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I – A transposição do Direito comunitário dos mercados de valores mobiliários justifi- cou, primeiro com o Código do Mercado de Valores Mobiliários e mais recentemente com o Código de Valores Mobiliários, que a lei nacional acolhesse um dever de infor- mação sobre factos relevantes por parte dos emitentes de acções, de obrigações e de ou- tros valores representativos de dívida ad- mitidos à negociação em bolsa. De facto, em transposição da Directiva 2001/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Maio de 2001 2 , atenda- se, quanto a este dever de informação, ao artigo 248.º do Código dos Valores Mobi- liários 3 : ARTIGO 248.º Factos relevantes 1 – As sociedades emitentes de acções admi- tidas à negociação informam imediatamente o público sobre quaisquer factos ocorridos na sua esfera de actividade que não sejam do co- nhecimento público e que, devido à sua inci- dência sobre a situação patrimonial ou finan- ceira ou sobre o andamento normal dos seus negócios, sejam susceptíveis de influir de ma- neira relevante no preço das acções. 2 – Os emitentes de obrigações ou de outros valores mobiliários representativos de dívida admitidos à negociação informam imediata- mente o público sobre quaisquer factos ocorri- O DEVER DOS EMITENTES DE V ALORES MOBILIÁRIOS ADMITIDOS À NEGOCIAÇÃO EM BOLSA DE INFORMAR SOBRE F ACTOS RELEVANTES GONÇALO CASTILHO DOS SANTOS 1 1. DEVER DE INFORMAÇÃO SOBRE FACTOS RELEVANTES: OBJECTO E FUNDAMENTO ___________________________________________ 1 Assistente-estagiário na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenador-Executivo do Gabinete de Relações Internacionais da CMVM. As opiniões expressas no texto são estritamente pessoais e não podem ser entendidas como manifestações do en- tendimento da CMVM sobre as matérias em causa. O presente texto traduz alguns desenvolvimentos em relação à comunicação apresentada ao 6.º Curso de Pós-Gra- duação em Direito dos Valores Mobiliários, Instituto dos Valores Mobiliários da Faculdade de Direito da Univer- sidade de Lisboa, em Fevereiro de 2002, a qual, no essencial, mantemos nesta publicação. Dedico, com saudade amiga, as linhas que se seguem à generosidade, alegria, coragem e inteligência que sempre encontrei na Dr.ª Mafalda Gouveia Marques. 2 Esta Directiva veio codificar uma série de Directivas relevantes na área da prestação de informação nos mercados de valores mobiliários, de onde se destaca, porque constitutiva do dever de informação de que nos ocupamos, a Di- rectiva n.º 79/279/CEE, de 5 de Março de 1979. Veremos, de seguida, que são os artigos 68.º (acções) e 81.º (obriga- ções) da Directiva n.º 2001/34/CE que, no plano comunitário, justificam o artigo 248.º do Código dos Valores Mo- biliários. 3 De seguida, a enunciação de preceitos legais que não surja acompanhada de referência ao diploma respectivo re- porta-se ao Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, com as al- terações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 61/2002, de 20 de Março.

EVER DE INFORMAÇÃO SOBRE FACTOS RELEVANTES OBJECTO E … · 2014-03-08 · fesa e criação de mercado, Almedina, Coimbra, 2001, maxime pp. 41-47. No plano da bibliografia estrangeira,

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I – A transposição do Direito comunitáriodos mercados de valores mobiliários justifi-cou, primeiro com o Código do Mercado deValores Mobiliários e mais recentementecom o Código de Valores Mobiliários, quea lei nacional acolhesse um dever de infor-mação sobre factos relevantes por parte dosemitentes de acções, de obrigações e de ou-tros valores representativos de dívida ad-mitidos à negociação em bolsa.

De facto, em transposição da Directiva2001/34/CE do Parlamento Europeu e doConselho, de 28 de Maio de 20012, atenda-se, quanto a este dever de informação, aoartigo 248.º do Código dos Valores Mobi-liários3:

ARTIGO 248.ºFactos relevantes

1 – As sociedades emitentes de acções admi-tidas à negociação informam imediatamente opúblico sobre quaisquer factos ocorridos nasua esfera de actividade que não sejam do co-nhecimento público e que, devido à sua inci-dência sobre a situação patrimonial ou finan-ceira ou sobre o andamento normal dos seusnegócios, sejam susceptíveis de influir de ma-neira relevante no preço das acções.

2 – Os emitentes de obrigações ou de outrosvalores mobiliários representativos de dívidaadmitidos à negociação informam imediata-mente o público sobre quaisquer factos ocorri-

O DEVER DOS EMITENTES DE VALORES MOBILIÁRIOS ADMITIDOS

À NEGOCIAÇÃO EM BOLSA DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES

GONÇALO CASTILHO DOS SANTOS 1

1. DEVER DE INFORMAÇÃO SOBRE FACTOS RELEVANTES: OBJECTO E FUNDAMENTO

___________________________________________

1 Assistente-estagiário na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenador-Executivo do Gabinetede Relações Internacionais da CMVM.As opiniões expressas no texto são estritamente pessoais e não podem ser entendidas como manifestações do en-tendimento da CMVM sobre as matérias em causa.O presente texto traduz alguns desenvolvimentos em relação à comunicação apresentada ao 6.º Curso de Pós-Gra-duação em Direito dos Valores Mobiliários, Instituto dos Valores Mobiliários da Faculdade de Direito da Univer-sidade de Lisboa, em Fevereiro de 2002, a qual, no essencial, mantemos nesta publicação. Dedico, com saudade amiga, as linhas que se seguem à generosidade, alegria, coragem e inteligência que sempreencontrei na Dr.ª Mafalda Gouveia Marques. 2 Esta Directiva veio codificar uma série de Directivas relevantes na área da prestação de informação nos mercadosde valores mobiliários, de onde se destaca, porque constitutiva do dever de informação de que nos ocupamos, a Di-rectiva n.º 79/279/CEE, de 5 de Março de 1979. Veremos, de seguida, que são os artigos 68.º (acções) e 81.º (obriga-ções) da Directiva n.º 2001/34/CE que, no plano comunitário, justificam o artigo 248.º do Código dos Valores Mo-biliários.3 De seguida, a enunciação de preceitos legais que não surja acompanhada de referência ao diploma respectivo re-porta-se ao Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, com as al-terações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 61/2002, de 20 de Março.

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28 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

dos na sua esfera de actividade que não sejamdo conhecimento público e que sejam suscep-tíveis de afectar de maneira relevante a capa-cidade de cumprir os seus compromissos.

3 – A prestação de informação sobre factosrelevantes que não seja completa, verdadeira,clara e objectiva é considerada facto relevante.

Em linha com a arrumação sistemáticada Directiva n.º 2001/34/CE (e anterior-mente da Directiva n.º 79/279/CE), respec-tivamente artigos 68.º e 81.º, o preceito doCódigo reparte, nos seus dois primeiros nú-meros, sucessivamente, a disciplina do de-ver de informação a cargo do emitente deacções e do emitente de valores mobiliáriosrepresentativos de dívida.

A lei esclarece, além de quem seja oobrigado ao dever (o emitente) e o destina-tário da informação que o justifica (o públi-co), não só o momento em que o dever éoponível (imediatamente4), como sobretudoo objecto do dever de informar: conjuntode factos com determinadas características

relacionadas com a sua incidência sobre aactividade do emitente e com potencial “in-fluência relevante” ora no preço das acções,ora na capacidade de cumprir os compro-missos resultantes da emissão de dívida.

É flagrante que, com o recurso a cláusu-las indeterminadas5 e à convocação de juí-zos de prognose6, importa densificar oscontornos deste dever de informação, de-signadamente assentando na delimitaçãodo respectivo âmbito e, para isso, analisan-do o tipo de informação elegível para inte-grar o anúncio pressuposto pelo dever (nãosó, bem entendido, os “factos” referidos nosn.os 1 e 2, mas também a “informação”mencionada no n.º 3).

II – O tema da transparência no contex-to do funcionamento dos mercados de va-lores mobiliários tem merecido a assíduaatenção por parte da doutrina nacional es-pecializada7, desde logo, como emanaçãode um estruturado enquadramento legal eregulamentar e de uma paulatina, mas fir-

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4 Fora das jurisdições crismadas com o dever de comunicação “imediato” ex vi da Directiva, encontramos a estipu-lação de cláusulas que reiteram a urgência da divulgação, mas que permitem a flexibilidade possível assacadas a um“logo que possível” ou “o mais rapidamente possível”. A título de curiosidade, a Securities and Exchange Commis-sion propôs, em 2002, o encurtamento do prazo para a divulgação dos factos constantes da já referida Form 8-k paradois dias úteis.5 A comunicação “imediata”, o carácter “não público” da informação em causa, o conceito de “facto ocorrido” emdeterminado círculo de interesses, o impacto sobre o andamento “normal” dos negócios e ainda a influência “rele-vante” do facto. Veja-se, adicionalmente, a qualificação informativa constante do n.º 3 do artigo 248.º (completude,verdade, clareza e objectividade).6 Note-se que quer no n.º 1, quer no n.º 2 do artigo 248.º, a lei manda atender à susceptibilidade do facto vir a in-fluir no preço das acções ou na capacidade do emitente em cumprir determinados compromissos. No entanto, veja--se ainda que o n.º 1, complementarmente, postula ora a ponderação da incidência do facto sobre a situação patri-monial ou financeira (actual e futura), ora, aí numa alusão prognóstica ainda mais clara, a incidência sobre “o an-damento normal” dos negócios.7 Cf., nomeadamente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Parecer Sobre a Privatização da Sociedade Financeira e Ví-cios Ocultos. Das pretensões de reparação”, AAVV, in Privatização da Sociedade Financeira Portuguesa, LEX, Lis-boa, 1995, pp. 148 e ss.; MARIA JOÃO VILAR (e OUTROS), A Importância da Informação no Mercado de Valores Mobi-liários, Associação Portuguesa para o Desenvolvimento do Mercado de Capitais, Lisboa, 1996, pp. 25 e ss.; CARLOS

OSÓRIO DE CASTRO, “A Informação no Direito do Mercado dos Valores Mobiliários”, in Direito dos Valores Mobi-liários, LEX, Lisboa, 1997, pp. 333-347; AMADEU FERREIRA, Direito dos Valores Mobiliários (Sumários das lições da-das ao 5.º ano), AAFDL, Lisboa, 1997, pp. 40-41 e, maxime, pp. 333-337; PAULO CÂMARA, “Os deveres de informa-ção e a formação de preços no mercado de valores mobiliários”, Separata dos CadMVM, 1998, pp. 79-93; GONÇA-LO CASTILHO DOS SANTOS, O direito de informação sobre factos relevantes pela sociedade cotada, AAFDL, Lisboa,1998; MAFALDA GOUVEIA MARQUES/MÁRIO FREIRE, “A informação no mercado de capitais”, in CadMVM, n.º 3(segundo semestre 1998), pp. 111 e ss.; SOFIA NASCIMENTO RODRIGUES, A protecção dos investidores em valores mo-

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me, prática jurisprudencial nacional na tu-tela do direito do investidor à informaçãomobiliária relevante8.

A informação, enquanto exposição deuma dada situação de facto9, é habitualmen-te assumida no cerne da formação dos pre-ços no mercado de valores mobiliários e,dessa forma, reconduzida à prossecução daeficiência desse mesmo mercado enquantofactor de credibilidade e, por isso, de regu-laridade da negociação dos valores mobiliá-rios. Assim, a informação disponível, quese espera esteja incorporada no preço se-

gundo o qual o valor mobiliário é negocia-do, desempenha um papel crucial no pro-cesso de incremento da circulação da rique-za por via da canalização da poupança parao investimento e deste para os factores deprodução propriamente ditos.

Habitualmente, é assumida uma propor-cionalidade directa entre o acesso efectivo,equitativo e, em geral, adequado à infor-mação relevante para fundamentar deter-minada decisão de (des)investimento e acredibilidade, logo desenvolvimento, dosmercados de valores mobiliários10.

O DEVER DOS EMITENTES DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES : 29

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biliários, Almedina, Coimbra, 2001, maxime pp. 37-51; ALEXANDRE BRANDÃO DA VEIGA, Crime de manipulação, de-fesa e criação de mercado, Almedina, Coimbra, 2001, maxime pp. 41-47. No plano da bibliografia estrangeira, a va-riedade é impressiva. Permitimo-nos destacar apenas algumas obras representativas ora porque oriundas de orde-namentos jurídicos matriciais no tratamento desta matéria, ora porque reveladoras de um específico enfoque cominteresse especial: acentuando o pendor de “bem público” no que tange à informação disponibilizada em mercado,PAOLO CARBONE, “Il ruolo della Consob ed i nuovi doveri di informazione”, in Revista del diritto commerciale e deldiritto generale delle obbligazioni, Editrice Dr. Francisco Vallardi, 1992, pp. 649 e ss.; para uma articulação entre ainformação societária e a informação mobiliária, cf. FERNANDO GARACH, La Información en la Sociedad Anonima yel Mercado de Valores, Civitas, Madrid, 1993; também nesse sentido, cf. VINCENZO MEZZACAPO, “Informazione so-cietaria e adempimenti iniziali nell’amministrazione staordinaria di banche, emprese assicurative e dintorni”, inRevista del diritto commerciale e del diritto generale delle obbligazioni, Editrice Dr. Francisco Vallardi, n.ºs 7-8, Julho-Agosto 1995, p. 509-527; clássicos nesta matéria, no panorama germânico, cf., por todos, KLAUS HOPT, “Insider Re-gulation and Timely Disclosure”, in Forum Internationale, nº 21, Janeiro de 1996; e CARSTEN CLAUSSEN, Inside-rhandelsverbot und Ad hoc-Publizität, Verlag Dr. Otto Schmidt, Colónia, 1996, pp. 74-91; para uma análise da “der-rogação” da informação interna societária face à “externalização” do acesso ao mercado pelo emitente de valoresmobiliários, cf., com interesse, RENZO COSTI, “Società mercato e informazione societaria”, in Giurisprudenza Com-merciale, 24.2., Março-Abril 1997, pp. 175-185; em geral, no Direito italiano, para análise detalhada do artigo 116.ºdo testo unico, estabelecendo um diálogo interessante com a prática do full diclosure norte-ameripano e Listing Rulesda bolsa londrina, cf. PAOLO SFAMENI, “Art. 114 – Comunicazioni al pubblico”, in La disciplina delle società quotatenel TESTO UNICO DELLA FINANZA (Commentario), vol. I, AAVV, Giuffrè Edditore, Milão, 1999, pp. 509-643; por fim,significativos para a percepção dos contornos do basilar princípio do full disclosure norte-americano, cf. LOUIS LOSS,Fundamentals of Securities Regulation, Boston/Toronto, 1983, pp. 1-7 e pp. 24 e ss.; e, especificamente, quanto à “ma-terial information”, THOMAS LEE HAZEN, The Law of Securities Regulation, 3.ª ed., St. Paul, 1996, pp. 793-806.8 A propósito da tutela da informação, vide, por exemplo, recolha de jurisprudência (anotada) nestes Cadernos: De-cisão do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, de 21 de Março de 1997 (in CadMVM n.º 1, Outubrode 1997); Acórdão de 18 de Novembro de 1997, da Relação do Porto (in CadMVM n.º 3, Outubro de 1998); Acór-dão de 2 de Março de 1999, da Relação de Lisboa (in CadMVM n.º 5, Agosto de 1999); Decisão do Tribunal Judi-cial da Maia (in CadMVM n.º 8, Agosto de 2000). 9 Como ensina SINDE MONTEIRO (in Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina,Coimbra, 1989, pp. 14 e ss.), que esclarece que essa exposição fáctica tanto pode versar sobre pessoas, coisas ou qual-quer relação. A distinção entre informação e, por exemplo, recomendações, conselhos e publicidade (assumida peloilustre Professor) é, entretanto, contornada – mas não contrariada (veja-se referência remissiva para enquadra-mento autónomo da publicidade no n.º 4 do artigo 7.º) – pelo artigo 7.º, n.º 2, que manda aplicar as característicasde completude, verdade, actualidade, clareza, objectividade e licitude (n.º 1 do preceito) à informação que esteja“inserida em conselho, recomendação, mensagem publicitária ou relatório de notação de risco”.10 Pressupomos, a este propósito, a reflexão em torno da análise económica dos padrões de eficiência nestes merca-dos. Exemplificativamente, com indicações de bibliografia diversificada, cf., entre nós, EDUARDO PAZ FERREIRA,“A informação no mercado de valores mobiliários”, in Direito dos Valores Mobiliários, III, Coimbra Editora, 2001,

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A informação está, assim, orientada àformação de negócios em mercado, peloque, a propósito da atendibilidade de deter-minado dever mobiliário informativo, en-contramos o apelo ao princípio da relevân-cia que concatenará, em cada caso, a suscep-tibilidade de determinada informação afectaro preço dos valores mobiliários no mercadocom a proporcionalidade devida no cotejoentre a eventual divulgação informativapropriamente dita e os interesses do emi-tente e do público, composto por actuais oupotenciais investidores.

A par da eficiência, em abstracto consi-derada, e da inerente fiabilidade na forma-ção dos preços em mercado, este últimoponto permite trazer à luz outra importan-te razão de ordem que funda o dever de in-formação sobre factos relevantes. Na reali-dade, este dever constitui um instrumento

de protecção dos investidores11, já que es-tes, por poderem, através da informaçãodisponibilizada, avaliar melhor o risco as-sociado a determinado investimento ou de-sinvestimento, estarão aptos a agir mais efi-cientemente na defesa dos seus interesses,numa envolvente – assim pretendida pelaregulação mobiliária – em que pontifica aigualdade de oportunidades no acesso à in-formação relevante e, portanto, o reforçoda confiança nos mecanismos de mercado,enquanto sistema cada vez mais imune àfraude (vg., no contexto informativo, o abu-so de informação e a manipulação do mer-cado)12.

Fecha-se, assim, o ciclo da eficiência dosmercados e da protecção dos investidoresque a eles recorrem, tal como brevementetemos vindo a apontar. É entre estes dois pa-râmetros, simultaneamente entendidos co-

30 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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maxime pp. 144 e ss.; CARLOS COSTA PINA, Dever de informação e responsabilidade pelo prospecto no mercado primá-rio de valores mobiliários, Coimbra Editora, 1999, maxime pp. 27-29; PAULO CÂMARA, Os deveres de informação…,cit., pp. 86-87; JOSÉ SANTOS QUELHAS, Sobre a Evolução Recente do Sistema Financeiro (Novos “Produtos Financei-ros”), Separata do Boletim de Ciências Económicas da Universidade de Coimbra, 1996. Entretanto, compulsandoo que já vem sendo considerado um clássico, cf. a eficiência segundo THOMAS COPELAND e FRED WESTON, Fi-nancial Theory and Corporate Policy, 3.ª edição, Addison-Wesley Publishing Company, 1988, pp. 331 e ss., que é en-carada segundo uma tripla perspectiva: a capacidade institucional de funcionamento, a capacidade operacional defuncionamento e a capacidade alocativa de funcionamento. A capacidade institucional prende-se com a necessidadede existirem uma oferta e uma procura dignas desse nome, possibilitando-se uma transacção célere e segura dos va-lores mobiliários; nesta perspectiva importa, portanto, atentar na amplitude (variedade dos valores transacciona-dos) e na profundidade (número de investidores e volume de negócios) do mercado. Quanto à capacidade operacio-nal, por sua vez, esta varia na razão inversa dos custos relativos à emissão e negociabilidade dos valores mobiliários:custos de manutenção reduzidos, farão com que os aforradores tendam a ver o investimento na aquisição de valo-res mobiliários como uma forma mais lucrativa de optimizarem as suas poupanças, em vez de as canalizarem paraoutros destinos (depósitos bancários ou consumo, por exemplo). Finalmente, com a capacidade alocativa procura-seque os capitais afluam às entidades que apresentem uma remuneração mais atractiva no que tange aos investi-mentos realizados e que sopesem a rentabilidade com os riscos financeiros.11 Cf. Entendimentos da CMVM relativo ao dever legal de informação sobre factos relevantes pelos emitentes de valoresmobiliários admitidos à negociação em bolsa, pp. 1-2, Julho de 2000, acessível pela Internet em http://www.cmvm.pt/estudos_documentos.12 O dever de informar sobre factos relevantes tem uma eficácia preventiva em relação ao crime do artigo 378.º(abuso de informação). De facto, o dever de informação previsto no artigo 248.º visa reduzir ao mínimo a margemde manobra do insider, preconizando-se uma política institucional de transparência (full-disclosure, na terminologiahá muito acolhida nos mercados norte-americanos) em que se procura evitar um hiato temporal prolongado entreo conhecimento por poucos sujeitos da ocorrência (ou previsível ocorrência) do facto (informação privilegiada) e adivulgação dessa mesma informação junto do universo de investidores (incluindo os potenciais), ou seja, o público.A divulgação imediata exigida pelo artigo 248.º visa, assim, colocar os investidores em plano de igualdade quantoao acesso à informação disponível para fundamentar as suas decisões de investimento. O que fica dito permite com-preender o paralelismo que encontramos nos artigos 248.º e 378.º, n.º 4, na utilização da cláusula da “influência re-levante”.

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2.1. Delimitação negativa

I – O cerne da flexibilização pressupostapelo artigo 248.º – por via do emprego declausulado indeterminado permite-se a pon-deração lata das circunstâncias do caso con-creto – é também o núcleo do limite à apli-cação do preceito em causa. A sociedade sóé obrigada a informar se o facto em causafor idóneo a influenciar relevantemente opreço das acções ou a capacidade de cum-primento dos compromissos inerentes àemissão de dívida. É pois inquestionávelque o conceito de “facto relevante” é a pe-dra basilar do esquema do artigo 248.º, de-cidindo da existência ou não do dever, peloque deve ser concretizado com a especialcautela que uma cláusula normativa deponderação de interesses recomenda13.

A interpretação do artigo 248.º não podedeixar de atender à inserção sistemática dopreceito. Movemo-nos em sede de obriga-ções informativas a cargo do emitente comvalores mobiliários já admitidos à negocia-ção, ou seja, em sede de mercado secundá-rio (artigos 244.º e ss.). De igual forma, im-porta comparar o dever de informação so-bre factos relevantes com os outros deveres

de informação previstos na Secção que co-meça, precisamente, com o artigo 244.º.

Na realidade, é com a aprovação do Có-digo dos Valores Mobiliários que o deverde informar sobre factos relevantes ganhaautonomia sistemática face a outros deveresde informação estabelecidos para a nego-ciação em bolsa dos valores mobiliários. Aautonomização do artigo 248.º não tinhaparalelo no anterior Código do Mercado deValores Mobiliários, em que o artigo 344.º,n.º 1, alínea a) – e, para os valores mobiliá-rios representativos de dívida, o respectivon.º 2, alínea a) – se referia ao dever de in-formação sobre factos relevantes no quadrode um preceito bastante mais amplo, epi-grafado de “Outras informações gerais”.Ainda recentemente, com a codificaçãooperada através da já mencionada Directi-va n.º 2001/34/CE, mantém-se a suplênciadeste dever, já que, por exemplo, o artigo68.º da Directiva – que, recorde-se, é a fon-te directa para o nosso artigo 248.º (n.º 1) –é integrado na Secção das “Informações su-plementares”14.

Estas considerações afiguram-se-nosoportunas. Com efeito, apesar da meritóriaopção do legislador de 1999 em autonomi-

O DEVER DOS EMITENTES DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES : 31

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13 À luz da Directiva n.º 2001/34/CE, não haveria alternativa ao modelo da cláusula geral, tal como acolhido no ar-tigo 248.º. Tenha-se, contudo, presente que outros mercados organizam de modo diferente o material regulatóriorespeitante à divulgação de factos relevantes. Assim, os sistemas norte-americano e japonês assentam na estipula-ção de um elenco de factos presuntivamente relevantes que devem ser obrigatoriamente divulgados, independen-temente de, no caso concreto, se atender à influência relevante sobre determinada cotação. Nos EUA, os emitentesdevem atender ao preenchimento da denominada Form 8-K que, para os períodos que medeiam a divulgação deinformação periódica, reproduz uma lista de factos inilidivelmente considerados relevantes para efeitos de divul-gação da informação ao mercado (cf. esta lista no Anexo ao documento da OICV/IOSCO supra citado na nota 4). 14 Reproduzindo, assim, a opção sistemática do Esquema C da Directiva n.º 79/279/CEE que se referiu, pela pri-meira vez, ao dever na parte relativa a “Informações suplementares”.

mo fundamentos e objectivos, que devemoscontextualizar o dever de informação sobrefactos que são susceptíveis de afectar de ma-

neira relevante as cotações das acções ou acapacidade de cumprimento dos compro-missos assumidos pelo emitente de dívida.

2. CONCRETIZAÇÃO DO DEVER DE INFORMAÇÃO SOBRE FACTO RELEVANTE

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zar o dever de informar sobre factos rele-vantes15, é incontornável que a cláusula dedever acolhida no artigo 248.º tem nature-za subsidiária, “suplementar” ou “comple-mentar” se quisermos, em relação a outrosdeveres de informação mobiliária. Paramais, trata-se de um dever de prestaçãocontínua de informação, em contraponto àinformação periódica que deve ser divulga-da ao mercado em períodos pré-definidos(artigos 245.º, 246.º e 247.º, alínea e)). Daíque parte da doutrina opte pela expressãode “informação ad hoc”, acentuando o “ca-rácter temporal de eventualidade” (tempo-ralmente irregular e imprevisível) do deverde informação sobre factos relevantes.

Desta forma, estão excluídos do âmbitodo artigo 248.º todos os factos que noutrospreceitos fundamentam outros deveres deinformação, mesmo que sejam factos queem abstracto poderiam cair na previsão doartigo 248.º. Vigorará uma regra de espe-cialidade entre os deveres informativos es-pecíficos para a negociação de valores mo-biliários e a cláusula geral, por definiçãomais flexível e contingente quanto à suaoperatividade, do artigo 248.º. Assim, eaproveitando a virtualidade que uma deli-mitação negativa tem para a concretizaçãodo dever constante no artigo 248.º, atente-

se que os deveres de informação consagra-dos nos artigos 245.º, 246.º 16, 247.º, alíneasd) e e), e 249.º17, ainda que respeitando a“factos relevantes” à luz do artigo 248.º,afastam a subsunção a este preceito.

II – Mesmo em relação a outros deveresde informação que não surjam enquadra-dos na mesma Secção onde encontramos oartigo 248.º, importará atender a algunstraços de regime que favorecem a delimita-ção do objecto do dever de informar sobrefactos relevantes. Embora não nos seja pos-sível empreender uma ponderação conglo-bante do dever informativo do artigo 248.ºface a outros deveres de informação rele-vante consagrados no Código dos ValoresMobiliários, é possível pelo menos consta-tar que a lei não se coibiu de utilizar o con-ceito de “relevância” em diversas latitudesdo iter informativo mobiliário: artigos137.º, n.º 1, alínea c), 142.º, 143.º, 182.º e244.º, n.º 3. Por certo que as conclusões queretirarmos a propósito do dever de infor-mar do artigo 248.º ajudarão a delimitaroutros deveres que fazem apelo à mesmacláusula de ponderação dos interesses empresença. Trata-se, todavia, de exercícioque vai para além do escopo desta exposi-ção, pelo que, no interesse da nossa análise

32 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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15 Porque promotora de uma maior visibilidade da assunção de uma responsável “cultura de mercado”, neste casoespecífico, por parte dos emitentes.16 Neste artigo importa atentar no n.º 2, alínea a), já que o “factor específico que tenha influenciado (ou venha ain-da a influenciar) o comportamento económico e financeiro da sociedade” inculca-nos uma proximidade em rela-ção ao facto idóneo a influenciar relevantemente o preço das acções (artigo 248.º). No entanto, os requisitos para aoperatividade dos dois deveres de informação são bastante distintos: a título de exemplo, o artigo 246.º não exigeque o “factor” em causa ocorra na esfera de actividade da sociedade ou na situação económico-financeira da socie-dade cotada (já para não falar na inexistência de qualquer influência qualificada sobre o comportamento referidono citado artigo 246.º). 17 O anterior artigo 335.º do Código do Mercado de Valores Mobiliários referia diversos factos, por definição po-tencialmente relevantes, e que eram excluídos da ponderação em sede de dever de informação sobre factos rele-vantes. Cf., a propósito, o nosso O dever de informação…, ob. cit., p. 41 (nota 40), quanto à alteração do contrato so-cial e a apresentação à falência. Com o Código dos Valores Mobiliários, a situação da falência deixou de constar doelenco reproduzido pelo artigo 249.º, sendo plausível que o legislador tenha considerado que a apresentação à fa-lência terá sido precedida de comunicação de facto relevante ao mercado nos termos do artigo 248.º ou que, de qual-quer modo, esse facto seria sempre reconduzido ao mecanismo do dever de informação sobre factos relevantes.Mantém-se, contudo, o que na altura deixámos dito quanto à situação referida actualmente no artigo 249.º, n.º 1,alínea a) e n.º 3, alínea a).

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subsequente, registamos apenas que – pros-seguindo na delimitação negativa do deverde informação estabelecido no artigo 248.º– não nos interessarão todos os “factos rele-vantes” que sejam cobertos informativa-mente por outras normas mobiliárias, nemos vasos comunicantes que entre todos essesdeveres seria possível estabelecer18.

Contudo, a concatenação do artigo 248.ºcom os artigos 16.º e ss. (participações qua-lificadas) merece, pela sua importância prá-tica, uma referência especial, necessaria-mente esquemática atendendo ao exposto.

Com efeito, cumpre clarificar, por exem-plo, qual o regime aplicável à divulgação deinformação sobre aquisições ou alienaçõesde participações sociais inferiores a 2 % dosvotos correspondentes ao capital social deuma sociedade aberta. A situação apontadanão se inscreve na previsão do artigo 16.º,pois o mínimo de “qualidade da participa-ção” ficou para efeitos do preceito, precisa-mente, estabelecido acima dos 2 % (n.º 3 doartigo 16.º). No entanto, podemos configu-rar várias hipóteses em que uma determi-nada aquisição ou alienação de participa-ções sociais abaixo da fasquia dos 2 % surgecomo um facto susceptível de influenciarrelevantemente a avaliação pelos investido-res e, consequentemente, o preço das ac-ções: por exemplo, a aquisição em 1 % daparticipação social de determinada socie-dade cotada por uma empresa com uma ex-periência comercial significativa na área de

negócios da referida sociedade cotada. Nes-tes casos, deve prevalecer um entendimen-to da natureza especial do artigo 16.º faceao artigo 248.º, implicando a não sujeiçãoao dever de informação sobre factos rele-vantes, ou, pelo contrário, rege ainda o ar-tigo 248.º?

Parece-nos que a resposta deve ser, aindaassim, a aplicação do artigo 248.º, desdeque, obviamente, se encontrem preenchi-dos os requisitos deste preceito. Todos osobjectivos subjacentes ao estipulado no ci-tado artigo 248.º estão presentes na discipli-na a dar a estes casos de fronteira: a pre-venção face ao insider trading; os princípiosda transparência, igualdade entre os inves-tidores e credibilidade da cotação (que deveincorporar toda a informação disponível); aexigibilidade de se regular o fluxo de infor-mação relevante para uma decisão racionaldos investidores, atenta a eficácia, desdelogo, na perspectiva da optimização do in-vestimento nos valores mobiliários. A“especialidade” do artigo 16.º não deveafastar, assim, o imperativo de mercado dese obrigar, nas circunstâncias descritas, àdivulgação de informações relacionadasnão propriamente com participações “qua-lificadas”, à luz do artigo 16.º, inilidivel-mente susceptíveis de influenciar relevan-temente a formação dos preços dos valo-res mobiliários19, mas antes com participa-ções “relevantes”, sujeitas ao crivo do artigo248.º 20-21.

O DEVER DOS EMITENTES DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES : 33

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18 Para um excurso por este tipo de questões, ainda que à luz do anterior Código (do Mercado de Valores Mobiliá-rios), mas ainda assim com actualidade, cf. o nosso Dever de informação…, ob. cit., pp. 78-83, designadamente noque respeita à articulação entre o dever de informação sobre factos relevantes e o prospecto complementar ou a rec-tificação deste documento informativo.19 Quanto ao dever de informação sobre participações qualificadas de 2% e 5%, o artigo 18.º (dispensa de publica-ção pela CMVM) flexibiliza, todavia, essa presunção inilidível de “relevância da informação”, com a admissibili-dade de dispensa de comunicação (contrariamente com o que acontece em relação às participações qualificadasmencionadas no n.º 1 do artigo 16.º). 20 Problema que poderia ser colocado a propósito desta tomada de posição, é o de se saber qual seria o prazo paraa divulgação da aquisição ou alienação de uma “participação relevante”: imediatamente (como prescreve o artigo248.º, n.º 1) ou no prazo de três dias (atenta a analogia de situação face ao disposto no artigo 16.º). A posição que seapoiasse num argumento a fortiori, de que “se se permite o mais (o hiato temporal no caso de participações sociaisde 2 %), permite-se o menos (precisamente as participações sociais adquiridas ou alienadas abaixo dos 2 %)”, esbar-

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2.2. Concretização do conceito de facto re-levante

(A) Carácter definitivo

I – Na interpretação do artigo 248.º deveprevalecer um sentido amplo de “facto”.Assim, o que releva não é a noção que re-sulta da contraposição entre facto jurídicosricto sensu e acto jurídico. A teleologia dopreceito (atente-se, por exemplo, nos consi-derandos da Directiva n.º 2001/34/CE, an-teriormente citada) deve levar-nos a aten-der ao entendimento que apresente o “fac-to” como um evento material, acolhendo-seno seu seio realidades distintas como opera-ções, decisões e deliberações, por exemplo.

Revela-se, entretanto, essencial que oevento em causa assuma uma componentede determinabilidade e precisão, inculcan-do no intérprete um juízo de definitivida-de. A este propósito, a utilização do particí-pio passado “ocorrido” exclui qualquerrealidade futura, por muito previsível queesta seja22. A este propósito, veja-se, porexemplo, que a recém-aprovada Directivan.º 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do

Conselho relativa ao abuso de informaçãoprivilegiada e à manipulação de mercado(abuso de mercado) quando, no respectivoartigo 1.º, n.º 1, apresenta a noção de “in-formação privilegiada” como informaçãorelevante sobre a formação dos preços dosvalores mobiliários, faz referência à “infor-mação com carácter preciso”.

Esmiuçando o que se deve entender por“definitividade” para efeitos de se saber apartir de quando é que surge o dever de in-formação de factos relevantes pela socie-dade cotada, importa ter presente que nãose deve confundir a referida definitividadee precisão com um tratamento exaustivo doacontecimento em causa, defender o con-trário seria desvirtuar o preceito e, em últi-ma análise, esvaziar o dever perante dili-gências intermináveis de determinação ecompletude, incongruentes com a celerida-de do funcionamento do mercado.

Os denominados processos de acordo,designadamente negociações conducentes àcelebração de um acordo entre duas socie-dades (em que pelo menos uma está, obvia-mente, cotada), traduzem de forma elo-quente as dificuldades pressentidas na apli-

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raria na conjugação do regime dos artigos 16.º e ss. com a regulamentação das ofertas públicas e inerente garantiade transparência e de igualdade de tratamento entre os investidores. De facto, uma aquisição ou alienação de par-ticipação relevante à luz do art. 248.º não seria escudada pelo apertado regime das ofertas públicas, não fazendo sentido, por isso, tolerar um hiato de três dias entre a operação e a divulgação pública (o argumento de maioria derazão adiantado supra não seria de atender desde logo face à exposição a uma vulnerabilidade do sistema aos ilícitos dos artigos 378.º e 379.º). A resposta deve ser, por isso, a da aplicação do prazo da imediata divulgação do artigo 248.º.21 O que fica dito aplica-se, naturalmente, mutatis mutandis à divulgação de acordos parassociais (artigo 19.º).22 Daí não serem admissíveis as “perspectivas” no quadro do artigo 248.º. Adiante, quando estudarmos em parti-cular os casos das fusões e cisões de empresas para efeitos do dever de informação de facto relevante, veremos a im-portância desta delimitação temporal do facto. Não se aceitar a inclusão de “realidades futuras” no quadro do arti-go 248.º não invalida, contudo, a necessidade de realizarmos um juízo de prognose para aferirmos da possibilida-de de influência relevante quer sobre a cotação das acções, quer sobre a capacidade do emitente para cumprir com-promissos anteriormente assumidos no contexto da emissão de obrigações ou outros valores mobiliários represen-tativos de dívida. O que fi9ca dito não invalida, naturalmente, que “as projecções” e “as perspectivas” quando as-sentes em “factos” não surjam no contexto de divulgação destes últimos. Estes sim, objecto do dever de informaçãodo artigo 248.º. Especificamente, quanto aos Management Discussion and Analysis (MD & A), cf. aplicação do crité-rio da relevância, conforme faz notar o relatório citado da OICV/IOSCO “Principles...” e THOMAS LEE HAZEN, TheLaw..., ob. cit., p. 802. Ainda quanto aos “estudos de mercado”, cf. STEFANO FABRIZIO e GIANFRANCO TROVATO-RE, “Articolo 181”, in Il Texto Único della Intermediazione Finanziaria, Commentario al D.Lgs 24 febbraio 1998, n.º58, Giuffrè Editore, Milano, 1998, p. 1009.

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cabilidade do critério da definitividade e,concomitantemente, quanto a sabermos apartir de que momento é que temos umfacto que deve ser objecto de ponderaçãoquanto à sua relevância informativa.

Assim, quando decorrem negociaçõesentre duas empresas para se chegar a acor-do relativamente, por exemplo, a uma fu-são não se pode dizer, na nossa opinião, queestamos perante um “facto” para efeitos doartigo 248.º. O facto em causa (as negocia-ções) ainda não “ocorreu na esfera de acti-vidade”, e, portanto, ainda não assumiu oscontornos que permitam aferir da idonei-dade para influenciar de maneira relevantea decisão dos investidores e, portanto, opreço das acções ou ainda a capacidade doemitente assumir os seus compromissos re-sultantes da emissão de obrigações ou ou-tros valores mobiliários de dívida23.

A prática de alguns mercados (vg. nosEUA e no Japão) tem-se traduzido no re-curso a “índices” de relevância que, preci-

samente por permitirem concluir pelo ca-rácter importante da informação em causa,acentuam a natureza “price sensitive” dainformação e pressupõem a “definitividadeda informação” a divulgar junto do públi-co, mais do que (a definitividade) do factoque a justifica24.

Todavia, na nossa opinião, conformealiás tem sido patente à luz da experiênciada jurisprudência norte-americana25, esteraciocínio estaria inquinado à partida, jáque, como referimos anteriormente, nãoexiste, no caso das negociações, ainda qual-quer “ocorrência de um facto”; o que exis-te, isso sim, é uma ponderação (eventual-mente uma perspectiva) dessa eventualocorrência. Assim sendo, parece-nos ilegíti-mo, face à nossa lei, fazer antecipar a previ-são do artigo 248.º até à preparação do fac-to relevante, ao processo de formação dadecisão, se quisermos26. Caso contrário, en-tendemos que exporíamos o processo dedefinição do dever ao risco de uma aplica-

O DEVER DOS EMITENTES DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES : 35

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23 Cf., nesta linha, para os mercados norte-americanos, THOMAS LEE HAZEN, The Law..., ob cit, pp. 799-800.24 Nesta linha, nos Estados Unidos tem sido utilizada o denominado teste TSC, conforme documentado por CAR-LOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informação…, ob. cit., p. 346. O referido “teste de relevância” resulta de uma decisãojurisprudencial que dirimiu o conflito TSC Industries v. Northway. Assim, um facto teria relevância (materiality)quando um investidor razoável o considerasse importante na decisão de comprar ou vender as acções em causa. Ojuízo em causa deve ter em conta o critério “probabilidade/magnitude”, ou seja, quanto à “probabilidade de umacordo final: a extensão do interesse revelado nas instâncias da sociedade ao mais alto nível, incluindo deliberaçõesda administração, instruções a investment bankers e às negociações efectivamente ocorridas”; quanto à “magnitudeesperada [da fusão] no contexto da globalidade da actividade da sociedade: a dimensão de ambas as sociedades e oprémio face às cotações do mercado previsto para a transacção” (cit. CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informa-ção…”, ob. cit., p. 346 (notas 28 e 29). Cf., também, THOMAS LEE HAZEN, The Law…, pp. 793-806.25 Cf. CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, ob. cit., p. 18. Na realidade, o Third Circuit Court of Appeals norte-americano,no caso Staffin, decidiu que as negociações preliminares que visem um fusão entre empresas não devem ser divul-gadas junto do público: devia-se esperar por um acordo de princípio quanto ao preço e estrutura do negócio. Tam-bém o Second Circuit, perante situações necessariamente fluídas com as que temos vindo a analisar, considerou queé melhor, sob pena de perturbações do regular funcionamento do mercado, suster a divulgação. No entanto, estaposição (denominada comummente por Bright-Line Roule) não tem sido aceite pelo Supremo Tribunal: tem-se ar-gumentado que não cabe ao mercado tomar posições paternalistas em relação à autonomia dos investidores; a re-gra imperativa é a da full-disclosure, e o intérprete-aplicador não pode fugir dessa opção legislativa. De facto, a pri-meira posição, que acaba por se consubstanciar numa visão que encara o mercado como tutor do investidor, deveser repelida à luz da nossa ordem jurídica. No entanto, a nosso ver, o que acaba por ser passível de crítica é afinala própria fundamentação aventada, já que o resultado de não se divulgar a existência de negociações está correc-to, sendo que, todavia, a questão não se deve colocar no plano das consequências mais ou menos nefastas da divul-gação, mas antes no plano da previsão do artigo 248.º: nos casos vertentes não existe ainda, pura e simplesmente,uma ocorrência de um facto sobre a actividade do emitente (cf. infra). 26 Cf., a propósito, o documento da CMVM supra citado: Entendimentos…, p. 3 (§ 2.1.).

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ção desproporcional no quadro dos interes-ses em presença e de insegurança na fixaçãodos contornos do dever de informar27.

O princípio do equilíbrio de interesses ea necessidade de se evitarem situações emque a cotação não traduz, afinal, a realida-de jus-económica das sociedades cotadas(princípio da credibilidade das cotações)28

sustentam esta posição de que a preparaçãode um facto (o acordo de fusão, neste caso)não é ainda um facto com os contornos dedefinitividade exigidos, a nosso ver, peloartigo 248.º. Na nossa opinião, só existe um“facto” para efeitos de convocação da apli-cação do artigo 248.º (e abstraindo agorados requisitos da “reserva” e “relevância”)quando se chega ao acordo final e, portan-to, se decide avançar para o processo depreparação e aprovação pela AssembleiaGeral (cf. artigos 97.º e ss. do Código dasSociedades Comerciais). Obtemos, assim,um mínimo de objectividade relacionadanão só com a ocorrência do acordo, comocom a provável materialização na esfera dasociedade em termos de perfeição formal29.

Note-se que falamos de acordo final e

não de decisão final formalizada. Apesarde assumirmos uma posição restritiva emrelação a esta matéria não podemos deixarde reconhecer que não é razoável esperarpor uma divulgação pública de uma deci-são de fusão, por exemplo, apenas para de-pois da deliberação dos sócios30, momentoem que, tendencialmente, o processo deci-sório estaria concluído.

O critério só poderá, assim, ser o de umentendimento empresarial e não jurídicode decisão. Admitir o contrário seria privi-legiar os accionistas em relação a outros in-vestidores31, pois não se esqueça que o arti-go 248.º não se dirige ao “sócio” mas ao “in-vestidor”, ou seja, à pessoa que detém oupotencialmente possa vir a deter, neste caso,acções da sociedade cotada. Colocar a fas-quia da exigibilidade no momento da deci-são “formalmente definitiva” (à luz das re-gras do Código das Sociedades Comerciais)seria desconsiderar o mercado de valo-res onde, precisamente, a sociedade cotada é sujeito de deveres para com o público, actual enquanto também potencial univer-so de investidores.

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27 Referindo um “princípio de prudência” na conformação do dever de informação sobre factos relevantes, adu-zindo razões de índole económica para privilegiar a qualidade da informação em detrimento da quantidade destano contexto do cumprimento deste dever, cf. PAULO CÂMARA, “Os deveres de informação...”, ob. cit., p. 91.28 Acentue-se que o artigo 248.º remete o intérprete para a “situação patrimonial e financeira”, para “o andamentodos negócios” ou ainda para a “actividade” da sociedade cotada, e não para perspectivas de determinado facto (queseria, no nosso exemplo, a fusão) vir a ocorrer nessas áreas. Nesse sentido também OSÓRIO DE CASTRO, como pa-rece resultar do seu texto “A informação…”, supra citado.29 Rejeita-se, assim, o entendimento que, suportado por um critério cognitivo, aceitasse um duplo juízo de proba-bilidade: deveria ser divulgado um acordo que, com grande grau de certeza, deveria ser firmado num futuro rela-tivamente próximo, e desde que se previsse que os órgãos competentes aprovariam muito provavelmente esse acor-do. Parece-nos que a antecipação da obrigatoriedade da divulgação da informação preconizada por esta visão pe-cará por ser vulnerável à incerteza jurídica derivada da determinação do duplo momento da probabilidade da ocor-rência: a do acordo e a da aprovação orgânica no quadro societário. Admitimos, por isso, somente a formulação dasegunda ilação, verificada a conclusão do processo decisório empresarial, nos termos que a seguir se explicitam.30 Artigos 100.º e ss. do Código das Sociedades Comerciais. Nos Estados-Unidos, por exemplo, foi entretanto ul-trapassada, por prática de supervisão da SEC e confirmação posterior do Supremo Tribunal Federal, a jurispru-dência de meados dos anos 80 que considerava que este tipo de acordos só eram “relevantes” (“material”) caso o“preço” da transacção em causa e a própria estrutura (“structure” do acordo já estivesse definida. Caso tivesse vin-gado, é patente o risco de se “adiar” excessivamente, na óptica do interesse do mercado, a divulgação do facto rele-vante. Neste sentido, elogiando a evolução jurisprudencial, cf. THOMAS LEE HAZEN, The Law..., ob. cit., p. 800.31 Além de que, numa perspectiva de prevenção face ao “insider trading”, seria, em regra, impossível manter no cír-culo do segredo a partir de certo momento.

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Assim sendo, quando o Conselho de Ad-ministração decida32 chegar a acordo quan-to à fusão, e independentemente de ser pre-visível que os órgãos que formalmente te-nham de ratificar a decisão33 venham a re-jeitar o acordo, nasce o dever de informarpor factos relevantes. No caso da operaçãode fusão que temos vindo a utilizar comoexemplo de análise, além da formalizaçãovia órgão societário competente, carecer deautorizações administrativas de diversa ín-dole, é necessário que a informação divul-gada seja acompanhada por uma referênciaà dependência da fusão em relação à apro-vação pelo órgão administrativo competen-te34. De igual forma, faltando a deliberaçãoformalmente final no quadro dos órgãossociais do emitente, a divulgação do factorelevante deveria ser acompanhada dessainformação quanto ao condicionalismo queainda rodeia o “facto”.

É impressiva, em suma, a complexidadeinerente às situações estudadas. Porventu-ra, porque se congregam nesta questão nãosó o equilíbrio problemático entre socie-dade cotada, mercado de valores mobiliá-rios e regime societário, mas também umacomponente simultaneamente extra-socie-tária (negociações e reflexo junto do públi-co investidor) e intra-societária (distribui-ção de competências, direitos das minorias,etc.).

II – Para efeitos de aplicação do artigo248.º, também deve ser divulgada pelo emi-tente a alteração de factos em que a infor-

mação previamente divulgada se tenha ba-seado, desde que a alteração vertente tenhaocorrido na esfera de actividade do emiten-te e que tenha incidência na respectivasituação patrimonial ou financeira, cursonormal dos negócios, com susceptibilidadede influir de maneira relevante na cotaçãoou (no n.º 2) capacidade do emitente paracumprir compromissos assumidos ante-riormente.

Em bom rigor, a alteração relevante defactos anteriormente do conhecimento pú-blico pode ser reconduzida, por definição, aum facto propriamente dito. Os factos sãocontrariados por outros factos ou por alte-ração de circunstâncias que, em si mesmase para o que agora nos interessa, são afinal“factos novos”. Esteve bem, portanto, onosso legislador quando em 1999 optou porreconduzir a previsão do preceito a “fac-tos”, não se devendo, naturalmente, enten-der que a eliminação da expressão “altera-ção de factos ou situações” que anterior-mente encontrávamos no artigo 344.º.º doCódigo do Mercado de Valores Mobiliáriostenha implicado uma circunscrição do âm-bito objectivo do dever.

Conforme referido, a alteração de quefalamos tem de ser “susceptível de influirde maneira relevante” sobre o preço ou ca-pacidade do emitente (referida no n.º 2 doartigo 248.º). Retomamos adiante este re-quisito da “potencial influência relevante”.

Note-se, por exemplo, que a divulgaçãoda alteração de circunstâncias que funda-ram previsões anteriormente publicitadas35

O DEVER DOS EMITENTES DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES : 37

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32 É possível mesmo, atentas as especificidades do caso concreto, ir mais longe: pode ainda não haver decisão, bas-tando que os mandatários negociadores se entendam e seja razoável concluir que o órgão aprovará.33 No Código das Sociedades Comerciais, vide artigo 100.º, n.º 2.34 Ao longo do texto acentuou-se o carácter problemático da análise em torno dos processos de decisão (não só, ob-viamente, nos casos de negociações para efeitos de fusões ou cisões, mas qualquer outro processo intra – ou extra-societário: por exemplo, transformação de sociedades ou mesmo a dissolução da sociedade (respectivamente art.130.º e ss. e art. 141.º e ss. do Código das Sociedades Comerciais). Qualquer outro tipo de factos como, por exem-plo, resultados, estrutura do capital, nível de endividamento, etc., devem ser divulgados quando os dados em cau-sa chegaram ao conhecimento do órgão de administração ou foram aprovados internamente. 35 Conforme exemplificado nos já citados Entendimentos da CMVM (p. 4, § 2.41.), veja-se o caso da divulgação daalteração dos dados contidos nos documentos de prestação de contas logo que aqueles sejam apurados.

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não põe em causa o círculo fáctico preten-dido pela norma e anteriormente por nósdescrito, traduzindo antes a ocorrência deum novo facto – que implicou a alteraçãodo juízo em relação a determinada conjun-tura – e substituindo-se, assim, o “prognós-tico” pela “definitividade” para efeitos daetapa seguinte traduzida na aferição da res-pectiva relevância.

Para este efeito, o dever de informaçãosobre factos relevantes também se refere adeficiências informativas relevantes, ouseja, o emitente está obrigado a publicitar,nos termos do artigo 248.º, n.º 3, a correcçãode informação inadequada previamente di-vulgada ao mercado.

IV – Importa fazer referência a um últi-mo ponto no que respeita à delimitação doelemento da “definitividade” do facto. Re-ferimo-nos ao tema dos rumores do merca-do e à questão de saber se o dever de infor-mação sobre factos relevantes justifica a suaconfirmação ou desmentido por parte doemitente.

Por definição, a questão não se coloca seo “rumor” – ou seja, a informação que cir-cula de forma difusa, anónima, não funda-mentada e, portanto, globalmente atentató-ria dos princípios da “sã informação” con-forme postulados no já mencionado artigo7.º – surgir porque o emitente atrasou a di-vulgação de um “facto relevante” que jádeveria ter sido divulgado e, nesse contex-to, houve uma fuga de informação de entreo círculo de pessoas que detinham essa in-formação price-sensitive. Nesse caso, bementendido, confirmar o rumor é sinónimode “cumprir” o dever do artigo 248.º.

Mais complexos serão os casos, em quenão existindo “facto”, tal como o temos vin-do a configurar (ora porque não há eventonovo, ora porque não há ainda a definitivi-dade e precisão a que nos referimos ante-riormente), a existência de rumores nomercado cria uma envolvente que potenciaa opacidade e insegurança quanto à credi-bilidade das cotações de determinado valormobiliário.

Nestes casos, importa distinguir. Embo-ra possa não existir um facto para divulgarnos termos do artigo 248.º, n.os 1 e 2, se o ru-mor – respeitante a informação relevanteem si mesma – surge porque teve na suabase informação incompleta, falsa, confusaou inexacta de alguma forma, é o n.º 3 doartigo 248.º que prescreve o regime da ime-diata confirmação ou desmentido do ru-mor36. Por outro lado, se o “rumor poten-cialmente relevante” se instala e não é possí-vel estabelecer qualquer conexão com umaanterior prestação informativa ao mercadoque possa ser qualificada como “insuficien-te” ou “disfuncional”, não vemos como re-conduzir esta situação à previsão do artigo248.º. Sob pena de se legitimar práticaspouco transparentes e salutares no funcio-namento dos mercados37 e de onerar o emi-tente com um dever ilimitado de reagir atoda a informação que surja sobre a sua(pretensa) actividade ou (pretensa) situaçãopatrimonial, devemo-nos, pois, ater ao con-ceito de facto ou, como vimos, quanto mui-to à clarificação (em sentido confirmatórioou infirmatório) das circunstâncias que en-volvem determinada factualidade (em re-gra, anteriormente divulgadas de formadeficiente).

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36 Nesta aproximação ao que deixámos dito para a correcção pelo emitente de informação inadequada previamen-te divulgada, cf. também os citados “Entendimentos da CMVM...”, cit., p. 3 (§ 2.3.2.) e PAULO CÂMARA, “Deveres deinformação...”, ob. cit., p. 90.37 PAULO CÂMARA, “Deveres de informação...”, ob. cit., p. 90, refere o risco de “credibilização involuntária de al-guns boatos”.

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V– Complementaremos, entretanto, es-tas considerações em relação à definitivida-de do “facto relevante” quando adianteanalisarmos o denominado dever de segre-do, designadamente no contexto dos pro-cessos de formação de facto potencialmenterelevante38.

(B) Ocorrência na esfera de actividade doemitente

I – O artigo 248.º exige que o facto emcausa tenha ocorrido na esfera de activida-de do emitente.

Será curial entender-se por “actividade”a prática empresarial normal da sociedadeem causa, ou seja, o exercício económiconormal balizado por um escopo lucrativo.

Todavia, o preceito não é claro (tal comoos artigos 68.º e 81.º da Directiva n.º2001/34/CE) quanto a saber se para efeitosda ocorrência na esfera de actividade dasociedade releva a génese do facto ou so-mente a consequência deste. Avance-se umexemplo para se perceber melhor o que estáem causa: uma empresa que opera no sec-tor siderúrgico é confrontada com a nacio-nalização de uma fonte de abastecimentonum país estrangeiro. Para alguma doutri-na estrangeira39 aceitar-se que a situaçãodescrita faria nascer, ex vi de preceito aná-logo ao nosso artigo 248.º, um dever de in-formar (adoptando-se, portanto, a perspec-tiva da “consequência” sobre a actividade),seria sobrecarregar as sociedades cotadascom uma série de deveres de informação“incondicionados e ilimitados”. Segundoesta opinião, a nacionalização em causa não

ocorria na esfera de actividade da empresa,mas antes tinha “apenas” impacto sobre aactividade, não suscitando, assim, a aplica-ção do mecanismo do dever.

II – Afigura-se evidente que uma argu-mentação alicerçada na discussão da ori-gem ou consequência do facto junto da es-fera de actividade presta-se a contorcionis-mos interpretativos prejudiciais para a cla-reza das soluções em matérias tão delicadascomo os deveres de informação40.

Discordamos, aliás, da solução apontada.Assim, no exemplo referido, se a sociedadeem causa, devido à nacionalização, sofreprejuízos avultados ou vê a sua estratégiacomercial abalada, deve, à luz do artigo248.º, informar o público acerca do prejuí-zo ou da alteração do curso normal dos ne-gócios na sua actividade que, pela sua im-portância, sejam susceptíveis de terem in-fluência relevante sobre o preço das acçõesou capacidade para assumir compromissosanteriores (artigo 248.º, n.º 2) e nunca acer-ca da nacionalização propriamente dita doseu estabelecimento no estrangeiro.

Compreende-se, é certo, a intenção deli-mitadora do preceito e a intenção harmoni-zadora dos interesses das sociedades em re-lação aos interesses dos investidores porparte de alguma doutrina, mas parece-nosque esse tipo de preocupações ficaram aco-modadas na própria configuração do dever,sem precisarmos de recorrer a artifícios in-terpretativos de duvidosa viabilidade: a po-tencial relevância do facto é, afinal, erigidapelo legislador como critério que estimulaessa ponderação de interesses, não sendo

O DEVER DOS EMITENTES DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES : 39

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38 Trata-se, entretanto, de palco privilegiado para a interpretação do artigo 248.º à luz do tema dos “rumores”.39 ALESSANDRO MUNARI e MASSIMO CHIAIA, “Transferimento di partecipazione azionaria rilevante ed obblighi diinformazione al pubblico in relazione alla normativa sull` insider trading”, Giurisprudenza Commerciale, 20.4, 1993,pp.625 e ss..40 Colocar-se a tónica numa delimitação em torno da génese-consequência do facto implicaria provavelmente amultiplicação de situações dúbias e confusas: o facto tanto podia ser a nacionalização que afectou a actividade dasociedade, como o custo derivado de um reforço produtivo noutro estabelecimento da empresa como resposta à ditanacionalização...

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significativo atender à causa externa ou in-terna do facto em causa.

Por fim, ainda a propósito deste elemen-to interpretativo no contexto do artigo248.º, permitimo-nos fazer uma chamadade atenção para o facto de o legislador de1999 ter aproveitado o ensejo da reformamobiliária para clarificar que os factos rele-vantes ocorrem somente na esfera de activi-dade do emitente e não, como resultaria li-teralmente do artigo 344.º do Código doMercado de Valores Mobiliários, tambémna situação económica e financeira41.

(C) Incidência sobre a situação patrimonialou financeira, sobre o andamento normal dosnegócios do emitente ou sobre a capacidadepara cumprir compromissos anteriormente as-sumidos

I – Do que fica referido a propósito daocorrência do facto relevante na esfera deactividade do emitente, resulta claro que talnão deve ser confundido com outro nívelde análise para efeitos de artigo 248.º: a in-cidência dessa ocorrência sobre a situaçãopatrimonial ou financeira do emitente, so-bre o andamento normal dos seus negóciosou ainda, no caso do n.º 2 do preceito, sobrea capacidade para cumprir compromissosanteriormente assumidos.

A incidência tanto poderá ser já actual etraduzindo efeitos imediatos na própriasituação ou curso dos negócios, como tam-bém não é de enjeitar a possibilidade de seadmitir o accionamento do dever de infor-mar quando, verificada a relevância paraefeitos de influência sobre o preço das ac-ções da sociedade, ainda estejamos a falarde impacto expectável na situação econó-mica da empresa ou do desempenho do

curso dos seus negócios. Ambas as situaçõesjustificarão a imediata e eficaz divulgaçãodos factos ao público, sendo provável que aprimeira delas já possa revestir, aliás, umatraso no cumprimento do dever, pois a ra-tio do artigo 248.º é a de justificar um juízode prognose quanto às consequências dedeterminado facto sobre o preço das acçõesou sobre a capacidade do emitente paracumprir compromissos anteriormente as-sumidos, pelo que quer no n.º 1, quer no n.º2, tenha de haver um prévio juízo de prog-nose – ainda que complementar face aeventual diagnóstico que já possa ser feitoperante a situação real – em relação ao im-pacto desses factos sobre a envolvente em-presarial do emitente que justifique o se-gundo, e derradeiro, momento aplicativodo preceito: o de aferir da relevância dofacto com determinada incidência para in-fluir no preço das acções ou na capacidadede cumprimento de obrigações resultantesda emissão de valores mobiliários represen-tativos de dívida.

Apesar de o n.º 2 do artigo 248.º não re-ferir a situação patrimonial ou financeiranão vimos como é que, no contexto de em-préstimo obrigacionista ou outro tipo deemissão de instrumentos de dívida, possaser possível antever um facto ocorrido naesfera de actividade do emitente com po-tencial relevância sobre a capacidade destepara cumprir os seus compromissos peran-te os seus credores (vg. obrigacionistas). Pordefinição, diríamos que terá sempre de ha-ver uma incidência patrimonial (ainda que,como vimos, previsível) que reduza a expo-sição ao risco por parte dos credores doemitente ou, pelo contrário, onere as condi-ções económicas que subjazem a determi-nada emissão.

40 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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41 Considerando bem vinda a clarificação, aliás conforme à Directiva, já antes defendíamos que não poderia ser ou-tra a interpretação a dar ao preceito, embora tenhamos rejeitado posições mais radicais que preconizavam a inter-pretação correctiva do artigo 344.º do Código do Mercado de Valores Mobiliários; cf., a propósito, o nosso Dever deinformação…, ob. cit., pp. 54-56.

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II – Por fim, este último ponto permite-nos reiterar um aspecto importante quantoao tipo de incidência do facto ocorrido naesfera de actividade do emitente.

Com efeito, a incidência em causa podeser positiva ou negativa, com o correspon-dente potencial de influência de valoriza-ção ou depreciação do preço das acções oude desafogamento ou oneração das condi-ções económico-financeiras (risco) que en-quadram determinada emissão de dívida.

Por outro lado, como vimos, essa inci-dência pode ainda ter uma eficácia ime-diata ou diferida sobre a situação patrimo-nial ou financeira ou o andamento normaldos negócios do emitente.

(D) A relevância potencial do facto

I – O artigo 248.º como que converge, nosseus vários segmentos, para o conceito inde-terminado de “influência relevante”. Na rea-lidade, o dever de informação constante des-te preceito só surge na esfera do emitente devalores mobiliários admitidos à negociaçãoem bolsa se o facto em causa for idóneo a “in-fluir de maneira relevante” sobre o preço dasacções (n.º1) ou capacidade para cumprir de-terminados compromissos (n.º 2).

Uma questão prévia a atentar no quadroda “influência relevante” é o juízo de prog-

nose subjacente à aplicação do preceito.Cabe à sociedade cotada decidir se a infor-mação em causa é previsivelmente idónea ainfluir relevantemente na cotação, em vir-tude do expectável impacto sobre a decisãode investimento do público, ou, no caso dasituação prevista no n.º 2 do artigo 248.º, nacapacidade de o emitente cumprir os com-promissos assumidos para com os seus cre-dores no quadro da emissão de dívida42.

Esta ponderação ex ante da previsível in-fluência deve ser encarada segundo umprisma de inelutabilidade do efeito que seconstata ou antevê em virtude da incidên-cia do facto sobre a situação financeira ou ocurso os negócios e de razoabilidade face àexpectável evolução das circunstâncias (co-tação e capacidade debitória) perante o co-nhecimento público do facto e sua incidên-cia. Ou seja, o juízo de prognose pressupo-rá um grau elevado de verificação da in-fluência relevante, assim como ponderará oresultado da divulgação da informação noquadro do funcionamento normal do mer-cado43.

II – Quando falamos na idoneidade dofacto para influir de maneira relevante opreço das acções (artigo 248.º, n.º 1), re-ferimo-nos à influência potencial sobre aavaliação dos investidores em relação a de-

O DEVER DOS EMITENTES DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES : 41

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42 Importa acompanhar de perto o impacto que a transposição da já mencionada Directiva n.º 2003/6/CE (abuso demercado) terá na configuração do dever de informação sobre factos relevantes. Na realidade, a noção de “suscepti-bilidade de influenciar de maneira relevante [“sensível” nesta Directiva; “importante” e “significativa” na Directi-va n.º 2001/34/CE] o preço” dos valores mobiliários (artigo 1.º, n.º 1 daquela Directiva) unifica objecto sobre o qualrecai a Potencial relevância: já não se distingue entre acções e obrigações (ou outros valores mobiliários representa-tivos de dívida), fazendo-se apelo ao conceito de “instrumentos financeiros” (cf. artigo 1.º, n.º 3 da Directiva). Cu-riosamente, a Directiva em causa esclarece que para os instrumentos derivados sobre mercadorias a “informaçãoprivilegiada [porque relevante] será aquela que “os utilizadores dos mercados em que esses instrumentos derivadossão negociados esperariam receber em conformidade com práticas de mercado aceites nesses mercados”.43 No entanto no quadro do mercado de valores mobiliários, “normalidade” não é necessariamente sinónimo de“razoabilidade”. Veja-se o exemplo do denominado fenómeno “das profecias que se cumprem a si mesmas” (self-fullfilling prophecies): a informação ao ser divulgada tendo por base um preceito que estipula a obrigatoriedade dapublicação de informação que possa influir de maneira relevante em determinada cotação desencadeia, indepen-dentemente da sua efectiva e real idoneidade para influir, uma espiral de comportamentos que acabam por corpo-rizar o efeito pressuposto à partida. O que fica dito só reforça a necessidade de se terem especiais cuidados na apli-cação do artigo 248.º.

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terminado valor mobiliário. E para isso, éfundamental perceber que investidor é quedeve ser atendido para efeitos de pondera-ção da “influência relevante”. Por outras pa-lavras, temos que identificar qual o padrãodo perfil do investidor que permita aferir dadita idoneidade do facto: ora um investidormédio (o denominado homo economicus),ora o investidor entendido em concreto.

Num contexto de massificação, padroni-zação, fungibilidade como aquele a que seassiste no mercado de valores mobiliários, ocritério do investidor in concreto é inope-rante, já que potencia a incerteza e a inse-gurança jurídicas na determinação de cada(potencial) destinatário daquela informa-ção. Apesar da problematicidade inerente àoperatividade de um critério abstracto emrelação à multiplicidade de casos concretosque compõem o quotidiano, o critério sópoderá ser o de um investidor médio44, ou,utilizando a anterior terminologia constan-te do Código do Mercado de Valores Mobi-liários, “um investidor normalmente pru-dente”45, 46.

III – Quando se refere à susceptibilidadedo facto influir de maneira relevante na co-tação das acções, a Directiva n.º 2001/34//CE, no artigo 68.º, n.º 1, estabelece a neces-

sidade de haver uma possibilidade de va-riação “importante” do valor das acções dasociedade cotada em causa. Desta forma, edebruçando-nos sobre o texto do artigo248.º, a influência sobre a avaliação pelosinvestidores deverá ter uma intensidade talque acabará por se espelhar de forma igual-mente intensa na cotação das acções. Estacaracterística de influência do facto sobre opreço do valor mobiliário costuma ser refe-rido pela doutrina como o carácter pricesensitive da dita influência relevante. Noentanto, se estas considerações concitam oconsenso na literatura da especialidade, já adeterminação do quantum da citada “sensi-bilidade” sobre a cotação é tema que susci-ta maior polémica.

Assim, pensamos que falar em intensida-de, a propósito da relevância no artigo 248.º,é assumir um critério de magnitude paraaferir do grau de projecção que a dita in-fluência relevante terá sobre a cotação (aten-ta a função instrumental da decisão de inves-timento). Interessa, pois, saber qual a exten-são que a decisão de investir ou desinvestirterá no comportamento de determinado va-lor cotado. Como é patente, o esforço de seresponder com níveis pré-determinados devariações está, económica e juridicamente,dificultada, senão mesmo votado ao fracasso.

42 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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44 Cf. CARSTEN CLAUSSEN, Insiderhandelsverbot..., ob. cit., p. 83, refere-se à “valoração paralela na esfera do leigo”(“Parallelwertung in der Laiensphäre”) a propósito da ponderação da idoneidade do facto para influenciar relevan-temente a cotação das acções. No Direito norte-americano, THOMAS LEE HAZEN, The Law..., ob. cit., p. 794, porexemplo, documenta, a propósito da concretização da regra da “materiality” subjacente à Rule 10b-5 o emprego daexpressão “reasonable investor”.45 Repare-se que o citado artigo 161.º, n.º 2, alínea e) do Código do Mercado, regia, a propósito do investidor nor-malmente prudente, a abstenção de aquisição de valores mobiliários, enquanto o artigo 248.º pressupõe a regra daindiferença do funcionamento do dever face quer à alienação, quer à aquisição de valores mobiliários (motivadaspelo impacto do conhecimento do facto relevante). A apropriação da terminologia do anterior artigo 248.º deve, porisso, ser entendida em termos amplos. 46 A contextualização do investidor médio no quadro da performance da sociedade em causa não deve ser confun-dida com a defesa de um investidor sectorial. Na realidade, é completamente desfasado da realidade defender-seque existe um investidor do sector das telecomunicações ou do sector da distribuição (desde logo, porque numa es-tratégia de racionalização de riscos, as carteiras de títulos são diversificadas). O que perfilhamos é a noção de uminvestidor médio (na prudência quanto aos riscos, na diligência na optimização do investimento, etc.) colocado naavaliação de determinada sociedade em concreto. A este propósito o já citado documento orientador da CMVMEntendimentos… refere-se a “investidor normalmente diligente” (p. 4, § 2.5.2.).

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É certo que algumas ordens jurídicas es-tabeleceram padrões de variação dos valo-res, procurando-se, assim, concretizar oque seja uma “variação importante” ou “in-fluência relevante” sobre a cotação: é o casoda Alemanha que prevê, por parte da socie-dade cotada, um anúncio ao mercado deuma previsível variação em 5% (de subidaou de queda) na cotação das acções em cau-sa47. A jurisprudência sempre aproveitoueste índice como mera indicação orientado-ra, atendendo-se, no entanto, sobretudo nocaso concreto à volatibilidade, liquidez epeso relativo do valor mobiliário e à com-paração da variação com outros valores co-tados análogos e índices bolsistas. Nunca seencarou, portanto, a dita bitola como abso-lutamente vinculativa. Na literatura recen-te têm surgido críticas a este mecanismo doplus-minus 5 %48. Tem-se, com efeito, apon-tado que a utilização do referido critérioaferidor da relevância da variação das cota-ções penaliza as pequenas e médias empre-sas, descurando-se a proporcionalidade quedeve emanar da importância relativa dos

vários emitentes no contexto da negociaçãoglobal registada no mercado.

Na linha das críticas e correcções casuís-ticas a este critério realizadas pela doutrinae praxis alemãs, parece-nos que não é de tri-lhar o caminho apontado. Não só o anúncioem causa acaba por ter um efeito mínimo,já que o que relevará é depois a ponderaçãocomparativa entre as acções e o mercadoem geral, como é perverso estarmos a arti-ficializar um juízo que necessariamente es-capa a pré-entendimentos49.

Ainda que seja patente a dificuldade dese considerarem plenamente operativos cri-térios “quantitativos” para fundamentar adelimitação da “potencial influência rele-vante” – por nós agregados na intensidadeda influência – deve-se reconhecer que ficareservada uma função indiciadora impor-tante para estes mecanismos de mensura-ção, aliás, como vimos, acolhidos em algunsdos mercados de valores mobiliários maiseficientes50.

IV– A relevância do facto para influir demaneira relevante nas cotações ou na capaci-

O DEVER DOS EMITENTES DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES : 43

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47 Em relação às obrigações e instrumentos financeiros derivados os valores são inferiores (1,5 %); cf. CLAUSSEN,“Insiderhandelsverbot...”, ob. cit., p. 84.48 Cf. HOPT, “Insider …”, ob. cit., p. 14.49 Por seu turno, a prática regulatória e jurisprudencial norte-americana admite a denominada “mosaic misrepre-sentation” e a “bespeaks caution doctrine”, ou seja, o investidor médio não pode invocar a insuficiência informativarelevante quando tenha sido inserido na peça informativa em causa uma nota justificativa (“disclaimer”, “cautionarylanguage”) acerca da contingência/incompletude dos “factos” anunciados ou do risco de omissão. Contudo, THO-MAS LEE HAZEN, The Law of Securities Regulation, 3.ª ed., St. Paul, 1996, pp. 798-799, alerta para a necessidade dese atender a esta teoria (acolhida pelo Supremo Tribunal sobretudo nos casos de “projecções” e “prospectivas”) comcautela, sob pena de se “neutralizar” o próprio dever de informação sobre factos relevantes. Não vemos, de qual-quer modo, como acolher este entendimento à luz da nossa lei, designadamente no que respeita aos artigos 7.º e248.º.50 Além do mercado alemão, atente-se, igualmente, no mercado nipónico, em que a autoridade de supervisão di-vulga uma lista indiciária de factos relevantes em função do expectável impacto quantitativo do facto sobre a situa-ção empresarial do emitente: nomeadamente, se determinado “desastre natural” afectaria mais de 3% dos activoslíquidos (net assets) ou se determinada fusão implicaria um aumento superior a 10% no volume de negócios ou de30% em relação aos activos financeiros (net assets). Cf., para mais desenvolvimentos, relatório do Comité Técnicoda OICV/IOSCO “Principles for ongoing disclosure and material development reporting by listed entities” (anexo rela-tivo ao Japão). Entretanto, foram avançados alguns elementos que podem ajudar a enquadrar a determinação dequando estamos perante uma “variação importante” da cotação (artigo 68.º, n.º 1, da Directiva n.º 2001/34/CE): dis-persão do valor mobiliário pelo mercado, liquidez do valor mobiliário em causa, peso relativo do mesmo no con-texto das transacções na bolsa, realizando-se, com efeitos meramente indicativos, uma média da cotação nos últi-mos meses, por exemplo.

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I – O emitente confrontado com a existên-cia de factos relevantes, nos termos descri-tos, deve imediatamente comunicá-los àCMVM que promove a sua divulgaçãoatravés do sistema de difusão de informa-ções criado para o efeito52. A comunicaçãodeve ser feita simultaneamente à entidadegestora da bolsa onde o valor mobiliárioestá admitido à negociação (artigo 244.º, n.º 1).

A divulgação de factos relevantes deve

ocorrer fora do horário de funcionamentoda bolsa, embora a CMVM possa autorizá-la atendendo à urgência da informação emcausa ou à existência de legítimos interessesdo emitente. Todavia, nos termos gerais(artigo 206.º, alínea b)), pode justificar-se,em sede de comunicação de factos relevan-tes, a utilização pela entidade gestora domercado do mecanismo da suspensão pro-visória da negociação do valor mobiliárioem causa, verificada a susceptibilidade de,

44 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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51 Constante do documento Entendimentos..., ob. cit., p. 7. Quase todas as autoridades de supervisão responsáveispor monitorar a aplicação de cláusulas gerais de dever como o artigo 248.º (por via da Directiva, leia-se, desde logo,todas as jurisdições da União Europeia) socorrem-se desta técnica enumerativa para orientar os emitentes no res-pectivo cumprimento. Paradigmaticamente, e fora da União Europeia, cf. exemplo recente brasileiro, constante dojá citado relatório da OICV/IOSCO, de Outubro de 2002, “Principles for ongoing disclosure...”, (anexo relativo aoBrasil).52 Em desenvolvimento do artigo 244.º, n.º 1, vide o artigo 1.º-A, n.º 1, do Regulamento da CMVM n.º 11/2000 (oRegulamento n.º 24/2000, de 5 de Julho, que procede à republicação do Regulamento n.º 11/2000, foi publicado noDiário da República, II Série, de 19 de Julho). O artigo 367.º refere, entretanto, o sistema de difusão de informa-ções para divulgação de factos relevantes. O artigo 3.º, n.º 2, alínea a) promove a publicação do facto relevante noboletim do mercado regulamentado em causa. Note-se, por fim, que no caso do facto relevante se referir a proces-so de falência do emitente, a comunicação em causa está sujeita à dupla publicação imposta pelo artigo 2.º, n.º 2, alí-nea n), do mesmo Regulamento da CMVM. Por sua vez, o artigo 6.º, n.º 1, 2.º §, da Directiva n.º 2003/6/CE (abu-so de mercado) prescreve que os Estados-Membros devem assegurar que os emitentes colocarão no respectivo sítioda Internet, durante um período de tempo adequado, todas as informações privilegiadas (já vimos que, por defini-ção, “relevantes” para a análise que nos interessa) que sejam obrigados a tornar públicas.

dade de o emitente cumprir compromissosanteriormente assumidos não é susceptívelde poder ser determinada segundo critériosautomatizantes ou generalistas na formula-ção de regras de padronização dessa “in-fluência relevante”. Cabe ao emitente anali-sar, face às circunstâncias concretas que en-volvem a sua actividade e situação económi-ca ou financeira e no contexto do mercadoem causa, a verificação desse requisito paraefeitos de aplicação do artigo 248.º.

O impacto relevante do facto sobre aavaliação do investimento descobrir-se-á,por definição, na natureza excepcional da-

quele, precisamente pelo desvio que impli-ca no curso empresarial normal do emiten-te (o n.º 1 do artigo 248.º convoca, aliás, o“andamento normal dos negócios”).

Ainda que o sistema português de regu-lação do dever de informar sobre factos re-levantes se inscreva no universo das jurisdi-ções que adoptam o modelo da cláusula ge-ral da relevância, é possível alinhavar listasindicativas de factos que, pelas suas carac-terísticas de excepcional magnitude e signi-ficância, revestem uma natureza indiciaria-mente relevante. Oportunamente, aliás, aCMVM divulgou uma lista deste tipo51.

3. PROCEDIMENTOS A ADOPTAR NA COMUNICAÇÃO DE FACTOS RELEVANTES

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com razoável grau de probabilidade, o fac-to a divulgar ou já divulgado perturbar oregular desenvolvimento da negociação53.

Conforme referido, a divulgação de fac-to relevante está sujeita aos princípios dacompletude, veracidade, clareza, objectivi-dade e licitude no que respeita à informa-ção propriamente dita (artigo 7.º).

II – O n.º 2 do artigo 1.º-A do Regula-mento da CMVM n.º 11/2000 esclarece queos emitentes devem guardar segredo sobrea existência de factos relevantes até à res-pectiva divulgação no sistema de difusão deinformações da CMVM. Vimos já, entre-tanto, que o dever de segredo quanto aostermos em que decorre um processo de ges-tação de um “facto eventualmente relevan-te” – e que, portanto, ainda nem sequerexiste enquanto “facto” – é a melhor formade prevenir a divulgação precoce e, portan-to, potencialmente gravosa ou, no mínimo,contraproducente na perspectiva do inte-resse do emitente, de facto relevante ocorri-do na sua esfera de actividade.

Com efeito, importa retomar, a propósi-to do mencionado dever de segredo, as es-pecificidades que envolvem os denomina-dos processos de formação de factos que seantevêem como podendo vir a ser conside-rados relevantes.

Durante a fase de segredo, tudo o que serefira ao facto em análise ou, em termos la-tos, em preparação, constitui informaçãoreservada e, portanto, deve exigir-se que asociedade adopte as medidas apropriadaspara garantir a manutenção do segredoquanto a essa preparação54. A título de

exemplo da diligência exigida a uma socie-dade cotada colocada perante uma situaçãocom a descrita, refira-se a necessidade de serestringir ao máximo o número de pessoasconhecedoras da informação confidencial ede se evitar o respectivo acesso por parte depessoas que a não conheçam.

Este dever de discrição deve ser prosse-guido em moldes tais que se evite a existên-cia de manobras lesivas da regularidade dofuncionamento do mercado55. Assim, porexemplo quando estão em curso processosde gestação de factos potencialmente rele-vantes, a sociedade cotada deve estar espe-cialmente atenta à evolução da cotação dassuas acções no mercado: se se verificar umaoscilação anormal (que não reflecte o com-portamento geral do mercado ou do sector)nas cotações ou nos volumes transacciona-dos, a sociedade em causa deve apreciar es-sas circunstâncias na perspectiva do riscodo “círculo de segredo” poder ter sido vio-lado e, em consonância, ora agir de modo aassegurar o reforço da prevenção para quetal não se materialize, ora a divulgar ime-diatamente à CMVM o conteúdo dos seusplanos ou preparações.

Por sua vez, a propósito da preparaçãodas reuniões com analistas, accionistas oujornalistas, prevendo-se eventuais juízos deopinião por parte dos responsáveis da em-presa ou perguntas conexas com a informa-ção relevante ainda apenas do conhecimen-to de círculo restrito de pessoas, não devehaver revelação desse tipo de informaçãonesse momento sem simultânea ou previa-mente a mesma ter sido difundida junto dopúblico.

O DEVER DOS EMITENTES DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES : 45

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53 Para a CMVM, quanto à suspensão da negociação, cf. artigos 208.º e 361.º, n.º 2, alínea e).54 O documento da OICV/IOSCO a que nos temos referido, Principles..., p. 6, prescreve igualmente o dever de con-fidencialidade do emitente nestes casos como contrapartida pelo facto de, nestas situações de gestação do facto po-tencialmente relevante, estar a ser dada uma utilização não equitativa da informação price sentive (leia-se, por exem-plo, “decurso de negociações tendo em vista X” ou “dados disponíveis que estão na base de determinado processode análise e/ou decisão interno”) a favor das pessoas que compõem o círculo reservado.55 Cf. artigos 378.º e 379.º.

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Caso, contudo, inadvertidamente exis-tam fugas de informação durante o proces-so de formação de um facto – em regra, de-sencadeando rumores ou circulação de in-formação enganosa (porque incompleta oupouco clara, por exemplo, ou porque falsatout court – já vimos anteriormente que oartigo 248.º acomoda a divulgação ime-diata da respectiva confirmação ou des-mentido.

III – Atendendo à crescente internacio-nalização e consequente integração dosmercados de valores mobiliários, importaatender à divulgação de informação sobrefactos relevantes por parte de emitente comvalores mobiliários admitidos simultanea-mente à negociação em bolsa portuguesa eem bolsa estrangeira.

Nestes casos rege o artigo 244.º, n.º 2 e n.º3, respectivamente, conforme esteja emcausa mercado estrangeiro a funcionar emEstado membro da Comunidade Europeiaou em Estado não pertencente a esta. Oemitente deve prestar ao mercado portu-guês as informações equivalentes às quedeve prestar ao mercado e autoridades es-trangeiras, devendo, no caso de mercado afuncionar fora da Comunidade Europeia,divulgar ainda “as informações adicionais

que sejam relevantes para a avaliação dosvalores mobiliários”.

Para estes efeitos, não foi acolhida umasolução regulatória que passasse pela apli-cação do dever por referência à norma apli-cável no mercado de origem da negociaçãodos valores mobiliários do emitente ou à domercado de referência (vg. onde se transac-ciona maior quantidade dos valores mobi-liários em causa). Assim, pode, em teoria,ser necessário divulgar em Portugal umfacto que não sendo, por qualquer motivo,relevante face à nossa lei, o é face à ordemjurídica que rege outro mercado de nego-ciação do valor mobiliário. A divulgaçãoocorreria, aliás, nos mesmos termos, caso acomunicação da informação seja dispensa-da pela autoridade de supervisão estrangei-ra e a CMVM, nos termos do artigo 250.º,não acompanhasse essa decisão.

Por fim, em homenagem ao princípio deigualdade de tratamento dos investidores(na modalidade de indiferença quanto aoEstado em que residam), deve ser assegura-da uma adequada articulação da divulgaçãointernacional da informação sobre factos re-levantes, designadamente no que respeita aomeio de comunicação utilizado e, sobretudo,às diferenças de fusos horários e períodos defuncionamento dos mercados em causa.

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56 Cf. nosso O dever de informação..., ob. cit., pp. 85 e ss.. Em sentido contrário, cf. CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, "Ainformação...", ob. cit., p. 343.

4. A DISPENSA DE PUBLICAÇÃO DA INFORMAÇÃO SOBRE FACTOS RELEVANTES

I – No respeito pela Directiva n.º 2001/34//CE, o artigo 250.º, n.º 1, alínea a), admite adispensa pela CMVM da publicação da in-formação sobre factos relevantes.

Tal dispensa justificar-se-á apenas nos ca-sos em que a divulgação da informação pos-sa prejudicar de modo desproporcionado le-

gítimos interesses do emitente, pelo que, na-turalmente, assume carácter excepcional.

A lei mobiliária confirmou, assim, o quepara nós já era admissível à luz dos artigos339.º, n.º 4, e 145.º, n.º 3, ambos do Códigodo Mercado de Valores Mobiliários56, masautonomizou da causa de "prejuízo grave

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para o emitente", constante do artigo 145.ºdo Código do Mercado, dois parâmetrosdistintos para efeitos de se aferir da possibi-lidade de ser atribuída a dispensa: na alíneaa) do n.º 1 do artigo 250.º faz-se agora refe-rência a "prejuízo desproporcionado de le-gítimos interesses do emitente", enquantona alínea b) do mesmo artigo se mandaatender ao "prejuízo grave para o emitente"(cumulativamente com a contrariedade aointeresse público).

Nos termos do citado artigo 250.º, n.º 1,alínea a) (em confronto com a respectivaalínea b), apenas a primeira causa, e desdeque implicando lesão desproporcionada, éque poderá fundamentar uma decisão dedispensa. Cai, à partida, a ponderação dadispensa no quadro da indução em erro dosinvestidores por omissão de informação so-bre factos e circunstâncias essenciais à ava-liação dos valores mobiliários, tal como ad-mitido no regime do Código do Mercadode Valores Mobiliários, mas agora circuns-crito, ex vi da alínea b) do n.º 1 do artigo250.º, à situação da contrariedade ao inte-resse público com prejuízo grave para oemitente.

II – O instituto da dispensa tal comoconfigurado na alínea a) do n.º 1 do artigo250.º desempenha uma função importantena monitorização da aplicação do dever deinformação sobre factos relevantes. O inte-resse do investidor e, por ele, do mercado,que subjaz ao artigo 248.º é limitado – ain-da que de forma restritiva e excepcional –pelo interesse legítimo do emitente.

Todavia, o Código de 1999 não deixoude delimitar melhor a instância de ponde-ração desse interesse do emitente. Contra-riamente ao que poderia resultar do Códi-go do Mercado de Valores Mobiliários,além de se tratar de um interesse "legítimo"a respectiva lesão deve ser "desproporcio-

nada". Desta feita, inovatoriamente, a leiportuguesa obriga a que se interponha, nodecurso do processo de análise do pedidode dispensa, um juízo de concatenação dosinteresses em presença, por definição, deforma concertada e integrada, não apenasatento o "prejuízo grave do interesse doemitente" (como na alínea b) do n.º 1 do ar-tigo 250.º ou no anterior artigo 145.º do Có-digo do Mercado de Valores Mobiliários).Propendemos, assim, para considerar quena alínea respeitante à dispensa de publica-ção da informação relevante o legislador foimais exigente, leia-se restritivo, na admissi-bilidade da dispensa em virtude da ponde-ração do interesse do emitente.

Por seu turno, não obstante o intuito cla-rificador do Código e de arrumação con-forme à Directiva, pensamos que não sepode deixar de se atender, mesmo que paraefeitos da alínea a) relativa à informação so-bre factos relevantes, à cláusula da "essen-cialidade dos factos e circunstâncias" quenão podem deixar de ser publicitados juntodos investidores, sob pena de induzirem es-tes em erro. Na realidade, não vemos comoseja possível considerar desproporcionada alesão do legítimo interesse do emitentequando estejam em causa factos que incor-poram tal intensidade de relevância que as-cendem à categoria de "essenciais" para adefinição da decisão de (des)investimentopor parte dos investidores. Para mais,quando é a própria lei que recusa a dispen-sa de publicação de informação essencialmesmo que a mesma contrarie o interessepúblico e possa causar prejuízo grave aoemitente (alínea b) do n.º 1 do artigo 250.º).

Também neste ponto específico importacompulsar a já referida Directiva n.º 2003/6//CE (abuso de mercado). O artigo 6.º, n.º 2,desta Directiva estipula, para efeitos de di-vulgação de informação privilegiada57, queo emitente pode assumir a responsabilidade

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57 Cf. supra nota 38, para a articulação deste conceito com o de “facto relevante”.

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da divulgação em causa de modo a não pre-judicar os seus legítimos interesses, desdeque tal omissão não seja susceptível de indu-zir o público em erro. Acautelando o escru-tínio desta faculdade atribuída ao emitente,a Directiva admite, entretanto, que, nestescasos, a transposição da Directiva para o Di-reito interno venha a estabelecer o dever deo emitente informar imediatamente a auto-ridade de supervisão da decisão de diferir apublicação da informação relevante em cau-sa. Pensando no quadro do Direito vigenteactual – e sem prejuízo, naturalmente, dostermos em que decorrerá a transposição daDirectiva n.º 2003/6/CE para a nossa ordemjurídica – esta como que “inversão do ónus”na decisão de adiar a divulgação do facto re-

levante é mitigada pelo facto da lei atribuir àCMVM o poder de se substituir às entidadessupervisionadas no cumprimento de deve-res de informação (artigo 361.º, n.º 2, alíneaf)).

Por fim, pelos motivos anteriormenteexpostos, na pendência da decisão daCMVM sobre a dispensa ou, tendo esta sidoautorizada, mantém-se o dever de segredopor parte do emitente a que anteriormentefizemos alusão quando abordámos questãodos rumores e dos processos de formaçãodo facto potencialmente relevante. Man-tém-se, por isso, a justificação para que casoo círculo de confidencialidade se rompa oemitente divulgue imediatamente o factorelevante58.

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58 Este ponto é agora expressamente referido no citado artigo 6.º, n.º 2, da Directiva n.º 2003/6/CE.

5. CONSEQUÊNCIAS DA VIOLAÇÃO DO DEVER DE INFORMAR SOBRE FACTOS RELEVANTES

I – A violação da obrigação de informar so-bre factos relevantes faz impender sobre oemitente inadimplente determinadas san-ções contra-ordenacionais.

A infracção é sancionada, no caso de fal-ta de publicação, com coima cuja molduramínima é de 25.000 euros e cuja molduramáxima é de 2.500.000 euros (alínea h) don.º 1 do artigo 394.º). Caso falte a comuni-cação à CMVM ou à entidade gestora debolsa, o emitente está sujeito à sanção decoima que pode oscilar entre os 12.500 eu-ros e os 1.250.000 euros (alíneas a) e e) do n.º2 do artigo 394.º).

Em ambos os casos referidos, entretanto,é ainda possível que sejam aplicadas san-ções acessórias nos termos do artigo 404.º,designadamente a perda do benefício eco-nómico obtido com a infracção ou a publi-cação da punição contra-ordenacional.

II – O incumprimento do dever de co-municação de factos relevantes pode cons-tituir o emitente no dever de indemnizar oslesados (artigo 251.º). Não pretendemos,naturalmente, nesta sede sequer enunciaros complexos contornos da responsabilida-de civil pela informação, designadamentequando o artigo 251.º remete, com adapta-ções, para o regime da responsabilidade ci-vil pela informação constante do prospecto(artigos 149.º a 154.º ex vi do artigo 243.º).Deixamos apenas, atendendo à importân-cia prática que a questão pode assumir nocontexto das relações entre os investidores eo emitente, algumas notas a propósito doregime jurídico da responsabilidade civildo emitente pela violação da obrigação deinformar sobre factos relevantes.

Embora seja questão controversa, preco-nizamos a tese que tem vindo a considerar

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que normas como o artigo 248.º são passí-veis de ser reconduzidas às "normas de pro-tecção" previstas no artigo 483.º, n.º 1, 2.ªparte do Código Civil. A autonomizaçãode regime é, assim, fruto das especificida-des do mercado: a contratação no mercadode valores mobiliários está fora dos esque-mas clássicos de protecção da correcta for-mação da vontade, seja pela massificação eceleridade das transacções, seja pela auto-matização dessas transacções. Este regimeé, assim, fruto do fenómeno que se verificana responsabilidade civil em geral, no sen-tido de que, grosso modo, não conseguindoabarcar todos os casos de responsabilidade,o artigo 483.º do Código Civil potencia a ti-pificação de figuras e sub-figuras paralelasao “esquema padrão” 59.

Em relação à ilicitude, além do que ficadito a propósito do artigo 483.º do CódigoCivil, encontramos no comportamentoomissivo ou activo (de forma defeituosa) doemitente a desconformidade com a ordemjurídica, no caso vertente, pela obrigatorie-dade de divulgação da informação nas cir-cunstâncias do artigo 248.º.

O emitente deve ter (ou é-lhe exigidoque tivesse tido) conhecimento da potencialrelevância dos factos em causa. Releva, as-sim, não só o dolo de ocultar ou de distor-cer a informação relevante, como também

o desconhecimento negligente da necessi-dade de informar ou mesmo do própriofacto. Presume-se a culpa do emitente porforça do artigo 149.º, n.º 1.

Quanto ao dano, rege o artigo 152.º, n.º1, que, com as adaptações relativas ao arti-go 248.º (ex vi do artigo 250.º), estipula ostermos do cálculo do prejuízo. No caso deprejuízo derivado de uma aquisição de umvalor mobiliário sobre-avaliado devido aodesrespeito do dever de informação do ar-tigo 248.º, o prejuízo a indemnizar corres-ponderá à diferença entre o preço pelo qualo valor mobiliário foi adquirido e o preço(necessariamente inferior) por que o valormobiliário seria vendido na data do pedidode indemnização (dano emergente). Nocaso de prejuízo derivado de uma nãoaquisição de determinado valor subavalia-do em consequência do desrespeito do cita-do artigo 248.º, o prejuízo a indemnizarcorresponderá à diferença entre o preço dovalor mobiliário no momento em que nas-ceu a obrigação de informar na esfera jurí-dica do emitente e o preço pelo qual o valormobiliário poderia ser vendido na data dopedido de indemnização (lucros cessantes).

O emitente pode eximir-se à responsabi-lidade, provando a culpa do investidor lesa-do (artigo 149.º, n.º 3, similarmente ao arti-go 570.º do Código Civil); ou invocar a re-

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59 Parafraseando, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Parecer sobre a Privatização da Sociedade Financeira e víciosocultos. Das Pretensões de reparação”, AAVV in Privatização da Sociedade Financeira, ob. cit., pp. 148 e ss., e, so-bretudo, A Responsabilidade Civil dos Administradores…, ob cit., pp. 230 e ss., designadamente no que respeita aoaventado “fenómeno de especialização periférica”.Também com interesse, vide JORGE SINDE MONTEIRO, Responsa-bilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Coimbra, p. 176; MANUEL GOMES DA SILVA e RITA

AMARAL CABRAL, AAVV, A Privatização da Sociedade Financeira Portuguesa, LEX, Lisboa, 1995, pp. 311 e ss., des-tacando a referência que fazemos no texto ao fenómeno da "massificação e celeridade" como envolvente jus-eco-nómica para esquema de imputação da responsabilidade civil mobiliária; já CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, " A in-formação...", ob. cit., pp. 343-344, realça o carácter "tendencialmente ilimitado" deste tipo de responsabilidade; naAlemanha, testemunhando a querela em torno da responsabilidade civil pelo prospecto (indemnizabilidade vsprincípio da intangibilidade do capital social e o inerente corolário da irrepetibilidade do investimento), cf. o ain-da assim pertinente KLAUS HOPT, Die Verantwortlichkeit der Banken dei Emissionen. Recht und Praxis in der EG, inDeutschland und in der Schweiz, trad. It. C. Honorati, Le Banche nel Mercato dei Capitali, Milano, 1995, nota 194.Em Espanha, por exemplo, em posição corroborada pela recente lei mobiliária, cf. ALEJANDRO ARAOZ GÓMEZ--ACEBO, La Responsabilidad Civil de las Entidades Colocadoras de Valores por el Contenido del Folleto Informativo, Ca-dernos de Derecho Bancario y Bursátil, Edersa, Madrid, 1995, p. 120-141 e 240-247. Para mais desenvolvimentos,ainda que à luz da lei mobiliária anterior, cf., por fim, o nosso "O dever de informação...", ob. cit., pp. 94 e ss.

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dução do montante do dano indemnizávelnos termos do artigo 152.º, n.º 2 (concursode causas). Aliás, no que respeita ao nexode causalidade (artigo 149.º, n.º 1, proémio)vigorando é certo a regra da causalidadeadequada (artigo 563.º do Código Civil),detectar-se-á sempre, como dificuldade es-trutural dos processos de imputação noquadro da violação de deveres de informa-ção mobiliários, o concurso de causas, pordefinição, típicas no funcionamento domercado em que o valor mobiliário está ad-mitido à negociação: a influência potencialdo facto sobre o preço ou sobre a capacida-de do emitente para cumprir os seus com-promissos tem de ser "isolada" do curso real– e, portanto, entretanto já decorrido – da

cotação do valor mobiliário, bem como,para efeitos do artigo 248.º, n.º 2, das vicis-situdes registadas na esfera patrimonial doemitente para efeitos de cumprimento dasobrigações emergentes do seu estatuto dedevedor obrigacionista.

Por fim, nos termos do artigo 243.º, alí-nea b), quanto ao prazo para o exercício dodireito à indemnização por violação do de-ver de informação sobre factos relevantes,relevará, para efeitos do prazo legal de seismeses, o momento em que o investidor teveconhecimento – ou devia ter tido – daomissão da informação potencialmente re-levante ou do carácter deficiente de ante-rior divulgação (porque informação in-completa, inexacta, etc).

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