Upload
others
View
0
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Maria Clara Xavier Leandro
Eurípides em cena: uma análise pontual de Troianas
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO
Estudos Clássicos
LINHA DE PESQUISA
Literatura e outros Sistemas Semióticos
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
1º semestre de 2011
Maria Clara Xavier Leandro
Eurípides em cena: uma análise pontual de Troianas
Orientadora: Profa. Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
1º semestre de 2011
Dissertação apresentada ao colegiado
do Programa de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários (Pós-Lit) da
UFMG para obtenção do título de
Mestre.
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Leandro, Maria Clara Xavier. E89t.Yl-e Eurípedes em cena [manuscrito] : uma análise pontual de
Troianas / Maria Clara Xavier Leandro. – 2011. 112 f., enc.
Orientadora: Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa.
Área de concentração: Estudos Clássicos.
Linha de Pesquisa: Literatura e outros Sistemas Semióticos.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 109-112.
1. Eurípedes – Troianas – Crítica e interpretação – Teses. 2. Teatro grego (Tragédia) – Traduções para o português – Teses. 3. Tradução e interpretação – Teses. I. Barbosa, Tereza Virgínia Ribeiro. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título. CDD: 882.3
Para o Gabriel, por querer me mostrar que tudo pode ser mais simples do que parece.
Agradecimentos
À Virgínia, por ter me acompanhado durante todo esse tempo.
À Rita, pelas aulas de teatro de tempos atrás e pela disponibilidade do diálogo.
À minha mãe, Bracara, pela nossa relação e pelo convívio diário.
Ao meu pai, Juvêncio, ao Pedro, ao Napoleão, à Izabel e à minha avó, Hilma, por serem a
minha família.
À Anita, pelo encontro recente e pela generosidade.
Ao Gabo, à Lu, ao Dido e à Quel, pelos finais de semana em que eu podia me esquecer de que
estava escrevendo uma dissertação.
À Lira, pela amizade que só cresce e se torna sempre mais sólida.
À Vivian, pela amizade e sinceridade.
À Manu, por estar incondicionalmente na torcida.
À Diadorim, por existir.
Aos professores da Faculdade de Letras da UFMG Antônio Orlando de Oliveira Dourado
Lopes, Jacyntho Lins Brandão, Olimar Flores Junior, Teodoro Rennó Assunção e Sabrina
Sedlmayer Pinto, pelos ensinamentos.
Aos professores que se dispuseram a participar desta banca, o momento final de todo o
processo.
SUMÁRIO
PRÓLOGO ............................................................................................................................... 6
PRIMEIRO ATO
Pequeno preâmbulo sobre Troianas ...................................................................................... 13
Traduções e comentários ....................................................................................................... 18
Cena 1................................................................................................................................ 21
Cena 2................................................................................................................................ 33
Cena 3................................................................................................................................ 43
Cena 4................................................................................................................................ 49
Cena 5................................................................................................................................ 61
Cena 6................................................................................................................................ 70
SEGUNDO ATO
Cena 1: sobre o teatro que atravessa os tempos .................................................................... 77
Cena 2: a Teoria da Tradução ............................................................................................... 91
EPÍLOGO ............................................................................................................................ 105
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 109
6
PRÓLOGO1
―Contudo, não precisamos nos preocupar muito com o destino dos clássicos,
porque a beleza está sempre conosco.‖2
O que primeiro nos vem à mente quando pensamos na tragédia Troianas, de Eurípides,
é o gênero literário desse texto: estamos lidando com um texto dramático, estamos estudando
dramaturgia. É bem verdade que a teoria dos gêneros literários é por demais lacunar, não
sendo suficientemente convincente para a contemporaneidade, que lida com fronteiras
permeáveis e em constante deslocamento. Entretanto, o gênero literário pode nos servir como
pista para indicação da finalidade primeira de um texto, ou seja, dizer que Troianas é
dramaturgia é dizer que o texto foi escrito para o teatro, antes de ocupar lugar nas bibliotecas.
Assim, para abordar o texto e podermos compreender o estilo de Eurípides, optamos por ter
como foco principal e direcionamento as características dramáticas de Troianas.
A partir do momento em que definimos que estamos estudando um texto escrito para a
encenação, um recorte é feito e nossa análise ganha um caminho claro: estudar a função das
palavras, dos versos, do que restou desse teatro primordial, no teatro contemporâneo, no teatro
que se constrói agora.
Inevitavelmente há sempre alguém que pede que a tragédia seja representada mais
uma vez ―da forma como foi escrita‖. Isto é justo, mas infelizmente tudo que o texto
nos diz é o que está escrito no papel e não como a peça foi originalmente trazida à
vida. Não há documentação, não há fitas gravadas – há somente estudiosos, mas
nenhum deles, é claro, tem conhecimento de primeira mão. As verdadeiras
interpretações antigas se foram todas – só sobreviveram algumas imitações, na
forma de atores tradicionais, que continuam a representar de maneira tradicional.
Eles tiram sua inspiração não de fontes reais, mas imaginárias, como a lembrança de
um som que um velho ator empregou certa vez, som que, por sua vez, já era
lembrança do estilo de um predecessor.3
Essas palavras – vindas de Peter Brook, renomado diretor teatral reconhecido
mundialmente – nos reconfortam, pois não é necessário tentar adivinhar como aconteceu a
primeira apresentação de Troianas nas Grandes Dionisíacas de 415 a. C., afinal não
chegaremos a lugar algum, pois essa apresentação foi única e não mais se repetirá. Como na
vida, no teatro um dia nunca é idêntico ao outro. O substrato que produz o teatro é composto
principalmente de material humano, o público e os atores, e, por isso, uma apresentação nunca
1 Este será um prólogo à moda de Eurípides, nele estará inscrito um resumo de tudo o que se seguirá.
2 Borges. Esse ofício do verso, p. 23.
3 Brook. O teatro e seu espaço, p. 4.
7
é igual à outra: o conjunto formado por elenco e plateia é sempre único e cria constantemente
um novo arranjo do que chamamos anteriormente de substrato. Algo é preservado na
passagem de uma apresentação à outra, porque há um acordo: denominamos enredo ou
história aquilo que é sempre o mesmo em um mesmo espetáculo. O que muda é a maneira
como essa história é contada a cada apresentação e como é recebida pela plateia. E, ainda, a
recepção da plateia interfere na performance dos atores, formando, assim, um acontecimento
dinâmico que se alimenta de material humano infinito.
Curioso é o fato de o teatro ser construído pela repetição, mas nunca se repetir. A
única maneira de se erigir um espetáculo é ensaiando. Os ensaios são repetições incansáveis
daquela história que elenco e diretor combinaram que iriam contar ao seu público. A função
do ensaio é fixar algo, para que as variantes possam acontecer livremente, sem sobressaltos. A
fixação de uma base – a história – é o ponto de apoio para que a dinâmica entre público e
elenco aconteça.
As atividades alfabetizadas em nosso tempo vêm dominando a vida cívica e artística
com uma extensão que teria sido inimaginável para os primeiros dramaturgos. E,
assim, um salto histórico é necessário para imaginar o que ―o texto‖ significava para
os inventores do drama: ele não era um ditador ossificado, mas uma parte de um
contínuo processo oral. (...) E, uma vez que, todos nós sabemos, a primeira versão
publicada de uma peça foi baseada em uma específica e altamente interpolada
performance, de modo que, alimentado por elementos dos atores, pode tornar-se o
texto oficial. No contexto do surgimento do teatro, a alfabetizada preferência para
versões autorizadas, por textos canônicos e pelo fechamento da narrativa ainda não
tinha tomado a forma extrema a qual os alunos estão acostumados hoje. 4
Assim, é difícil falar em originais, no sentido de algo verdadeiro e portador de uma
verdade única. Não sabemos e nunca saberemos qual é o verdadeiro sentido de uma tragédia
de Eurípides, simplesmente pelo fato de esse sentido não existir. A cada apresentação a poesia
é acolhida de forma diferente, e um novo sentido é construído.
Entretanto, algo de material chegou até nós: o texto escrito pelo poeta. Não sabemos
como era o figurino, com que voz os atores pronunciavam as falas de seus personagens nem
como o público recebeu esse espetáculo. Mas, tomando emprestadas palavras de Maria
4 ―Literate activities in our time have come to dominate civic and artistic life to an extend that would have been
unimaginable to the first playwrights. And so a historical leap is required to imagine what ‗the text‘ meant for
the inventors of drama: it was not an ossified dictator but a part of an ongoing oral process. (…) And since, for
all we know, the first published version of given play was based on one specific and highly interpolated
performance, such actorly input may itself have became the official text. In the context of theatre‘s emergence,
the literate preference for authorized versions, canonical texts, and narrative closure had not yet taken extreme
form to which students are accustomed today‖ (Wise. Dionysus Writes, p. 113-114. Tradução nossa. Grifos da
autora).
8
Helena da Rocha Pereira, ―ganhamos a vantagem de possuirmos um dos mais dilacerantes
dramas gregos‖.5
Dessa forma estudaremos Troianas, focados nas palavras do poeta, em suas metáforas,
em seu trabalho com a letra. Mas é importante salientar: em Eurípides a letra está a serviço do
palco. A poesia trabalha junto com atores, diretores, música, figurino, maquiagem e plateia.
Nada no teatro é dissociado, trata-se de um trabalho em equipe, o texto é parte desta
engrenagem.
Entretanto, até o texto, matéria viva em nossas mãos, não é único. Basta consultar uma
edição crítica de Troianas, para nos depararmos com uma quantidade considerável de
variantes que esse texto ganhou ao longo de sua trajetória de mais de dois mil anos. Sendo
assim, não estamos procurando o verdadeiro texto de Eurípides, a versão mais próxima do
original. Ao consultarmos uma edição crítica, optamos pela variante que nos parece mais
expressiva cenicamente, que ofereça material para a transposição das palavras do papel para o
palco.
Nesse movimento de investigação e colagem do texto, procuramos um Eurípides mais
dramaturgo do que literato, na tentativa constante de desvelar o teatro que se esconde nos
versos do poeta.
Alguns críticos consideram Troianas uma tragédia menor, pois, segundo essa crítica,
não há ação na peça: ―alguns escoliastas antigos viram a peça como uma mera série de
lamentos‖.6 ―Outra característica de Troianas que, implícita ou explicitamente, tem sido
apresentada como uma falha dramática é a ausência de ação‖.7 É verdade que Troianas possui
maior quantidade de cantos em sua estrutura, comparando com outras tragédias, mas isso não
quer dizer que a peça tenha uma dramaturgia frouxa ou mal elaborada. Veremos que o grande
número de textos narrativos, cantados ou não, pode ser uma estratégia dramatúrgica do poeta,
com um objetivo cênico muito claro.
O que alguns avaliam como ausência de ação, caracterizando-se como falha dramática,
pode ser explicado de outra maneira. Podemos notar na tragédia em questão uma quantidade
expressiva de passagens8 nas quais o texto não é um diálogo entre dois personagens, mas
divagações que remetem a um tempo passado ou ao tempo futuro. Passagens que evitam o
confronto da personagem com sua situação no presente, o mesmo presente do espectador,
5 Pereira. Introdução, p. 9.
6 ―Some earlier scholars saw the play as a mere series of laments‖ (Barlow. Introduction, p. 31. Tradução nossa).
7 Werner. Introdução, p. XIX.
8 Ver Troianas, vv.1-47; 197-234; 433-450; 466-510; 512-567; 1.123-1.156.
9
porque, assim que o espetáculo começa, não há nenhum espaço de tempo que separe a
personagem dos espectadores.
Pois na lírica a linguagem possui uma evidência maior que no drama; ela é, por
assim dizer, mais formal. A fala no drama expressa sempre, além do conteúdo das
palavras, o fato de que é fala. Quando não há mais nada a dizer, quando algo não
pode ser dito, o drama emudece. Mas na lírica mesmo o silêncio se torna linguagem.
Sem dúvida, nela as palavras já não ―caem‖, mas são expressas com uma evidência
que constitui a essência do lírico. (...) Longe de ser mero relato, essa narrativa na
primeira pessoa [A mais forte, de Strindberg] chega a conter duas peripécias que não
se poderia imaginar ―mais dramáticas‖, mesmo se, devido à sua pura interioridade,
escapassem ao diálogo e, portanto, ao drama. 9
Ao que nos parece, os longos e repetidos trechos líricos de Troianas têm esta função
desenvolvida por Szondi, a de ocupar os lugares do silêncio, os momentos em que a fala
direta, característica fundamental do drama, não consegue sustentar a grandiosidade da dor
que se instalou em cena. Os cantos são fugas, momentos de abstração para a personagem que
canta e para a plateia que escuta.
Já as narrativas de Eurípides, podemos aproximá-las a textos muito mais recentes,
como fazemos ao citar Szondi analisando Strindberg. Como faz o dramaturgo sueco, com suas
narrativas, Eurípides coloca muita ação em cena. Ainda que seja uma narrativa pessoal, que
conta histórias particulares, encontramos imagens com alto potencial dramático.
Então, ―a mera série de lamentos‖ é por nós encarada como momentos líricos que
funcionam como espaço para público e personagem recuperarem o fôlego, suportarem a
imensa tristeza do enredo de Troianas; e a ―ausência de ação‖ não se aplica como
característica de Troianas, desde que encaremos o ato de narrar como uma ação e o conteúdo
das narrativas como imagens dramáticas que remetam a ações concretas.
E não há nada mais contemporâneo do que a impossibilidade do diálogo. Em Troianas
os diálogos são, em sua maioria, disputas pela palavra, discussões. Contemporânea é essa
tragédia de Eurípides, que retrata personagens solitários em sua dor, incapazes de
conversarem. Hécuba, Cassandra, Andrômaca e até o Coro vivem em seus próprios
pensamentos, em função de suas recordações pessoais. Atuais são a temática e a estrutura da
peça.
Não só especialistas em língua e literatura grega encaram essas passagens como pouco
dramáticas. A grande maioria dos encenadores de teatro no Brasil, nos dias de hoje, não
conseguem se apropriar desses textos e compreender qual é a sua função em cena. Como
9 Szondi. Teoria do drama moderno, p. 50, 59. Peter Szondi se refere ao monólogo de Strindberg A mais forte.
10
resultado, temos montagens de tragédias gregas que apresentam o texto mutilado, com a
exclusão de vários trechos riquíssimos e pouco explorados na contemporaneidade.10
Nosso palpite é que a dificuldade dos encenadores de admitirem os trechos líricos e
narrativos como textos com potencial dramático é oriunda da dificuldade de os tradutores
tratarem esses textos como tal. Ou seja, é uma reação em cadeia: o tradutor é o profissional
que possibilita a relação dos encenadores brasileiros com as tragédias gregas antigas, caso o
tradutor não trate essas tragédias como textos que servirão à encenação, os diretores e atores
não reconhecerão naquele texto um material de trabalho. Será, no máximo, material de
inspiração para a criação de seus espetáculos.
Escolhemos para tradução, análise e discussão, em nossa dissertação, justamente esses
trechos da peça de Eurípides, que incomodam tanto os estudiosos de teatro antigo, quanto os
profissionais do teatro.
A preocupação de Eurípides em delimitar o cenário da acção, em parâmetros mais
amplos do que aqueles que a estreiteza do cenário real permite, determinou, para
além da caracterização lata da cidade onde se situa a intriga, a definição concreta do
ambiente da peça, em termos do que é possível ao público ver e àquilo que o poeta
procura criar para além das paredes da cena. Se, por vezes, Eurípides não faz mais
do que aludir a um mundo próximo ainda não poluído pela nuvem da tragédia, a
contrastar com o adensamento da desgraça que mais e mais se patenteia (...). O
recurso aos efeitos visuais como um factor estimulante da imaginação tem, neste
caso, uma propriedade dramática inegável.11
A ação em Troianas acontece com maior intensidade fora da ―estreiteza do cenário‖.
Eurípides mostra-se um grande artista que modela palavras e as faz concretas quando são
pronunciadas.
O estatismo das cativas troianas – agora propriedade dos gregos – contrasta com o
poder de ação das suas palavras: o coro vai às cidades gregas e mostra essas cidades ao
público, Hécuba volta ao passado e revê sua próspera vida, Cassandra lança-se ao futuro e
adianta à plateia o que acontecerá. Aqui a ilusão do teatro alcança seu ponto máximo: a arte
de fazer presente o que é fruto da imaginação. Vislumbrar a vida em uma bela cidade faz
10
Antunes Filho, famoso diretor de teatro no Brasil declarou sobre a sua montagem da Antígona de Sófocles:
―Eu enxuguei o texto, mas não cortei nenhuma metáfora. (...) Eu não gosto de nhe-nhe-nhé, gosto das coisas
numa linha reta. Quero que a juventude assista e não ache os grandes autores chatos. Acho que hoje em dia não
dá mais para você ir a um espetáculo de duas horas, eu não consigo, acho chato. Tem que ser pá-pum. O tempo
é outro. Mas também não é por isso que tem que ser superficial. Acho que você tem que ser conciso e, em uma
hora, uma hora e meia, dizer tudo que tem que ser dito. O máximo que puder enxugar, eu enxugo, mas sem
perder a essência. Eu gosto de espetáculo dinâmico e o público também‖ (Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT969002-1655-1,00.html. Acesso em: 18 fev. 2010). 11
Silva. Ensaios sobre Eurípides, p. 368.
11
esquecer que esta será uma vida de escrava; relembrar o passado traz um pouco da antiga
alegria; prever a vingança traz força para suportar o peso do presente.
Mas existe algo com a história, com a narrativa, que sempre estará presente. Não
creio que um dia os homens se cansarão de contar e ouvir histórias. E se, junto com
o prazer de nos ser contada uma história, tivermos o prazer adicional da dignidade
do verso, então algo grandioso terá acontecido.12
Grandioso é o trabalho de Eurípides. Tendo como instrumento o verso, o poeta nos
narra histórias de tal forma que elas se materializam na cena, lugar próprio para esse tipo de
acontecimento. Eurípides é um homem de teatro que sabe que aquilo que realmente acontece
no palco é corriqueiro: pessoas fingindo ser o que não são; brincadeiras. Entretanto, nós
acreditamos no teatro quando o espetáculo nos permite esquecer que tudo não passa de
fingimento. A força das metáforas de Eurípides nos leva para este mundo de fingimentos
verdadeiros.
Narrar é arte antiga, mas que vem sendo cortada das montagens de tragédias gregas,
talvez por incompreensão, talvez por dificuldade de aproximação com essas narrativas. É
ponto pacífico entre acadêmicos e encenadores que os textos dramáticos antigos são de grande
interesse até hoje. A retomada dos mitos instiga a todos, e há algo de fundamental para o
homem ocidental nessas peças de teatro, no fazer teatro.13
Existe uma ideia pré-estabelecida de que os textos gregos antigos são formais, de
difícil compreensão para o grande público. As traduções que encontramos de Troianas
corroboram essa primeira impressão. Em geral, notamos que os textos ou possuem um tom
bastante professoral, muito preocupado com a precisão filológica dos termos traduzidos, ou
são poeticamente muito rebuscados, o que não se adéqua ao teatro, devido a sua difícil
oralização.
As partes líricas e os longos monólogos narrativos costumam ter aparência mais
pesada do que são de verdade, por causa das escolhas feitas pelos tradutores, que parecem não
levar em conta o caráter dramático dos textos, mas somente a posição de literatura que as
tragédias gregas ocuparam com o passar do tempo.
Assim, em Troianas, enxergamos o excesso de textos narrativos na obra como uma
opção consciente do autor. Esses momentos epifânicos têm a função – para os personagens e
12
Borges. Esse ofício do verso, p. 62. 13
―Para além do asiático nos excessos que permite, o ritual dionisíaco comporta uma espontaneidade e um
contacto imediato com o que é dádiva da natureza, que faz dele uma experiência ansiada por todo ser humano‖
(Silva. Ensaios sobre Eurípides, p. 87).
12
também para o público – de transportar as pessoas para lugares e momentos mais agradáveis.
As narrativas são pontos de fuga, pois o horror representado no palco é insuportável.
Eurípides foi grande ao executar seu objetivo: temos um palco que é cenário de guerra,
nele vemos uma criança morta e ele próprio representa a terra embaixo da qual todos os
troianos jazem; as mulheres gemem, sentem a dor de suas perdas. O texto, no entanto, alivia a
tensão, através dele percorremos momentos felizes, lugares bonitos.
Uma atenção particular é devida também ao poeta, o criador inspirado de versos ou
de quadros em que a palavra se substitui ao pincel. Da força visual das suas telas
poéticas surgiu a tradição de que, antes de ter sido autor de versos, Eurípides tivesse
dedicado à pintura o talento inesgotável de que era portador. Esta é uma ferramenta
poderosa de um homem de teatro que quis introduzir na cena a realidade da vida, em
cores vibrantes e convincentes.14
Há somente uma narrativa que não transporta o público para uma posição de alívio, a
fala em que Taltíbio conta a Hécuba como Astianax foi morto e como Andrômaca foi levada
de Troia. Mas, nesse caso, assistir à cena seria mais doloroso do que a escutar, por isso o
poeta a apresenta ao público em forma de narrativa, pois as palavras de Taltíbio soam mais
leves que os acontecimentos narrados por meio delas. Mais uma vez, o texto é fuga.
Com o desenrolar da dissertação, apresentaremos todos os trechos narrativos em
tradução nossa, e analisaremos detidamente cada um deles, justificando as nossas escolhas
tradutórias e indicando como essas escolhas contribuem para a encenação.
Para executarmos tal tradução contamos com a ajuda indispensável da atriz e diretora
de teatro Rita Clemente,15
que leu as várias versões de nossas traduções, indicando o que lhe
parecia dramaticamente relevante e o que não era possível colocar em cena, além de ter
contribuído com discussões sobre o fazer teatral e sobre dramaturgia, aproximando este
trabalho acadêmico do universo de quem efetivamente, como viveu Eurípides, vive para fazer
teatro.
14
Silva. Ensaios sobre Eurípides, p. 11. 15
Rita Clemente é formada em Educação Artística (Licenciatura em Música) pela Universidade do Estado de
Minas Gerais (UEMG) e em Artes Cênicas pela Fundação Clóvis Salgado (CEFAR-Palácio das Artes). Atua e
dirige peças na cena teatral de Belo Horizonte. Foi professora na escola de teatro do CEFAR-Palácio das Artes
e do curso livre de teatro do Galpão Cine Horto.
13
PRIMEIRO ATO
PEQUENO PREÂMBULO SOBRE TROIANAS
Troianas, de Eurípides, foi representada pela primeira vez nas Dionisíacas do ano 415
a. C. e obteve o segundo lugar no concurso. Nesse período, Atenas está envolvida na Guerra
do Peloponeso. Muitas mortes já haviam acontecido, e Atenas é, por experiências anteriores,
uma cidade que conhece as consequências de se entrar em uma guerra.
A tragédia em foco conta a história que ocorre imediatamente após a derrota da cidade
de Troia para o exército helênico. Portanto, o cenário é de pós-guerra: mortes, destruição,
tristeza.
Entretanto, algumas particularidades são percebidas para além da identificação entre a
Guerra do Peloponeso e a Guerra de Troia. Eurípides nos faz dar ouvidos a um ponto de vista
nunca antes levado em consideração, o ponto de vista feminino:
A terceira característica incomum é que Eurípides na peça anterior, Hécuba, e nesta
peça está desbravando novos caminhos no tratamento da destruição de Troia
dramaticamente – nem Ésquilo ou Sófocles escreveram uma Troianas – e também
em tratá-la exclusivamente a partir do ponto de vista de um grupo de mulheres.
Abandonando a postura habitual dos dramaturgos de representar homens guerreiros,
como Agamémnon, Odisseu, Etéocles, Polinices, Ajax ou Filoctetes, Eurípides, em
vez disso, permite a sua audiência olhar para os efeitos da guerra através dos olhos
das mulheres. Nisso ele também combate os antigos valores épicos que viam a
guerra como um negócio de homens e como gloriosa. 16
Troianas tem predominância de personagens femininas, afinal, só elas não foram
mortas na guerra, foram poupadas para servirem de escravas ou concubinas. Portanto, são elas
que falam. O poeta cede a palavra, gentilmente, às mulheres, nunca antes ouvidas. Talvez por
pensar que a estranheza pudesse fazer com que suas palavras fossem ouvidas com maior
atenção por esta plateia ao mesmo tempo vítima e participante de uma guerra.
16
―The third unusual feature is that Euripides in the earlier Hecuba and in this play is breaking new ground in
treating the destruction of Troy dramatically – neither Aeschylus nor Sophocles wrote a Trojan Women – and
also in treating it exclusively from de point of view of a group of women. Deserting the usual stance of
playwrights to represent male warriors like Agamemnon, Odysseus, Eteocles, Polyneices, Ajax or Philoctetes,
Euripides instead allows his audience to look at the effects of war through women‘s eyes. In this he is also
striking a blow at old epic values which saw war as men‘s business and as glorious‖ (Barlow. Introduction, p.
27. Tradução nossa).
14
É, no nosso ponto de vista, justamente para isto que Eurípides chama a atenção:
invariavelmente, quem participa de uma guerra, mesmo que a vença, é vítima da violência.17
Por isso não só vemos Troia destruída e suas mulheres humilhadas mas vemos também o
augúrio de que os helenos também sofrerão duras penas depois de vencida a guerra. Aqueles
que não morrerem no caminho de volta para casa passarão por muitos castigos antes de
conseguirem rever o próprio lar – além do fato de terem perdido anos de suas vidas, em
função da violência, longe das esposas e dos filhos.
Somente mulheres podem fazer tamanha apologia à paz. E só elas podem mostrar
como toda uma sociedade é afetada pelo conflito. Desta forma, o poeta diz o que nunca antes
havia sido dito, pois quem profere suas palavras permanecia calado até então.
E o teatro, é claro, reflete esta ampla comunidade falante. Em marcado contraste
com o épico, o drama da letrada Atenas dá poder de expressão pública para
escravos, mulheres, crianças, aleijados, estrangeiros – até mesmo para os loucos (...)
As inovações representadas pelo drama são, talvez, em nenhum outro lugar mais
pronunciadas do que aqui: o drama escrito deu às mulheres da mitologia grega uma
chance de falar. 18
Como consequência à inovação de dar voz a quem não podia se expressar
publicamente, vem a inovação do que é dito. Se as mulheres não podiam falar, a partir do
momento em que elas falam, há algo de novo para ser ouvido. A atitude feminina diante da
guerra é diferente da atitude dos heróis épicos. Com o teatro começamos a descobrir outra
versão dos mitos já conhecidos.
Em Troianas temos uma inversão da imagem dos gregos. Ao mostrar tamanha dor nas
mulheres de Troia, os vencedores da guerra, os gregos, com os quais provavelmente se
identificaram os atenienses que assistiram ao espetáculo em 415 a.C., são retratados com uma
crueldade bárbara: matam todos os homens troianos, sacrificam Polixena ao túmulo de
Aquiles e assassinam uma criança, Astíanax, arrancando-o dos braços de sua mãe. Eurípides
levanta a questão: quem são os bárbaros nessa história?
17
―O que significa ganhar ou perder uma guerra? Nas duas palavras, chama a atenção o sentido duplo. O
primeiro, o sentido manifesto, significa decerto o desfecho, mas o segundo, que dá sua ressonância especial a
ambas as palavras, significa a guerra em sua totalidade, indica como o seu desfecho para nós altera seu modo
de existência para nós. Esse segundo sentido diz: o vencedor conserva a guerra, o derrotado deixa de possuí-la;
o vencedor a incorpora em seu patrimônio, transforma-a em coisa sua, o vencido não a tem mais, é obrigado a
viver sem ela‖ (Benjamin. Obras escolhidas, p. 65. Grifos do autor). 18
―And the theatre, of course, reflects this widened speech community. In marked contrast to the epic, the drama
of literate Athens gives power of public speech to slaves, women, children, cripples, foreigners – even the
insane (…) The innovations represented by drama are perhaps nowhere more pronounced than here: written
drama gave the women of Greek mythology a chance to speak‖ (Wise. Dionysus Writes, p. 142-143. Tradução
nossa).
15
Nas duas tragédias euripidianas que mais diretamente focam o drama da antiga
cidadela frígia, Troianas e Hécuba, a velha polêmica Grego/Bárbaro não está
ausente, mas permite uma reavaliação perspectivada noutros termos: a noção de um
Grego selvagem e de um Bárbaro superior vem subverter por completo as
tradicionais regras do jogo, à melhor maneira do poeta revolucionário e do
pensamento sofístico de que se sentiu sempre muito próximo.19
O teatro euripidiano relativiza ideias20
já muito repetidas em toda a mitologia grega,
com o objetivo de tocar seu público de maneira singular. Assim acontece com Troianas: não
importa se se trata de gregos ou não gregos, o poeta fala do humano. Tragédia que encena o
sofrimento do homem diante da morte; a solidão de quem não morreu e chora a perda de
outrem; o medo que o homem tem do próprio homem.
Esta é Troianas e este é o poeta que escolhemos traduzir. E, assim, com o desejo de
que nosso trabalho contribua com a leitura de Eurípides, propomos a análise e as traduções
que se seguem.
Com objetivos metodológicos de centralizar a análise e discussão em um corpus de
tamanho compatível com o presente estudo, limitamos nosso universo de trabalho nas
seguintes passagens de Troianas: versos 1-47; 197-234; 433-450; 466-510; 512-576; 1123-
1155. Respectivamente, falas de Posêidon, Coro, Cassandra, Hécuba, Coro e Taltíbio.
Esses excertos têm em comum a característica predominantemente narrativa. Em todos
esses versos, sejam eles cantos ou não, a personagem conta uma história para a plateia. Por
vezes essa história é sobre um acontecimento do passado: é a narrativa de uma lembrança ou
de uma história mitológica; em outros momentos, a história se passa no futuro: é imaginação,
expectativa ou previsões de uma bacante. Mas todas elas têm como função primeira criar
imagens e torná-las presentes e concretas para o espectador.
Os versos, para os quais apresentaremos em seguida as traduções, são de forte apelo
emocional. Neles o poeta usa seu talento para narrar, mas também a habilidade dramatúrgica
de instaurar ação e imagens através do trabalho com a letra.
Scodel está certo em chamar a atenção para a qualidade analítica de muitas dessas
falas, mas errado ao assumir que são irrelevantes, áridas ou deficientes de impacto
emocional. O impacto de um poderoso raciocínio pode ser algo emocional, e o puro
som da lamentação pode provocar o pensamento. As fronteiras não são tão claras. E
nesta peça ambos os modos de trabalho para produzir um efeito complexo (...)
Lamentos líricos são, então, compartilhados pelo coro e pelas personagens principais
19
Silva. Ensaios sobre Eurípides, p. 44. 20
―Eurípides foi também o homem de teatro experiente, qualificado, e sobretudo ousado na procura de efeitos
reformistas e inovadores (...) de modo a conduzir a tragédia grega por um caminho onde a fidelidade a uma
tradição não pôs nunca em causa a versatilidade inovadora de um gênero inconformista‖ (Silva. Ensaios sobre
Eurípides, p. 10-11).
16
em uma harmonia que é não apenas uma harmonia porque está preocupada com o
sofrimento. 21
As fronteiras delimitadas por linhas muito tênues é o que pode dificultar o caminho do
tradutor, mas é também a maior fonte de riqueza do texto e a maior prova de que estamos
lidando com uma obra de arte. Um poeta não se preocupa com as delimitações de gêneros
literários, seu texto é genuíno. A própria análise do texto em fragmentos, e não em seu
conjunto, pode ser infeliz. O fato é que não podemos traduzir e analisar – duas ações que não
ocorrem dissociadas, como veremos bem mais adiante – algumas falas de determinadas
personagens sem levar em consideração o conjunto da tragédia; nem nos é permitido esquecer
o fim para o qual este texto foi escrito: para o corpo em movimento, para a ação, e não para a
imobilidade de trabalhos acadêmicos, como este que agora se desenvolve.
Como tentativa de dialogar com este objetivo primeiro de um texto dramatúrgico é que
buscamos uma tradução que sirva à encenação. Para tal, antes de tudo, definimos que
estávamos trabalhando com um texto de dramaturgia, e que em dramaturgia podemos ter
variedades de estratégias poéticas, que misturam inclusive gêneros literários, para que seja
criada a fala característica de cada personagem, para que o dramaturgo atinja as sutilezas na
construção de suas personagens, na relação entre elas, e delas com o espaço cênico.
Em seguida, decidimos que nosso estudo precisava conversar diretamente com quem
faz teatro, com quem tem o palco como profissão. Somente essas pessoas podem nos dizer se
o texto que produzimos tem potencial dramático ou não. Desta forma, submetemos as várias
versões de nossa tradução às leituras de uma atriz e diretora de teatro, que pôde, com sua
linguagem teatral, indicar um caminho para que o nosso trabalho acadêmico não se limitasse
ao diálogo com outros estudiosos das letras, mas também com quem estuda e vive o teatro.
Então nossa tradução buscou o ritmo da fala, opções favoráveis à oralização.
Queríamos que o texto carregasse características que indicassem o estado emocional da
personagem que fala, indícios dos objetivos que o poeta poderia alcançar com aquele texto.
Pensamos também em como as palavras caminhariam e chegariam até a plateia, que
sentimento elas causam, que imagens são aludidas. As metáforas e referências mitológicas
trabalham na elaboração de um ambiente fictício, na determinação do cenário, que nunca
21
―Scodel is right in drawing attention to the analytical quality of many of the speeches, but wrong in assuming
that they are irrelevant, dry, or lacking in emotional impact. The impact of a powerful argument may be an
emotional one, and the pure sound of lamentation may provoke thought. The boundaries are not so clear. And
in this play both modes work to produce a composite effect (…) Lyric laments are thus shared by the chorus
and main characters in a harmony which is no less a harmony because it is concerned with grief‖ (Barlow.
Introduction, p. 31-32. Tradução nossa).
17
estará fisicamente em cena, mas pode materializar-se na relação entre ator, texto e plateia. No
teatro, toda invenção da mente – o que alguns chamam de mentira – pode se tornar realidade
concreta por meio da arte do ator e do dramaturgo.
Por fim, basta indicar que o texto grego aqui reproduzido está disponível, livre de
direitos autorais, no site Perseus Digital Library.22
Algumas pequenas modificações foram
feitas com base na edição crítica de Shirley A. Barlow. Essas modificações estarão indicadas
e justificadas ao longo dos comentários.
22
Disponível em: . Acesso em: 13 maio 2010.
18
TRADUÇÕES E COMENTÁRIOS
―Suspeitei muitas vezes que o sentido é, na verdade, algo acrescentado ao
verso. Tenho plena convicção de que sentimos a beleza de um poema antes
mesmo de começarmos a pensar num sentido.‖23
―Tal me parece o trabalho com a letra: nem calco, nem (problemática)
reprodução, mas atenção voltada para o jogo dos significantes.‖24
―L‘affinité entre traduire et mettre en scène, et même, que traduire est déjà
mettre en scène.‖25
A partir de agora, apresentaremos as traduções dos excertos escolhidos seguidas de
comentários. Os textos aparecerão aqui por ordem de entrada no texto de Eurípides, pois
assim poderemos fazer uma análise também do percurso dramático de Troianas, refletindo
sobre como a sequência desses textos também produz um efeito cênico.
Gostaríamos de lembrar que, antes de serem objeto de análise literária, os textos
dramáticos antigos são expressões artísticas de performances que aconteciam ao vivo. Textos
híbridos formulados para serem oralizados, embora fixados no suporte escrito. Assim, para
que o texto possa ser parte integrante do espetáculo, propomos o que chamamos de uma
tradução voltada para a encenação.
A tradução que propomos tem, portanto, como objetivo principal a encenabilidade. Ao
traduzir, pensamos em como esse texto serviria ao palco, como essas palavras seriam
pronunciadas por um ator e ouvidas pelo público, uma vez que ―não podemos esquecer que o
teatro é um processo de comunicação, cujo reconhecimento se faz através de uma articulação
simbólica específica, que permite uma relação de troca entre palco e platéia‖.26
Encarar a tradução como uma tentativa de (re)construção de um texto estrangeiro,
como uma atividade que se erige a partir da experiência27
nos deixa mais confortáveis para
propormos nossa tradução, ao mesmo tempo que ouvir de um ator experiente28
a relevância
que as traduções têm para as montagens de peças de teatro justifica e reafirma nossas
reflexões.
23
Borges. Esse ofício do verso, p. 89. Grifo do autor. 24
Berman. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, p. 16. 25
Meschonnic. Poétique du traduire, p. 394. 26
Chacra. Natureza e sentido da improvisação teatral, p. 85. 27
Berman. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. 28
Oida. O ator invisível.
19
Nossa tradução irá se apresentar em verso livre. Julgamos impossível a reprodução dos
metros gregos utilizados por Eurípides, pela simples diferença entre as línguas grega e
portuguesa (o verso grego é medido por duração, e o português, por sílabas). Entretanto, isso
não significa que não nos preocupamos com a forma do texto. Em geral, tentamos dar atenção
ao ritmo da fala, ao tamanho das palavras e às pausas – aqui representadas pela pontuação. A
estrutura versificada permite uma variedade maior de leituras do texto. Os enjambements
sugerem quebras abruptas no meio das frases. A posição das palavras no início, no fim ou no
meio dos versos confere maior ou menor importância a um vocábulo.
Embora nossa proposta seja para uma tradução em verso, fazemos questão de nos
preocuparmos com a clareza do conteúdo do poema. Isso não significa clarear passagens
obscuras no original ou explicar as metáforas criadas pelo poeta; entretanto, os trechos de
compreensão um pouco mais elaborada e indireta devem aparecer como qualidades do poema
e não como problemas na transposição de uma língua para outra. Nenhum leitor é capaz de
compreender uma obra por completo, desta forma, nenhuma tradução é capaz de abarcar um
texto inteiramente. Não há, aqui, a ilusão de podermos tornar a leitura de dramaturgia antiga
algo fácil. Pretendemos tornar essa leitura instigante. Não nos interessa facilitar o texto, mas
tornar as ―palavras aladas‖ compreensíveis para o espectador e imagéticas para atores e
diretores.
Cabe ainda dizer que um grande aliado de nossa tradução é o sistema de pontuação
contemporâneo. Buscamos, com o uso de sinais de pontuação, suprir a função das partículas
gregas – as quais, quando traduzidas uma a uma, tornam-se obstáculo para a fluência do texto
– e conferir emoção à palavra traduzida. Sinais como exclamações e reticências são capazes
de dirigir a fala de um ator, explicitar o tom do texto – às vezes muito claro no grego, pela
própria estrutura de casos e pelo farto sistema verbal dessa língua.
Além disso, nossa tradução tenta levar em conta o fato de que a sonoridade das
palavras é muito importante para o ator e, consequentemente, para o público. Sendo assim, a
escolha vocabular é toda voltada para o funcionamento daquele texto em cena, para que
sentimentos ele vai provocar no ator e no espectador. A seleção do vocabulário percorre
várias instâncias de análise: desde a posição que a palavra ocupa no português brasileiro (se é
corriqueira, se é vulgar, se é pouco usada, se é erudita, se se trata de um regionalismo) até sua
sonoridade no conjunto do verso. Procuramos ler o texto em voz alta, para escutarmos sua
melodia, para evitarmos cacofonias. Acreditamos que cada palavra não deve estar ali por
acaso.
20
Para nós, o mais importante na dramaturgia é a maneira como o texto interfere
diretamente na cena. Pretendemos compreender o ritmo e o tom do espetáculo por meio do
texto que chegou até nós. Por outro lado, tentamos, ao máximo, manter o tom metafórico do
texto, pois é isso que faz dele poema, e de seu autor poeta. É como se houvesse duas etapas no
processo de tradução. Primeiro o contato com o objeto texto, com sua textura, com sua
geografia. Nesse primeiro momento as palavras saltam do grego ao português e tentam
encontrar seu lugar nessa nova gramática. Em seguida ocorre o segundo momento: as palavras
desejam a cena e reivindicam o seu lugar no palco, reivindicam ação. Exige-se do tradutor
uma maleabilidade própria dos atores: assim como o ator veste as palavras de sua
personagem, o tradutor deve vestir as palavras de seu poeta. O texto não é o que idealizamos,
mas o que suas palavras constroem.
21
Cena 1
Poseidw=n Posêidon
3Hkw lipw\n Ai)/gaion a(lmuro\n ba/qoj Chego, ao deixar o salgado Egeu, fundo
po/ntou Poseidw=n, e)/nqa Nhrh/|dwn xoroi\ de mar, eu Posêidon. Lá onde os coros das Nereidas
ka/lliston i)/xnoj e)celi/ssousin podi/. giram com os pés as belíssimas sandálias.
e)c ou(= ga\r a)mfi\ th/nde Trwikh\n xqo/na Desde quando, em volta desta troiana terra
Foi=bo/j te ka)gw\ lai/+nouj pu/rgouj pe/ric 5 Febo e eu os muros de pedras em torno 5
o)rqoi=sin e)/qemen kano/sin, ou)/pot' e)k frenw=n levantamos, colocamos colunas... não mais do meu peito
eu)/noi' a)pe/sth tw=n e)mw=n Frugw=n po/lei: se afastou a afeição pela cidade dos Frígios.
h(\ nu=n kapnou=tai kai\ pro\j )Argei/ou doro\j Ela agora fumega, pela argiva lança
o)/lwle porqhqei=j': o( ga\r Parna/sioj destruída... foi sua ruína: pois Epeio,
Fwkeu\j )Epeio/j, mhxanai=si Palla/doj 10 nascido na Fócia do monte Parnaso, com o engenho de Palas 10
e)gku/mon' i(/ppon teuxe/wn cunarmo/saj, um cavalo fecundo de armas construiu:
pu/rgwn e)/pemyen e)nto\j o)le/qrion bre/taj: enviou para dentro dos muros a funesta estátua.
22
o(/qen pro\j a)ndrw=n u(ste/rwn keklh/setai (De onde, pelos homens futuros, será chamado
Dou/reioj (/Ippoj, krupto\n a)mpisxw\n do/ru. ―Cavalo de Pau‖, lanças ocultas protegendo.)
e)/rhma d' a)/lsh kai\ qew=n a)na/ktora 15 Desertos os bosques e os santuários dos deuses! 15
fo/nw| katarrei=: pro\j de\ krhpi/dwn ba/qroij Escorre morte: junto aos degraus do altar
pe/ptwke Pri/amoj Zhno\j e(rkei/ou qanw/n. de Zeus protetor, Príamo caiu morto.
polu\j de\ xruso\j Fru/gia/ te skuleu/mata Muito ouro e despojos Frígios
pro\j nau=j )Axaiw=n pe/mpetai: me/nousi de\ para as naus dos Aqueus são enviados. Esperam, então,
pru/mnhqen ou)=ron, w(j dekaspo/rw| xro/nw| 20 o favorável vento de popa. Assim, no tempo de dez colheitas, 20
a)lo/xouj te kai\ te/kn' ei)si/dwsin a)/smenoi, esposas e filhos contemplam felizes
oi(\ th/nd' e)pestra/teusan (/Ellhnej po/lin. os Helenos que marcharam contra esta cidade.
e)gw\ de/ nikw=mai ga\r )Argei/aj qeou= Eu então fui vencido pela argiva deusa
3Hraj )Aqa/naj q', ai(\ sunecei=lon Fru/gaj Hera e por Atena: elas ajudaram a destruir os Frígios.
lei/pw to\ kleino\n )/Ilion bwmou/j t' e)mou/j: 25 Eu deixo a gloriosa Ílion e os meus altares, 25
e)rhmi/a ga\r po/lin o(/tan la/bh| kakh/, pois quando a devastação covarde toma a cidade,
nosei= ta\ tw=n qew=n ou)de\ tima=sqai qe/lei. o honrar aos deuses adoece e não é desejado.
23
polloi=j de\ kwkutoi=sin ai)xmalwti/dwn Ressoa o rio Escamandro!
boa=| Ska/mandroj despo/taj klhroume/nwn. Muitos gemidos das cativas que são sorteadas pelos senhores:
kai\ ta\j me\n )Arka/j, ta\j de\ Qessalo\j lew\j 30 umas para os Arcádios, outras para o povo Tessálio, 30
ei)/lhx' )Aqhnai/wn te Qhsei=dai pro/moi. outras sorteadas para os primeiros dos Atenienses, os filhos de Teseu.
o(/sai d' a)/klhroi Trw|a/dwn, u(po\ ste/gaij Quantas das pobres troianas, sob esses tetos,
tai=sd' ei)si/, toi=j prw/toisin e)ch|rhme/nai estão para os principais do exército
stratou=, su\n au)tai=j d' h( La/kaina Tundari\j reservadas! Com elas está a filha de Tíndaro, a Lacônia
(Ele/nh, nomisqei=j' ai)xma/lwtoj e)ndi/kwj. 35 Helena, chamada cativa com justiça. 35
th\n d' a)qli/an th/nd' ei)/ tij ei)sora=n qe/lei, A miserável, esta aí, se alguém deseja ver,
pa/restin, (Eka/bhn keime/nhn pulw=n pa/roj, ela está presente, Hécuba, estendida diante do portão.
da/krua xe/ousan polla\ kai\ pollw=n u(/per: Lágrimas escorrem muitas... e por muita coisa:
h(=| pai=j me\n a)mfi\ mnh=m' )Axillei/ou ta/fou a filha, em torno da tumba em memória de Aquiles,
la/qra te/qnhke tlhmo/nwj Poluce/nh: 40 às ocultas, morreu com coragem: Polixena. 40
frou=doj de\ Pri/amoj kai\ te/kn': h(\n de\ parqe/non Está morto Príamo e os filhos. Aquela virgem,
meqh=k' )Apo/llwn droma/da Kasa/ndran a)/nac, Cassandra, o rei Apolo lançou em delírio;
24
to\ tou= qeou= te paralipw\n to/ t' eu)sebe\j abandonando o deus e a piedade,
gamei= biai/wj sko/tion )Agame/mnwn le/xoj. o leito sombrio de Agamêmnon, à força, com a virgem se casa.
a)ll', w)= pot' eu)tuxou=sa, xai=re/ moi, po/lij 45 Mas, quando prósperas, a cidade e a polida 45
cesto/n te pu/rgwm': ei)/ se mh\ diw/lesen fortificação me alegravam. Se Palas filha de Zeus
Palla\j Dio\j pai=j, h)=sq' a)\n e)n ba/qroij e)/ti. a ti não destruísse, ainda permaneceria em seu alicerce.
25
Temos nesse trecho a primeira parte do prólogo tripartido de Troianas (o
prólogo todo compreende a fala de Posêidon, o diálogo entre esse deus e Atena e ainda
o monólogo de Hécuba), quem fala é Posêidon, irmão de Zeus, um dos deuses
Olímpicos. Prestando um pouco mais de atenção, percebemos que há nos versos 1-2
uma mensagem subliminar interessante: o poeta diz de onde Posêidon vem – do salgado
Egeu, do fundo do mar –, mas ele também diz que Posêidon é o ―fundo do mar‖.
Eurípides começa sutilmente aludindo à mitologia que cerca a personagem, sem,
entretanto, cobrar um entendimento imediato do ouvinte. Quem conhece a mitologia
entende o trocadilho, quem não conhece não sente falta dessa informação.
O pronome ―eu‖, que consta na tradução, não aparece no texto grego.
Inicialmente, em uma primeira versão, não havíamos percebido a necessidade de
inclusão do pronome. Entretanto, quando o texto foi lido em voz alta pela atriz,
percebemos que os versos não ficaram claros. Não era possível entender, em uma
audição, que Posêidon era o sujeito do verbo ―chego‖, que o personagem estava
contando para o público qual era seu nome, quem ele era e de onde vinha, em tão
poucas palavras. Embora o verbo principal da oração esteja em primeira pessoa, h3kw
(héko), a ausência do pronome nos dá a sensação de que a personagem que fala refere-se a
uma terceira pessoa. Observamos que a simples inclusão do pronome pessoal da primeira
pessoa do singular esclarecia a dúvida sem explicar os versos do poeta e,
principalmente, sem desfazer o jogo de palavras que liga Posêidon ao mar. Concluímos
que a palavra ―eu‖ conferia dramaticidade ao texto, instaurava conflito e aproximava a
narrativa da plateia, o que nos parece essencial, pois estas são as primeiras palavras de
muitas que se seguirão ao longo do espetáculo. Caso, já no primeiro minuto, a plateia
tenha a sensação de que não consegue entender o que é dito, é possível que a atenção do
público fique prejudicada até o final do espetáculo, pois:
O momento inicial de uma peça é muito importante. Para os diretores, o
problema é como começar um espetáculo. Para o ator, a dificuldade é
colocar-se na frente do público logo no início. Este é um momento muito
difícil. Embora seja verdade que sair do palco também é algo que exige
astúcia, a aparição inicial é mais importante.29
Portanto, uma forte imagem é construída: quem entra em cena é o mar.
Reafirmando a óbvia entrada física da personagem, temos esse verso e meio que ajuda o
29
Oida. O ator invisível, p. 63.
26
ator a erigir sua aparição, que chama a atenção da plateia na tentativa de arrebatar esse
público que começa a assistir ao espetáculo.
Posêidon segue descrevendo como é o lugar de onde ele vem, e temos assim, na
metade do verso 2 e no verso 3, uma pintura que descreve como é o fundo do mar.
Acreditamos que não poderia haver dúvidas para os ouvintes que aquelas palavras
descreviam um lugar, mas esta era uma descrição metafórica. O poeta não diz que as
Nereidas dançam no fundo do mar, ele descreve o movimento que compõe a dança, e
isso para nós é muito relevante. Adotamos a lição que traz podi/ (podí) e não podo/j
(podós) porque o dativo nos possibilitou criar uma imagem concreta desse movimento
de dança. Desta forma, os pés são o instrumento para que as ―belíssimas sandálias‖
sejam rodopiadas e apareçam dançando. O vocábulo i)/xnoj (íkhnos) tem como uma de
suas últimas acepções ―sandália‖, ele significa, mais especificamente, ―pegada‖. A
escolha pela tradução como ―sandália‖ nos pareceu mais favorável ao espetáculo,
explicamos: para o público contemporâneo, ―Nereidas‖ pode ser uma palavra
absolutamente desconhecida, na tentativa de apontarmos um significado, de
oferecermos um ponto de referência ao espectador, traduzimos i)/xnoj (íkhnos) por
sandálias – ora, agora a plateia pode deduzir que as Nereidas têm forma humana, pois
usam sandálias, afinal, pegadas é uma palavra mais genérica, mais difícil de se
concretizar nesse contexto. O que queríamos era que as Nereidas dançassem no palco,
através das palavras, mas isso não seria possível se disséssemos, simplesmente, ―lá onde
as Nereidas dançavam‖; não foi por acaso que o poeta descreveu a dança: desta forma o
movimento é visualizado, concretizado. Além disso, o rodopio é um movimento muito
característico das águas do mar, ou seja, das ninfas água do mar.
Em seguida, a personagem descreve sua relação com o cenário em que ela se
encontra. A partícula dêitica th/nde (tende) indica que se trata do lugar onde a
personagem coloca os pés. Então sabemos de onde veio Posêidon, onde ele se encontra
e a relação de afeto que essa personagem tem com este cenário de ruínas e tristezas que
o público começa a perceber. Notamos o tom emotivo dos versos 4-7, que funcionam
como didascália, pois sem nenhum paratexto o dramaturgo indica o lugar no qual
acontece o drama, informação bastante relevante nesse espetáculo.
No verso 8, encontramos outra indicação para o encenador: Troia fumega. Há
vestígios de fogo em cena. E esse fogo nos parece importante, já que a fumaça estará,
igualmente a Hécuba, o tempo todo no palco. Essa fumaça é ícone do que já não é,
como Troia e Hécuba.
27
Os prólogos euripidianos são conhecidos por resumirem toda a história da
tragédia que se seguirá. Com este que analisamos agora não foi diferente. Esse prólogo
contextualiza o público: volta ao passado para explicar o presente. Assim, a derrocada
de Troia será contada por Posêidon e, enquanto ele narra os fatos, o público intera-se
tanto sobre o passado, quanto sobre o cenário que acaba de ser apresentado a ele.
Para a plateia das Grandes Dionisíacas, esse prólogo pode ser apenas um
refresco para a memória, mas para uma plateia contemporânea brasileira, as
informações são imprescindíveis a fim de que o espetáculo como um todo seja
compreendido, já que não compartilhamos mais dessa mitologia como algo comum ao
imaginário de todos. Ao contrário, para a grande maioria de espectadores de teatro nos
dias de hoje, a mitologia grega é algo que faz parte do universo da literatura acessada só
por uma determinada elite intelectual.
Assim, a narração da história da guerra entre gregos e troianos é feita muito
brevemente, por Eurípides, por meio da colagem de sucessivas imagens que
representam pontos da história: a deusa Palas, o cavalo de pau, os muros de Troia, as
lanças, o fogo. As informações são como flashes que iluminam a imaginação de quem
escuta o texto.
Entretanto, há um ponto crítico entre os versos 8-14: a referência ao construtor
do cavalo que transportou os gregos para dentro da cidade inimiga, Epeio, personagem
de nome praticamente desconhecido atualmente e citado por Eurípides sem maiores
explicações. Quer dizer, Epeio é referido como o ―fócio‖ e como o ―parnaso‖,
informações que não esclarecem nada a um público leigo em mitologia. Na literatura
grega, muitas personagens são especificadas pelo nome do pai ou pela cidade em que
nasceram. Entretanto, não se conhecendo mitologia, não é possível nem diferenciar o
nome de uma pessoa do nome de uma cidade. Deste modo, optamos por transformar os
qualificativos ―parnaso fócio‖ em ―nascido na Fócia do monte Parnaso‖. Perdemos
ritmo com o alongamento do verso, mas ganhamos clareza de informação, o que, aliás, é
a função primeira desse verso: esclarecer quem construiu o cavalo.
Já o verso 11 é mais uma tela de Eurípides. Nada informativas, as palavras ―um
cavalo fecundo de armas construiu‖ são uma belíssima metáfora com enorme força
imagética. Alusão rápida aos guerreiros dentro da barriga do cavalo, que carregavam
com eles a morte.
Os dois versos seguintes (vv. 13-14) – ―(De onde, pelos homens futuros, foi
chamado / ―Cavalo de Pau‖, lanças ocultas protegendo.)‖ – são uma explicação sobre o
28
cavalo. Barlow30
indica em seu comentário a Troianas que esses versos se tratariam de
uma interpolação, pois seria desnecessário Posêidon explicar a origem da alcunha
―Cavalo de Pau‖. Entretanto, consideramos essa passagem muito interessante, não nos
importando discutir quando ela foi incorporada ao texto, se se trata de um acréscimo ao
texto de Eurípides ou não. Afinal, ainda que sejam versos espúrios, a própria Barlow
não os elimina de sua edição do texto grego. Ademais, os versos retomam a metáfora,
explicitam-na sem tirar sua magia, pois aludem ao ―fruto do ventre do cavalo‖: lanças
ocultas.
Segue-se a descrição do fim de Troia, também com imagens rápidas e
impactantes (vv. 15-19). Se, como adjetivo para o cavalo, o poeta usa o termo e)gku/mon'
(enkýmon) – utilizado, em geral, como adjetivo de mulheres grávidas –, criando uma
nova associação entre palavras e, assim, conferindo destaque à informação, agora
Eurípides utiliza novamente o mesmo recurso, para ampliar e supervalorizar o que é
dito: ―Escorre morte‖. Poderíamos ter traduzido ―escorre sangue‖ – desfazendo a
metáfora –, mas a palavra fo/nw (phóno) está ligada aos termos morte e homicídio, que
por associação nos levam a pensar em sangue, mas não significa sangue. E, então,
descobrimos que a morte também pode ―escorrer‖, assim como o líquido sangue. O que
vem depois dessa morte que escorre: o rei de Troia, Príamo, está morto. Nesse momento
o público possui a imagem de Troia derrotada.
A imagem dos espólios de guerra sendo transportados para os navios helenos e a
organização do retorno à Grécia (vv. 18-22) alude a um final feliz para os gregos. Esse
tema será retomado logo adiante, quando descobrirmos que não será muito tranquila a
volta para casa, porque muitos morrerão durante a viagem, e outros, quando tornarem ao
lar, não terão boas notícias.
Posêidon segue contando o percurso de Troia para depois voltar ao presente, ao
aqui; ele diz, no presente, ―Ressoa o rio Escamandro!‖, trazendo o público de volta ao
que acontece no palco. Podemos supor que nesse momento todos ouvem os gritos das
mulheres, nesse caso a personagem que fala conduz a atenção para os lamentos que já
chegaram aos ouvidos do público.
Mais uma vez, nos versos 28-29, nos deparamos com uma referência geográfica
e mitológica que nos deteve e nos levou à reflexão:
30
―These lines look very much like an explanatory note by an earlier interpreter of the play. They are not
strictly necessary to Poseidon‘s speech. On the oddness of the language, particularly keklésetai, ‗it will
be called‘, see J.R. Wilson AJP 89 (1968), 66ff [The Etymology in Euripides’ Troades]. and Lee‘s
suggestion of an actor‘s interpolation‖ (Barlow. Introduction, p. 159).
29
A tradução é uma experiência que pode se abrir e se (re)encontrar na
reflexão. Mais precisamente: ela é originalmente (e enquanto experiência)
reflexão. Esta reflexão não é nem a descrição impressionista dos processos
subjetivos do ato de traduzir, nem uma metodologia.31
Quando nos deparamos com esta sequência de versos ―polloi=j de\ kwkutoi=sin
ai)xmalwti/dwn / boa=| Ska/mandroj despo/taj klhroume/nwn.‖ (polloîs dè kokytoîsin
aikhmalotídon / boâ Skámandros déspotas klérouménon) (vv. 28-29), fomos forçados a
diminuir o ritmo da tradução e refletirmos sobre a compreensão do texto de Eurípides,
sobre como agiríamos para que nossa tradução fosse compreensível, sem a adição de
notas de pé de página, as quais explicariam tais referências ao mundo antigo.
Gostaríamos que o texto bastasse por si só, já que o ator ou o diretor poderiam consultar
a nota explicativa, mas o espectador, sentado na cadeira do teatro, não teria essa chance.
A utilização do nome ―Escamandro‖ produz o mesmo efeito comentado anteriormente,
com o nome ―Epeio‖: o nome do rio não é facilmente reconhecido pelo público atual.
Da maneira como é utilizado pelo poeta, pode-se pensar, hoje em dia, que
―Escamandro‖ é uma pessoa, um guerreiro, uma localidade, um deus... Na antiguidade
não seria preciso maiores explicações, mas hoje essa referência tornou-se problemática.
No verso 29, do texto grego, não há a palavra rio. O poeta diz, somente, ―ressoa o
Escamandro‖, mas, em nossa tradução para o português, optamos por acrescentar a
palavra ―rio‖, que, de alguma maneira, explica o sentido do verso. Nossa opção se
justifica por acreditarmos que a imagem de um rio que ressoa com gritos de dor, um rio
que reverbera ecos úmidos de choros e lamentos, é muito bonita e seria uma pena
desperdiçá-la. É bem verdade que o nome do rio é uma onomatopeia, e podemos ouvir
na sequência de fricativas, líquidas, bilabiais suaves e explosivas suas águas se
movimentando. Entretanto, só acrescentando a palavra ―rio‖, poderíamos fazer o
público reconhecer em ―Escamandro‖ um rio, de fato, e não qualquer outra coisa.
Embora defendamos a tradução do ritmo e da poética do texto, é possível
perceber que, em uma tradução para a cena, muitas vezes não é possível abrir mão do
sentido do texto. Tentamos nos preocupar em indicar algum sentido sem explicitar
escancaradamente uma explicação. Como se pode ver, traduzir é uma busca constante
de caminhos intermediários; negociações em que aparentemente o tradutor sempre sai
perdendo.
31
Berman. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, p. 18.
30
Outra modificação que fizemos ao transpor o poema do grego para o português
foi alterar a ordem dos versos. Reorganizamos as informações dos versos 28-29, para
que não houvesse uma interrupção na fala, como acontece em grego. Literalmente, a
tradução seria: ―Muitos gemidos das cativas... / – ressoa o rio Escamandro! – que são
sorteadas pelos senhores‖. Porém, concluímos que essa quebra presente nos dois versos
prejudicaria o entendimento do texto quando oralizado. Tendo em vista que já tínhamos
uma referência mitológica de difícil identificação no meio dessa complicada sintaxe, a
atriz e diretora teatral julgou que os espectadores não conseguiriam entender o que
estava sendo dito, sobre o que a personagem estava falando.
O exemplo anterior foi a solução encontrada para um contexto específico, não se
tratando, assim, de uma regra ou um método que utilizamos sempre que a semântica
e/ou a sintaxe nos pareceu complicada. Por isso enfatizamos o caráter reflexivo desse
tipo de decisão e de nossa tradução como um todo. Cada verso, cada palavra nos
encaminha para soluções diferentes, não sendo possível estabelecer um padrão ou um
método. Preferimos caminhar junto com o poema – a cada passagem fizemos uma nova
descoberta, nos surpreendemos – e almejamos traduzir de forma que nosso leitor
também possa desfrutar, por meio de nossa tradução, as surpresas que Eurípides
preparou.
No verso 32 descobrimos que no cenário idealizado por Eurípides existiam as
barracas onde as cativas – o Coro – estavam recolhidas. Mais um bom exemplo de que
textos dramáticos como os das tragédias antigas abarcam não só o conteúdo do que será
dito pelos atores, mas prescrevem ações, cenário, música etc., de maneira que a
totalidade de significantes e significados desses textos só é expressa quando se torna
ação viva no palco.
Já nos versos 34-35, que colocam Helena pela primeira vez no espetáculo,
usamos a mesma estratégia que utilizamos para traduzir os versos 9-10, que explicavam
quem era Epeio. Helena é, sem dúvida alguma, uma figura mitológica muito mais
conhecida que Epeio, mas os adjetivos ―Lacônia‖ e ―tindária‖ soam vazios de sentido
para a plateia que estamos levando em consideração, ainda mais colocados um ao lado
do outro, em sucessão. ―Tindária‖, então, tornou-se ―filha de Tíndaro‖ sendo possível,
sem maiores prejuízos, manter ―Lacônia‖ da maneira como aparece no texto em grego.
Pois, o vocábulo ―Lacônia‖ vem seguido imediatamente do nome de Helena, não
deixando dúvidas de que se trata de um adjetivo. Assim, ainda que o ouvinte não
conheça o significado do vocábulo, ele pode compreender a função daquela palavra na
31
frase. Substituir ―Lacônia‖ por ―nascida na lacônia‖ alongaria por demais o verso já
alongado pelo desdobramento do adjetivo ―tindária‖. Opções de tradução.
A seguir nossa atenção é chamada para a presença de mais uma personagem em
cena: ―A miserável, esta aí, se alguém deseja ver, / ela está presente, Hécuba, estendida
diante do portão‖ (vv. 36-37). Nesse exato ponto do prólogo, todo o cenário da ação e as
personagens que já estão em cena nos foram indicados pelo poeta. Pensando em uma
montagem nos dias de hoje, poderíamos imaginar os focos de luz se acendendo, um a
um: sobre as barracas, sobre Hécuba – que provavelmente já estava em cima do palco
desde o início do espetáculo; também imaginamos os gritos das cativas. E o que é mais
impressionante: o texto com o qual estamos trabalhando não possui nenhuma rubrica
sequer. Todas as direções de cena estão embutidas no poema:
Uma palavra não começa sendo uma palavra – é o produto final iniciado com
um impulso, estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados
pela necessidade de expressão. Este processo acontece dentro do dramaturgo.
E é repetido dentro do ator. Ambos talvez estejam apenas conscientes das
palavras. Mas tanto para o autor, como depois para o ator, a palavra é a
pequena porção visível de um conjunto invisível. Alguns escritores tentam
ressaltar suas intenções com rubricas e explicações. Entretanto não podemos
deixar de nos surpreender com o fato de que os melhores dramaturgos não se
explicavam muito.32
No intervalo dos versos 38-44, a pontuação foi importantíssima para a
organização do turbilhão de informações listadas por Posêidon, como um breve resumo
sobre o que aconteceu ou acontecerá com as personagens que logo entrarão em cena.
Usamos os sinais de ―dois pontos‖, ―vírgula‖, ―ponto e vírgula‖ e ―ponto final‖ em
abundância, o que não acontece com a edição do texto grego utilizada por nós. A
verdade é que, para se construir um texto elaborado por pausas e entonações, em grego,
não é preciso o uso de muitos sinais de pontuação, porque eles são substituídos pelas
partículas, as quais imprimem ritmo ao texto, organizam a sintaxe, esclarecendo a
semântica. Em português é indispensável a liberdade de pontuar os versos traduzidos do
grego, do contrário produziríamos um texto amorfo, sem vida, dificílimo de ser
oralizado e de ser compreendido por quem lê e, ainda mais, por quem ouve.
Além do uso da pontuação, para o melhor entendimento do verso 44, retomamos
a informação de que é com ―a virgem‖ Cassandra que o ―leito sombrio de Agamêmnon‖
se casa. O poema em grego não retoma essa informação, mas a característica sintética
32
Brook. O teatro e seu espaço, p. 5.
32
da língua grega permite que isso esteja subentendido, em português o verso não faz
sentido sem o esclarecimento.
Terminado esse trecho do prólogo, o monólogo de Posêidon. Andemos com o
espetáculo.
33
Cena 2
Xoro/j Coro
ai)ai= ai)ai=, poi/oij d' oi)/ktoij Aiai, aiai... com que prantos
ta\n sa\n lu/man e)caia/zeij; geme sua perda?
ou)k )Idai/oij i(stoi=j kerki/da Não com teares troianos o bastão
dineu/ouj' e)calla/cw. 200 volteando altearei. 200
ne/aton teke/wn sw/mata leu/ssw, Por último, dos filhos os corpos vejo...
ne/aton . . . Por último...
mo/xqouj e(/cw krei/ssouj, Dores terei mais fortes:
h)\ le/ktroij plaqei=j' (Ella/nwn ou dos leitos dos Helenos me aproximando...
e)/rroi nu\c au(/ta kai\ dai/mwn. (que se vá esta noite e este destino!)
h)\ Peirh/naj u(dreusome/na 205 ou carregando, da Pirene, a água, 205
pro/spoloj oi)ktra\ semnw=n u(da/twn. escrava lamentável de sacras águas.
ta\n kleina\n ei)/q' e)/lqoimen Tomara que fôssemos para a ilustre
34
Qhse/wj eu)dai/mona xw/ran. e feliz terra de Teseu!
mh\ ga\r dh\ di/nan g' Eu)rw/ta, 210 E não para o redemoinho do Eurota: 210
ta\n e)xqi/stan qera/pnan (Ele/naj, odioso domicílio de Helena.
e)/nq' a)nta/sw Mene/la| dou/la, Lá, eu escrava me defrontaria com Menelau
tw=| ta=j Troi/aj porqhta=|. — o saqueador de Troia.
ta\n Phneiou= semna\n xw/ran, De Peneu a sacra terra,
krhpi=d' Ou)lu/mpou kalli/stan, 215 base do Olimpo, a mais bonita, 215
o)/lbw| bri/qein fa/man h)/kouj' ouvi o augúrio que carrega feliz
eu)qalei= t' eu)karpei/a|: fertilidade e floresce:
ta/de deu/tera/ moi meta\ ta\n i(era\n para esta segunda, para mim, depois da divina
Qhse/wj zaqe/an e)lqei=n xw/ran. terra sublime de Teseu, ir.
kai\ ta\n Ai)tnai/an (Hfai/stou 220 E também para o Etna de Hefesto, 220
Foini/kaj a)nth/rh xw/ran, diante da terra Fenícia,
Sikelw=n o)re/wn mate/r', a)kou/w mãe da montanhosa Sicília, escuto
karu/ssesqai stefa/noij a)reta=j. anunciar com coroas as virtudes.
35
ta/n t' a)gxisteu/ousan ga=n E a terra que é vizinha
† )Ioni/w| nau/tai po/ntw|, † 225 — para o marinheiro do mar Jônio — 225
a(\n u(grai/nei kallisteu/wn aquela banhada pelo deslumbrante,
o( canqa\n xai/tan pursai/nwn o dourado, o de ruivos cabelos longos:
Kra=qij zaqe/aij phgai=si tre/fwn o rio Crátis, que com divinas fontes alimenta
eu)/andro/n t' o)lbi/zwn ga=n. bons homens e próspera terra.
kai\ mh\n Danaw=n o(/d' a)po\ stratia=j 230 Mas como? Do exército dos Dânaos, este 230
kh=ruc, neoxmw=n mu/qwn tami/aj, arauto, diretor de renovadas palavras,
stei/xei taxu/poun i)/xnoj e)canu/wn. marcha deixando pegadas de rápidos pés.
ti/ fe/rei; ti/ le/gei; dou=lai ga\r dh\ O que traz? O que fala? Escrava, pois, então,
Dwri/doj e)sme\n xqono\j h)/dh. da terra dos Dórios já somos.
36
Antes de começarmos a comentar o excerto, precisamos contextualizá-lo no
conjunto do espetáculo. Imediatamente antes dessa ode do Coro, Posêidon diz que os
gregos terão problemas ao voltar para casa, que ele próprio provocará tempestades e
grandes ondas para naufragar inúmeros navios. Sendo assim, muitas das troianas que
agora compõem o Coro, morrerão no mar, antes de alcançarem a Grécia, junto com seus
senhores gregos. O que quer dizer que a suposta desgraça, a que julgam maior – tornar-
se escrava – nem chegará a acontecer, pois essas mulheres não tardam em encontrar a
morte.
Seguindo a última fala de Posêidon, Hécuba inicia um longo texto, em que
descreve sua condição de rainha derrotada, velha humilhada e solitária. São palavras de
dor e tristeza. Hécuba alude à derrota de Troia, à morte dos filhos, ao seu estado físico
deplorável, mas fala também de sua nova condição social: escrava. A rainha troiana
mostra-se preocupada com sua escravidão.
Influenciado pela fala de Hécuba, o Coro também começa a lamentar o futuro
escravizado na Grécia. Assim inicia-se um diálogo entre a rainha troiana e as outras
cativas, que culmina na ode apresentada anteriormente, em tradução nossa. O diálogo
gira em torno da expectativa de serem sorteadas e embarcarem para a Grécia. O medo, a
ansiedade e a curiosidade com relação ao futuro são os sentimentos colocados em
evidência nesse momento do espetáculo. Cria-se uma expectativa com relação à nova
vida: os sentimentos são misturados, todas as mulheres estão tristes por serem, agora,
escravas, mas já tentam imaginar essa nova vida de cativa. Entretanto, há uma sutil
nuvem de crueldade ao redor da conversa, a maioria dessas mulheres que morrerão
antes de conhecer a Grécia ou de cumprir função de escrava canta sua dor em vão, ou
canta-a porque o poeta deseja que a plateia as perceba como ingênuas... Elas não sabem
o que está por vir.
Então um pensamento aflora: seria melhor permanecer vivo e escravo,
carregando todas as cicatrizes da guerra, ou morrer prematuramente?33
Esse
questionamento é lançado ao público do espetáculo talvez para reafirmar a condição de
vítima compartilhada por todos os envolvidos no conflito. Tanto quem morre quanto
33
―Antes ser na terra escravo de um escravo
Do que ser no outro mundo rei de todas as sombras‖
(Homero. Odisséia.)
Antes ser sob a terra abolição e cinza
Do que ser neste mundo rei de todas as sombras
(Andresen. Paráfrase. O nome das coisas.)
37
quem continua vivo, tanto os vencidos como os vencedores, todos são vítimas de
guerra.
É nesse contexto que se inserem os versos 197-234, um canto que narra o futuro
idealizado, as expectativas das mulheres troianas com relação ao novo mundo que as
espera. Esses versos vêm para diluir a angústia das personagens que temem os próximos
acontecimentos e também para refrescar o público, que a essa altura já compartilha das
dores dilacerantes das mulheres. Entretanto, veremos que a ode tem função ilusionista,
já em seus últimos versos a realidade volta a aparecer concretamente, em um presente
avassalador.
Imagens lindas são criadas pelo poeta ao descrever as cidades, sua geografia,
suas águas; palavras doces e agradáveis são ditas. Existe felicidade nesse mundo
longínquo, e quase somos capazes de esquecer que a vida futura será uma vida de
escravidão.
A ode começa com gemidos (vv. 197-198), dando continuidade ao tom do
diálogo que a precede. Os dois versos seguintes, em uma primeira leitura, nos
pareceram difíceis de serem entendidos, mesmo relacionando-os com o contexto ou
tentando compreendê-los individualmente. Para chegarmos à tradução que
apresentamos aqui, foi necessário um percurso tanto para compreender o grego quanto
para perceber a função desses dois versos (―Não com teares troianos o bastão /
volteando altearei.‖). Essas palavras são o começo de uma transição que acarretará a
mudança do tom de lamento para um tom reflexivo, lírico. A imagem doméstica das
mulheres tecendo, juntamente com a descrição do movimento circular dos bastões,
sugere o início de uma dança que ilustra o momento da modificação do destino, a
peripécia, para Troia e suas mulheres.
Demoramos a entender que não era necessário esses versos carregarem um
significado claro, de apreensão imediata pelo espectador:
...ocorre-me uma metáfora de um poeta grego de Alexandria. Ele escreveu
sobre a ―lira da noite tríplice‖. A impressão que tenho é a de um verso
poderoso. Ao consultar as notas, descobri que a lira era Hércules, e que
Hércules fora concebido por Júpiter numa noite que teve a duração de três
noites, de modo que o prazer do deus pudesse ser vasto. Essa explicação é um
tanto irrelevante; aliás, talvez prejudique o verso. Ela nos fornece uma
pequena anedota e subtrai algo daquele maravilhoso enigma, ―a lira da noite
38
tríplice‖. Isso há de bastar – o enigma. Não precisamos decifrá-lo. O enigma
está ali.34
O bastão do tear, que volteia de lá para cá, é o nosso enigma. O mais relevante
aqui é o tom poético e metafórico das palavras, o qual nos leva a imaginar uma dança
circular executada pelo Coro. O poder desses versos está em sua obscuridade e na
insegurança que é, para as coreutas, o futuro que a plateia bem conhece. A obscuridade
força que a compreensão aconteça com todos os nossos sentidos e não com o intelecto
somente. O movimento corporal dos atores que fazem parte do Coro é mais relevante
para o público do que o significado da frase: Eurípides faz peripécia hiperbólica, no
revés do destino, no movimento dos teares, na provável movimentação do corpo. Por
meio de um canto que se inicia acompanhado de uma dança, conseguimos fazer a
transição, que identificamos há pouco, de um tom lamentoso – com gemidos e gritos e
palavras exaltadas – para um clima reflexivo que será o caminho para introduzir as
idealizações sobre o futuro.
O verso 200 possui mais de uma versão. Barlow adota toke/wn dw/mata (tokéon
dómata) (a casa dos pais), mas indica no aparato crítico a opção teke/wn sw/mata
(tekéon sómata) (corpos dos filhos) como uma lição também encontrada para esse
verso. Para justificar sua escolha, a estudiosa argumenta que não há corpos mortos em
cena que o Coro possa ver, mas pode haver o cenário de ruínas de uma casa, e este sim
poderia ser literalmente visto pelas personagens e pela plateia. Entretanto, julgamos
cenicamente mais impactante a lição que diz ―Por último, dos filhos os corpos vejo...‖
(v. 201), porque a alusão a corpos mortos tem maior capacidade de atingir a plateia do
que um cenário de um palácio em ruínas.
Não é importante a ausência dos corpos caídos no palco, pois com as palavras
das mães, que pisam o chão onde seus filhos foram mortos e enterrados, os cadáveres
aparecem como num passe de mágica para os espectadores. O solo troiano é todo
recheado por corpos mortos, e o palco do teatro representa o solo sangrento da cidade
dos vencidos. Na verdade, se houvesse cadáveres em cena o dramaturgo pecaria por
excesso. Não falta nada para que a lição teke/wn sw/mata (tekéon sómata) (corpos dos
filhos) seja adotada por nós. Pungente é a imagem das mães olhando a terra na qual
jazem seus filhos, como se os olhassem pela última vez. Muito mais comovente do que
a imagem da casa paterna que cai por terra.
34
Borges. Esse ofício do verso, p. 93.
39
Os versos 202-206 reafirmam o triste destino das troianas, concubinas e escravas
que fazem trabalho pesado. Aqui temos o ápice da dor e o momento da transição. É
como se, ao vislumbrarem-se na cama dos gregos ou carregando a água na cabeça, a dor
se tornasse insuportável, e, então, neste momento, o canto muda de tom e começa a
descrever as belas e felizes cidades gregas. Este é um claro ponto de fuga: quando o
sofrimento atinge o ponto máximo, o poeta muda de rumo, levando seu público para um
lugar mais agradável.
Eurípides começa descrevendo Atenas, como ―a ilustre e feliz terra de Teseu‖
(vv. 207-208). Essa rápida alusão à cidade já é suficiente para agradar ao público
ateniense que assistia às Grandes Dionisíacas. Na verdade, aqui temos uma alusão à
situação política da Grécia, porque, logo depois de elogiar Atenas, Eurípides deprecia
Esparta (vv. 210-211), dizendo ser um lugar para o qual as troianas não desejam ir. A
referência às divergências entre Esparta e Atenas é velada, o poeta associa a depreciação
de Esparta à figura de Helena, desviando a atenção do público para o conflito que
acontece na ocasião da primeira representação da peça.
Cabe lembrar que a referência política que acabamos de indicar pode não ser
identificada pelo espectador contemporâneo de teatro. Mas não vemos problemas nisso,
pois a função de retirar público e personagens do cenário opressor continua em
evidência mesmo para quem não reconhecer nesses versos a rixa entre Atenas e Esparta.
Encontramos, a partir do verso 98, palavras como du/sdaimon, mele/a|, du/sthnoj,
baruda/imonoj, oi0ktrw=j, ai0a/zwmen, qroei=j, tla/mwn, deilai/a (dýsdaimon, meléa,
dýstenos, barydáimonos, oiktrôs, aiázomen, throeîs, tlámon, deilaía). Listamos aqui
somente uma forma para cada vocábulo, pois eles se repetem mais de uma vez em casos
diferentes, relacionando-se com palavras diversas. Verificamos uma grande variedade
vocabular que gira em torno do significado de ―infeliz‖, ―desgraçado‖, ―desafortunado‖,
―lamentar‖, ―gemer‖.
Entretanto, subitamente, quando chegamos ao verso 214, palavras de outra
instância semântica começam a ser utilizadas pelo poeta, de maneira insistente e
concentrada em 15 versos apenas. A partir do verso 214, encontramos diversos
vocábulos com significados positivos, confirmando a mudança de tom da ode e
contrastando com o que vinha sendo construído pelo poeta até este momento do
espetáculo. Esse vocabulário é usado para descrever e adjetivar as cidades gregas para
as quais as troianas gostariam de ir: semna\n, kalli/stan, o)/lbw, eu)qalei, eu)karpei/a,
i(era\n, zaqe/an, a)reta=j, kallisteu/wn, zaqe/aij, o)lbi/zwn (semnàn, kallístan, ólbo,
40
euthalei, eukarpeía, ieràn, zathéan, aretâs, kallisteúon, zatéais, olbízon). São 11
palavras com sentido leve e positivo, reunidas em 15 versos de grande lirismo e em
muitas imagens de paisagens que são descritas como que em retratos.
Uma geografia desconhecida pelas personagens é narrada por elas com detalhes,
como se já estivessem estado naqueles lugares. As palavras provam com esses versos a
sua enorme potência: somos transferidos para cidades com rios luminosos, fontes
abundantes e terra fértil. Na Grécia longínqua, ninguém tem fome nem sede, há sol, há