qualidade,o que poderia deflagrar contração do crédito emâmbito global. Os principais bancos centrais injetaram grandes volu-mes de recursos nos mercados financeiros, o FED reduziu suas taxasde juros de curto prazo para facilitar a recomposição dos portfólios eevitar uma tentativa desesperada e deletéria de liquidação de dívida edeflação de preços dos ativos.

Para o Fundo Monetário Internacional (FMI)21, as perdas das ins-tituições financeiras serão gerenciáveis. Os grandes bancos, comer-ciais e de investimento,estariam mais diversificados e mais bem capi-talizados (em média os ativos ponderados pelo risco superam 12%,estando acima do mínimo estabelecido no Acordo de Basiléia,de 8%).As perdas diretas com as exposições no mercado imobiliário nãodevem ultrapassar 0,04% do capital nível I22. As perdas indiretasassociadas à reavaliação dos ativos em carteira, perda de receita comnegociação e estruturação de securitização de hipotecas, também nãodeverão resultar em grandes dificuldades para gerenciar tais impactosnegativos, embora as instituições menores e menos diversificadaspossam estar mais vulneráveis.

As corporações americanas também ampliaram a posse de ativosfinanceiros, e não apenas como reserva de capital para efetuar futurosinvestimentos produtivos. A acumulação de ativos financeiros ga-nhou caráter permanente na gestão da riqueza capitalista. Isso signi-fica que as grandes corporações passaram a gerir ativamente seus port-fólios de ativos,mediante a recompra de ações,a maximização do fluxode caixa líquido e as operações de fusões e aquisições.Elas passaram autilizar também os instrumentos de prevenção dos riscos e a aprovei-tar as diferentes oportunidades de ganhos de capital oferecidas pelasexpectativas de variação das taxas de juros e de câmbio no mercadofinanceiro global. Esse é um dos aspectos da “financeirização” dariqueza contemporânea caracterizada por Braga23.Os ativos tangíveisdas corporações caíram de 72% do total dos ativos em 1980 para52,2% no segundo trimestre 2007 (ver Tabela 3). Por sua vez, a parti-cipação dos ativos financeiros subiu de 28% dos ativos para 47,8% nomesmo período.

O aumento da participação do mercado de capitais no financia-mento das corporações americanas (instrumentos de dívida e ações)elevou a capacidade de indução dos investidores institucionais sobreo comportamento das empresas (shareholder value based system of corpo-rate governance), a fim de maximizar as taxas de retorno dos acionistas— ou seja,agregar valor ao patrimônio dos acionistas24.As decisões de

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[25] Aglietta, op. cit.

[26] A pressão concorrencial força adistribuição de dividendos mesmonos anos em que houve uma quedaacentuada dos lucros.

alocação de investimento dos investidores institucionais são tomadaspor investidores profissionais. Individualmente, esses investidoresprofissionais não têm nenhum poder sobre os gestores das empresas.Entretanto, eles influenciam o comportamento das corporaçõesmediante um poder de opinião coletivo manejado pelos diferentesagentes que operam nos mercados de capitais,na nova era da tecnolo-gia da informação,valorizando ou desvalorizando as ações e os bônus.

Esse processo de valorização e desvalorização toma lugar no per-manente escrutínio da comunidade dos investidores,pois as regras eos padrões possibilitam abstrair as especificidades das corporações.A maioria dos investidores institucionais não tem conhecimento dasempresas cujas ações eles colocam em seus diversificados portfólios.A governança corporativa requer tão-somente informações transpa-rentes e previsões sobre as perspectivas de lucros futuros. A perfor-mance das empresas é comparada com padrão (benchmark),medianteuma competição feroz25. Os executivos das corporações enfrentam,portanto, um código abstrato: a lógica de um sistema público de ava-liação. Isso porque a operacionalidade desse sistema de gestãoempresarial presume transparência nos dados financeiros dasempresas, fluxo contínuo de informações (balanços trimestrais),rígidas regras de negociação e mercados secundários líquidos. Asgrandes corporações com capital pulverizado e com administraçõesprofissionais são minuciosamente monitoradas por analistas,empresas de informações econômicas, investidores e agências declassificação de risco,que promovem avaliações recorrentes dos rela-tórios trimestrais de desempenho.

A estrutura difusa de propriedade das ações corporativas e anatureza dos mecanismos que disciplinam a administração dasempresas condicionam a dinâmica do mercado de controle corpora-tivo (market for corporate control). Os executivos das empresas devemseguir a disciplina imposta pelos mercados: se a corporação for malgerenciada (under-performing management) e/ou se os dividendosforem negligenciados, os investidores reagirão, vendendo ações26.Conseqüentemente, seus preços se deprimirão e a empresa ficaráexposta a processos hostis de takeovers. Conforme esse paradigma,se uma subsidiária não estiver atendendo às expectativas ou se umaunidade não funcionar de acordo com o último plano estratégico,busca desfazer-se rapidamente dela. Abandonam-se as unidadesnão-essenciais e fortalecem-se os negócios principais, ficando, por-tanto, no core business, antes de se tornar alvo de uma oferta de aqui-sição hostil. Essa dinâmica forma um sistema empresarial extrema-mente competitivo, em que prevalece a tirania dos balançostrimestrais, uma vez que as performances das corporações são per-manentemente monitoradas pelos mercados.

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A dinâmica desse sistema de gestão (market-based) apresenta aspec-tos contraditórios. Os executivos devem promover os interesses dosacionistas,valorizando seus ativos a curto prazo,mesmo às expensas daperformance de longo prazo das empresas.Por um lado,encurta o hori-zonte temporal das empresas, uma vez que os acionistas externosimpelem os executivos a privilegiar os resultados financeiros de curtoprazo. Conseqüentemente, as corporações investem relativamentemenos em ativos intangíveis, tais como pesquisa e desenvolvimento,treinamento de recursos humanos, sistemas de informação, desenvol-vimento organizacional e relações com fornecedores; e os executivosevitam investimentos de longo prazo,que poderiam deprimir os preçosdas ações no curto prazo e tornar a empresa vulnerável a processos detomada de controle acionário hostil.Contudo,esse sistema submete ascorporações às exigências do mercado e apresenta capacidade enormede criar pequenas e médias empresas inovadoras, das quais muitasrapidamente se tornam grandes ou são adquiridas pelas megacorpora-ções. A alocação de capital é flexível, capaz de transferir recursos entresetores,sobretudo para os mais dinâmicos e com elevadas taxas de ren-tabilidade. Dessa forma, os investidores de risco detêm carteiras deações de empresas de diversos setores em crescimento (tais como bio-tecnologia,redes de telecomunicações,informática etc.),fomentando aincorporação de novos negócios.

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TABELA 3

Balanço das corporações americanas (US$ bilhões)

Fonte: Federal Reserve System, Flows of Fund Accounts of the United States, September 2007.

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[27] Gentry, William M. & Hubbard,R. Glenn. “Fundamental tax reformand corporate financial policy”,NBER Working Paper Series, n. 6433.Cambridge: National Bureau of Eco-nomic Research, 1998.

[28] Segundo Antonio Carlos M.Silva (“Mais do mesmo em 2005: ozen e a reflexão econômica”. PolíticaEconômica em Foco, n. 6, Campinas:Centro de Conjuntura e Política Eco-nômica/IE/Unicamp,mai.-out.2005,p. 25): “a flexibilidade do mercado definanciamento imobiliário ameri-cano permite aos proprietários reali-zar a chamada equity extraction, tantorealizando ganhos de capital (me-diante a venda a novos proprietáriospor um valor superior ao valor deaquisição) quanto antecipando ga-nhos de capital que se espera obter nofuturo, mediante os chamados refi-nancing cash-outs (o proprietário con-trata uma nova hipoteca, num valorsuperior ao de seu débito anterior —já amortizado em parte,ou referente aum valor de mercado inferior ao atual— e embolsa a diferença) ou homeequity loans (trata-se de um emprés-timo adicional tomado pelo proprie-tário da casa hipotecada. O emprés-timo é garantido pelo imóvel e emgeral é remunerado por juros flutuan-tes, que têm por referência os retor-nos de títulos do Tesouro de dois oucinco anos)”. As operações de equityextraction seriam responsáveis porparte substancial do aumento nadívida hipotecária.Tais instrumentostransformaram as residências ameri-canas em verdadeiros caixas eletrôni-cos. Para maiores informações, verCagnin, Cintra & Farhi, op. cit.

A despeito das contradições, o sistema empresarial americanoapoiado no mercado de capitais é extremamente ágil e dinâmico, inclu-sive na oferta de capital de risco (venture capital).Entretanto,no agregado,as corporações americanas utilizam basicamente a acumulação de fun-dos internos — lucros não-distribuídos, depreciação do capital fixo,lucros recebidos do exterior — para financiar seus investimentos. Issofaz com que a principal fonte de poupança privada seja a depreciação ace-lerada do capital fixo,aproveitando incentivos fiscais de monta27.

Em suma, o esforço de ajustamento patrimonial que geralmenteacompanha a desaceleração e a recessão econômica foi visto apenas nocaso das corporações.Impulsionadas pela valorização dos ativos imo-biliários, as famílias fizeram uso dos instrumentos financeiros exis-tentes para aproveitar a redução das taxas de juros e transformar osganhos patrimoniais em poder de compra28. Ambos os objetivosforam obtidos graças às operações de refinanciamento das hipotecas.Ademais, novas dívidas foram contraídas, financiando o aumento doconsumo a partir de 2001. A queda das taxas de juros foi compensadapelo crescimento do estoque da dívida, redundando no crescimentodo serviço da dívida em relação à renda disponível. Outros indicado-res, como o passivo das famílias em relação ao ativo ou ao patrimôniolíquido,indicam deterioração na última década.O movimento contra-cionista da política monetária, iniciado pelo FED em junho de 2004,poderá ter impactos negativos sobre a rolagem da dívida das famíliase, conseqüentemente, sobre seu nível de gastos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurou-se analisar, em maior ou menor grau, os três ciclos deexpansão da economia americana,sob o comando dos ciclos de ativose de crédito, chamado financial led, após 1982. Nesses movimentos, osexuberantes processos de valorização dos preços das ações (e dos ati-vos financeiros em geral) alimentam um “efeito riqueza”, por meio doqual a percepção de um aumento relativo no patrimônio modifica osgastos de consumo das famílias e as decisões de investimento dasempresas.A acirrada concorrência entre as instituições financeiras porganhos de market share garante a oferta de crédito para as operações ala-vancadas em ativos de risco (ações,imóveis, junk bonds,moedas),o quealimenta a inflação dos preços dos ativos.Esse,por sua vez,dá suporteà multiplicação do crédito bancário. Isso contexto, os consumidores— confiantes na valorização de seus ativos financeiros e imóveis —,mediante um “efeito riqueza”, elevam seus gastos, expandindo o graude endividamento e contribuindo para a aceleração da demanda,mesmo sem a liquidação das posições e, portanto, na ausência da rea-lização dos lucros presumidos.

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[29] Entende-se por crash bursátiluma queda tão acentuada dos preçosdas ações que tenha consideráveisefeitos sobre o sistema econômico.Em princípio, o crash das Bolsas deValores diferenciar-se-ia do estourode uma bolha especulativa nessemercado por atingir ações cujos pre-ços não estariam superavaliados ouem desacordo com os fundamentoseconômicos.

Além disso,a confirmação dos ganhos antecipados reforça os pro-cessos especulativos e melhora as condições de liquidez dos merca-dos,estimulando famílias,corporações,bancos e investidores institu-cionais,com posições próprias,a aumentar o grau de alavancagem nosmercados de ativos financeiros e imobiliários, favorecendo a progres-são do surto inflacionário.

Assim,as convenções altistas (bullmarket) nos mercados financeiros,que inflam os valores dos ativos, aumentam o estoque de riqueza nopatrimônio de seus possuidores. Um patrimônio maior e em cresci-mento é interpretado como uma redução do risco de crédito e, por isso,maior capacidade de endividamento. O próprio volume crescente deriqueza cristalizada em ativos financeiros no balanço patrimonial dosagentes econômicos também potencializa a capacidade de alavancagem.

Nesse ambiente de euforia, reduz-se a aversão ao risco, que semanifesta na queda da percepção do risco de crédito, na melhora doscritérios de rating, no rebaixamento dos critérios de concessão deempréstimos e na redução das provisões para devedores duvidosos.Os bancos e os investidores institucionais, à medida que as projeçõesotimistas se confirmam,lançam-se à procura de novos clientes e novasoperações. Passam a inflar suas carteiras com dívidas de empreendi-mentos cada vez mais arriscados, de recuperação difícil em uma con-juntura distinta (hipotecas subprime, por exemplo). Dessa forma, epi-sódios de otimismo excessivo estimulam a entrada de devedores e decredores em processos de riscos crescentes. Os devedores, ávidos poracumular novos ativos em processo de valorização. Os credores, con-fiantes na realização de suas carteiras de empréstimos. Enfim, a eufo-ria com a valorização crescente dos ativos atrofia a percepção dos ris-cos em um processo contraditório: por um lado, infla o valor dariqueza dos agentes e,por outro lado,impulsiona o endividamento e aalavancagem. A existência de inúmeros instrumentos (técnicas dehedge por meio de derivativos,derivativos de crédito e modelos de ges-tão de riscos) que pulverizam ou transferem diferentes riscos ampliaainda mais a capacidade de empréstimo dos agentes econômicos.

A valorização dos ativos leva os investidores a fornecer capitais derisco para financiar novas empresas e/ou setores, bem como expandiros existentes. As decisões de investimento produtivo reagem a essesestímulos e se aceleram, corroborando as expectativas de lucros cres-centes que realimentam a euforia. O ciclo de ativos financeiros e aexpansão creditícia resultam, então, em ciclo produtivo, com acelera-ção da taxa de investimento e de crescimento da economia.

Ao contrário, a deterioração das expectativas de parte importantedos agentes ocasiona queda abrupta no valor dos ativos, estoura umabolha especulativa ou desencadeia um crash bursátil29. Fenômenosdesencadeados por interações subjetivas entre os participantes do

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[30] Segundo Galbraith (op. cit., p.110):“a ‘força da alavancagem’,da qualse falara com tanta convicção e até comcarinho uma quinzena antes, atuavaagora completamente ao contrário”.

[31] Belluzzo, Luiz Gonzaga de M.“A gênese das crises”, Carta Capital,ano 13, n. 435, 14/3/2007, p. 36.

mercado, mediante a tomada de decisões estratégicas marcadas pelomimetismo dos protagonistas,precariamente apoiadas em expectati-vas a respeito das expectativas dos demais, provocando comporta-mentos coletivos de contágio e pânico. As conseqüências macroeco-nômicas da desvalorização da riqueza financeira dependem do pesodesses ativos no patrimônio dos agentes e,em escala internacional,daimportância da economia atingida. Quedas de grande magnitudenos preços das ações e de outros ativos financeiros podem resultar em“efeito pobreza”. Quando grande parte dos ganhos financeiros presu-midos se evapora, a sensação de perda (e, portanto, de empobreci-mento) provoca redução nos níveis de consumo e de investimentosdos agentes, com impactos macroeconômicos inversos ao “efeitoriqueza”, arrastando a economia para uma recessão. Nesse contexto,os agentes econômicos procuram aumentar sua poupança correntepara diminuir o grau de endividamento.Alguns investidores desmon-tam as operações altamente alavancadas,com repercussões nos preçosdos ativos30.

Como sugere Belluzzo,

as decisões capitalistas supõem a especulação permanente a respeito dofuturo, o que envolve a contínua reavalização do presente. Tais decisões,intrinsecamente intertemporais, não têm bases firmes, isto é, não há funda-mentos que possam livrá-las da incerteza e da possibilidade do risco sistê-mico. Apoiados em convenções e constrangidos pela concorrência, os deten-tores de riqueza são obrigados a tomar decisões que podem dar origem asituações de equilíbrio múltiplo ou a dinâmicas auto-referenciais que culmi-nam na exuberância irracional, na decepção das expectativas e na desvalo-rização da riqueza31.

Assim, o desempenho do sistema econômico ficou condicionadopela dinâmica dos sistemas financeiros nacionais e internacional,alternando euforia e desilusão. O peso dos ativos financeiros nospatrimônios e o “espírito de manada” dos investidores exacerbaram aintensidade da alternância entre períodos de otimismo e prosperi-dade, transformados em euforia e formação de bolhas especulativas, efases de declínio dos preços dos ativos financeiros e das atividadesprodutivas. Tudo isso pode facilmente traduzir-se em crises financei-ras com potenciais riscos sistêmicos e crashes com repercussões naeconomia mundial.

Após a crise dos países asiáticos entre 1997 e 1998, implementa-ram-se estratégias agressivas para obter saldos comerciais expressi-vos e acumulação de reservas,o que tem propiciado a adoção de políti-cas monetárias mais lassas, que favorecem a expansão do créditodoméstico, da produção e do emprego. A acumulação de reservas —

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[32] Silva, Antonio Carlos M. “Fugapara a frente,rumo à fronteira final?”.Política Econômica em Foco, n. 5, Cam-pinas: Centro de Conjuntura e Polí-tica Econômica/IE/Unicamp, nov.2004- abr. 2005, pp.18-37.

mediante saldos comerciais elevados e não-contratação de novas dívi-das — atende à demanda por liquidez em moeda forte e assegura aestabilidade da taxa de câmbio.As reservas dos países em desenvolvi-mento saltaram de US$ 700,6 bilhões em 1998 para US$ 3,6 trilhõesem 2006,em grande parte aplicada em títulos do Tesouro Americano.Em dezembro de 2006, a China Continental acumulava reservas deUS$ 1 trilhão e o conjunto dos países asiáticos, US$ 2,2 trilhões. Osexportadores de petróleo,US$ 706,5 bilhões.Essa engrenagem,asso-ciada aos elevados estoques de riqueza financeira dos investidoresinstitucionais (estimada em US$ 56,3 trilhões) em busca de maioresrendimentos (devidos às baixas taxas de juros reais de longo prazo nospaíses centrais), reduziu a aversão ao risco e ampliou a liquidez finan-ceira internacional. Os capitais passaram a se mover entre as econo-mias nacionais, na busca de oportunidades de arbitragem ou deganhos especulativos, sempre a envolver apostas quanto aos movi-mentos de preços dos ativos denominados nas diferentes moedas.

Nesse contexto, expandiram-se as operações de carry trade —tomada de recursos em uma moeda (iene,franco suíço etc.) com taxasde juros baixas para aplicar em diferentes ativos de risco pelo mundoafora —, fomentando a estruturação de transações altamente alavan-cadas (como as leveraged buyouts realizadas por fundos de participaçãoacionária,private equity funds) e alimentando o boom mobiliário, imobi-liário e o consumo local em inúmeros países, favorecendo a recupera-ção da economia mundial com baixa inflação nos produtos manufatu-rados e nos serviços e a generalização da “inflação de ativos” (bônus,imóveis, commodities, petróleo, moedas, ações e empresas de paísesemergentes). A expressiva demanda chinesa e as baixas taxas de jurosinternacionais favoreceram a tomada de posições especulativas altis-tas nos mercados de commodities.O uso de diferentes instrumentos detransferência de risco de crédito, como os derivativos de crédito, per-mitiu o deslocamento dos riscos das carteiras dos bancos para osinvestidores institucionais.

Houve, portanto, uma ampliação crescente da interpenetraçãopatrimonial entre as economias — devedora (Estados Unidos) e cre-doras (Ásia em desenvolvimento,Europa,América Latina,exportado-res de petróleo etc.). Por meio dos circuitos sucessivos de ativos, decrédito e de renda mantiveram-se as taxas de crescimento da econo-mia,a liquidez global e a perpetuação dos desequilíbrios dos balançosde pagamentos. Nesse contexto, as políticas monetárias e os arranjoscambiais têm conseguido promover a “fuga para frente”32. Todavia,não têm conseguido articular a reorganização dos mercados. Os ban-cos centrais, ao reduzir as taxas de juros e ampliar a oferta de crédito,abortam as crises financeiras, mas, atuando como emprestadores deúltima instância, criam as condições para a retomada do movimento

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[33] Belluzzo, op. cit., p. 37.

[34] Braga,“O big bank”, Valor Econô-mico.

ascendente da riqueza financeira em estruturas cada vez mais amplase complexas. No auge dos ciclos expansivos, eles sobem as taxas dejuros para conter a alavancagem, a “exuberância irracional”, a “ganân-cia infecciosa”, e os ciclos se perpetuam. Essa é a dinâmica predomi-nante de funcionamento do sistema financeiro e econômico global, apartir dos Estados Unidos, sem reorganizá-lo na direção de um novociclo virtuoso de expansão do produto e do emprego,com menor pata-mar de especulação financeira, como nos “anos dourados” (1947-73).Segundo Belluzzo:

a reiteração de intervenções de última instância dos bancos centrais e a gera-ção de déficits fiscais, ao aumentar a dívida pública de “boa qualidade”,impedem a desvalorização da riqueza existente e ampliam o peso dos ativosfinanceiros na riqueza total. [...] Criou-se, na verdade, uma situação demoral hazard permanente, ou seja, um viés altista na psicologia dos inves-tidores. Seja qual for a intensidade da flutuação da economia, as perdasdevem ser limitadas. [...] O moral hazard estrutural tornou os bancos cen-trais reféns da garantia de liquidez, no caso de oscilações bruscas nos preçose suspeita de risco sistêmico33.

E nas palavras de Braga34:

os bancos centrais e os tesouros tornaram-se reféns dos mercados, e assimpermanecerão enquanto não mudar o padrão sistêmico de riqueza.Não sãoas intervenções públicas para evitar catástrofes que insuflam as incorreta-mente denominadas bolhas. É o capitalismo financeiro atual que engendrauma instabilidade financeira estrutural.

Marcos Antonio Macedo Cintra é professor do Instituto de Economia da Universidade

Estadual de Campinas (IE-Unicamp) e pesquisador do Centro de Estudos de Relações Econômicas

Internacionais (Ceri).

Rafael Fagundes Cagnin é mestre pelo IE-Unicamp.

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Recebido para publicação em 15 de outubro de 2007.

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CEBRAP

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